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Isabel Anunciação Ferraz Camisão
A UNIÃO EUROPEIA PÓS-NICE NA BIFURCAÇÃO: QUE
CAMINHO(S)?
Dissertação de Mestrado em Estudos Europeus apresentada para a obtenção do grau de Mestre
em Estudos Europeus*
Orientador: Professor Luís Filipe Lobo-Fernandes
* O presente documento é uma versão reduzida e adaptada do trabalho original (ao qual foram retirados
alguns capítulos) de forma a respeitar o número máximo de páginas estabelecido pelo regulamento do
concurso.
Universidade do Minho
Escola de Economia e Gestão
Braga, 2003
AGRADECIMENTOS
A tarefa que me propuz nesta dissertação não teria sido possível sem o contributo
inestimável de um conjunto de pessoas. Em primeiro lugar, uma palavra de apreço especial e
de profundo agradecimento para o meu orientador, o Professor Luís Filipe Lobo-Fernandes,
cujos sábios conselhos, sempre modestamente apresentados como propostas, denotam um
singular rigor intelectual, sobejamente reconhecido no meio académico, mas que, ano após
ano, não cessa de me surpreender. O seu entusiasmo, o seu vastíssimo conhecimento dos
temas comunitários e a sua actualização permanente, fizeram da minha investigação uma
jornada empolgante, marcada pela exigência, mas também pela consciência de que para lá do
caminho percorrido fica ainda um mar de possibilidades por explorar.
Esta dissertação é, todavia, o culminar de um processo iniciado com a admissão no VI
Curso de Mestrado em Estudos Europeus da Universidade do Minho. Por esta razão, os meus
agradecimentos não estariam completos sem uma referência aos responsáveis por este curso
que, mesmo roubando horas a um merecido descanso debatendo-se com a incontornável
burocracia, insistiram em manter de pé um mestrado de reconhecido prestígio nacional. Uma
palavra ainda para os professores cujo rigor científico suscitou um olhar crítico e aprofundado
sobre a União Europeia e para os colegas cuja camaradagem proporcionou um excelente
ambiente de trabalho.
Por fim, permitindo-me uma nota de cariz mais pessoal, o meu obrigada vai também
para o meu marido, pelo apoio incondicional e pela inesgotável paciência que demonstrou ao
assumir a tarefa de imprimir o resultado das minhas intermináveis “navegações” na internet.
- iii -
RESUMO ANALÍTICO
Esta dissertação procura demonstrar em que medida os últimos anos da história
comunitária revelam uma evolução de cariz neofederal. Conclui que as inovações
introduzidas pelos três últimos tratados (Maastricht, Amesterdão e Nice) representam, embora
em escalas diferentes, um salto qualitativo na construção de uma união política alicerçada em
premissas de natureza federalizante. Não obstante, nota também que - apesar do ritmo
frenético das conferências intergovernamentais - não foi ainda possível operar a desejável
reforma de fundo do sistema comunitário, indispensável a um maior aprofundamento político
e ao ambicioso alargamento que se avizinha. Na realidade, o número de CIG’s parece mesmo
ter aumentado proporcionalmente à diminuição da sua eficácia.
Este estudo revela ainda que o pós-Nice, considerado o período de “grandes escolhas”,
surge como uma tentativa de inverter esta tendência: a aposta num debate alargado, aberto à
participação dos cidadãos e numa Convenção encarregue de redigir uma constituição para a
UE, marca o início de uma fase decisiva do projecto comunitário que, se bem sucedida,
representará o salto para um novo estádio da integração. Os modelos propostos são
heterogéneos, mas a tendência parece apontar para aquele que nomeadamente Elfriede
Regelsberger classificou de cenário federal/constitucional. Ainda assim, sublinha-se que está
nas mãos dos convencionais e dos Estados-membros produzir um texto capaz de reflectir esta
viragem; sendo que a alternativa será provavelmente mais um “estranho híbrido” talvez
incompreensível para o cidadão europeu.
Esta dissertação defende também que o federalismo comunitário – que preferimos
designar de neofederalismo - é na sua essência um federalismo aberto, alicerçado no respeito
pela diversidade e na proximidade dos cidadãos, pelo que embora recebendo “inspiração” dos
modelos federais existentes (EUA, Alemanha, Suíça), não se confunde com nenhum deles.
- iv -
A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
Ainda assim, e mesmo não visando a construção de um superestado europeu, parece certo que
a concretização desta nova forma de organização política marcará uma transformação
qualitativa assinalável do sistema internacional, até aqui “dominado” pela centralidade do
estado-nação.
Em suma, esta dissertação conclui que a União é, e muito provavelmente permanecerá,
uma construção única, assente numa dupla legitimidade – Estados e povos - cujo sucesso
reside num modelo misto que, apesar do progressivo reforço de elementos federadores, não
negará certamente as potencialidades da cooperação intergovernamental. Por esta razão, o
neofederalismo parece apresentar-se como a melhor forma de conseguir a desejada superação
da tensão entre a Europa intergovernamental e a Europa supranacional, o mesmo será dizer
entre a associação voluntária dos Estados e o “Estado federal”. Sublinha-se, porém, que
caberá aos convencionais (e posteriormente aos líderes europeus) elaborar um figurino
institucional capaz simultaneamente de reflectir esta singularidade e de fazer uma aposta
“definitiva” no cidadão europeu, quer através do reforço da sua participação política, quer
através de uma clarificação do intrincado sistema de governação multinível da CE/UE. A
conciência plena do “para que serve a União?” desculpará certamente os eventuais
“sacríficios” do interesse nacional ditados pela pertença a uma entidade que continua sem
rival no papel de catalizador da paz, da prosperidade e da democracia no continente europeu.
- v -
ABSTRACT
This dissertation seeks to demonstrate to what extent the last years of the Community
history reveal an option for a neofederal evolution model. It concludes that the innovations of
the last three treaties (Maastricht, Amsterdam and Nice) represent, though in a different scale,
a qualitative step in the contruction of a political union build on federal premisses.
Nevertheless, it also notes that, in spite of intergovernmental conferences’ frenetic rhythm, it
has not still been possible to manage the desirable reform of the Community system, crucial
both to a bigger political deepening and to the next enlargement. In fact, the IGC’s number
seems to have increased proportionally to the decrease of its inefficacy.
This study further reveals that the post-Nice period, considered the period of the “great
choices”, appears to be an attempt to invert this tendency: the bet on a wider debate, open to
citizens, and in a Convention entruste with the writting of an EU constitution, marks the
beggining of decisive stage which, if sucessfull, will lead to a new stadium of the european
integration. The so far proposed models are heterogeneous, but the tendency seems to point
for Elfriede Regelsberger’s federal/constitutional hypothesis. Yet, this dissertation
emphasizes that it is in the conventionals’ hands to produce a text capable of reflecting this
change; being the alternative another “strange hybrid” unintelligible to the european citizen.
This dissertation posits, furthermore, that the Community federalism – which we
prefer to call neofederalism – is an open federalism built on the respect for diversity and in the
proximity to the citizens. That is why, even receiving inspiration from the existent federal
models (USA, Germany, Switzerland) it is not similar to any of them. However,
even though it is not aimed to generate a superstate, it will create a new form of political
organization that can represent a qualitative transformation of the international system, thus
far “dominated” by the centrality of the nation-state.
- vi -
A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
In sum, this dissertation concludes that the Union is, and probably will remain, a
unique construction, based on a double legitimacy – States and people – whose success lays
on a hibrid model which, in spite of the progressive strenghtening of the federative elements,
does not neglect intergovernmental cooperation potential. For that reason, neofederalism
seems to present itself as the best way of getting the desirable surmountableness of the tension
between intergovernmental and supranational Europe, that is to say, between a States’
voluntary association and a “federal state”. Yet, it is up to the conventionals (and afterwards
to the European leaders) to draw an institutional pattern both capable of reflecting this
European singularity and make a clear bet on the European citizen, either by reinforcing its
political participation and by clarifying the EC/EU multilevel governance. The fully
consciousness of “what the Union is for?” will most certainly excuse an eventual “sacrifice”
of the national interest, dictated by the belonging to an entity which remains without a rival as
the catalyst for peace, prosperity and democracy in the European continent.
- vii -
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS __________________________________________________ iii
RESUMO ANALÍTICO _________________________________________________ iv
ABSTRACT ___________________________________________________________ vi
GLOSSÁRIO _________________________________________________________ xi
INTRODUÇÃO _______________________________________________________ 14
PRIMEIRA PARTE - DE MAASTRICHT A NICE: RUMO A UMA UNIÃO DE
ESTADOS OU ENTRE ESTADOS _______________________________________ 21
Capítulo I. O Tratado de Maastricht: a conclusão da integração económica como
trampolim para a integração política ______________________________________ 27
A) O aprofundamento da integração económica: na senda do federalismo monetário
________________________________________________________________ 29
B) A génese de uma união política: rumo a uma construção de tipo federal? ___ 31
1.1 A eficácia interna da União e a questão da legitimidade do projecto comunitário
_______________________________________________________________ 33
1.1.1 As principais reformas institucionais_______________________ 33
1.1.2 O processo de co-decisão ________________________________ 38
1.1.3 O princípio da subsidiariedade ____________________________ 40
1.1.4 A cidadania da União ___________________________________ 43
1.1.5 O acordo sobre a política social ___________________________48
1.1.6 Justiça e assuntos internos _______________________________50
1.2 O embrião de uma identidade externa da União no domínio político _____ 52
1.3 Conclusão: Maastricht ou a revelação de um federalismo aberto ________ 59
Capítulo II. O Tratado de Amesterdão: do mercado interno à Europa social ____62
- viii -
A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
2.1 A eficácia interna da União e a questão da legitimidade do projecto comunitário
________________________________________________________________ 66
2.1.1 As principais reformas institucionais: as novas disposições e a
reestruturação adiada _________________________________________ 66
2.1.2 A União e o cidadão _____________________________________71
2.1.3 A clarificação do princípio da subsidiariedade ________________ 75
2.1.4 A comunitarização de parte do terceiro pilar: o espaço de segurança,
liberdade e justiça ___________________________________________ 77
2.1.5 A “cooperação reforçada”: uma Europa de geometria variável? ___ 82
2.2 O reforço da capacidade de actuação externa da União _________________ 85
2.3 Conclusão: Amesterdão um Tratado de transição _____________________ 93
Capítulo III. O Tratado de Nice: um passo em frente, dois atrás? ______________ 96
3.1 A eficácia interna da União e a questão da legitimidade do projecto comunitário
_______________________________________________________________ 99
3.1.l As principais reformas institucionais ________________________ 100
3.1.2 Um reforço tímido da Europa dos cidadãos _________________ 114
3.1.3 Um passo limitado para a Europa social ____________________ 116
3.1.4 Uma maior operacionalização da “cooperação reforçada” ______ 117
3.1.5 Um resultado muito modesto no terceiro pilar _______________ 119
3.2 A identidade externa da União: o perpetuar do abismo entre os avanços de jure e
os avanços de facto_____________________________________________________ 120
3.3 O “processo” de constitucionalização: a Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia__________________________________________________127
3.4 Conclusão: uma (re)avaliação de Nice ____________________________ 130
SEGUNDA PARTE – NICE E O PÓS-NICE: QUE CENÁRIOS PARA A NOVA
- ix -
Índice
EUROPA? __________________________________________________________ 133
Capítulo IV. A Declaração de Laeken: uma nova oportunidade? _____________ 135
4.1 O projecto da Declaração: um documento ambicioso _________________ 135
4.2 A Declaração adoptada: o recuo na ambição federal _________________ 137
4.3 Conclusão: uma “Declaração histórica” ou uma “Declaração biodegradável”?
_____________________________________________________________ 141
Capítulo V. A Convenção Europeia _____________________________________ 143
5.1 O porquê da convocação de uma convenção? ______________________ 144
5.2 Composição e regras de funcionamento da Convenção _______________ 148
5.3 A Reforma institucional: as principais propostas em debate ___________ 151
5.3.1. A Comissão Europeia ___________________________________ 152
5.3.2. O Conselho de Ministros ________________________________ 157
5.3.3. O Parlamento Europeu _________________________________ 163
5.3.4. A presidência da União __________________________________ 165
5.4 Conclusão: o projecto de constituição – uma breve nota _____________ 174
CONCLUSÃO ______________________________________________________178
BIBLIOGRAFIA ___________________________________________________ 187
- x -
GLOSSÁRIO
Siglas e Acrónimos mais usados:
CIG Conferência Intergovernamental
PE Parlamento Europeu
PESC Política Externa e de Segurança Comum
TCE Tratado da Comunidade Europeia
TUE Tratado da União Europeia
UE União Europeia
Lista Geral:
AUE Acto Único Europeu
CECA Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
CED Comunidade Europeia de Defesa
CEEA Comunidade Europeia da Energia Atómica (EURATOM)
CES Comité Económico e Social
CIG Conferência Intergovernamental
CMUE Comité Militar da União Europeia
COSAC Conferência dos Órgãos dos Parlamentos Especializados em
Assuntos Europeus
CPE Cooperação Política Europeia
CPS Comité Político e de Segurança
- xi -
A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
EMUE Estado-Maior da União Europeia
Eurojust Unidade Europeia de Cooperação Judicial
EUA Estados Unidos da América
FERR Força Europeia de Reacção Rápida
GATT General Agreement on Tariffs and Trade (Acordo Mundial do Comércio)
IESD Identidade Europeia de Segurança e Defesa
JAI Justiça e Assuntos Internos
NATO North Atlantic Treaty Organization (Organização do Tratado do Atlântico
Norte)
OSCE Organização para a Segurança e Cooperação na Europa
PE Parlamento Europeu
PECSD Política Europeia Comum de Segurança e Defesa
PESC Política Externa e de Segurança Comum
SEBC Sistema Europeu de Bancos Centrais
SME Sistema Monetário Europeu
TUE Tratado da União Europeia
TCE Tratado da Comunidade Europeia
UE União Europeia
UEM União Económica e Monetária
UEO União da Europa Ocidental
vmq votação por maioria qualificada
- xii -
“(...) a utopia europeia em marcha foi, é, a resposta que se nos
impôs ou impôs às nações pilotos dessa mesma Europa para
domesticar, e desta vez, de mútuo acordo, a sua intrínseca barbárie, a
sua demoníaca inquietude que fez delas (e de nós) o Fausto da
história universal” (Lourenço 2001, 239) [ênfase no original].
- xiii -
INTRODUÇÃO
Durante a última década a União Europeia tem procurado responder de forma positiva
ao novo cenário geopolítico e estratégico decorrente da queda do Muro de Berlim e da
desintegração do império soviético. As soluções encontradas, plasmadas em três novos
tratados (Maastricht, Amesterdão e Nice), marcam um ciclo histórico que conferiu ao
processo de integração um renovado alento. Não obstante, em vésperas de um novo
alargamento1, a Europa continua à procura de um rumo: Como funcionará a “Grande
Europa”? Que forma de governação adoptará? Que modelo político – confederal, federal,
misto, ou outro – preconiza? As grandes questões de fundo parecem permanecer sem resposta
e a nova balança institucional emergente em Nice parece mais apta a proporcionar
interrogações do que a conferir a indispensável estabilidade.
Apesar de ter cumprido o seu principal objectivo – remover os obstáculos
institucionais ao próximo alargamento – o mais recente Tratado, longe de contribuir para
clarificar o estado da União, veio acrescentar-lhe novas ambiguidades. As reformas previstas,
em vez de facilitar, parecem dificultar a eficiência da actuação comunitária e a nova balança
de poder deixa adivinhar uma hierarquização dos Estados (com clara vantagem dos
“grandes”) que contraria claramente a máxima comunitária da igualdade jurídica entre os seus
membros. Apelidado por alguns de “fracasso completo”, o Tratado que abriu caminho à
1 Reunidos em Copenhaga a 12 e 13 de Dezembro de 2002, os chefes de Estado e de governo completaram o ambicioso processo iniciado em 1993 (também em Copenhaga) ao concluírem as negociações de adesão com dez dos treze países candidatos a membros da União. Como resultado, ao “clube europeu” juntar-se-ão, a partir de 01 de Maio de 2004, Chipre, República Checa, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta, Polónia, República Eslovaca e Eslovénia, a tempo, portanto, de poderem participar nas eleições para o PE que terão lugar em Junho do mesmo ano. De fora desta nova ronda do alargamento ficarão, por enquanto, a Bulgária, a Roménia e a Turquia. Quanto aos dois primeiros, e de acordo com o definido pelo Conselho Europeu de Bruxelas (24 e 25 de Outubro de 2002), a União aponta como data provável de adesão o ano de 2007. Já no que respeita à Turquia, as previsões do Conselho Europeu de Copenhaga são mais cautelosas. Assim, malgrado a grande pressão para o início imediato das negociações de adesão com o Estado turco, particularmente por parte dos EUA, os líderes europeus acordaram que tais negociações ficarão dependentes de uma apreciação positiva das reformas levadas a cabo na Turquia, pelo conselho europeu de Dezembro de 2004 (que decidirá com base num relatório e numa recomendação apresentados pela Comissão).
- 14 -
A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
adesão de dez novos Estados foi alvo de um processo de ratificação conturbado, tendo mesmo
sido rejeitado num primeiro referendo realizado na Irlanda. Ainda assim, o seu resultado
modesto encontra explicação, pelo menos em parte, num mandato excessivamente limitado da
CIG (herdado de Amesterdão), cujo produto dificilmente poderia ir além de um “Tratado
pequeno” que deixou sem resposta questões de importância vital para o futuro do projecto
europeu2. Assim parecem ter entendido também os chefes de Estado e de governo, em
especial, quando resolveram juntar à acta final da CIG 2000 a “Declaração respeitante ao
futuro da Europa” que chama a atenção para a necessidade de um debate alargado e aberto
sobre o desenvolvimento futuro da União e aponta algumas das questões para as quais se
torna imperativo encontrar uma solução, como sejam: a delimitação de competências entre os
Estados e a União e a consequente clarificação do, ainda algo ambíguo, princípio da
subsidiariedade; o estatuto da Carta dos Direitos Fundamentais; a simplificação dos tratados3
e o papel dos parlamentos nacionais na arquitectura europeia. Pelo exposto, Nice só parece
fazer sentido se entendido como um ponto de partida para uma discussão mais ampla e
aprofundada sobre o futuro de uma União que se quer mais transparente, mais democrática e
mais próxima do cidadão (o aprofundamento da cidadania europeia deverá constituir, aliás,
um ponto chave da reflexão em curso)4.
2 De facto, Nice deixou sem resposta questões que se prendem directamente com a natureza do projecto europeu e que implicam uma reflexão aprofundada sobre matérias tão diversas como o método comunitário, o (des)equilíbrio institucional, a personalidade jurídica da União (ou a ausência dela), a redacção de um texto constitucional ou o papel da União no mundo, apenas para referir algumas. A confirmar isto mesmo está o documento intitulado “Um Projecto para a União Europeia”, apresentado pela Comissão Europeia à Convenção sobre o futuro da Europa, onde pode ler-se: “[E]m Nice, em Dezembro de 2000, os Estados-Membros tomaram as decisões necessárias para assegurar, de um ponto de vista técnico, a adesão de novos Estados. Mas o sentido da integração europeia ou a dimensão do que pretendemos construir em conjunto não foram objecto de debate” (COM (2002) 247 final, 3) [sublinhado nosso]. 3 Questão que surge inevitavelmente ligada à oportunidade de elaborar um texto constitucional. O lançamento das bases de uma constituição europeia foi, aliás, o ponto mais negligenciado durante as negociações que antecederam o novo Tratado. Demasiadamente preocupados com as questões institucionais, os participantes na CIG 2000 pareceram esquecer a importância de definir para onde caminha a União, sendo que, curiosamente, a resposta a esta questão nos parece indispensável para que se possam desencadear quaisquer reformas de fundo (incluindo as institucionais). 4 A este propósito não poderíamos deixar de citar as palavras de António Barreto que, no prefácio à edição portuguesa do livro de Philippe de Schoutheete Uma Europa para Todos, escreveu: “[A] Europa não será
- 15 -
Introdução
O debate iniciado ainda no decorrer da conferência intergovernamental, em grande
medida graças ao hipermediático discurso de Joschka Fischer5, conta já com inúmeras
contribuições de relevo. As soluções para a futura arquitectura europeia são variadas e,
algumas delas, mesmo juridicamente incongruentes (veja-se, a título de exemplo, o aparente
paradoxo que representa a ideia de uma Federação de Estados-nação que, não obstante, nos
parece ser uma das mais apropriadas6). Ainda assim, e malgrado as divergências
provavelmente irreconciliáveis que marcam algumas das propostas, as diversas fórmulas
encontradas para um possível modelo eurocomunitário parecem gravitar, quase
invariavelmente, em torno de um certo “federalismo revisitado” ou, talvez mais
correctamente, de um modelo neofederal.
Na verdade, o facto de a União apresentar já características de recorte federal tornou-
se uma realidade aparente (lembre-se, por exemplo, a existência de federalismo monetário),
muito embora a ideia de uma Federação esteja longe de ser consensual. É reconhecido que a
doutrina federalista permite demasiada “elasticidade” na interpretação dos seus princípios e a
noção “clássica” de federalismo (mais próxima do modelo americano) parece ser aquela que
predomina ainda em muitos dos espíritos, fazendo esquecer o aparecimento de um novo
federalismo europeu, tendencialmente descentralizador. A interrogação central reside,
portanto, no modelo político a adoptar para uma União muitas vezes apelidada de sui generis,
duradoura, ágil e segura enquanto não estiver inscrita e livre no espírito dos cidadãos”. Esta é, de facto, uma realidade incontornável. É verdade que os cidadãos reclamam “mais Europa” em domínios como a preservação da paz e da segurança, a luta contra o desemprego e contra as descriminações sociais, a protecção do ambiente, ou a actuação externa da União. Mas não é menos verdade que este desejo é muitas vezes ensombrado pela sua desconfiança em relação ao funcionamento da “máquina” comunitária. A consequência lógica é um recrudescer de um eurocepticismo, cujo combate deve ser uma prioridade para todos os que aspiram ao sucesso da integração europeia. Ao reconhecerem que o projecto europeu só poderá avançar com o apoio dos cidadãos, os líderes europeus deram já o primeiro passo; cabe-lhes agora garantir que os verdadeiros destinatários desta grande “empreitada” possam compreender melhor e intervir activamente no desenrolar deste processo. 5 Universidade de Humboldt, 12 de Maio de 2000. 6 Ainda que a nossa “preferência” recaia numa “Federação de Estados e cidadãos”. De facto, embora a fórmula originalmente apresentada por Jacques Delors encerre uma ideia de “respeito pela diversidade” que não poderíamos deixar de sublinhar, importa igualmente chamar a atenção para o facto de o conceito de “estado-nação” poder não traduzir correctamente a realidade europeia. Na verdade, em rigor, parece-nos legítimo questionar se a Europa será constituída apenas por Estados-nação, ou mesmo se não existem na Europa mais nações que Estados?
- 16 -
A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
caracterizada por uma governação multi-nível (supra-nacional, nacional e sub-nacional), que é
também uma comunidade de cidadãos (pelo menos em letra de tratado), que possui uma
moeda única, mas que não tem ainda uma defesa comum ou um orçamento adquirido por
meios directos (falamos evidentemente de federalismo fiscal) que lhe confira uma real
autonomia financeira.
O Conselho Europeu de Laeken7, que se esperava pudesse trazer uma contribuição
significativa para o debate em curso, foi, em nossa opinião, bastante menos inovador do que
se previa (graças, em grande medida, à não aceitação, por parte de alguns Estados, dos ideais
federalistas presentes na primeira versão do documento elaborado pela presidência belga da
UE8). Porém, se não foram ainda avançadas soluções, foi pelo menos possível “oficializar” as
inúmeras interrogações às quais urge dar resposta. O seu principal mérito residiu, sobretudo,
na convocação de uma convenção europeia9 à qual foi confiada a missão de “debater os
problemas essenciais colocados pelo futuro desenvolvimento da União e analisar as diferentes
soluções possíveis”. Espera-se que, partindo das reflexões desta convenção, a próxima
conferência intergovernamental (agendada para Outubro de 2003) possa encontrar um modelo
de evolução que permita solidificar e aprofundar o processo de integração europeia
transformando o - até agora - anão político num gigante capaz de igualar a sua, já
incontestável, grande dimensão económica.
Parece-nos, assim, que, pesem embora os actuais problemas conceptuais, e de
classificação, a especificidade desta construção europeia10 não deverá impedir-nos de reflectir
7 14 e 15 de Dezembro de 2001. 8 Nesta primeira versão do documento apresentado no Conselho Europeu de Laeken, a presidência belga da UE defendia mesmo a necessidade de “reinventar a Europa”. 9 Método já anteriormente adoptado com sucesso para a redacção da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. 10 Especificidade que, aliás, cumpre preservar já que ela explica, em nossa opinião, boa parte do sucesso da integração europeia. Como se pode ler na comunicação da Comissão “Um Projecto para a União Europeia” (COM (2002) 247 final, 4), “[S]erá necessário preservar esta singularidade onde cabe à União colocar em prática as políticas comuns mais concretas e realizar, em simultâneo, algumas das missões fundamentais dos Estados sem se tornar um Estado. Porque a construção europeia não obedece a nenhum modelo preexistente. Porque estas especificidades explicam e condicionam o seu sucesso” [ênfase nossa].
- 17 -
Introdução
sobre o seu futuro, devendo antes impelir-nos para uma tentativa de reconceptualização e
reorganização que se nos afigura indispensável na presença desta nova realidade, que continua
a apresentar-se, hoje, como a melhor solução para garantir a paz e a prosperidade do velho
continente11. Este é, na realidade, o objectivo que preside à elaboração da presente
dissertação. Estabelecendo como hipótese central de trabalho a proposição que a União
Europeia caminha para um modelo político de recorte neofederal, procuraremos analisar o
desenvolvimento da vertente política da União no pós-Maastricht (conferindo particular
destaque às alterações introduzidas pelo Tratado de Nice) e traçar um cenário de evolução
europeia, adequado a uma Europa cuja unificação se afigura, hoje, uma possibilidade real.
Estamos conscientes que, pela sua originalidade, o processo de integração europeia
suscita inevitavelmente um grande número de dúvidas metódicas e interrogações (e a
edificação de uma união política, até pela ambiguidade construtiva a que temos assistido, não
é disto excepção). O leque de questões que permanecem em aberto é alargado, bastando
lembrar que está em jogo encontrar um modelo que permita a uma União alargada manter a
capacidade de decisão e a coesão necessárias ao cumprimento das suas missões
fundamentais12, e que, consequentemente, torne possível prosseguir o aprofundamento da
construção comunitária. Não obstante, optamos por formular três interrogações que,
reportando à proposição mais geral do modelo político comunitário acima enunciada, nos
parecem poder melhor sistematizar a ampla problemática que envolve o tema em análise.
11 Como sublinham Jean-Michel Gaillard e Anthony Rowley (1998, 528) “[S]i l’Europe, aujourd’hui réunifiée, cherche la voie d’une nouvelle combinatoire pour assurer la paix entre ses peuples, retrouver une prospérité et une solidarité entamées par un quart de siècle de crise économique, renouer avec la puissance dans um monde d’États-continents où chacune de ces nations n’a pas à l’évidence les moyens de tirer son épingle du jeu, c’est sans doute parce qu’elle sent confusément qu’un retour à l’Europe des nations et à ses concerts et partitions déjà jouées est plus dangereux pour son avenir que l’édification d’un espace solidaire qui pourrait prendre la forme des ‘Etats-Unis d’Europe’”. 12 Num documento apresentado à Convenção sobre o futuro da Europa intitulado “Para a União Europeia, Paz, Liberdade, Solidariedade – Comunicação da Comissão sobre a arquitectura institucional” (CONV 448/02, 3), a Comissão identifica três missões fundamentais para a União do futuro: “a consolidação do seu modelo de desenvolvimento económico e social que garante aos cidadãos prosperidade e solidariedade; o desenvolvimento do seu espaço de liberdade, de segurança e de justiça que conferirá todo o seu significado à noção de cidadania europeia e o exercício pela União das responsabilidades de uma potência mundial”.
- 18 -
A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
Assim, permitirão as modificações introduzidas pelos três últimos Tratados (Maastricht,
Amesterdão e Nice) antever a opção pela via neofederal? Qual a estrutura política adequada a
uma União que ambiciona ser um factor de estabilização e uma referência no novo sistema
internacional, mas que poderá ver, em apenas alguns anos, duplicar o seu número de
membros? Qual o papel atribuído aos cidadãos no avanço do projecto europeu?
Encontradas as interrogações que servirão de guia à nossa investigação, procuraremos
de seguida fazer uma breve exposição da estrutura deste trabalho e da metodologia adoptada.
Por uma questão de clareza e simplicidade optamos por dividir este estudo em duas partes.
Assim, começaremos, num primeiro momento, por fazer uma análise das repercussões dos
três últimos tratados (Maastricht, Amesterdão e Nice) na evolução do modelo político
comunitário, a que se seguirá, uma segunda parte dedicada ao debate político em curso (com
particular destaque para os trabalhos da Convenção sobre o futuro da Europa), e aos possíveis
cenários para a nova Europa.
Antes de prosseguir importa, porém, fazer uma breve referência à metodologia a
seguir. Em primeiro lugar, e no que às fontes diz respeito, utilizaremos fontes primárias e
secundárias. Assim, analisar-se-ão quer documentos emanados das instituições e órgãos da
Comunidade (tratados, acordos, protocolos, relatórios, etc) quer obras de conceituados
especialistas, recorrendo-se para tal aos métodos tradicionais de análise de documentos
(análise interna e externa). Já no que concerne à perspectiva de investigação e análise
recorrer-se-á, preferencialmente, à perspectiva sistémica13, que nos parece a mais adequada,
por ser aquela que consagra a importância das estruturas políticas, económicas, sociais e 13 A perspectiva sistémica teve a sua origem na biologia com os trabalhos de Bertalanffy sobre a célula, tendo sido posteriormente introduzida nas ciências sociais por Talcott Parsons. A sua aplicação ao estudo dos fenómenos políticos ficou a dever-se, sobretudo, a David Easton, cuja obra influenciou os trabalhos de Karl Deutsch e de Jean-William Lapierre, que viriam a contribuir notavelmente para o desenvolvimento desta perspectiva. Sendo uma espécie de síntese das outras perspectivas de investigação (tendências individuais, racionalista, funcionalista) a perspectiva sistémica é o resultado de um esforço para construir “um método acima dos estudos fragmentários, dotado de um conjunto de conceitos operacionais aptos a orientar a investigação de qualquer modelo, com validade teórica geral” (Fernandes 1995, 154). Para uma exposição detalhada das diversas perspectivas de investigação e análise ver António José Fernandes. 1995. Métodos e Regras para a Elaboração de Trabalhos Académicos e Científicos. 2ª ed. Porto: Porto Editora.
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Introdução
culturais na produção dos fenómenos. Finalmente, uma última nota respeitante à visão
orientadora do discurso. Tendo baseado a nossa hipótese de trabalho na existência de um novo
federalismo europeu, tornar-se-á inevitável a procura de uma perspectiva (neo)federalista da
União, ainda que temperada por um neo-realismo explicativo da sua, também, vertente
intergovernamental.
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PRIMEIRA PARTE
DE MAASTRICHT A NICE: RUMO A UMA UNIÃO DE ESTADOS OU ENTRE
ESTADOS?
“(…) se não ultrapassarem o quadro estreito dos Estados-nações,
para progredirem na via de uma Europa não só comercial,
económica ou monetária, mas também social, cultural e política, os
Estados-nações europeus não conseguirão evitar o declínio que os
espreita. Mas o naufrágio da Europa política seria também o
naufrágio dos Estados-nações europeus. Sabê-lo e dá-lo a conhecer
não é já evitá-lo?” (Richonnier 1986, 225).
Durante os últimos anos do Século XX o mundo assistiu algo surpreso a uma profunda
transformação da ordem internacional, galvanizada por uma acelerada globalização
económica e financeira e pelo desmoronamento da ordem estratégica da Guerra Fria. As
mudanças no jogo das relações internacionais obrigaram os seus principais actores a envidar
esforços de adaptação à nova realidade e a Comunidade Europeia não constituiu excepção. De
facto, a conjuntura que marcou a última década da integração europeia é radicalmente
diferente da vivida aquando da assinatura do Tratado de Paris. Nascido no rescaldo da
Segunda Guerra Mundial, com o objectivo de reerguer das cinzas um continente mergulhado
numa profunda desarticulação económica e numa crise de valores, através da unificação
gradual dos países europeus, o projecto europeu avançou dinamizado por um conjunto de
forças externas (o apoio dos EUA, a ameaça militar representada pela União Soviética e uma
crise económica cíclica); pela convergência de posições nacionais; e, ainda, pela emergência
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
de uma espécie de identidade comum que aproximou as elites europeias levando-as a partilhar
códigos socioculturais de normas e valores14. Gradualmente, foi, pois, ganhando forma um
modelo institucional tendencialmente centralizado, que misturava ambições federalistas com
pragmatismo político, e era caracterizado por uma dinâmica própria, assente num alternar
entre soluções nacionais e europeias e na tensão permanente entre aprofundamento e
alargamento.
Quase meio século mais tarde, a filosofia da construção europeia sofreu uma
significativa mutação. As transformações económicas e geopolíticas determinaram uma
redefinição das funções da União, quer para os Estados-membros, quer para os cidadãos, e a
consequente alteração do modelo institucional europeu:
“[A] une intégration visant essentiellement à la suppression de barrières et de normes
nationales, c’est-à-dire une ‘intégration négative’ (Scharpf), se substitue un projet à
connotation politique extrêmement forte, dont les traités de Maastricht et Amsterdam
ont constitué le tournant (Telò et Magnette), et que l’on peut qualifier de ‘intégration
positive’” (Magnette et Remacle 2000, 8) [sublinhado nosso].
O mesmo será dizer, como Sidjanski (1996, 220) que “[Q]uarenta anos de integração
económica abriram a via à integração política”. De facto, as sucessivas etapas da integração
económica, iniciada com a gestão comum do carvão e do aço, passando pela criação de uma
união aduaneira, seguida do mercado comum e, mais tarde, do mercado único e coroada pela
união económica e monetária, transformaram a União num verdadeiro “gigante económico”.
Mas foi precisamente a consciência da grandeza da União neste domínio que, em nossa
opinião, tornou incomportável o seu “nanismo político”. Não será, portanto, de estranhar que,
nos últimos anos, a inscrição na agenda europeia de questões como a moeda única, a
cidadania da União, os direitos sociais, a segurança e a defesa ou a justiça sejam apenas
14 Cf. Paul Magnette et Eric Remacle, ed. 2000. Le Nouveau Modèle Européen. Vol. 1. Bruxelles: Editions de l’Université de Bruxelles.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
exemplos da assinalável “politização” da União, secundada, curiosamente, por um crescente
descontentamento dos cidadãos face à tecnicidade e “opacidade” do processo comunitário. O
tempo de uma construção europeia empreendida e, diríamos mesmo, compreendida, apenas
pelas elites parece ter chegado ao fim. Como sublinhou enfaticamente Francisco Lucas Pires
(1992, 117-118):
“[F]altaria talvez um maior nível de legitimação democrática, capaz de alargar o
consenso que, além de baseado no ‘interesse comum’, terá de se fundar cada vez mais,
também, na ‘vontade comum’. Na verdade, além da crise do determinismo histórico,
começa igualmente a estar em causa um certo determinismo tecnocrático da
construção, a que já é preciso, pois, abrir vias de justificação e consentimento pelos
cidadãos” [ênfase nossa].
O grande sinal do redimensionamento dos objectivos da Comunidade é-nos dado, primeiro
pela assinatura do Acto Único Europeu (AUE) - que marca, no entender de muitos
especialistas da temática comunitária, o início de uma nova fase no processo de integração
europeia - e depois confirmado pelo Tratado de Maastricht, que “deixando cair” o
qualificativo “Económica” da Comunidade Europeia e criando as bases de uma União, que se
ambiciona política, simboliza uma mudança fundamental nas aspirações da construção
europeia15. Embora as interpretações sobre a importância deste último Tratado se dividam
entre os que o consideram um verdadeiro salto qualitativo e os que o vêem apenas como uma
simples etapa para a união política, parece inegável o seu papel de motor da integração
política: “[E]n les rapatriant dans une structure générale, le traité de Maastricht donnait le
signal d’un élargissement des objectifs de la construction européenne, qui n’était plus
seulement un projet économique limite mais, au moins en puissance, une Union politique”
(Magnette et Remacle 2000, 11). Por outro lado, como sublinham ainda os mesmos autores
15 Cf. Magnette et Remacle, obra citada, 10.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
(2000, 12), o período que se abriu com o Tratado de Maastricht transformou a própria
dinâmica da integração, ao introduzir um novo ritmo no processo de reforma dos tratados. As
conferências intergovernamentais (CIG’s) sucederam-se a um ritmo nunca antes visto16,
concentrando-se cada vez menos nos “grandes compromissos” e cada vez mais nos “pequenos
detalhes”. Disso mesmo são prova os tratados que se seguiriam: Amesterdão e Nice. Face aos
resultados desta “febre revisionista”, afigura-se-nos, contudo, legítimo perguntar se não seria
mais útil olhar menos para os pequenos pormenores e mais para as grandes orientações de
fundo que deveriam conduzir a União17. Até porque, se o Tratado de Amesterdão ainda é
considerado na generalidade “a bigger step in the development of the Union” o seu sucessor é
visto, mesmo entre os mais optimistas, como “a smaller one” (Monar 2001, 333). Com mais
uma CIG à vista - agendada para Outubro de 2003 - não admira, por conseguinte, que na
ordem do dia estejam questões de fundo tais como os objectivos e a forma finais daquela que
no Preâmbulo do TUE é definida como “uma união cada vez mais estreita entre os povos da
Europa”. O debate está lançado e são muitas e variadas as propostas já avançadas. Por agora,
tentaremos localizar qual o significado das alterações introduzidas pelos três tratados aqui
mencionados (Maastricht, Amesterdão e Nice) e qual a tendência (ou tendências) de evolução
que tais modificações deixam antever. Por não caber nos nossos propósitos uma enumeração
exaustiva de todas as inovações que foram sendo institucionalizadas pelos referidos tratados
procuraremos centrar a nossa atenção em dois vectores de análise: a eficiência interna da
União (reforma institucional, processo de tomada de decisão e proximidade do cidadão); e a
sua capacidade de actuação externa.
16 No espaço de apenas dez anos foram realizadas três conferências intergovernamentais, estando já prevista a próxima para Outubro de 2003. 17 Numa altura em que se debate a necessidade de uma constituição europeia, este assunto ganha especial relevo, já que de um tratado constitucional se espera uma definição das grandes orientações e objectivos, deixando a descrição detalhada para o direito derivado. Nesta medida, ao contrário dos textos comunitários, os textos constitucionais são relativamente curtos e não contemplam uma descrição exaustiva dos aspectos particularmente técnicos ou específicos. A este propósito veja-se, por exemplo, Paulo Vila Maior. 1997. A Europa e os Desafios do Século XXI: Visão Crítica dos Tratados de Maastricht e de Amesterdão. Porto: Universidade Fernando Pessoa, 48-57.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
Antes de avançarmos, não poderíamos, contudo, deixar de dedicar algumas linhas à
primeira grande reforma dos tratados comunitários operada pelo Acto Único Europeu18.
Surgindo como uma tentativa de inverter o período de crise vivido pela Comunidade desde
finais da década de 70, mas também como resposta aos novos desafios externos, o AUE
representou a abertura de uma nova fase na construção europeia: “[A] emergência do Acto
Único apagaria de resto tais quezílias, imprimindo um espírito de novo arranque e maior
celeridade de acordo” (Lucas Pires 1992, 112). Entre os seus principais objectivos contou-se o
aperfeiçoamento do mercado comum, através de provisões que permitiriam realizar um
verdadeiro mercado interno sem obstáculos, nem fronteiras. Todavia, longe de se esgotar
nestas disposições, o novo Tratado introduziu também outras importantes modificações, com
particular destaque para a codificação da cooperação política externa (realizada à margem dos
tratados desde 1969) e para a alteração do processo de decisão19.
Não podendo ser apelidado de “un texte majeur” (Jacques Leprete 1996, 138) o Acto
Único é indubitavelmente um marco na história da construção europeia20, até porque, não
tendo sido propriamente “revolucionário”, representou um novo comprometimento por parte
dos Estados-membros com os ideais comunitários, após um período de alguma letargia.
Dusan Sidjanski21 vai, no entanto, mais longe, ao considerar que este tratado marca uma
viragem federalista, confirmada pela substituição gradual da inicial visão uniformizadora, por
uma nova concepção que procura uma gestão em comum da diversidade dos Estados e das
regiões da Comunidade. Quer isto dizer que a ambição inicial de criar um conjunto de normas
18 A designação de Acto Único Europeu resulta do facto de o Conselho Europeu ter decidido reunir num acto único as duas vertentes das negociações que antecederam a elaboração do tratado – cooperação política e alterações aos tratados de Roma. Para uma exposição mais detalhada sobre as implicações deste Tratado ver, por exemplo, Manuel Carlos Lopes Porto. 1988. Do Acto Único à “Nova Fronteira” para a Europa. Coimbra: Almedina. 19 Nomeadamente através generalização da maioria qualificada no quadro das Comunidades Europeias e da introdução do procedimento de cooperação que reforçou, ainda que limitadamente, os poderes do PE. 20 “(...) pese embora a insatisfação de quem desejaria que se tivesse ido mais longe, veio a constituir por seu turno um marco institucional na história da Comunidade a aprovação do Acto Único Europeu (...)” (Porto 1988, 4) [sublinhado nosso]. 21 Cf. Dusan Sidjanski. 1996. O Futuro Federalista da Europa: a Comunidade Europeia das Origens ao Tratado de Maastricht. Lisboa: Gradiva, 136-140.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
comuns, se possível uniformes, foi substituída pela ênfase na coordenação e numa maior
descentralização: “[A] rigidez inicial da regulamentação e da intervenção comunitárias é
substituída por uma política e uma acção mais flexíveis, melhor adaptadas e com mais
respeito pelas diversidades e riquezas da Europa” (Sidjanski 1996, 137).
Em jeito de conclusão, diríamos, com Jean-Louis Quermonne (1998, 28) que “vu
rétrospectivement, l’Acte Unique européen appairaîtra-t-il, comme le point de passage obligé
vers le Traité de Maastricht”.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
Capítulo I
O Tratado de Maastricht: a Conclusão da Integração Económica como Trampolim para
a Integração Política
A nova ordem mundial22, ditada pela queda dos regimes comunistas do centro e leste
da Europa e pela unificação alemã que se seguiu, levou os líderes europeus a acelerar o ritmo
das reformas já ponderadas. Confrontada simultaneamente com uma responsabilidade que lhe
era exigida na cena internacional e com a possibilidade de alargamento das suas fronteiras, a
Comunidade compreendeu que não poderia continuar a reagir em termos puramente
económicos. A sua resposta apareceu sob a forma de um novo tratado, assinado em
Maastricht a 7 de Fevereiro de 1992, que, ao mesmo tempo que operava a segunda revisão
dos tratados institutivos das comunidades, introduzia uma nova arquitectura na construção
europeia23.
Longe de ser consensual24, o Tratado de Maastricht foi o resultado de acalorados
22 Na opinião de Roy Pryce (1994, 4) trata-se mesmo de um período de “(...) continuing, if not greater, disorder [já que] the relative stability of détente has been followed by disintegration, a revival of nationalism, and near anarchy in many parts of the failed empire and its appendages”. 23 Ao instituir uma nova arquitectura na construção europeia, o TUE tornou necessário distinguir a aplicação dos tratados nos dois âmbitos que passam a coexistir: Comunidade Europeia e União Europeia. Assim, “[A] União tem por missão organizar de forma coerente e solidária as relações entre os Estados-Membros e entre os respectivos povos” (artigo A TUE); “[A] União atribui-se os seguintes objectivos: a progressão de um progresso económico e social equilibrado e sustentável (...); a afirmação da sua identidade na cena internacional (...); o desenvolvimento de uma estreita cooperação no domínio da justiça e dos assuntos internos; a manutenção da integralidade do acervo comunitário e o seu desenvolvimento (...). Os objectivos da União serão alcançados de acordo com as disposições do presente Tratado (...)” (artigo B TUE). Já a Comunidade Europeia “tem como missão, através da criação de um mercado comum e de uma União Económica e Monetária e da aplicação das políticas ou acções comuns a que se referem os artigos 3º a 3ºA, promover, em toda a Comunidade, o desenvolvimento harmonioso e equilibrado das actividades económicas, um crescimento sustentável e não inflacionista que respeite o ambiente, um alto grau de convergência dos comportamentos das economias, um elevado nível de emprego e de protecção social, o aumento do nível e da qualidade de vida, a coesão económica e social e a solidariedade entre os Estados-Membros” (artigo 2º TCE, com a redacção que lhe foi dada pelo artigo g.2 TUE). Em suma, cabem à Comunidade Europeia as actividades no âmbito do primeiro pilar, e à União Europeia as actividades no quadro dos segundo e terceiro pilares, ainda que deva notar-se que, ao contrário daquela, a UE não tem (ainda) personalidade jurídica, pelo que não pode ser sujeito de direito internacional (esta é, aliás, uma das questões em debate na Convenção sobre o futuro da Europa, apontando as conclusões do Grupo de Trabalho sobre o tema para a necessidade de atribuir uma personalidade jurídica única à União como um todo). 24 Prova disto foi também o surpreendentemente difícil processo de ratificação deste Tratado (atrasado por uma rejeição por referendo na Dinamarca e pelas dúvidas quanto à sua compatibilidade com a Constituição alemã).
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
debates que uma vez mais puseram em evidência a permanente tensão entre aqueles que
ambicionam um maior desenvolvimento dos elementos federalistas da união e os que estão
determinados a contrariar tal tendência. O acordo possível foi uma espécie de “meio termo”
entre as duas visões, que assumiu a forma de uma estrutura de três pilares, onde um pilar
comunitário coexiste com dois intergovernamentais (Política Externa e de Segurança Comum,
e Justiça e Assuntos Internos)25. Revelando uma clara clivagem entre a dimensão económica,
com uma dominante comunitária, e a dimensão política, com predominância
intergovernamental, este modelo é nas palavras de Roy Pryce “a curious hybrid, which is even
more sui generis than the Community itself”26.
Ainda assim, e apesar dos pontos fracos e lacunas deste Tratado, somos tentados a
convergir com Sidjanski (1996, 224) quando afirma que “[A]o mesmo tempo que mantém a
distinção entre os domínios comunitários e os domínios da cooperação política, o Tratado de
Maastricht confirma na essência a ‘vocação federal’ da União [já que esta embora] sacrificada
na forma, afirma-se no fundo e no espírito do Tratado”. Também Lucas Pires (1992, 115)
sugere claramente que, com Maastricht, a Comunidade “rompe o tabu da política” e anuncia a
criação de uma União Europeia: “estádio superior mas não ainda último da almejada unidade,
cujo desígnio final nunca é, aliás, designado e subsiste não se sabe se como um happy-end,
mas seguramente, como um open-end” [ênfase no original].
Cf. Andrew Duff. 1994. “Ratification”. In Maastricht and Beyond, ed. Andrew Duff, John Pinder and Roy Pryce. London: Routledge, 53-68. 25 Como sublinha Philip Ruttley (2002, 247) “[T]he history of European integration since 1945 has been dominated (...) by two currents: a strong vision of European federalism relying on supranational institutions, and a determination to preserve national identity and sovereignty expressing itself in a preference for intergovernamentalism. These conflicting tensions were not buried at Maastricht. Instead, they were enshrined and institutionalized, creating rather confusing mixture of supranationalism and intergovernamentalism” [sublinhado nosso]. 26 Cf. Pryce in Duff, Pinder and Pryce, eds. 1994, 10-11.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
A) O aprofundamento da integração económica: na senda do federalismo monetário
A maior conquista do Tratado de Maastricht no domínio económico foi, a fortiori,
definir como objectivo a criação de uma União Económica e Monetária (UEM), estabelecendo
para tal um calendário e um conjunto de regras precisos. Tratava-se, poder-se-á argumentar,
do seguimento lógico da concretização do mercado único, prevista pelo AUE, o que não
constituía na essência uma aspiração nova27. Não obstante, o Tratado previa também,
expressamente, a substituição das moedas nacionais por uma moeda única, objectivo nunca
antes consagrado claramente nos tratados. A importância deste facto cresce com a consciência
de que, concomitantemente, ao definir tal objectivo, Maastricht desencadeou um processo
irreversível da partilha de um dos atributos essenciais da soberania nacional, dando um passo,
sem retorno, na direcção de um federalismo monetário.
Com as inúmeras alterações, ao Título II do Tratado de Roma sucede o Título VI “A
Política Económica e Monetária” que define com precisão os objectivos, as fases e as
disposições institucionais que, de 1992 a 1997, ou até 1999 (como de facto veio a acontecer),
deveriam conduzir à adopção de uma moeda única28. À Comunidade é, pois, outorgada
autoridade exclusiva sobre a moeda, o que representa, necessariamente, uma transferência da
soberania monetária dos Estados-membros. Igualmente digno de nota é o facto de o Tratado
organizar a união monetária no quadro de um Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC)
construído, no seio da Comunidade, sobre uma base federal [sublinhado nosso].
Efectivamente, compõem esse sistema os bancos centrais nacionais e uma nova entidade 27 Como nos relata Sidjanski (1996, 234-235) o percurso que conduziu à UEM é longo e recheado de percalços: primeiramente esboçada em 1968 no Memorando Barre que previa uma coordenação das políticas económicas, geminada com uma cooperação monetária, a união económica e monetária foi, apenas dois anos mais tarde, o tema do Relatório Werner. Embora prevista pelo Conselho, a sua realização viria, todavia, a ser adiada devido à grave crise monetária internacional. Em 1972, com o objectivo de evitar uma paralisia da integração económica, foi instituído um sistema reduzido de by pass sob a forma de “serpente monetária” e cerca de sete anos mais tarde nasce o Sistema Monetário Europeu (SME), que preparou o terreno para a união económica e monetária. A este propósito ver também Rogelio Perez-Bustamante. 1997. Historia de la Unión Europea. Madrid: Editorial Dykinson, 247. 28 Artigos 102ºA a 109ºM TCE.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
supranacional - o Banco Central Europeu – criada propositadamente para gerir a UEM e que
se pretende totalmente independente dos Estados-membros.
Conquanto o objectivo do Tratado fosse uma moeda única em toda a Comunidade, foram
fixados critérios rigorosos (os chamados “critérios de convergência) a cumprir pelos Estados-
membros antes da adesão à nova moeda: estabilidade de preços; situação das finanças
públicas (défice orçamental e dívida pública); participação de pelo menos dois anos no SME
em bandas estreitas; e taxas de juro a longo prazo. A esta espécie de “discriminação” imposta
pela Comunidade - considerada indispensável para garantir o sucesso da nova moeda - juntou-
se a “auto-discriminação” do Reino Unido que conseguiu ver previsto num protocolo anexo
ao Tratado a possibilidade do parlamento de Westminster decidir a não participação da libra
esterlina na terceira e última fase da União Económica e Monetária (o que viria a acontecer).
Ora, para além de tornar improvável o objectivo do Tratado - uma Comunidade, uma moeda -
tal protocolo teve, em nossa opinião, uma consequência ainda mais grave, na medida em que
ao abrir um precedente (aproveitado ulteriormente pela Dinamarca) facilitou o caminho para
uma mais complicada, ainda que potencialmente útil, Europa “à la carte”29. De facto, mais do
que uma Europa “a várias velocidades” (multi-speed Europe) poderá estar aqui em causa uma
Europa “a vários níveis” (multi-tier Europe), que deverá ser objecto de profunda reflexão,
porquanto se deixar de constituir a excepção para passar a ser a regra, poderá colocar em risco
o resultado de meio século de integração europeia. Sem embargo, somos tentados a concordar
com Elfriede Regelsberger (1993, 82) quando nota que “[T]he history of the European
Community suggests that this differentiation of approaches is transitory in nature. It helps EC
member states reduce initial opposition to specific policies or institutional arrangements and
29 Se dúvidas houvesse quanto a esta possibilidade, bastaria lembrar, por exemplo, a mais uma vez auto-exclusão do Reino Unido em relação às disposições da política social prevista pelo Protocolo nº 14 relativo à política social (anexo ao TCE) e a introdução do ainda controverso mecanismo das cooperações reforçadas previsto pelo Tratado de Amesterdão.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
to accumulate gradual support”30 [ênfase nossa].
Apesar de alguns perigos inerentes a uma integração diferenciada, o caminho para a
moeda única, oficialmente iniciado em Maastricht, representou um verdadeiro salto
qualitativo, não apenas para uma integração económica real, mas, diríamos mesmo,
sobretudo, para a integração política. De facto, parece-nos evidente que a opção da grande
maioria dos Estados-membros pelo federalismo monetário (com toda a coordenação que tal
implica ao nível de outras políticas) resulta num reforço crescente da construção política. Até
porque, como sugeriu, em 1995, o então chanceler alemão Helmut Kohl31, a moeda única
exige um “tecto político” que seja o garante do seu equilíbrio. Quanto a nós, consideramos
que a opção pela moeda única, constitui já, em si mesma, um significativo impulso para a
ambicionada união política: por um lado, e se outra razão não houvesse, porque, como nota
Vila Maior (1997, 75), “esgotado o ideal da integração económica, resta à Europa comunitária
avançar no sentido da integração política”; por outro, e principalmente, porque nos parece que
- tal como no início do projecto europeu - o federalismo económico não será mais do que a
primeira etapa de um “federalismo político”. A este propósito, muito adequadas nos parecem
aqui as palavras de T. S. Eliot32: “atingir um fim é chegar a um início; esse fim é o ponto de
partida para algo de novo”.
B) A génese de uma união política: rumo a uma construção de tipo federal?
Entre as várias inovações introduzidas pelo Tratado de Maastricht33 merece especial
destaque a criação (pelo menos numa equação semântica) de uma União Europeia, verdadeiro
marco na construção de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa. A nova
30 Ideia que parece encontrar também fundamento na gradual mudança da atitude do Reino Unido face ao euro. 31 Referido por Sidjanski, op. cit., 334. 32 Citado em Vila Maior, op. cit., 76. 33 Também conhecido como Tratado da União Europeia (TUE), em virtude da união que institui oficialmente.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
arquitectura europeia, evocativa de um templo grego34, coloca a recém-nascida União
Europeia no topo de uma complexa estrutura assente em três pilares: um pilar central,
comunitário, dedicado aos tratados institutivos das três Comunidades (agora designadas
formalmente Comunidade Europeia) e suas reformas; e dois pilares laterais, relativos às
matérias sob a alçada da cooperação intergovernamental - Política Externa e de Segurança
Comum e Justiça e Assuntos Internos. Esta estrutura de pilares é uma estrutura talvez
complexa em demasia, dificilmente compatível com o desejo, também presente no Tratado, de
tornar o projecto comunitário mais compreensível para, e, consequentemente, mais próximo
dos cidadãos. Conscientes da diversidade de procedimentos e de instituições que tal fórmula
acarretaria, os mentores do Tratado tentaram conferir à União a indispensável coerência ao
preverem que fosse servida por um “quadro institucional único” encabeçado pelo Conselho
Europeu. A opção por esta instituição, que saiu claramente reforçada de Maastricht, é mais
um sinal de que os líderes europeus estiveram longe de renunciar ao que consideram ser os
“benefícios” da acção intergovernamental35. Neste sentido vai, também, a rejeição da
expressão “com vocação federal” que figurava no projecto do tratado, mas que graças à
vigorosa oposição britânica, foi banida do texto final. Contudo, é inegável a introdução de
elementos de índole claramente federalista (como, por exemplo, o princípio da
subsidiariedade) acompanhada por uma extensão das competências comunitárias em áreas
como a educação, a cultura ou a política social. Permanece, pois, ambígua a natureza da nova
união política anunciada por Maastricht, apesar das disposições do Tratado deixarem antever
objectivos qualitativamente ambiciosos. Para talvez melhor podermos aferir a sua importância
procuraremos, em seguida, analisar sucintamente os principais indicadores do avanço no
domínio da integração política, quer no domínio interno (eficácia interna da União e
34 Esta imagem de um “templo grego” foi preferida em detrimento de “uma árvore de múltiplos ramos” sugerida por Jacques Delors em 1992. 35 Embora, no caso concreto em apreço, nos seja difícil apontar uma outra instituição para estas funções, dada a “gritante” intergovernamentalidade do segundo e terceiro pilares.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
legitimidade do projecto comunitário) quer no domínio da identidade externa da União.
1.1 A Eficácia Interna da União e a Questão da Legitimidade do Projecto Comunitário
Inserindo-se no prolongamento da primeira grande reforma dos tratados, operada pelo
Acto Único Europeu de 1987, o Tratado da União Europeia introduziu um conjunto
considerável de medidas tendentes a tornar o funcionamento da Comunidade simultaneamente
mais democrático e mais eficaz.
1.1.1 As principais reformas institucionais
A expansão das responsabilidades confiadas às instituições comunitárias, corolário
natural da evolução do processo de integração, tornou inevitável uma reforma que lhes
permitisse dar resposta às novas solicitações com maior operacionalidade e eficácia.
Numa tentativa de contrariar a acusação de falta de democraticidade do modelo
comunitário36, Maastricht avança um pouco mais no caminho do reforço dos poderes do
Parlamento Europeu, ao introduzir o procedimento de co-decisão (artigo 189ºB TCE) que
abordaremos mais à frente. Apesar de ser um procedimento, inicialmente, bastante limitado e
complexo abriu a porta a uma progressiva co-legislação (PE e Conselho)37, constituindo,
deste modo, um passo importante na solução de um problema que ganhou uma dimensão
36 Acusação em parte justificada pelo facto de o PE (única instituição directamente eleita, pelo menos a partir de 1979) ter sido dotada, pelo Tratado de Roma, de meros poderes consultivos, sendo a função legislativa atribuída ao Conselho composto por representantes dos executivos nacionais. Como sublinha Sidjanski (1996, 246) “o modelo democrático sofreu uma malformação à nascença. As diferentes disposições do Tratado de Maastricht esforçam-se, ainda que timidamente, por libertar a Comunidade das suas doenças infantis e por lhe dar uma verdadeira dimensão política”. 37 Como refere Caporaso (2000, 66) “(...) the deeper importance of the extension of EP power may lie in professionalization of the EP that it demands and in the symbolism of having the EP and the Council meet as equal co-legislators, mutually agreeing to the acts that affect the people of Europe” [sublinhado nosso].
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
nova nos últimos anos – o chamado défice democrático da UE38. De facto, como refere
Caporaso (2000, 42) “[A]s the European Union creates it own rules and institutions, as it
becames more important in everyday policymaking, in short, as it becomes more like a
domestic polity than a traditional international organization the issue of democracy becomes
more central”. Porque associa a decisão ao parecer favorável do Parlamento, este
procedimento veio garantir uma participação mais efectiva e mais ampla da Câmara
representativa dos cidadãos europeus no processo legislativo comunitário, ainda que, como
referimos, num número limitado de matérias. Não colocando ainda o PE em verdadeiro pé de
igualdade com o Conselho, as novas disposições de Maastricht nesta matéria marcam assim
uma nova fase no desenvolvimento da Comunidade, na qual o PE se torna na “primeira”
Câmara de uma verdadeira legislatura e o Conselho se vê obrigado, de tempos a tempos, a
desempenhar o papel de uma “segunda” Câmara39. Paralelamente, o mesmo Tratado procedeu
ainda ao alargamento do procedimento de cooperação, tal como havia sido instituído pelo
AUE, e ao reforço das funções consultivas e de controlo orçamental desta instituição
comunitária. Digno de registo é também a referência do Tratado (artigo 138ºA TCE) à
importância dos partidos políticos, enquanto representantes da vontade política dos cidadãos,
que pode ser lida como um sinal de encorajamento à criação de partidos políticos agregados a
nível europeu40. Esta questão reveste-se, em nossa opinião, da maior pertinência, pois como
enfatiza Sidjanski (1996, 252) “[O] desenvolvimento e a consolidação das federações de
partidos deveriam contribuir para reequilibrar, na Comunidade, a influência dos grupos de
interesses e para formar progressivamente uma consciência política europeia”. Todavia, e
voltando à instituição comunitária em apreço, será ainda necessário percorrer um longo
caminho na reforma do PE para que os partidos políticos (num futuro, mais transnacionais)
38 Caporaso (2000, 49) define o défice democrático que alegadamente existe na UE como sendo “most acutely a deficit between the powers of national and EU executives and parliamentary institutions at both levels (...) This gap is fundamentally about the relation between executive power and representative legislatures”. 39 Cf. Andrew Duff, John Pinder and Roy Pryce, eds., op.cit., 31. 40 Esta questão foi retomada durante a CIG 2000 que antecedeu a assinatura do Tratado de Nice.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
possam desempenhar com eficácia o seu papel. Uma das lacunas mais evidentes continua a
ser a sua função meramente consultiva no domínio da revisão dos tratados. Muito embora o
PE tenha conseguido, na prática, ser parte mais activa neste domínio do que o Tratado previa,
a realidade é que continuou longe de ter o papel que cabe aos seus congéneres nacionais nas
reformas constitucionais.
No seguimento das sugestões avançadas pelo Relatório Tindemans e pelo Projecto
Spinelli, o Tratado de Maastricht determina um novo procedimento de investidura da
Comissão cuja principal novidade reside na associação do Parlamento Europeu ao processo41.
Por forma a tornar esta associação bem clara, o Tratado prolonga ainda a duração do mandato
da Comissão, de modo a que o mesmo possa alinhar-se com a duração das legislaturas
parlamentares, que é de cinco anos. Com este novo procedimento pretendeu-se, para além de
reforçar o papel do PE, aumentar a autoridade da Comissão e do seu presidente, conferindo-
lhes maior legitimidade democrática. Não obstante, a Comissão saída de Maastricht está ainda
longe de ser um verdadeiro executivo europeu, situação agravada pela sua quase total
“exclusão” das matérias do segundo e terceiro pilares. Como sublinhou John Fitzmaurice
(1994, 187):
“[T]he Commission is the nearest that there is to an executive, but it is far from being
the government of the Union. [Mas, como nota algumas linhas à frente] the
Commission must be able to provide the element of stability, coordination and
coherence that an otherwise unstable system requires [para tal] It must be involved at
all levels [incluindo a PESC e a JAI]”.
Assim, pese embora o reconhecimento do papel crucial da Comissão, as disposições do TUE
deixavam já antever uma periferização desta instituição, tendência que foi agravada
41 De acordo com as novas disposições, os governos dos Estados-membros, após consulta ao PE, escolhem o presidente da Comissão, ao que se segue uma segunda fase para escolha dos comissários em que intervirá o Conselho e o presidente designado. O PE volta a intervir na terceira e última fase, já que a Comissão designada é submetida a um voto de aprovação por parte do PE, que se pronuncia sobre a sua composição e programa, só depois sendo designada de comum acordo pelos governos dos Estados-membros (artigo 158º, nº 2 TCE).
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
dramaticamente pelo Tratado de Nice.
Por oposição à Comissão, o Conselho de Ministros sai de Maastricht como uma das
instituições mais importantes, tendo a seu cargo a PESC e a coordenação da JAI. Igualmente
reforçado ficou o Conselho Europeu que, na sequência da sua anterior “institucionalização”
pelo Acto Único, viu confirmado, pelo novo Tratado, o seu papel de impulsionador da
integração europeia42 e alargado o seu campo de acção. Assim, cabe-lhe, por exemplo, definir
os princípios e orientações gerais da Política Externa e de Segurança Comum que o Conselho
de Ministros executa, bem como decidir a passagem à segunda e terceira fases da UEM.
No que diz respeito às modalidades de votação, assiste-se com o Tratado de Maastricht
a uma clara extensão da votação por maioria qualificada (vmq), conquanto não tenha sido
ainda possível quebrar a habitual clivagem entre a dimensão comunitária (onde este tipo de
votação é a regra) e a dimensão intergovernamental (onde continua a ser a excepção).
Com o objectivo de reforçar a democratização do sistema comunitário o Tribunal de
Contas é elevado a instituição comunitária, passando a figurar na União Europeia ao mesmo
nível que o PE, o Conselho, a Comissão e o Tribunal de Justiça, ou seja, ao nível das
instituições que têm a seu cargo “as tarefas confiadas à Comunidade” (artigo 4º TCE). A
consagração explícita deste tribunal como instituição comunitária é acompanhada de uma
descrição pormenorizada das suas atribuições, organização e funcionamento (artigos 188ºA,
188ºB e 188ºC TCE). Entre as inúmeras competências confiadas à nova instituição conta-se a
de assistir o Conselho e o PE na função de controlo da execução do orçamento comunitário.
Mais uma vez se percebe nas disposições do Tratado uma espécie de analogia com o sistema
estatal, já que também nos Estados-membros a fiscalização orçamental é exercida pelos
parlamentares e pelos tribunais de contas nacionais. Parece-nos, porém, oportuno sublinhar a
natureza diminuta do orçamento comunitário, sobretudo quando comparado com os
42 O artigo D do Título I do TUE dispõe que “o Conselho Europeu dá à União os impulsos necessários ao seu desenvolvimento e define as orientações políticas gerais”.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
orçamentos dos Estados-membros. Partilho, neste ponto, da interrogação formulada por
muitos quando perguntam: “[C]omo pode a União Europeia ambicionar tornar-se uma
unidade politicamente forte se não existe ainda um elemento de federalismo fiscal?”. Eis,
portanto, um importante tema de discussão, que nos levaria, entre outras, à questão da
necessidade de receitas directas da Comunidade, nomeadamente através da criação de um
imposto europeu (matéria que abordarei mais à frente neste trabalho).
Parece claro, pois, que sem avanços consideráveis no caminho do federalismo fiscal e
financeiro, terá pouca validade a analogia entre o Tribunal de Contas e os seus congéneres
nacionais. Na verdade, pensamos estar aqui patente mais uma tentativa de reforçar a
transparência do processo comunitário, por forma a conquistar a confiança dos cidadãos. Não
obstante, embora compreendendo a intenção dos legisladores, parece-nos também que, dado o
distanciamento entre os cidadãos e as instituições comunitárias, principalmente as mais
técnicas, poucos efeitos práticos resultarão de tal medida, pelo menos no curto prazo.
Igualmente com o objectivo de aproximar os cidadãos da União, o Tratado estabelece
a criação de um novo órgão comunitário – o Comité das Regiões – que tem como principal
função dar voz à dimensão regional da Comunidade (artigo 198ºA TCE)43. Decalcado do
modelo do Comité Económico e Social44, com o qual, aliás, partilha a estrutura de
43 A este propósito é de referir que, desde os anos 70, a Comunidade tem vindo a apostar nas regiões. De facto, a política regional comunitária tornou-se uma realidade, antes mesmo de ser ratificada pelo Acto Único Europeu em 1987, nomeadamente através dos fundos estruturais. Na mesma linha, o Tratado de Maastricht define uma série de políticas comuns orientadas para um melhor equilíbrio regional e desenvolvimento das regiões mais pobres, ao mesmo tempo que cria um novo instrumento de apoio aos países mais desfavorecidos – o Fundo de Coesão. Se não podemos falar da existência de uma “Europa das Regiões”, tal como foi idealizada por Denis de Rougemont nos anos 60, podemos sem dúvida destacar um esforço assinalável da Comunidade no sentido de criar melhores condições de equilíbrio entre os diversos níveis de autoridade, o que deixa subjacente o respeito pelos princípios básicos do federalismo europeu que é, na sua essência, descentralizador. 44 Instituído pelo Tratado de Roma (artigos 257º a 262º), o Comité Ecomómico e Social (CES) é uma das instituições (em rigor deveríamos dizer órgãos) auxiliares da UE. Tendo por missão assegurar a representação institucional na Comunidade das diferentes componentes de carácter económico e social da sociedade civil organizada (produtores, agricultores, transportadores, comerciantes, consumidores, etc) é composto por 222 membros (que, concluido o alargamento, não deverão exceder 350) nomeados, por proposta dos Estados-membros, pelo Conselho, após consulta à Comissão (de acordo com as alterações introduzidas pelo Tratado de Nice). Embora tenha competências meramente consultivas, o CES deve ser obrigatoriamente consultado pelo Conselho ou pela Comissão nos casos em que o Tratado assim o exija, ficando a consulta, nos restantes casos, à
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
organização, o novo organismo dispõe de competências meramente consultivas, estando, por
via disso, longe de ser o “Senado das Regiões” defendido por Denis de Rougemont. Todavia,
apesar das suas funções limitadas, não parece haver dúvida que a sua criação institucionaliza a
consulta das regiões na União, o que poderá ajudar a estimular e a melhor direccionar a
política regional da Comunidade. Paralelamente, sendo composto por representantes das
entidades regionais e locais, a sua actuação, principalmente se bem sucedida, poderá ajudar na
construção da tão desejada “Europa dos cidadãos”.
1.1.2 O processo de co-decisão
Numa tentativa de melhorar a legitimidade democrática da Comunidade através do
reforço do poder do Parlamento Europeu no processo legislativo, o Tratado de Maastricht
soma ao procedimento de cooperação (introduzido pelo Acto Único) um novo mecanismo – o
processo de co-decisão (artigo 189ºB). Enquanto que naquele está subjacente a elaboração de
uma proposta não vinculativa, neste está patente uma maior co-responsabilização das três
instituições envolvidas no processo legislativo (Comissão, Conselho e PE). Embora os pratos
da balança continuem a inclinar-se para as duas primeiras, diríamos que o novo procedimento
contribui para diminuir a “desproporcionalidade”, até aí existente, na importância de cada
uma das instituições no processo legislativo. De facto, através deste novo mecanismo o PE “é
dotado de um poder de rejeição temível que, mesmo que não seja utilizado, aumenta a sua
capacidade de influência, ao exercer uma pressão tendo em vista um acordo” (Sidjanski 1996,
257).
Em termos genéricos, o processo de co-decisão funciona da seguinte forma45: a
consideração das instituições. O Comité pode ainda ser consultado pelo PE e emitir pareceres por sua própria iniciativa. 45 Para uma explicação pormenorizada deste procedimento ver, por exemplo, Sidkanski, op. cit., 255-265; ver também Vila Maior, op. cit., 78-99.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
Comissão elabora uma proposta de decisão que é previamente submetida ao PE, para que este
formule um parecer, após o qual a proposta será submetida ao Conselho que, por maioria
qualificada, adoptará uma posição comum. Por sua vez, esta posição comum é submetida à
consideração do PE que, num prazo de três meses, poderá: a) não se manifestar, implicando a
aprovação implícita da posição comum; b) aprovar expressamente a posição comum; c)
introduzir alterações na posição comum; d) declarar a sua intenção de rejeitar a posição
comum, o que obrigará de imediato à convocação do Comité de Conciliação46, que procurará
que as duas partes cheguem a acordo. Nos dois primeiros casos a proposta é adoptada,
enquanto que no terceiro terá lugar uma de duas soluções: i) o Conselho aprova as alterações
introduzidas pelo PE; ii) o Conselho rejeita as alterações. Esta última hipótese exige também
a reunião do Comité de Conciliação para tentar o entendimento.
O procedimento relativo à reunião do Comité de Conciliação varia também consoante
este Comité seja convocado na sequência da rejeição por parte do Conselho das alterações
introduzidas pelo PE, ou como resultado da declaração de intenções do PE em rejeitar
liminarmente a posição comum. No primeiro caso, existem duas possibilidades: a) a reunião
resulta num projecto comum, que consoante seja aprovado ou recusado pelo Conselho e pelo
PE conduzirá, respectivamente, à adopção ou não adopção do acto legislativo; b) o Comité
não consegue alcançar um projecto comum, pelo que o acto legislativo não pode ser adoptado.
Também no segundo caso, são duas as alternativas possíveis: ou o PE recua na sua posição
inicial e permite a adopção do acto; ou, pelo contrário, permanece inflexível na sua posição,
inviabilizando tal adopção.
Como se pode constatar, trata-se de um processo extremamente complexo. Por outro
46 Criado no âmbito do processo de co-decisão, o Comité de Conciliação é composto por 15 representantes do Conselho e por 15 representantes do Parlamento Europeu, em plano de igualdade, e tem como função, partindo da posição comum do Conselho, tal como alterada pelo PE, chegar a um compromisso viável, isto é, apto a recolher as necessárias maiorias no Conselho e no Parlamento Europeu (maioria qualificada e maioria absoluta, respectivamente). Compete à Comissão participar nas sessões do Comité de Conciliação e tomar todas as medidas necessárias à reconciliação de posições entre o PE e o Conselho (artigo 251º, nº 4 TEC).
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
lado, não obstante a aparente alteração no equilíbrio inter-institucional, o seu real significado
dependerá em última instância da forma como o PE utilizará os novos instrumentos postos à
sua disposição pelo Tratado de Maastricht; bastará, por exemplo, colocar a hipótese de uma
cedência sempre por parte desta instituição ou de uma constante falta de acordo com o
Conselho, para percebermos quão distante dos objectivos do Tratado pode vir a revelar-se, na
prática, este mecanismo. Em todo caso, parece-nos que, juntamente com outros elementos
visando o reforço da instituição parlamentar, a sua consagração foi já a confirmação de um
desejo, senão explícito, pelo menos latente, de fazer avançar a união também no caminho de
uma democracia de maior incidência parlamentar.
1.1.3 O princípio da subsidiariedade
Muito embora tenha estado presente em etapas anteriores da construção europeia47, o
princípio da subsidiariedade deve a sua consagração explícita ao Tratado de Maastricht (artigo
3ºB)48. Sendo tradicionalmente um preceito federalista, pode também ser encontrado na
doutrina católica, como forma de aumentar o papel das ordens mais “baixas” e dos indivíduos
47 De facto, embora só tenha sido consagrado explicitamente pelo TUE, este princípio esteve subjacente, ainda que implicitamente, à criação da Comunidade desde os seus primórdios. O Tratado CECA estabelecia no seu artigo 5º a ideia de “intervenções limitadas” em estreita cooperação com os interessados. Por sua vez, o próprio Tratado de Roma previa a possibilidade de os Estados tomarem as medidas capazes de assegurar o cumprimento das obrigações resultantes do Tratado, não cabendo, portanto, nesse caso, às instituições comunitárias substituirem-se-lhes. Ainda assim, a menção expressa a este princípio só aparece consideravelmente mais tarde, no projecto de tratado elaborado por Altiero Spinelli e apresentado em 1984 pelo PE. Com o Acto Único o princípio é novamente recuperado, ainda que implicitamente, no domínio do ambiente, já que o novo Tratado faz depender a intervenção comunitária, nesta área, da condição de os objectivos poderem ser melhor realizados ao nível da Comunidade. 48 De acordo com este artigo: “[A] Comunidade actuará nos limites das atribuições que lhe são conferidas e dos objectivos que lhe são cometidos pelo presente Tratado. Nos domínios que não sejam das suas atribuições exclusivas, a Comunidade intervém apenas, de acordo com o princípio da subsidiariedade, se e na medida em que os objectivos da acção encarada não possam ser suficientemente realizados pelos Estados membros, e possam, pois, devido à dimensão à dimensão ou aos efeitos da acção prevista, ser melhor alcançados ao nível comunitário. A acção da Comunidade não deve exceder o necessário para atingir os objectivos do presente Tratado” [sublinhado nosso].
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
na sociedade49. Tratando-se de um conceito mais político do que jurídico, este princípio visa
em termos gerais prevenir, quer uma excessiva centralização da governação, quer a sua
exagerada dispersão. Aplicado no âmbito da Comunidade, e de acordo com uma definição do
próprio Parlamento Europeu (PE 1997, 17): “o princípio da subsidiariedade implica que os
Estados-Membros mantêm as competências que sejam capazes de gerir de forma mais eficaz
ao seu nível, transferindo para a Comunidade os poderes que não se encontrem aptos a
exercer convenientemente”. Apesar da aparente coerência desta definição “oficial”,
abundantemente veiculada na vulgata informativa sobre a Comunidade, a aplicação deste
princípio não tem sido consensual. Um primeiro problema reside na ambiguidade patente na
redacção do artigo, tentativa por certo de, uma vez mais, conciliar as duas visões antagónicas
que dominam o debate comunitário. Não admira, assim, que o princípio seja definido de
forma ambivalente, permitindo duas interpretações diametralmente opostas. Como nota
Philippe de Schoutheete (1999, 67): “[P]ara uns, trata-se de limitar a acção da União ao
estritamente necessário: é o dever de não ingerência. Para outros, trata-se de obrigar a União a
agir em caso de carência dos estados membros: é o dever de supletividade”. Uma segunda
dificuldade prende-se com a subjectivade subjacente à aplicação deste princípio. Sendo um
conceito mais político do que jurídico, baseado numa apreciação subjectiva, tem
inevitavelmente dado azo a abordagens equívocas. Na verdade, a sua observância pressupõe
determinar quais os objectivos que podem ou não ser suficientemente realizados pelos
Estados-membros, ou os que poderão ser melhor alcançados pela Comunidade. Ora, uma vez
que o enunciado do princípio não especifica os seus critérios de aplicação, corre-se o risco de
que este seja efectivado “ao sabor das conveniências que coabitarem com a
contemporaneidade” (Vila Maior 1997, 164). Tendo em vista corrigir esta arbitrariedade
49 Como nota Andreas Føllesdal (1998, 231) o princípio da subsidiariedade “(...) regulates authority within a political order, directing that powers or tasks should rest with the lower-level sub-units of that order unless allocating them to a higher-level central unit would ensure higher comparative efficiency or effectiveness in achieving them”.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
remeteu-se para o Tribunal de Justiça o poder de apreciação da eficácia relativa das acções
empreendidas, quer ao nível nacional, quer ao nível comunitário. Por outro lado, é de realçar o
esforço despendido tendo em vista uma clarificação dos critérios de aplicação deste princípio,
que foi tema central de três conselhos europeus em 1992 - Lisboa, Birmingham e Edimburgo.
Deste último, saíram os três critérios que poderão justificar a acção da Comunidade, fora da
sua competência exclusiva50: primeiro, o facto de a questão em apreço se revestir de aspectos
transnacionais; depois, o facto de a ausência de acção por parte da Comunidade contrariar as
exigências do tratado; e finalmente, o facto de a acção comunitária apresentar vantagens
evidentes, devido à sua dimensão ou aos seus efeitos. Tal implica que o respeito pela
subsidiariedade será analisado juntamente com o conteúdo de cada proposta da Comissão.
Assim, consagrada oficialmente como um princípio fundamental da União Europeia, a
subsidiariedade está presente, implícita ou explicitamente, nas múltiplas dimensões do
projecto comunitário e tem dado já os seus frutos51. O seu principal mérito reside, em nossa
opinião, na definição de uma orientação geral no que respeita às competências partilhadas
entre a Comunidade e os Estados-membros. A sua principal falha parece-nos continuar a ser,
pese embora as tentativas de clarificação já realizadas, a sua ainda grande indefinição. Não
defendemos, todavia, a elaboração de um “catálogo de competências”, medida que
consideramos extremamente perniciosa, já que serviria apenas para condicionar a evolução
natural do processo de integração. Até porque consideramos que a subsidiariedade só fará
50 Como teremos oportunidade de ver no capítulo seguinte, estes critérios serão mais tarde enunciados no Protocolo relativo à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, anexo ao Tratado de Amesterdão, o que veio reforçar a sua validade jurídica. 51 Na observância do estipulado pelo artigo 3ºB TCE a Comissão comprometeu-se, antes mesmo da ratificação do TUE, a empreender três tipos de medidas: fundamentar todas as novas propostas legislativas; retirar ou rever certas propostas legislativas; e reapreciar a legislação em vigor. Quando a acção da Comunidade se afigura indispensável tem sido, sempre que possível, dada preferência às directivas (principalmente às directivas-quadro) em detrimento dos regulamentos, já que aquelas estabelecem os objectivos gerais, mas remetem para os Estados-membros a definição dos meios para a sua execução. É ainda de registar a procura de soluções alternativas para a legislação, ou até para a acção comunitária, nomeadamente através da aplicação descentralizada do direito comunitário pelas autoridades competentes dos Estados-membros, ou através da cooperação com organismos de normalização.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
sentido no seio de uma união em construção se for entendida como um conceito dinâmico52 e
não como uma espécie de travão à transferência de novas competências para a Comunidade.
Como se pode ler num Relatório da Comissão Europeia (1998, 4): “[N]ão se trata de fixar de
uma vez por todas as competências da União. Pelo contrário, trata-se de as dinamizar,
devendo a União intervir ou abster-se de intervir, apresentando mais e melhores justificações
e actuando mais circunstanciadamente no que respeita aos termos e à dimensão da sua acção”.
Em suma, diríamos que no espírito do federalismo europeu, o princípio da
subsidiariedade é uma ferramenta privilegiada para evitar um excessivo centralismo, sendo,
todavia, essencial, contrariar a sua instrumentalização por aqueles que vêem neste princípio
apenas uma forma de travar a evolução do projecto europeu. Aqui, como noutras áreas, o
Tribunal de Justiça poderá desempenhar um papel crucial: “[B]y using its discretion about
states’ rights, the Court of Justice will be acting more and more in the role of a federal
supreme court” (Duff 1994, 29) [ênfase nossa].
1.1.4 A cidadania da União
Com o Tratado de Maastricht ganha forma jurídica a ideia de uma cidadania europeia.
Na verdade, como nota Sidjanski (1996, 232) “[A] cidadania europeia não deixa de se afirmar
desde a criação da Comunidade [na medida em que] [A]o instituir a ordem jurídica
comunitária, a Comunidade contribuiu para fazer do cidadão europeu um beneficiário e um
sujeito de jurisdição dos direitos comuns”.
Assim, antes mesmo da sua consagração expressa, muitas foram as iniciativas tomadas
52 O carácter dinâmico da subsidiariedade é referido em diversos textos comunitários. Destacaremos aqui a abordagem global sobre a aplicação da subsidiariedade definida pelo Conselho Europeu de Edimburgo, de 11 e 12 de Dezembro de 1992, onde se pode ler: “la subsidiarité est un concept dynamique qui doit être appliqué à la lumière des objectifs énoncés dans le traité. Elle permet d’élargir l’action de la Communauté lorsque les circonstances l’exigent et, inversement, de la restreindre ou de l’interrompe lorsqu’elle n’est plus justifiée” [ênfase nossa].
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
no sentido da sua concretização. Desde logo, destaca-se o papel decisivo do Tribunal de
Justiça53 que, através da sua jurisprudência, procurou estender ao máximo a protecção dos
direitos dos cidadãos comunitários. Actuando sempre com base numa interpretação extensiva
das disposições dos tratados comunitários e do direito comunitário derivado, esta instituição
conseguiu alargar o âmbito pessoal da aplicação da livre circulação de pessoas, ao mesmo
tempo que possibilitou que o direito de permanência deixasse de depender, quase totalmente,
de fins económicos.
Igualmente importante foi o contributo político-institucional. Neste plano, a ideia de
uma “cidadania europeia” ganha força, sobretudo, a partir da cimeira de Paris, de Dezembro
de 197454. Será todavia a concretização da eleição do Parlamento Europeu por sufrágio
universal e directo (a partir de 1979) aquele que constituirá: “o primeiro sinal tangível de uma
cidadania europeia, não obstante a ausência de um processo eleitoral uniforme” (Maria Luísa
Duarte 1994, 23). Ainda assim, apesar de ter contribuído para envolver os cidadãos no
processo de construção comunitária, esta inovação55 foi insuficiente para estimular a criação
de uma identidade europeia. Numa tentativa de contrariar a pouca identificação do cidadão
com o projecto europeu, foram acordadas, na década seguinte, medidas como a uniformização
dos passaportes e das placas de matrícula automóvel, a carta de condução comunitária, a
criação de corredores para cidadãos comunitários nos aeroportos, que, contudo, não
ultrapassaram um carácter essencialmente simbólico.
Compreende-se, deste modo, que o novo estatuto introduzido por Maastricht seja mais
um alargar da esfera da cidadania europeia do que propriamente uma inovação. Ainda assim,
53 A expressão “cidadão comunitário” pode ser encontrada na terminologia do Tribunal de Justiça pelo menos desde 1980. 54 Durante esta cimeira os, então, nove membros da Comunidade encarregaram um grupo de trabalho de estudar as condições e prazos de atribuição de direitos especiais aos seus nacionais. Na sequência deste desafio é apresentado o Relatório Tindemans que propõe direitos de participação política e a possibilidade de um nacional de um Estado-membro ocupar um cargo na função pública de outro Estado-membro. Através deste relatório os direitos especiais adquirem um carácter político e cívico, cuja titularidade, não só não está consagrada nos tratados, como também não resulta do adquirido comunitário. 55 Já prevista pelo texto original do Tratado de Roma, no seu artigo 138º, nº 3.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
parece evidente que a sua consagração expressa no Tratado (artigos 8º a 8ºE) representou uma
mudança qualitativa assinalável: a partir desse momento o nacional de cada Estado-membro
deixa de ser beneficiário indirecto da integração económica, para passar a ser encarado como
um elemento essencial da construção europeia. De facto, a “constitucionalização” de um
estatuto que traz consigo um conjunto de direitos cujo exercício já não depende da verificação
de requisitos de natureza económica, permite-nos concluir que “o agente económico cedeu
lugar ao cidadão” (Duarte, 2000, 247). Ora, este é um passo que consideramos decisivo na
construção de uma união verdadeiramente política e resulta de um claro esforço para diminuir
a distância que separa os cidadãos das instituições comunitárias.
Por outro lado, a criação de um estatuto que confere direitos iguais a cidadãos de
diferentes nacionalidades deixava antever a possibilidade de formação uma soberania popular
comum como complemento da soberania estatal. Sem embargo, como sublinha Duff (1994,
29): “the Maastricht Treaty takes no risks”. A cidadania da União é limitada aos nacionais dos
Estados-membros, não prevendo qualquer protecção especial para os cidadãos de países
terceiros a residir legalmente em países da Comunidade. Trata-se, portanto, de um estatuto
reconhecido de forma indirecta, o que significa que os acontecimentos passíveis de afectar a
cidadania nacional repercutem-se necessariamente na qualidade de “cidadão da União”.
Compreende-se, assim, que a cidadania da União tenha um estatuto de sobreposição56 e nunca
de substituição, pelo que os direitos e deveres atribuídos aos cidadãos da União não podem
prejudicar ou contrariar a titularidade dos direitos e a vinculação aos deveres que cada Estado
define na esfera jurídica dos seus cidadãos.
Com o intuito de reforçar a identidade política da Comunidade, o novo Tratado
procurou dotar de eficácia a cidadania europeia munindo-a, para tal, de um conjunto de
direitos (artigos 8ºA a 8ºD TCE). Para além do direito de livre circulação e de permanência
56 Esta ideia de complementaridade foi claramente explicitada pelo Tratado de Amesterdão (artigo 17º, nº 1 TCE).
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
nos Estados-membros (artigo 8ºA TCE), o tratado reconhece, ademais, a qualquer cidadão da
União o direito de eleger e ser eleito para o PE e também em eleições municipais no país de
residência, nas mesmas condições que os nacionais desse país (artigo 8ºB TCE)57. Segue-se o
direito dos cidadãos da União à protecção diplomática nos Estados terceiros onde o Estado de
que são nacionais não possui representação diplomática nem consular, situação em que
beneficiarão da protecção de qualquer Estado-membro nas mesmas condições que os seus
nacionais (artigo 8ºC TCE). Finalmente, o Tratado concede também o direito de petição ao
PE (artigo 8ºD TCE) e o direito de queixa perante o Provedor de Justiça (artigo 8ºE TCE)58.
Ao contrário do que acontece com os direitos, não se encontra no Tratado um conjunto
específico de deveres do cidadão europeu, para além de uma vaga referência à obrigação de
respeitar o Tratado: “[O]s cidadão da União (...) estão sujeitos aos deveres previstos no
presente Tratado” (artigo 8º, nº 2 TCE). Na verdade, como sublinha Maria Elisabete Ramos
(1996, 11) tal obrigação “assume escasso relevo (...) pois acaba por reconduzir ao dever
[geral] de observar a lei”. Esta é, aliás, uma das fragilidades apontada ao estatuto da cidadania
europeia na medida em que parece esquecer que a condição de cidadão é o reflexo da
concessão de direitos, mas também, e merecendo igual importância, da atribuição de deveres.
Em síntese, não parece constituir dúvida que o novo estatuto introduzido pelo TUE
constituiu um passo em frente na integração política. Com o objectivo claro de reforçar a
identificação dos cidadãos com a realidade europeia, a cidadania da União é um sinal claro
dado pelos líderes europeus da importância atribuída aos cidadãos como legitimadores do
projecto europeu. Aliás, como nota Lobo-Fernandes num artigo de opinião publicado no
semanário Expresso, de 07 de Junho de 2003, “a UE é simultaneamente uma união de Estados
e uma união de cidadãos (...) Ora, a reforma institucional (...) terá por um lado de reflectir este
57 Direitos políticos stricto sensu que surgem como complemento à liberdade de circulação e traduzem a existência de uma relação política do cidadão com a União. 58 A este conjunto de direitos o Tratado de Amesterdão aditaria ainda o direito de se dirigir por escrito a qualquer das instituições ou órgãos da Comunidade e delas obter resposta numa das doze línguas oficiais da Comunidade (artigo 21º, ¶ 3 TCE).
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
dualismo estrutural e por outro implica a procura de um modelo que traga maior legitimidade
às instituições”. Uma solução possível para apreender esta dupla legitimade é a opção por um
sistema de duas câmaras (a câmara dos cidadãos de base proporcional e uma segunda câmara
paritária dos Estados) para o qual o autor encontra pelo menos três vantagens:
“dá uma moldura institucional mais realista à condição dualista da Comunidade (...),
responde melhor à procura de uma maior legitimação e retém o princípio da igualdade
jurídica dos Estados. Maior legitimidade das instituições resolve-se com mais
participação política, e participação resolve-se por sua vez com maior
representatividade institucional”.
Embora partilhemos da opinião de Lobo-Fernandes, parece-nos, não obstante, que em face
dos últimos desenvolvimentos em matéria de reforma institucional59 será ainda longo o
caminho a percorrer para que à Europa das Elites suceda a Europa dos Cidadãos plena.
Sendo uma questão que entrou definitivamente na agenda europeia muitas são as
propostas visando o reforço e aprofundamento da cidadania da União, ainda que, na sua
maioria, consistam num reafirmar de “velhas” ambições. É assim que volta à ordem do dia a
necessidade de reforço dos poderes do PE; a defesa de uma aplicação mais ambiciosa do
princípio da subsidiariedade (na sua vertente descentralizadora); a importância do
desenvolvimento de verdadeiros partidos políticos e de fortes movimentos sociais a nível
europeu; ou, ainda, a conveniência da personalização das eleições europeias (através da
escolha de personalidades com real peso político para os principais cargos institucionais).
Particularmente interessante parece-nos a ideia da criação de um imposto europeu, ainda que
deva ser objecto de cuidadosa reflexão. Tratar-se-ia de um imposto directo sobre o
rendimento das pessoas ou das sociedades, o que permitiria ao contribuinte europeu ter uma
percepção mais aproximada de quanto “custa” a Comunidade e, por outro lado, reforçaria o
59 Referimo-nos em particular ao texto final do projecto de constituição apresentado em Junho de 2003 pela Convenção europeia.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
seu sentimento de pertença à mesma60. Tal imposto deveria reunir pelo menos três
caracteríticas: “una base amplia, una contribución de todos os Estados basada en el principio
de proporcionalidad, y un sistema de gestión sencillo” (Luis Jimena Quesada 2001, 66). É
indiscutível a dificuldade de tal tarefa, até pela incontornável questão de que a cobrança de
impostos é uma das prerrogativas da soberania dos Estados e, não menos importante, constitui
uma das suas maiores fontes de rendimentos. Não obstante, o advento do euro, cuja criação
implicou a abdicação por parte dos Estados-membros de uma premissa importantíssima da
sua soberania (o direito de imprimir moeda), leva-nos, pelo menos, a admitir que este imposto
europeu possa, um dia, tornar-se realidade61. A acontecer, estaria dado o passo decisivo para o
federalismo fiscal.
1.1.5 O Acordo sobre a Política social
Apesar de ser cada vez mais evidente a importância da dimensão social numa
Comunidade que ambicionava a integração política, o Tratado de Maastricht deixou quase
inalteradas as disposições da política social introduzida pelo Acto Único Europeu. Tal
situação deveu-se, em grande medida, à posição do governo do Reino Unido, liderado por
Margaret Thatcher; ao opor-se com veemência à Carta dos Direitos Sociais Fundamentais, de
Dezembro de 1989, (que viria a ser adoptada por todos os Estados-membros à excepção do
Reino Unido) inviabilizou a sua aplicação por falta de unanimidade no Conselho. Contudo,
insatisfeitos com os parcos progressos num domínio de importância vital para a tão desejada
Europa dos cidadãos, os então restantes onze Estados-membros conseguiram persuadir o
Reino Unido a permitir-lhes avançar neste domínio. Assim, para evitar os previsíveis
60 Obviamente, o contribuinte não poderia ver a sua carga fiscal agravada, tendo que haver uma reponderação nos impostos nacionais, até porque os Estados deixariam de contribuir directamente para o orçamento comunitário. 61 Depois de alguns anos de esquecimento, a ideia de um imposto europeu voltou a ser relançada pela Bélgica, país que presidiu à UE no segundo semestre de 2001.
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bloqueios institucionais, os negociadores do Tratado da União Europeia elaboram dois textos
relativos à política social62: o primeiro deles, aprovado pelo conjunto dos Doze, autoriza os
Onze a prosseguir na via da Carta Social e a recorrer, para esse efeito, às instituições,
procedimentos e mecanismos da Comunidade Europeia (sem que os actos decretados se
apliquem ao Reino Unido); o segundo, assinado pelos Onze, modifica os artigos do Tratado
atribuindo-lhes objectivos mais amplos, embora ressalvando que para a sua realização é
necessário ter em consideração a diversidade das práticas nacionais, sobretudo no domínio das
relações contratuais e a necessidade de manter a capacidade concorrencial63.
Para além do avanço que representam na vertente social da União, a maior inovação
destes textos é, por maioria de razão, o novo método por eles inaugurado. Como sublinha
Duff (1994, 33): “[I]t is the first serious example in the history of the Community of a Treaty
derogation from one of the objectives of the Treaty”. Isto significa, na prática, que foi aberto o
precedente para que um Estado-membro possa, se for esse o seu desejo, ficar de fora da
integração num determinado domínio64. Percebe-se facilmente a intenção que está subjacente
à ideia de uma “integração a duas velocidades”: não excluindo a possibilidade de os
retardatários se juntarem aos outros, esta nova fórmula impedirá que as reservas dos mais
reticentes em relação ao projecto europeu travem aqueles que desejam avançar mais
rapidamente. Porém, é importante não esquecer os desfazamentos que uma “Europa multi-
nível” pode acarretar, sobretudo quando nos parece que coerência e coesão são qualidades
indispensáveis a um projecto que visa unir um continente. Embora não acreditemos
verdadeiramente na possibilidade de desintegração, será sensato ter em mente que este é um
fenómeno possível: “[T]he complexities of living in a world which is at the same time many
worlds has given rise to conceptualizations not only of coming together, but also of coming
62 O Protocolo relativo à política social (protocolo nº 14 anexo ao TCE) e o Acordo relativo à política social celebrado entre os Estados-membros da Comunidade Europeia com excepção do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte. 63 Cf. Sidjanski, op. cit., 254. 64 Com idêntico objectivo, foi previsto pelo Tratado de Amesterdão o mecanismo de “cooperação reforçada”.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
apart” (Groom and Heraclides 1985, 183) [sublinhado nosso].
1.1.6 Justiça e Assuntos Internos
O terceiro pilar do Tratado de Maastricht é dedicado à dimensão da justiça e dos
assuntos internos. Durante décadas, a Comunidade trabalhou para edificar um espaço sem
fronteiras caracterizado por uma plena liberdade de circulação de pessoas. Ora, apesar do
inegável avanço que tal empresa representa na integração europeia, são também muitos os
problemas que acarreta, nomeadamente no que respeita à segurança dos cidadãos. Por esta
razão, se por um lado se assistiu à supressão de uma série de controlos que eram exercidos na
passagem de um Estado para o outro, assistiu-se também, como consequência, à necessidade
de reforçar o controlo das fronteiras externas da Comunidade, bem como no interior do
espaço comunitário.
Ao longo dos anos, os Estados-membros da Comunidade criaram uma série de
mecanismos ad hoc com vista a facilitar uma intervenção concertada neste domínio. Entre as
matérias abrangidas contam-se a cooperação policial e alfandegária, o asilo, a extradição, a
deportação, as políticas de vistos e a muito controversa questão da imigração. Com a
perspectiva da conclusão do mercado interno, esta actividade marcadamente
intergovernamental foi sendo “coordenada” cada vez mais com a actividade da Comunidade,
assistindo-se ao aumento gradual do envolvimento da Comissão no processo. A assinatura do
Acordo de Schengen por alguns dos Estados-membros65, com o objectivo de criar um espaço
totalmente sem fronteiras entre os signatários, foi mais um passo no sentido de acabar com as
barreiras internas à livre circulação de pessoas. Mas implicou também, como contrapartida,
um sistema de segurança comum aos Estados-membros signatários com o objectivo de 65 A Convenção foi assinada, fora do quadro comunitário, em Junho de 1990, pela França, Alemanha, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. A estes países juntar-se-iam, mais tarde, os restantes Estados-membros, com excepção da Irlanda e do Reino Unido.
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aumentar a vigilância nas regiões transfronteiriças66.
Mais do que inovações, as disposições do Tratado de Maastricht relativas ao terceiro
pilar representam, pois, uma tentativa de introduzir alguma coerência no aglomerado de
actividades diplomáticas nesta matéria, associando-as mais estreitamente à Comunidade
(ainda que sem lhes retirar o carácter intergovernamental). Assim, de acordo com o Título VI
do Tratado, no processo de decisão respeitante aos assuntos internos e de justiça, o Conselho,
assistido pelo Comité de Coordenação67, passa a desempenhar o papel central, enquanto que a
Comissão, embora relegada para um papel mais modesto, vê garantida a sua associação aos
trabalhos. Já o Parlamento Europeu não consegue mais do que um papel marginal, ainda
assim mais importante que o do Tribunal de Justiça que continua largamente excluído deste
domínio. No que respeita ao Conselho Europeu, embora os seus poderes não sejam definidos,
a autoridade que lhe é conferida pelo Tratado permite-lhe intervir quando considerar
necessário promover novas actividades ou orientar as decisões mais importantes. Percebe-se,
deste modo, que neste sistema a repartição de poderes e os papéis atribuídos às diversas
instituições divirjam consideravelmente do modelo comunitário, pendendo o prato da balança
claramente para o lado dos governos nacionais.
De facto, tal como foi definido por Maastricht, pensamos não existir dúvidas quanto
ao carácter intergovernamental da cooperação no domínio dos assuntos internos e da justiça68.
Ao contrário do que acontece a nível interno dos Estados-membros - em que esta é uma área
regida pela lei que o executivo está encarregue de aplicar sob o controlo do Parlamento - no
âmbito das disposições do Tratado, o papel do Conselho e, consequentemente, dos governos
66 No âmbito do Acordo de Schengen foi criado o Sistema de Informação e Segurança tendo por objectivo aumentar a eficácia na luta contra o crime através da troca de dados entre as polícias dos Estados-membros signatários do acordo. 67 Instituido pelo artigo K4 do TUE, o Comité de Coordenação é composto por Altos Funcionários e tem, actualmente (depois de Amesterdão), como missão formular pareceres destinados ao Conselho (a pedido deste ou por sua própria iniciativa), bem como contribuir para a preparação dos trabalhos do Conselho nos domínios a que se refere o artigo 29º TUE (cooperação policial e judiciária em matéria penal). 68 Prova disto mesmo é o facto deste pilar se servir expressamente da palavra cooperação.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
nacionais, aumenta fortemente em detrimento da função parlamentar69. Não obstante, o
próprio Tratado admite a possibilidade de uma posterior transferência de alguns das matérias
deste terceiro pilar para os auspícios da Comunidade, ficando tal decisão dependente de uma
análise casuística e sujeita a uma votação por unanimidade do Conselho70. Aliás, existe quase
que uma espécie, diríamos, de “inevitabilidade” nesta provável comunitarização no domínio
da justiça e dos assuntos internos, já que a nova exigência de uma maior coordenação nesta
área resultou da própria evolução da integração europeia. Ainda que consideremos que a via
da comunitarização do terceiro pilar seja o passo desejável, não poderíamos deixar de
considerar o argumento avançado por Vila Maior (1997, 156) para justificar uma primeira
fase de cooperação intergovernamental:
“[A]o colocar o acento tónico no vector intergovernamental, a C.E. quis reconhecer a
sua impotência momentânea em cumprir os objectivos de manutenção da segurança à
escala comunitária. Simultaneamente, aceitou que o desiderato só poderia ser
eficazmente atingido se o papel principal fosse atribuído aos Estados-membros,
habituados que estão a combater (...) os problemas que resultam dos fenómenos
expostos. Eis como a cooperação nos assuntos internos e na justiça teve que ser
contemplada numa vertente intergovernamental, em homenagem à eficácia no
cumprimento dos objectivos propostos” [ênfase nossa].
1.2 O Embrião de uma Identidade Externa da União no Domínio Político
As preocupações com a dimensão externa da Comunidade não são recentes. De facto,
à medida que as suas funções se foram desenvolvendo, a Comunidade foi alargando o seu
domínio de acção ao campo externo. Basta lembrar o importante papel desempenhado 69 Cf. Sidjanski, op. cit., 270. 70 A “comunitarização” de parte do terceiro pilar veio de facto a acontecer com a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
aquando do Kennedy Round (no âmbito das negociações do GATT), a sua política de ajuda ao
desenvolvimento (de países terceiros) ou a vasta rede de acordos de associação e assistência
estabelecida entre a Comunidade e um elevado número de países de todo o mundo71.
Contudo, se é evidente o desenvolvimento de algumas acções externas comuns da
Comunidade, não é menos evidente que o seu conteúdo foi, até há uma década atrás,
predominantemente económico. Depois do fracasso da Comunidade Europeia da Defesa72, a
prioridade dada à integração económica, como um meio para atingir a integração política,
acabaria por relegar para segundo plano esta última dimensão. É verdade que, a partir da
década de 1970, os Estados-membros começaram a praticar uma discreta cooperação política
intergovernamental, que gradualmente foi deixando de ser uma mera “consulta recíproca
sobre as questões importantes”, para dar lugar à Cooperação Política Europeia (CPE). Mas
não é menos verdade que matérias como a segurança e defesa passaram a constituir uma
espécie de “tabu” da integração, situação explicável pelo desaire de tentativas anteriores73,
mas também, e principalmente, pela recusa dos governos em abdicarem, ou mesmo em
partilharem, o exercício de competências em domínios que constituem atributos, por
excelência, da soberania nacional. O resultado foi a emergência de um gigante económico,
mas que se manteve um anão político. À medida que se agravavam as distâncias entre as duas
vertentes, aumentavam as vozes dos que defendiam a necessidade de um desenvolvimento
paralelo entre integração económica e integração política. De facto, era por demais evidente 71 Como refere Lobo-Fernandes (2001, 8) “os anos setenta foram decisivos para formatar o papel dos Europeus a nível internacional (...) Por um lado, fez-se uso dos tratados – de algum modo não previsto inicialmente – para realizar uma política de cooperação para o desenvolvimento e, por outro, foi lançada a cooperação política europeia (cpe), um mecanismo inter-governamental que tinha por objectivo harmonizar tanto quanto possível as políticas exteriores dos Estados-membros e, com isso, tentar uma maior influência internacional no apertado quadro bipolar”. 72 A ideia de uma Comunidade de Defesa surge, logo em finais de 1950, para completar o Plano Schuman e responder a uma necessidade premente de defender a Europa ocidental. Menos de dois anos mais tarde, é assinado em Paris o Tratado da CED pelos seis membros fundadores da CECA. Numa demonstração clara de um desejo de progredir rapidamente para a união, este Tratado esboça já no seu artigo 38º as estruturas essenciais de uma futura Comunidade federal ou confederal. Apesar dos esforços dos líderes europeus, o Tratado da CED e o seu natural prolongamento político (uma comunidade política europeia) seriam travados, ironicamente, pela Assembleia do país que havia liderado o movimento em prol da união, a França. 73 Relembre-se, a título de exemplo, a tentativa falhada de criar uma Comunidade de Defesa Europeia, logo em 1952, ou, alguns anos mais tarde, o igualmente mal sucedido Plano Fouchet que visava uma União de Estados.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
que a continuação de tal handicap político incapacitaria a Comunidade no pós-Guerra Fria de
assumir as tarefas que lhe eram impostas na cena internacional pela sua própria condição de
potência económica.
As mudanças ciclópicas que tiveram lugar na Europa Central e de Leste tornaram
ainda mais inequívoca, pois, para dirigentes e cidadãos, a necessidade de acelerar a união
política. Para que a Comunidade pudesse aceitar a responsabilidade que lhe era atribuída na
procura da estabilização dos países do centro e leste europeu e na edificação de uma nova
ordem internacional, havia que somar ao poder económico uma capacidade política. Ora, tal
não seria possível sem recompor o figurino da segurança e defesa europeias, até aí a cargo de
cada Estado-membro, considerado individualmente e, sobretudo, do velho aliado do outro
lado do Atlântico – os EUA .
Impelidos pelos perigos latentes resultantes da redefinição do mapa do Leste europeu e
pela lição da crise do Golfo que, sem contemplações, havia posto a nu a fraca capacidade de
influência e os limitados meios de acção da Comunidade74, os líderes europeus decidiram
somar à já então convocada conferência intergovernamental - destinada à criação de uma
União Económica e Monetária - uma segunda CIG dedicada à união política, que contava
entre os seus objectivos a conclusão de um acordo relativo a uma política externa e de
segurança comum (PESC).
As negociações para a instituição de uma Política Externa e de Segurança Comum
pelo TUE tiveram subjacente objectivos precisos: por um lado, a Europa procurava com a
PESC dotar-se de um instrumento adequado a potenciar a segurança do continente, num
período de profundas incertezas, marcado por uma nova conjuntura geopolítica unipolar e
com tendências fragmentárias75, que faziam recear pela integridade do território; por outro
74 O papel relativamente modesto desempenhado pela Comunidade, como um todo, neste conflito levaria mesmo Jacques Delors a afirmar: “[A] guerra do Golfo demonstrou, se era necessário, os limites da influência e da acção da Comunidade Europeia” (citado em Sidjanski 1996, 297). 75 Como o demonstra, por exemplo, o grave conflito que assolou a zona dos Balcãs.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
lado, podendo constituir uma garantia complementar de segurança, a PESC contribuiria
também para criar um cenário de estabilidade política na Europa comunitária e, por
alastramento, para a estabilidade política e económica de todo o continente europeu; por
último, figuravam ainda entre as ambições da nova política comum a consolidação das
democracias e economias de mercado que emergiam nos países da Europa Central e Oriental,
por forma a que, a prazo, fosse possível tornar realidade o velho sonho de uma Europa unida.
O acordo alcançado pelos Estados nesta matéria ficou plasmado no segundo pilar do
Tratado de Maastricht. Ao reunir numa única política duas dimensões que há muito andavam
separadas, a política externa comunitária e a segurança, os dirigentes europeus deram um
passo importantíssimo na via da união política76. Não obstante, ficou adiada, sine die, a
inclusão de uma terceira dimensão de uma importância vital para a sobrevivência do projecto
europeu: a defesa. Embora o Tratado preveja a definição de uma política de defesa comum
como uma espécie de corolário da PESC77, não é fornecida qualquer indicação no que respeita
ao prazo para a sua concretização78. Esta foi sem dúvida uma oportunidade perdida, embora
se perceba que dada a urgência em apresentar uma solução, imposta pela própria conjuntura
internacional, os negociadores do Tratado teriam tido “pouco tempo” para aflorar uma
questão que, por interferir tão directamente com a soberania e os interesses de cada Estado-
membro, se reveste de extrema delicadeza.
Também reflexo da dificuldade que os Estados têm em abdicar das suas prerrogativas 76 De notar, porém, que em termos “institucionais” a separação prevaleceu, e, ainda hoje (dois tratados depois), existem responsáveis diferentes para a PESC (o Alto-representante para a PESC) e para as relações comerciais (o comissário das relações externas). Esta é, aliás, uma das questões que fazem parte da agenda da Convenção sobre o futuro da União Europeia, afigurando-se previsível uma fusão dos dois cargos. Como sublinhou Lobo-Fernandes “[I]n theory, the current division of labor is clear: Solana does the diplomacy, while Patten implements the EU’s aid programmes and manages political instruments. However, in practice it is hard for them to join up resources”. Cf. Lobo-Fernandes. 2002. “The European Project and Its Future”. University of Cincinnati, 15 de Outubro. 77 No artigo B das disposições comuns do TUE pode ler-se: “[A] União atribui-se como objectivo afirmar a sua identidade na cena internacional, nomeadamente através da execução de uma política externa e de segurança comum, que inclua a definição, a prazo, de uma política de defesa comum” [ênfase nossa]. 78 Apesar desta ausência de prazos, as medidas previstas pelo artigo J4 do TUE (nomeadamente as que se referem ao papel a desempenhar pela União da Europa Ocidental) podem, como sublinha Sidjanski (1996, 287-288), ser entendidas como uma manifestação de vontade por parte dos Estados-membros de forjarem progressivamente uma identidade europeia de defesa.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
em matérias que constituem historicamente o núcleo crítico da soberania nacional foi, à
semelhança do que havia acontecido com o terceiro pilar, a adopção de um mecanismo de
tomada de decisão marcadamente intergovernamental para a PESC. De facto, em todos os
domínios de incidência desta política as decisões serão tomadas no seio do Conselho e ficarão
sujeitas à regra da unanimidade, estando prevista a maioria qualificada unicamente para as
modalidades de estabelecimento prático das acções comuns79. Consequentemente, é vedado à
Comissão o papel de motor da integração neste domínio, ainda que tenha sido plenamente
associada aos trabalhos do Conselho Europeu (em virtude da presença do seu presidente) e do
comité político. Daqui se conclui, que as disposições do Tratado mantêm uma clara distinção
entre a repartição dos poderes e das responsabilidades nas matérias da competência da
Comunidade e da União Europeia: enquanto no pilar comunitário, Comissão e Conselho estão
no centro do processo de decisão, já na união política esta posição é ocupada apenas pelo
Conselho (seguindo as orientações gerais do Conselho Europeu)80. Assim, embora evolua no
interior do sistema comunitário e faça uso da rede institucional e administrativa comunitária, a
natureza do processo de decisão, no domínio da PESC, é nitidamente mais próxima da
cooperação política intergovernamental do que do modelo comunitário, embora partilhe com
este a elevada complexidade.
Para a definição e execução da política externa e de segurança comum, o Tratado
coloca à disposição da União dois instrumentos: as posições comuns e as acções comuns. De
uma maneira geral, o primeiro destes instrumentos, as posições comuns, correspondem ao que
era já praticado no âmbito da CPE. Trata-se, na verdade, de uma espécie de “nível superior”
da já praticada cooperação sistemática que leva os Estados a informarem-se e a consultarem- 79 Ao contrário do que acontece nas restantes políticas comuns, na PESC existe uma rede dupla de decisão: em primeiro lugar o Conselho de Ministros é chamado a decidir, por unanimidade, sobre a possibilidade de submissão de certo domínio para a PESC. Caso seja possível a unanimidade, passar-se-á então ao momento da tomada de decisão, em que será suficiente a maioria qualificada dos membros do Conselho. Este segundo momento de decisão versará unicamente sobre a forma de pôr em prática as acções necessárias para cumprir os objectivos propostos para o domínio de actuação concreto que havia sido, no primeiro momento, submetido à alçada da PESC (Vila Maior, op. cit., 111). 80 Cf. Sidjanski, op. cit., 280.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
se mutuamente no Conselho sobre uma questão de política externa que consideram ter
interesse geral. O objectivo é a adopção de acções convergentes, ainda que não
necessariamente comuns, que lhes permitam reforçar a sua capacidade de influência na cena
internacional. Sempre que o Conselho considere adequado um nível de coesão mais elevado
definirá uma posição comum. Talvez como uma tentativa de contrabalançar a flexibilidade da
cooperação sistemática o Tratado introduz um novo instrumento mais preciso e mais restritivo
- as acções comuns - que obrigam os Estados-membros quer nas suas tomadas de posição,
quer na condução da acção. Efectivamente, ao adoptar uma acção comum o Conselho fixa o
alcance, os objectivos e os meios da mesma, ficando o seu controlo a cargo da presidência que
segundo o artigo J5, ¶ 2 “é responsável pela execução de acções comuns”. Sem prejuízo do
exposto, a Comissão está também plenamente associada às tarefas, nas quais participa
também o comité político, composto por directores políticos dos ministérios dos Negócios
Estrangeiros. Apesar de complexo, este sistema reflecte já, como sublinha Sidjanski (1996,
281) “a intenção dos Estados-membros de se dotarem de uma política externa comum mais
eficaz do que a simples cooperação política. Com efeito, a acção comum anuncia um grau
superior de coerência, de unidade e de eficácia da União”.
Outro elemento de significativa importância é a questão da representação da União
pela presidência. De facto, ao atribuir-lhe a responsabilidade pela execução das acções
comuns, o Tratado de Maastricht faz da presidência a “porta-voz” da posição assumida por
todos os Estados-membros, no seu conjunto, cabendo-lhe portanto representá-los nos assuntos
da PESC e nas organizações e conferências internacionais. Esta medida foi uma espécie de
“passo atrás” para a Comissão que viu, deste modo, frustrada a perspectiva de alargamento do
seu papel representativo, para além dos assuntos externos de cariz económico81. Na linha do
que aconteceu em relação ao processo de tomada de decisão, Maastricht introduziu também
81 Facto de alguma forma compensado por um direito de iniciativa (ainda que não exclusivo, porque partilhado com os Estados-membros) nas matérias da PESC.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
uma clara distinção entre a representação da Comunidade e da União, o mesmo será dizer
entre a integração económica e a integração política. Apesar desta espécie de “dupla
representatividade”82, é visível o esforço dos negociadores do Tratado no sentido de reforçar a
presença e coerência da União nas diferentes instituições e organismos internacionais83.
Em suma, tendo por objectivo colmatar a evidente insuficiência de poderes e de meios
da Comunidade em matéria de política externa e de segurança, a nova política comum
condensada no segundo pilar de Maastricht denuncia uma vontade clara de aprofundamento
dos objectivos políticos da Europa comunitária. Na medida em que “retira” aos Estados-
membros a condução exclusiva de uma das mais importantes prerrogativas da soberania - a
política externa e de segurança – a consagração da PESC parece deste modo o cumprir de
mais uma etapa na longa jornada que culminará numa união de cariz federal. É, porém,
indispensável refrear o entusiasmo dos defensores deste futuro - grupo em que nos
incluiríamos - pois, na prática, a PESC permanece ainda, em grande medida, nas mãos dos
Estados. É disso prova o papel marginal atribuído, neste domínio, à Comissão e ao
Parlamento Europeu. Na verdade, como regista Vila Maior (1997, 112) “as matérias relativas
a esta política comum nascem, são discutidas e decididas pelo Conselho, a instituição que por
excelência representa os Estados membros (...). No fundo, trata-se de uma espécie de acordo
entre as autoridades governamentais dos Estados-membros que têm assento no Conselho”
[nossa ênfase]. Contudo, apesar do seu carácter indiscutivelmente intergovernamental, a 82 De referir, todavia, que, com a criação do Alto-representante para a PESC, pelo Tratado de Amesterdão, este “dualismo” se traduz, na prática, numa “tripla representação” (presidência, Comissão e Alto-representante para a PESC), que compromete seriamente a coerência indispensável a um desempenho eficaz da União na cena internacional. Como referiu Lobo-Fernandes, numa intervenção proferida na Universidade de Cincinnati, “[I]n terms of ambitions, the enlarged Union should become a more important actor on the world stage because, I think, of its greater size and because of United States’s need for a strong ally” (15 de Outubro de 2002). Ora, tal não parece possível, como o autor, aliás, salienta, sem uma readaptação da actual estrutura de representação da UE no domínio externo. 83 A este propósito, não poderíamos deixar de destacar a importante inovação que representam as disposições do artigo J5, nº 4, ¶ 2 do TUE de acordo com as quais os Estados-membros da União, que sejam também membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, têm o dever de concertar as suas posições e de manter os outros Estados-membros da União informados. Ainda segundo as indicações do mesmo parágrafo, os Estados-membros que sejam membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas têm o dever de defender, no exercício das suas funções, as posições e os interesses da União, sem prejuízo das suas responsabilidades para com a Carta da ONU.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
Política Externa e de Segurança Comum não deixa de ser um salto qualitativo de importância
assinalável, na medida em que institucionaliza uma “exigência” de concertação da actuação
dos Estados-membros neste domínio. Como resultado, aumenta, ainda que com limitações, a
coerência e eficácia da intervenção da União. Persuadimo-nos que “só falando em uníssono” a
Comunidade poderá afirmar a sua influência enquanto actor de primeira linha nas relações
internacionais e, assim, contrariar a lógica unipolar decorrente do fim da Guerra Fria. Parece-
nos, portanto, que mesmo sendo uma política comum “atípica”84, a PESC poderá tornar-se
num instrumento privilegiado na edificação de uma identidade própria da União em termos
externos.
1.3 Conclusão: Maastricht ou a Revelação de um Federalismo Aberto
Negociado num período de profunda mutação e incerteza na ordem internacional, o
Tratado de Maastricht pretendeu impulsionar a indispensável mudança na Comunidade. Como
o demonstra o simbólico abandono do termo “Económica” na designação da Comunidade85, o
processo de integração europeia entrava numa nova fase86 que tem como ambição proclamada
a edificação de uma verdadeira união política; sem que tenha posto de parte a componente
intergovernamental da construção comunitária87, que de resto reforçou em algumas vertentes,
o novo Tratado contribuiu igualmente para um avanço em direcção a um modelo neofederal,
não só pelo que consagrou de facto, mas, sobretudo, pelas possibilidades que abriu88. A
conclusão da integração económica abriu a porta para a integração política; a criação da PESC 84 O seu processo de decisão predominantemente intergovernamental retira-a da alçada da Comunidade. 85 O artigo G, alínea, nº 1 dispõe que “a expressão Comunidade Económica Europeia é substituída pela expressão Comunidade Europeia”. 86 Esta ideia é explicitamente declarada no Preâmbulo do Tratado onde pode ler-se: “[R]esolvidos a assinalar uma nova fase no processo de integração europeia iniciado com a instituição das Comunidades Europeias” [sublinhado nosso]. 87 A este propósito parece-nos reveladora a expressão “a union with several rooms” usada pelo Financial Times para descrever a nova União Europeia criada por Maastricht (Cf. Burgess 2000, 210). 88 Vila Maior (1997, 186) considera mesmo que “o T.U.E. corresponde a meio caminho andado para o federalismo”.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
possibilita a criação de uma identidade externa da União; o pilar da Justiça e Assuntos
Internos é gerador de um real espaço de liberdade, segurança e justiça89; a nova cidadania
europeia cria uma União mais próxima do cidadão; a adopção do princípio da subsidiariedade
introduz uma governação descentralizada; por último, o processo de co-decisão consagra uma
maior participação do parlamento. É verdade que os opositores do federalismo conseguiram
retirar do texto do Tratado a “vocação federal” da nova união, mas não puderam evitar, como
parecem demonstrar alguns dos exemplos acima mencionados, que o Tratado compreendesse
um conjunto de disposições que podem ser entendidas como um prenúncio, para médio ou
longo prazo, de um modelo federal para a Europa90.
Aquando da sua conclusão houve quem chamasse ao Tratado de Maastricht “a driving-
mirror Treaty”91, ou seja, um Tratado que se limitava a consagrar de jure o que já havia sido
conseguido anteriormente de facto, pelos doze Estados-membros e pelas instituições
comunitárias. Não negando, até, o que teria sido a importância de tal tarefa (já que é
indispensável conferir força jurídica aos avanços que se vão registando fora do âmbito dos
tratados) parece-nos evidente que seria desajustado atribuir a Maastricht apenas esta
vantagem. É certo que em parte as suas disposições são um reflexo do estado da integração
europeia, à data, mas parece-nos também que, como já referimos, o Tratado é fonte de
inovação, não só pelos novos procedimentos e competências que introduziu, mas, sobretudo,
pelas potencialidades que encerra. Com Maastricht, o projecto comunitário enveredou
iniludivelmente pelo caminho de uma união política, que faz lembrar em alguns aspectos
aquela que inspirou o Plano Fouchet92. É-nos, contudo, difícil apontar o modelo que
89 Cuja criação viria a ser prevista pelo Tratado de Amesterdão (artigo 61º do Tratado de Roma). 90 Cf. Vila Maior, op. cit., 182. 91 Cf. Duff in Duff, Pinder and Pryce, op. cit., 26. 92 O Plano Fouchet foi o resultado de um desejo de dar à integração europeia um suporte político. De facto, entusiasmados com os êxitos das comunidades europeias os, então, Seis resolvem avançar na via da integração política. As várias propostas em debate tinham em comum o facto de rejeitar quer a criação de um Estado federal, quer uma estrutura demasiadamente frágil e com poderes muito limitados. Em Setembro de 1960, a França, liderada por De Gaulle, propôs uma “confederação de estados europeus”. Após um longo período de discussão, os Seis encarregaram uma comissão presidida pelo embaixador Fouchet de elaborar um projecto de
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
caracteriza a fase aberta por este Tratado pois, como em etapas anteriores, a construção
europeia seguiu criando o seu próprio modelo, deixando-nos a braços com velhos rótulos que
não servem para a tipificar convenientemente. Trata-se de uma espécie de “unidade aberta”93
inspirada num tipo novo de federalismo respeitador da diversidade, e para a qual o Tratado de
Maastricht, ao introduzir, por exemplo, a lógica da subsidiariedade, trouxe um contributo que
não pode ser negado.
Ainda assim, devemos reconhecer que o desejo de conciliar a posição dos que
ambicionam ver a União progredir na via federal e os que estão determinados a evitar que tal
aconteça, fez de Maastricht “a strange heterogeneous creature”94 que não poderia ser mais do
que uma etapa transitória no processo de construção de uma verdadeira união política95. Em
jeito de conclusão, parece-nos adequado lembrar aqui uma parábola mencionada por Burgess,
a propósito deste Tratado: um jovem e nervoso padre sentado à mesa do pequeno almoço com
o seu bispo comia um ovo que, sem que o bispo soubesse, não estava bom. Quando o bispo
lhe perguntou se o ovo esteve a seu gosto, o padre foi demasiadamente tímido para lhe dizer a
verdade, tendo respondido que “partes dele eram excelentes”96 [nossa tradução]. Esta é uma
afirmação que poderia caracterizar o Tratado que saiu do Conselho Europeu de Maastricht.
união. O resultado seria o conhecido Plano Fouchet que propunha a criação de uma “União de Estados” indissolúvel e assente na cooperação. De acordo com o documento, esta união tinha como objectivos a adopção de uma política externa comum e de uma política de defesa comum, garantir uma cooperação estreita no domínio da ciência e da cultura e contribuir para a defesa dos direitos do Homem e da democracia. Para tal a União disporia de três instituições: o Conselho, o Parlamento e a Comissão Política Europeia. O texto preparado pela comissão Fouchet seria posteriormente “retocado” por De Gaulle que, entre outras modificações, renunciava à pretensão de criar instituições supranacionais e introduzia a possibilidade de dissolução da União. Como resposta, as delegações dos restantes cinco países elaboraram um contraprojecto que previa, entre outras inovações, a adjunção de um tribunal de justiça e de um secretário geral, a eleição e reforço do PE, a votação por maioria no Conselho, a criação de um executivo independente e o alargamento das competências do Tribunal de Justiça. A impossibilidade de um acordo entre a França e os seus cinco parceiros nas comunidades levaria o próprio De Gaulle a por termo às negociações do projecto Fouchet a 15 de Maio de 1962. Para uma descrição pormenorizada do Plano Fouchet ver, por exemplo, Sidjanski, obra citada, 51 – 61; Perez-Bustamante, op. cit., 128 – 133. 93 Esta ideia de “unidade aberta” está presente numa das obras de Lucas Pires como sendo o modelo desejável e viável para a Europa do futuro. Cf. Lucas Pires. 1992. O que é a Europa. Lisboa: Difusão Cultural, 131. 94 Cf. Burgess, op. cit., 215. 95 Os próprios negociadores expressaram um desejo de transitoriedade ao preverem no artigo N do Tratado de Maastricht uma nova conferência intergovernamental para 1996. 96 Cf. Burgess, op. cit., 207.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
Capítulo II
O Tratado de Amesterdão: do Mercado Interno à Europa Social
Conscientes da necessidade de progredir na via da união política, e no sentido de dar
resposta aos desafios resultantes do fim da Guerra Fria e da transformação no Leste europeu,
os negociadores do Tratado de Maastricht deixaram patente o carácter transitório de algumas
das suas disposições ao preverem expressamente a data de convocação de uma nova
conferência intergovernamental “para analisar (...) as disposições do Tratado em relação às
quais está prevista a revisão”97. Pretendia-se que o tratado subsequente pudesse avançar na via
da integração política ao suprir algumas das conhecidas limitações do TUE. Eram, portanto,
grandes as expectativas em relação à nova reforma dos tratados, essencialmente devido a três
factores: primeiro, a fraca eficácia da nova política externa e de segurança comum
(especialmente visível durante a guerra civil da Bósnia) tornava clara a necessidade de rever o
segundo pilar saído de Maastricht; depois, a perspectiva de um grande alargamento da UE no
médio prazo (aberta pelo Conselho Europeu de Copenhaga, de 21 e 22 de Junho de 1993)
conferia um carácter de urgência à execução de uma reforma institucional que permitisse o
funcionamento de uma Comunidade com mais do dobro dos Estados de então; finalmente, o
turbulento processo de ratificação do Tratado de Maastricht e os acalorados debates que
mobilizaram a opinião pública de alguns dos Estados-membros (cada vez mais descontente
com alguns dos aspectos do projecto comunitário) contribuíram para aumentar o entusiasmo
dos líderes europeus em relação a uma nova ronda de reformas que permitisse reforçar a
União e torná-la mais próxima dos seus cidadãos98.
O elevado optimismo que rodeou a perspectiva de uma nova CIG foi, todavia, com o
passar do tempo, dando lugar a alguma apreensão, em face da sucessão de acontecimentos
97 Artigo N, nº 2 do TUE. 98 Cf. Monar and Wessels. 2001. The European Union after the Treaty of Amsterdam. London: Continuum.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
claramente desfavoráveis ao grande desígnio que se pretendia atribuir à terceira reforma dos
tratados. De facto, entre a turbulenta ratificação de Maastricht e a abertura da nova CIG muito
havia mudado: a Comunidade tinha concluído a terceira ronda de alargamentos com a entrada
da Áustria, Finlândia e Suécia99, países que, pela recente adesão, pouca experiência tinham
dos assuntos comunitários; por sua vez, a economia europeia e mundial havia mergulhado
numa crise séria que se prolongou por vários anos e que, para além de adiar a conclusão da
UEM (condição essencial para os avanços da integração política), teve como corolário um
grave problema social, visível nas elevadíssimas taxas de desemprego. Como consequência, e
a exemplo do que frequentemente se verifica em situações de crise, os líderes nacionais,
menos preocupados com a imagem do projecto europeu do que com a captação de votos,
optaram pela solução mais fácil responsabilizando a Comunidade e a disciplina decorrente das
metas da UEM pelas dificuldades vividas. Crescia, assim, o sentimento de desconfiança em
relação à Europa comunitária, já sentido aquando da ratificação de Maastricht. Tudo indicava,
portanto, um regresso ao europessimismo, responsável senão pela estagnação, pelo menos por
um abrandamento da integração europeia na década de 1970.
Em face da nova conjuntura, alguns países - com o Reino Unido à cabeça -
questionaram fortemente a oportunidade de realização de uma nova conferência
intergovernamental no prazo previsto, utilizando como principal argumento o facto de ser
ainda demasiadamente cedo para fazer uma correcta avaliação do anterior Tratado e de haver
por parte dos europeus alguma resistência em relação ao avanço da integração. Ainda assim,
depois de alguma discussão, a CIG prosseguiria conforme fora planeado.
99 Os tratados de adesão foram assinados com a Áustria, a Suécia, a Noruega e a Finlândia em 30 de Março de 1994, tendo sido posteriormente submetidos a referendo nesses países. À semelhança do que já havia acontecido, o povo norueguês voltou a rejeitar a entrada da Noruega na Comunidade. Os restantes três países tornaram-se membros a 1 de Janeiro de 1995.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
Inicialmente limitada às questões definidas por Maastricht100, a agenda da conferência
intergovernamental foi - na sequência da possibilidade apresentada pelo próprio Tratado101 -
sendo sucessivamente alargada nas várias reuniões do Conselho Europeu, estendendo-se a
quase todas as actividades da União. A grande excepção foi a UEM, deixada deliberadamente
de fora por ser considerada matéria demasiadamente sensível para ser abordada num período
de crise, para o qual era apontada como bode expiatório.
No final, com um mandato que continha um número impressionante de medidas a ser
implementadas, a CIG parecia indicar que “la grande réforme instituttionelle allait enfin
s’accomplir” (Paul Sabourin 1999, 62). A realidade revelou-se, porém, bem diferente do
esperado. As discussões foram divididas em três grandes áreas - cidadania, reforma
institucional e acção externa - mas a frequente falta de consenso entre os Estados-membros
dificultou grandemente o progresso das negociações. Apesar dos esforços para ultrapassar as
divergências, depois de três presidências102 e vários conselhos europeus, as dificuldades
mantinham-se. O projecto final de tratado103 foi apresentado pela presidência dinamarquesa, a
4 de Junho de 1997, mas a fase crucial da negociação ficaria adiada até ao Conselho Europeu
de Amesterdão, que decorreu cerca de duas semanas mais tarde104.
Depois de mais de um ano de conversações, nos últimos dois dias de encerramento da
CIG não tinha ainda sido possível chegar a acordo em matérias tão importantes como a
relação entre a UE e a União da Europa Ocidental (UEO); as relações económicas externas; a
criação de um mecanismo para pôr em prática a flexibilidade; ou, a reforma das instituições.
100 Entre as quais se contavam uma possível extensão do procedimento de co-decisão; as disposições relativas à PESC e às matérias de defesa e a possibilidade de estender as competências explícitas da União às áreas da energia, turismo, e protecção civil. Cf. Monar and Wessels, op. cit., 10. 101 O artigo N, nº 1 do TUE conferia aos governos dos Estados-membros e à Comissão a possibilidade de apresentarem, ao Conselho Europeu, propostas de revisão do Tratado. 102 A CIG 96/97 teve o seu início em Turim, a 29 de Março de 1996, sob os auspícios da presidência italiana, prosseguiu durante a presidência irlandesa e terminou no mandato da presidência dinamarquesa. 103 O processo de dar forma a um projecto de tratado vinha sendo desenvolvido desde junho de 1995, tendo já sido anteriormente apresentado um outro projecto de tratado pela presidência irlandesa, aquando da Cimeira de Dublin de 13 e 14 de Dezembro de 1996. 104 Mais precisamente a 16 e 17 de Junho de 1997.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
Como realça Jan Grünhage (2001, 21): “[O]verall, the European Council would have to revisit
every significant area of the work of the conference”. A última parte das negociações
revestiu-se de extrema dificuldade, com um grande número de assuntos a ser decidido nas
últimas horas da cimeira. Nenhum acordo foi possível, todavia, em relação àquela que era
considerada uma das grandes “razões de ser” desta conferência – a reforma institucional.
Neste domínio, o máximo alcançado (que foi na verdade um mínimo) limitou-se, quase
exclusivamente, a um protocolo sobre a reforma institucional, que aventava possíveis opções
para uma futura reforma, face à perspectiva de um novo alargamento.
Depois de tão grandes expectativas, alimentadas por uma agenda ambiciosa, o
resultado de Amesterdão105 parecia poder ser resumido pela crua expressão “a montanha pariu
um rato”. As críticas, algumas de extrema dureza, não se fizeram tardar e entre as mais
ouvidas sobressaía a palavra “fracasso”. Embora compreendendo as razões de tão grande
desapontamento, não nos parece justificado este “epitáfio”. É verdade que o novo Tratado
ficou aquém das expectativas, ao falhar, por exemplo, nas reformas institucionais
indispensáveis ao alargamento, mas não podemos, nem devemos, esquecer que, em alguns
domínios (com destaque para as dimensões sociais da integração), Amesterdão impulsionou
um avanço significativo revelando-se “(...) qual ‘primeira pedra’ de uma sociedade civil
europeia, capaz de ‘civilizar’ o mercado, mas ao mesmo tempo, sustentar o consenso popular
a respeito da moeda única” (Lucas Pires 1998, 7).
À semelhança do que tentámos fazer em relação ao Tratado de Maastricht,
procuraremos de seguida fundamentar esta nossa opinião através da análise das principais
contribuições de Amesterdão para o avanço da integração política. Para tal, recorremos uma
105 O Tratado de Amesterdão foi concluído a 17 de Junho de 1997 e assinado pelos chefes de Estado e de governo em 02 de Outubro do mesmo ano. Todavia, um longo e penoso processo de ratificação adiaria a sua entrada em vigor até 01 de Maio de 1999.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
vez mais à separação que, embora algo artificial106, nos parece facilitadora da análise, entre
domínio interno e domínio externo da União.
2.1 A Eficácia Interna da União e a Questão da Legitimidade do Projecto Comunitário
Apesar das muitas querelas entre os Estados-membros terem impossibilitado uma
reforma de fundo indispensável ao futuro alargamento da Europa comunitária, Amesterdão
tentou, ainda assim, melhorar o funcionamento interno da Comunidade e diminuir o evidente
défice de democraticidade que durante muitos anos contribuiu para um assinalável
desinteresse dos cidadãos em relação ao projecto comunitário.
2.1.1 As principais reformas institucionais: as novas disposições e a reestruturação adiada
Embora não tenham conseguido chegar a acordo quanto a uma reforma de fundo das
instituições, os negociadores de Amesterdão não deixaram, porém, de proceder a certas
modificações no plano institucional, com o objectivo de aumentar a eficácia da actividade
comunitária. Entre essas alterações, merecem-nos especial destaque a extensão do
procedimento de co-decisão (e o consequente reafirmar da importância do PE); o reforço da
regra da maioria qualificada; e, o novo papel reservado aos parlamentos nacionais no sistema
institucional comunitário.
Com o intuito de reforçar a actuação do Parlamento Europeu como verdadeiro co-
legislador, o novo Tratado alargou consideravelmente os domínios de utilização do
procedimento de co-decisão introduzido por Maastricht, fazendo dele a regra que passa a
106 De facto, parece-nos difícil, senão impossível, estabelecer uma linha divisória clara entre a dimensão interna e externa da União, na medida em que, por exemplo, um melhor funcionamento institucional (que se situará, aparentemente, no domínio da eficácia interna) terá necessariamente reflexos na capacidade de actuação externa da União.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
funcionar entre os mecanismos de decisão da UE. Tratou-se de uma tentativa clara de
progredir nas soluções do défice democrático, privilegiando um mecanismo que melhora
significativamente a posição do PE (única instituição directamente eleita) nas relações inter-
institucionais. Por outro lado, conscientes da complexidade deste procedimento, os
legisladores encetaram uma tentativa para a sua simplificação ao suprimirem a “terceira
leitura”. Ainda assim, apesar do aparente salto qualitativo que tal representa, mantêm-se aqui
as reservas que já tivemos oportunidade de enunciar no capítulo relativo ao Tratado de
Maastricht. O verdadeiro alcance desta medida dependerá da capacidade do Parlamento
Europeu para fazer valer as suas posições enquanto verdadeiro representante dos cidadãos
europeus. Contudo, o reforço dos poderes da assembleia europeia é confirmado por outras
medidas. Em vez da mera consulta estipulada por Maastricht, Amesterdão faz depender a
efectividade da indigitação do presidente da Comissão da aprovação do PE (artigo 214º, nº 2
TCE). No mesmo sentido, serão também sujeitas a parecer favorável do Parlamento Europeu
as novas sanções criadas para punir a violação grave e persistente dos direitos fundamentais
por parte de um Estado-membro. Além disto, Amesterdão alarga também consideravelmente
os casos de consulta prévia ao Parlamento, destacando-se o caso respeitante às decisões em
matérias de “flexibilidade” ou “cooperação reforçada” no primeiro pilar (artigo 11º, nº 2
TCE), ao mesmo tempo que lhe outorga a possibilidade de estabelecer o estatuto e as
condições gerais de exercício das funções dos seus membros (embora sujeito a parecer da
Comissão e aprovação unânime do Conselho - artigo 190º, nº 5 TCE). Finalmente,
antecipando o próximo alargamento, o Tratado fixa em setecentos o número limite de
parlamentares107 (artigo 189º, ¶ 2 TCE).
Na linha do que também já vinha sendo regra nas anteriores revisões dos tratados,
Amesterdão procedeu a uma considerável extensão da votação por maioria qualificada,
107 Número que, curiosamente, viria a ser alterado pelo Tratado de Nice.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
deixando adivinhar um passo em frente na via da supranacionalidade. Falhou, porém, na
tarefa de tornar este tipo de votação na regra geral, uma vez que da unanimidade continuaram
a depender as matérias mais sensíveis, como as questões de índole constitucional ou as
relativas à tributação. Às vantagens de um mecanismo que facilitaria indubitavelmente o
avanço do processo de integração, sobrepôs-se, uma vez mais, o velho espírito do
Compromisso de Luxemburgo, o mesmo é dizer, a lei de ferro dos interesses nacionais.
Visando conferir maior democraticidade ao projecto comunitário, o novo Tratado
procurou incrementar o envolvimento dos parlamentos nacionais na tomada de decisões
comunitárias. Com esta finalidade, foi elaborado um Protocolo relativo ao papel dos
parlamentos nacionais na União Europeia que formaliza o envio sistemático de informação
sobre a actividade da União, por forma a que estes possam discutir as propostas de legislação
comunitária e, deste modo, dar a conhecer aos cidadãos (naturalmente mais atentos aos
debates no seio dos respectivos parlamentos nacionais do que nas instituições europeias) a
actividade da Comunidade. Para tornar exequível este objectivo, o referido protocolo
determina que as propostas de iniciativa legislativa com origem na Comissão só poderão ser
colocadas na agenda do Conselho seis semanas depois de terem saído dos serviços daquela
instituição. Por outro lado, no mesmo texto, reconhece-se também à Conferência dos Órgãos
dos Parlamentos Nacionais Especializados em Assuntos Europeus (COSAC) a possibilidade
de submeter às instituições comunitárias as contribuições que considere oportunas sobre as
actividades legislativas da União.
Para além destas inovações, o Tratado de Amesterdão procurou ainda introduzir
algumas modificações no âmbito de actuação das próprias instituições. Neste sentido,
procedeu à separação do Comité Económico e Social e do recém criado Comité das Regiões,
permitindo-lhes responder mais eficazmente ao alargamento dos respectivos campos de acção.
Por outro lado, consolidou o papel do Tribunal de Justiça que viu as suas competências
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
reforçadas e alargadas às novas áreas que passaram a fazer parte do domínio comunitário. Por
sua vez, uma Declaração anexa ao Tratado prevê um aumento da importância do papel de
presidente da Comissão ao estabelecer que este “(...) deverá gozar de um amplo poder
discricionário em matéria de atribuição das funções no seio do colégio, bem como no que
respeita a qualquer redefinição delas durante um mandato da Comissão”108. Tomando em
consideração a perspectiva da entrada em funções de uma nova Comissão no ano 2000, foi
também prevista uma reorganização das tarefas do colégio para assegurar uma melhor
repartição entre as pastas convencionais e as atribuições específicas, ao mesmo tempo que se
considerou “desejável” atribuir a responsabilidade pela área das relações externas a um único
vice-presidente109.
Sem negar a importância destas medidas, percebe-se, todavia, que elas estão longe de
cumprir os ambiciosos objectivos fixados pela agenda da conferência intergovernamental. De
facto, quase dois anos de negociações (se tivermos em conta os trabalhos preparatórios da
CIG que se iniciaram ainda em 1995) não foram suficientes para que os líderes europeus
pudessem chegar a acordo no que respeita a uma reforma de fundo que permitisse às
instituições funcionar eficazmente numa Europa alargada. Questões de importância crucial
como as regras de voto no Conselho ou a composição da Comissão foram adiadas, ainda que
os Estados tenham, através de um Protocolo completado por uma Declaração110, estabelecido
alguns compromissos.
No que respeita à Comissão, os textos supramencionados estabelecem que, à data de
realização do próximo alargamento, esta instituição passará a contar apenas um comissário
por Estado-membro111, fazendo, contudo, depender tal medida de uma nova ponderação de
108 Ver Declaração relativa à organização e ao funcionamento da Comissão. 109 Ibidem. 110 Ver Protocolo relativo às instituições na perspectiva do alargamento da União Europeia e Declaração relativa à organização e ao funcionamento da Comissão. 111 Significa isto que, aquando da primeira ronda de novas adesões à Comunidade, os cinco “grandes” se verão privados do seu segundo comissário.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
votos no Conselho que permita compensar “os Estados-membros que prescindam da
possibilidade de designar um segundo membro da Comissão”. Para esta revisão
compensatória são apontadas duas possibilidades: ou uma reponderação dos votos ou a
introdução de uma dupla maioria112. O Protocolo fixa ainda o prazo máximo para a
convocação de uma nova CIG (no mínimo um ano antes de a União ultrapassar os vinte
Estados-membros), que terá como objectivo proceder a uma revisão global das disposições
dos tratados relativas à composição e funcionamento das instituições. Assim sendo, até à
concretização do próximo alargamento manter-se-ão em vigor as disposições do
Compromisso de Ioannina113, ficando, no entanto, previsto que, até essa data, deverá ser
encontrada uma solução para o “caso especial da Espanha”114, país que nas negociações de
adesão viu compensado com um segundo comissário, o facto de, a despeito da sua dimensão,
lhe ter sido atribuído um número de votos no Conselho inferior aos dos quatro grandes
Estados. O acordo final contido no Protocolo relativo às instituições na perspectiva do
alargamento da UE deixava, pois, antever uma tentativa de correcção da “sobre-
representação” dos pequenos e médios países, que tinha vigorado até então, através da
introdução de um maior equilíbrio de posições relativas entre grandes e pequenos. À aparente
justeza de tal medida pode contrapor-se, todavia, a possibilidade de uma alteração deste tipo
poder comportar, na prática, o perigo de um desequilíbrio ainda mais acentuado. Na verdade,
qualquer tentativa de modificar o equilíbrio vigente deveria ser criteriosamente ponderada,
sob pena de fazer pender a balança para o lado dos que, pela sua dimensão e peso político e
económico, são já naturalmente mais fortes115. Igualmente preocupante, parece-nos ser o
acentuar de uma tendência já perceptível em Maastricht, sendo evidente que a Comissão sai 112 Como explicaremos mais à frente, a solução encontrada em Nice foi, na verdade, uma “tripla maioria”. 113 Decisão do Conselho de 29 de Março de 1994 cujo intuito era o de evitar que com a entrada da Áustria, Suécia e Finlândia, a anterior posição relativa dos maiores Estados-membros no voto ficasse prejudicada em relação aos pequenos e médios Estados. 114 Ver Declaração respeitante ao Protocolo relativo às instituições na perspectiva do alargamento da União Europeia. 115 Malogradamente, como teremos oportunidade de constatar no capítulo que lhe é dedicado, Nice demonstrou, na prática, os perigos que apontamos aqui em teoria.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
de Amesterdão notoriamente enfraquecida, sobretudo no que respeita à noção de
colegiatura116. Os comissários são cada vez mais associados ao seu país de origem, colocando
deste modo em causa a máxima de independência117 apresentada nos tratados como
característica principal desta instituição, que para além de lhe conferir um carácter especial de
supranacionalidade, parecia ser a sua fórmula de sucesso (estribada no seu carácter mais
tecnocrático).
2.1.2 A União e o cidadão
Ao longo dos vários debates tornou-se evidente para os intervenientes na conferência
intergovernamental a urgência de motivar mais os cidadãos para o projecto comunitário.
Conscientes de que tal tarefa só terá êxito quando a União fôr capaz de responder eficazmente
aos problemas que mais preocupam os europeus, os negociadores do Tratado procuraram
definir um conjunto de medidas que permitam à Comunidade ir de encontro às necessidades
dos seus cidadãos.
Reconhecendo a necessidade de combater os significativos índices de desemprego na
Europa comunitária, o Tratado de Amesterdão introduz um novo título dedicado ao emprego
(Título VIII TCE) que procura dotar a Comunidade das competências e instrumentos que lhe
permitam tornar efectivo o objectivo de “um elevado nível de emprego” já inscrito no TCE.
Neste sentido, o Tratado define um processo para a coordenação das políticas de emprego;
prevê nomeadamente acções de incentivo à cooperação entre os Estados-membros e cria um
Comité de Emprego, com carácter consultivo, para promover a coordenação das políticas em
matéria de emprego e de mercado de trabalho, e fazer a ligação com os parceiros sociais.
116 Tendência que o Tratado de Nice, longe de contrariar, veio, de facto, acentuar. 117 De acordo com o artigo 213º nº 1 TCE “[A] Comissão é composta por vinte membros, escolhidos em função da sua competência geral e que ofereçam todas as garantias de independência”. Ainda segundo o nº 2 do mesmo artigo “[O]s membros da Comissão exercerão as suas funções com total independência, no interesse geral da Comunidade” [sublinhado nosso].
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
Ainda assim, o novo título ficou aquém das expectativas. Como assinala José Barros Moura118
o objectivo de atingir um elevado nível de emprego não é integrado entre os princípios
directores da política económica ao nível da estabilidade monetária, do combate à inflação ou
da redução dos défices públicos; por outro lado, a exigência de adaptabilidade da mão de obra
presente neste Tratado, aponta para uma “flexibilização” do mercado de trabalho, que pode ter
efeitos perversos no que respeita à defesa do “modelo social europeu”; finalmente, o Tratado
deixa perceber uma espécie de condicionamento da política de emprego à política económica,
o que poderá fazer oscilar a importância daquela ao sabor das conveniências desta. Para além
disto, Amesterdão não criou verdadeiramente uma política comum de emprego (como havia
sido proposto pela França)119, limitando-se, na verdade, a confirmar que a responsabilidade
primeira pelo emprego incumbe aos Estados. É, contudo, de louvar a defesa de uma
intervenção conjugada dos Estados-membros, assente numa “estratégia de coordenação”120
para fazer face aos problemas do desemprego. Por outro lado, talvez esta aparentemente
contraditória “abstenção” da Comunidade se possa justificar à luz da lógica da
subsidiariedade121, passando assim de atitude criticável a postura meritória.
Empenhados em reafirmar o papel central do cidadão no projecto comunitário, os
legisladores procuraram acentuar a intervenção da Comunidade no domínio da política social.
As reservas britânicas em relação ao Acordo relativo à política social foram finalmente
ultrapassadas, o que permitiu à Europa “falar a uma só voz” neste domínio. O tratado passou
assim a incorporar, com pequenas alterações, o supra-referido Acordo. Às disposições sociais
já previstas em Maastricht somam-se agora novos mecanismos (em sectores tão diversos
como a política social, a educação, a formação profissional e a juventude) visando 118 Cf. José Barros Moura. 1997. “O Tratado de Amesterdão: Conteúdo, Problemas e Perspectivas”. Europa Novas Fronteiras, Novembro, 77. 119 Proposta que, aliás, nos levanta algumas dúvidas, dadas as disparidades económicas e sociais ainda existentes entre os países da União. 120 Que implicará o alinhamento das respectivas políticas de emprego dos Estados-membros com a condução da política económica, de forma a eliminar eventuais desfasamentos geradores de desemprego e a promoção de um mercado de trabalho suficientemente “flexível” para responder a eventuais alterações económicas. 121 Cf. Vila Maior, op. cit., 199.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
nitidamente o alargamento do catálogo dos direitos sociais. No Tratado ficaram, deste modo,
reflectidas, entre outras, as preocupações com a melhoria das condições de vida e de trabalho;
a adequada protecção social dos trabalhadores; e, o desenvolvimento dos recursos humanos
ou a luta contra a exclusão social122.
Paralelamente, Amesterdão procurou também consolidar o algo frágil estatuto de
cidadão da União introduzido por Maastricht. Começando por afirmar o carácter de
complementaridade da nova cidadania123 em relação à cidadania nacional, o Tratado
acrescenta ao seu catálogo específico de direitos124 a possibilidade de um cidadão se dirigir
por escrito a qualquer uma das instituições da União numa das doze línguas oficiais da
Comunidade e obter resposta redigida na mesma língua. Para além disto, Amesterdão procura
também reforçar o carácter político do novo estatuto ao somar aos direitos já consagrados
anteriormente, a obrigatoriedade de respeito pelos direitos do Homem e da Mulher e pelas
liberdades fundamentais. Ficaram ainda contemplados os direitos dos consumidores e um
direito genérico à informação.
Com as alterações introduzidas por Amesterdão no artigo 6º do TUE pode ler-se: “a
União assenta nos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do
Homem e pelas liberdades fundamentais, bem como do Estado de Direito (...)”. Trata-se,
portanto, de uma importantíssima declaração de princípio que pressupõe uma vontade clara de
avançar na via da união política, patente na cada vez maior politização dos direitos
assegurados aos cidadãos. Como sublinha Vila Maior (1997, 204) “a relevância desta
disposição encontra-se na vontade da C.E. em afirmar-se inequivocamente nos trilhos da
integração política, pois incorpora no tratado um conjunto de princípios (...) que estruturam
qualquer ordem político-constitucional dos Estados modernos” [ênfase nossa]. Para dotar de
122 Ver Título XI “A política social, a educação, a formação profissional e a juventude” do TCE. 123 No artigo 17º do TCE pode ler-se: “(...) A cidadania da União é complementar da cidadania nacional e não a substitui” [sublinhado nosso]. 124 Artigos 18º a 21º do TCE.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
eficácia esta declaração de vontades, o Tratado estabelece também mecanismos de garantia
que assegurem a punição no caso da sua violação. Assim, sempre que os direitos
fundamentais do cidadão comunitário forem ameaçados ou postos em causa pela actuação de
uma instituição comunitária, pode o lesado interpor recurso para o Tribunal de Justiça. Mas,
se tal violação dos direitos fundamentais dos cidadãos resultar do comportamento de um
Estado-membro, o Tratado cria um mecanismo próprio de apreciação do comportamento
faltoso125 que, ficando comprovado, resultará na suspensão de certos direitos decorrentes
deste Tratado ao Estado que incorreu no incumprimento.
Seguindo esta orientação de defesa dos cidadãos, o Tratado incorpora também alguns
direitos fundamentais específicos, como é o caso da protecção da saúde pública (artigo 152º
TCE) e da defesa dos consumidores (artigo 153º TCE), demonstrando que os legisladores
estão atentos às novas necessidades dos cidadãos. Para além destes, foi ainda aprovado um
direito genérico à informação, que ao garantir o acesso dos cidadãos aos documentos que
tenham origem numa das três instituições do triângulo institucional, procura fomentar uma
maior interacção entre a Comunidade e os cidadãos. Ainda que tenha ficado genericamente
consagrado, a regulamentação deste direito foi, no entanto, remetida para o campo do direito
derivado, o que, na prática, impediu a sua invocação imediata pelos cidadãos.
Apesar de alguma timidez, patente, sobretudo, numa certa ambiguidade na definição
dos princípios orientadores da acção dos Estados126, ressalta, ainda assim, destas disposições
uma preocupação evidente com o cidadão, enquanto ente fundamental do processo de
125 De acordo com o artigo 7º do TUE, o Conselho Europeu é chamado a apreciar a conduta do Estado-membro alegadamente desrespeitador dos direitos fundamentais. Verificada a existência da violação, o Conselho, deliberando por maioria qualificada, pode decidir suspender alguns dos direitos do Estado-membro faltoso, nomeadamente o direito de voto do representante desse Estado no Conselho. À primeira vista este mecanismo inovador parece não deixar dúvidas quanto à subordinação dos Estados-membros à autoridade comunitária, num domínio claramente político. Existem, contudo, como sublinha Vila Maior (1997, 207), algumas reservas a apontar, nomeadamente o facto de o alegado incumprimento de um Estado ser analisado no Conselho Europeu, situação que não parece a mais correcta, não só por se tratar de uma espécie de julgamento inter pares, que dificultará a imparcialidade da votação, mas também porque atribui ao Conselho uma espécie de função jurisdicional que deveria pertencer exclusivamente ao Tribunal de Justiça. 126 Referimo-nos, por exemplo, à política de emprego que começou por ser entendida como uma prioridade para se reduzir, no final, a uma espécie de “declaração de intenções” por parte dos Quinze.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
construção europeia. Se a Europa comunitária começara por ser um projecto de elites, parece
chegado o momento de envolver os cidadãos na empresa europeia, sob pena de, sem o apoio
destes, o sonho perder o significado127.
2.1.3 A clarificação do princípio da subsidiariedade
Tendo presente a ambiguidade que marcou a redacção do princípio da subsidiariedade
consagrado por Maastricht, os negociadores de Amesterdão esforçaram-se por codificar os
avanços já alcançados nos vários conselhos europeus que procuraram clarificar o seu âmbito
de aplicação. O resultado foi a adopção de um Protocolo relativo à aplicação dos princípios
da subsidiariedade e da proporcionalidade128 que, baseado nas conclusões do Conselho
Europeu de Birmingham de 16 de Outubro de 1992, nas decisões do Conselho Europeu de
Edimburgo de 11 e 12 de Dezembro do mesmo ano, e no Acordo Interinstitucional de 28 de
Outubro de 1993129, procurava torná-los mais precisos e juridicamente vinculativos. Para além
de enunciar os três critérios pelos quais se deve reger a aplicação do princípio da
subsidiariedade130, o Protocolo confirmava também o carácter dinâmico deste princípio, que
respeitando a evolução da integração europeia servirá para “alargar a acção da Comunidade,
dentro dos limites das suas competências, se as circunstâncias o exigirem e, inversamente,
127 Percebe-se, portanto, que esta preocupação de fomentar o envolvimento do cidadão no processo de integração europeia tenha ganho, sobretudo nos últimos anos, uma visibilidade surpreendente no seio da Comunidade. A título de exemplo, veja-se o Preâmbulo de um Guia do Cidadão, da responsabilidade da Comissão, intitulado Amsterdão: Um novo Tratado para a Europa. 1997. 2ª ed., onde pode ler-se: “[E]ste Tratado é de todos os europeus” e mais à frente “Este Tratado diz respeito a todos”, numa tentativa clara de captar o interesse daqueles que são os verdadeiros beneficiários da edificação comunitária. 128 Embora formalmente se distingam os dois princípios, a sua regulamentação conjunta num mesmo Protocolo justifica-se pela sua estreita relação. Consagrado no último parágrafo do artigo 3ºB do TUE, o princípio da proporcionalidade aplica-se a todas as acções da Comunidade, abrangidas, ou não, pelas competências exclusivas. Significa isto que a sua aplicação implica que deve ser deixada aos Estados-membros a maior “autonomia” possível, limitando-se a intervenção do legislador comunitário ao essencial. Assim, destinando-se a subsidiariedade a responder à questão de “onde poderão os objectivos ser melhor concretizados”, e a proporcionalidade à questão dos “meios a utilizar”, os dois princípios complementam-se. 129 Acordo celebrado entre o PE, a Comissão e o Conselho sobre a aplicação do princípio da subsidiariedade. 130 Ver Primeira Parte, Capítulo I, B) A génese de uma união política: rumo a uma construção de tipo federal?, deste trabalho.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
limitar ou pôr termo a essa acção quando esta deixe de se justificar”. Conquanto se mantenha
a dupla faceta do princípio, uma análise rigorosa das disposições do supracitado Protocolo
evidencia, em nossa opinião, uma orientação clara para uma descentralização da acção. Nesta
medida, o reforço e a clarificação deste princípio deve ser encarado como uma medida basilar
na construção da desejável Europa dos Homens, onde só será aceitável a decisão que seja
tomada o mais perto possível dos cidadãos, máxima que nos parece ser afinal a raison d’être
deste princípio, fazendo dele um elemento intrínseco ao espírito federal: “L’Union
européenne repose sur le principe de subsidiarité (...) Ce principe contribue au respect de
l’identité nationale des États membres et préserve leurs compétences. Il vise à ce que les
décisions soient prises au sein de l’Union européenne aussi prés que possible du citoyen”
(Conselho Europeu de Edimburgo, Conclusões da Presidência, 11 e 12 de Dezembro de 1992)
[sublinhado nosso]. Sem pretender negar a importância do protocolo em análise, sobretudo na
medida em que “constitucionaliza”131 as regras de aplicação da subsidiariedade, não podemos
também deixar de fazer um apontamento crítico. Representando inequivocamente um esforço
de clarificação do âmbito de aplicação da subsidiariedade, este protocolo ficou todavia longe
de compensar a ambiguidade de que enferma a redacção do artigo 3ºB (que passa a artigo 5º
com Amesterdão) do TCE. Na verdade, parece evidente que aos negociadores de Amesterdão
faltou vontade política para operar uma verdadeira revisão do artigo, talvez porque tal revisão
implicasse o fim de uma interpretação ambivalente, que vai servindo os interesses quer dos
defensores, quer dos opositores, de mais integração. Ainda assim, afigura-se urgente uma
clarificação deste princípio132, sobretudo no que respeita aos meios de controlo da sua
131 Em rigor, não poderemos falar de constitucionalização, dado que não existe (ainda) de facto uma constituição europeia. 132 Clarificação que continua, aliás, na ordem do dia, sendo um dos pontos essenciais do debate sobre o futuro da Europa, iniciado no pós-Nice e que culminará com uma nova conferência intergovernamental em Outubro de 2003.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
correcta aplicação à disposição das instituições e dos Estados-membros133.
Devidamente clarificado, o princípio da subsidiariedade poderá ser um dos princípios
basilares da nova união política em construção. Marcadamente descentralizador, não deve
constituir, no entanto, entrave à acção da União Europeia. Para resolver o paradoxo bastará
porventura:
“(...) definir, sem equívocos, que os objectivos comunitários e os que resultam de
competências concorrentes entre a C.E. e os Estados membros são prosseguidos em
primeira estância pela esfera supranacional e só o serão pelos Estados membros em
delegação de competências [delegação essa que, acrescentamos, teria inevitavelmente
que ser a regra]” (Vila Maior 1997, 170) (ênfase nossa).
Isto denota, no nosso entender, que as posições da Comunidade e dos Estados-membros se
inverteriam, garantindo-se o aumento de competências da União, mas também que a decisão
fosse tomada o mais perto possível dos cidadãos. O aparentemente intricado problema não
deixa de ter, portanto, uma resolução simples, haja vontade política.
2.1.4 A comunitarização de parte do terceiro pilar: o espaço de segurança, liberdade e justiça
Os “grandes vencedores da CIG 1996/97 e do Tratado de Amesterdão”; é assim que
Jörg Monar (2001, 267) classifica a Justiça e Assuntos Internos, em virtude das significativas
133 Note-se que o único meio de controlo expressamente enunciado no Protocolo é o relatório que a Comissão deverá apresentar anualmente ao Conselho Europeu, ao PE e ao Conselho, sobre a aplicação do artigo em análise, o qual deverá ser ainda enviado ao Comité das Regiões e ao Comité Económico e Social. É certo que, ao ser expressamente incluído no Tratado, o princípio da subsidiariedade aparece-nos como uma regra de direito, logo ficando a sua observância sujeita ao controlo do Tribunal de Justiça. Este será, todavia, um controlo a posteriori quando, dada a subjectividade dos critérios em que se baseia (necessidade e eficácia), seria essencial existir uma fiscalização prévia da subsidiariedade. A este propósito, refira-se muito sucintamente que têm vindo a ser discutidas duas hipóteses: a primeira passaria pela atribuição ao TJCE de competência para emitir um parecer prévio (como acontece em relação aos projectos de acordos internacionais – artigo 228º, nº 6 TCE), o qual incidiria, neste caso, sobre uma proposta da Comissão e visaria avaliar o respeito pelo princípio da subsidiariedade; a segunda hipótese, sugerida pelo PE, consistiria na incorporação de um artigo no Tratado que permitisse a interposição de recurso junto do Tribunal de Justiça, após a aprovação de uma norma ou acto pela Comunidade, mas antes da respectiva aplicação, sendo acessível quer aos Estados-membros, quer às instituições.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
transformações que revolucionaram o terceiro pilar saído de Maastricht. Se antes estávamos
no domínio de intervenção tipicamente intergovernamental, com Amesterdão assistiu-se a
uma comunitarização de várias matérias deste pilar. Questões tão importantes como a
concessão de vistos, as políticas de asilo e de imigração, as regras respeitantes à cooperação
judicial em matéria civil passaram a estar sob a alçada da Comunidade, constando do novo
Título do TCE “Vistos, asilo, imigração e outras políticas relativas à livre circulação de
pessoas”. Quer isto dizer que, nestas matérias, Amesterdão implica a adopção de um novo
método que, à simples cooperação intergovernamental, opõe uma participação alargada das
instituições comunitárias, o controlo por parte do Tribunal de Justiça e a obrigação da União
actuar pela via legislativa (regulamentos e directivas em vez de convenções)134. De referir que
é dado à Comissão o monopólio da iniciativa nos domínios acima mencionados, muito
embora os legisladores tenham optado por estabelecer um período de transição de cinco anos,
durante o qual o Conselho delibera por unanimidade, sob proposta da Comissão, ou por
iniciativa de um Estado-membro e mediante consulta ao Parlamento Europeu.
Outro avanço significativo foi a incorporação do Acordo de Schengen na ordem
jurídica comunitária, resultando na unificação dos dois sistemas jurídicos paralelos. Na
realidade, Schengen converte-se assim na primeira das “cooperações reforçadas”135,
mecanismo introduzido também pelo próprio Tratado de Amesterdão. Por outro lado, ao
contrário do TUE, que não havia definido objectivos precisos para a cooperação em matérias
do terceiro pilar, Amesterdão define claramente um conjunto de novos objectivos para a
justiça e assuntos internos. O mais importante destes é, na nossa perspectiva, o que foi
consagrado no reformulado artigo 2º do TUE que prevê “a manutenção e o desenvolvimento
da União enquanto espaço de liberdade, de segurança e de justiça”. Com a criação desta área
pretende-se assegurar a conjugação da livre circulação de pessoas com as “medidas 134 Nas restantes matérias, nomeadamente na cooperação entre as polícias e outras autoridades responsáveis por assuntos criminais, mantém-se a cooperação intergovernamental. 135 Cf. Perez-Bustamante, op. cit., 298.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
adequadas” em matéria de controlos de fronteira externa, asilo, imigração e de prevenção e
combate à criminalidade. Trata-se, aparentemente, de um objectivo muito ambicioso e de
grande alcance, conquanto, as medidas previstas no Tratado (artigo 61º TCE) tenham sido
explicitamente ligadas à questão da livre circulação de pessoas, o que, de certo modo, acaba
por limitar o âmbito da acção. Há, de facto, nesta relação como que uma espécie de
reminiscência do Acordo de Schengen na medida em que, como sublinha Monar (2001, 270):
“[T]he primary emphasis here is clearly on garanteeing the free movement of persons
– the central objective of Schengen. The “appropriate measures” to be taken in the
other areas mentioned (external border controls, immigration, asylum and crime
prevention) are explicitly related to this objective, and this in a way which is strongly
reminiscent of the old ‘compensatory measures’ in the Schengen context”.
Não obstante, se é certo que as áreas referidas mereciam já uma atenção individual que
as libertasse de uma espécie de subordinação à liberdade de circulação, também é verdade que
a sua comunitarização foi, ainda assim, um passo assinalável, sobretudo se pensarmos que tais
domínios só recentemente passaram a fazer parte da agenda europeia. Igualmente importante
é o facto de, pela primeira vez, o Tratado de Amesterdão estabelecer um prazo claro para a
adopção das medidas nas áreas da justiça e assuntos internos136. Pese embora a limitação
resultante da persistência na associação entre tais medidas e a liberdade de circulação de
pessoas, garante-se com esta delimitação no tempo uma maior probabilidade de sucesso,
como o comprova, aliás, a concretização de outros objectivos igualmente sujeitos a prazo de
conclusão137.
O Tratado de Amesterdão colocou, por conseguinte, sob a alçada da actuação
136 No artigo 61º do TCE pode ler-se: “[A] fim de criar progressivamente um espaço de liberdade, segurança e justiça, o Conselho adoptará: a) no prazo de cinco anos a contar da data da entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, medidas destinadas a assegurar a livre circulação de pessoas nos termos do artigo 14º, em conjugação com medidas de acompanhamento, com ela directamente relacionadas, em matéria de controlos na fronteira externa, asilo e imigração (...)”. 137 A título de exemplo lembramos o estabelecimento da Política Comercial Comum ou a, mais recente, conclusão da União Económica e Monetária.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
comunitária um número considerável de matérias relativas à justiça e assuntos internos. Em
consequência desta comunitarização parcial do terceiro pilar, o Título VI do TUE foi
profundamente reformulado, tendo-lhe sido aditadas várias disposições inovadoras. Deste
modo, às matérias não comunitarizadas138, isto é, que continuam reservadas à cooperação
intergovernamental, passam a aplicar-se processos de decisão mais eficazes, permitindo-se
também a uma maioria qualificada de Estados autorizar a utilização do novo mecanismo da
“cooperação reforçada” nestes domínios. Para além disto, passa a existir, ainda que com
limitações, um controlo de legalidade perante o Tribunal de Justiça que decidirá “a título
prejudicial sobre a validade e a interpretação das decisões-quadro e das decisões, sobre a
interpretação das convenções estabelecidas ao abrigo do presente Título e sobre a validade e a
interpretação das respectivas medidas de aplicação” (artigo 35º TUE). Merecedor de nota é
também o facto de, pela primeira vez, se prever a possibilidade de a União estabelecer
relações de cooperação com países terceiros no domínio da justiça e assuntos internos. Esta
inovação é tanto mais importante por se aplicar não apenas às novas áreas comunitarizadas,
mas também às áreas que permanecem intergovernamentais139 (artigos 37º e 38º TUE).
O balanço final no que respeita às modificações operadas por Amesterdão no domínio
da justiça e assuntos internos é, deste modo, claramente positivo, muito embora, à semelhança
do que aconteceu noutros domínios, os resultados tivessem ficado porventura aquém das
expectativas. O avanço na comunitarização de algumas matérias relacionadas com a
segurança interna demonstra uma intenção clara de introduzir uma vertente mais política na
integração. Como nota Monar o objectivo de construir uma área de liberdade, segurança e
justiça é inquestionavelmente “a major political innovation and marks a new extension of the
integration process” (2001, 293). Trata-se, na verdade, de uma resposta da Comunidade às
138 Cooperação policial e judiciária no combate à criminalidade transnacional, incluindo, entre outros, o combate ao racismo e xenofobia, ao tráfico de droga e de seres humanos e aos crimes contra crianças. 139 Neste último caso, o compromisso pode ser acordado pelos Estados-membros, em nome da União, embora esta não seja, de facto, parte contratante.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
necessidades e aos novos desafios dos povos europeus, sinal inequívoco de uma aposta forte
na nova Europa da cidadania.
Todavia, não deixam de ser várias as falhas perceptíveis na reforma do terceiro pilar.
Por um lado, a excessiva “compartimentação” em sectores, em vez da adopção de uma
estratégia global e a delimitação algo artificial entre os domínios que prevalecem
intergovernamentais e as matérias comunitarizadas. Por outro, alguma timidez na
transferência de competências para a Comunidade, ao ser estabelecido um período de
transição que, embora compreensível, não deixa de demonstrar uma certa hesitação, e de adiar
medidas que poderiam, e deveriam, ser tomadas com a maior urgência. Igualmente
controversa é a ênfase colocada na “flexibilidade” que, como se sabe, sem prejuizo da
vantagem que representa ao permitir o avanço dos que estão dispostos a ir mais longe (a
chamada “fuga para a frente”), comporta também o perigo de uma fragmentação que pode pôr
em risco a coesão indispensável a qualquer projecto conjunto. Como faz notar Monar (2001,
293): “the enormous upsurge of flexibility means that there will be a major risk of legal
fragmentation and political tensions between the “ins” and “outs” of Schengen and other
frameworks of closer cooperation”.
Parece, portanto, que o que se ganhou em desejáveis e ambiciosos objectivos e em
novas competências, ficou de alguma forma “ensombrado” pelo risco de fragmentação e pelo
adiamento, ainda que temporário, de uma verdadeira reforma estrutural140. Não obstante, as
novas disposições introduzidas por Amesterdão encerram um potencial muito significativo,
sobretudo, no que respeita à preocupação de acautelar a segurança numa Europa sem
fronteiras. Adoptando “conceitos generalistas” como o de “espaço de liberdade, segurança e
justiça”, o Tratado de Amesterdão deixou abertas as portas para posteriores
desenvolvimentos. A este propósito, não poderíamos deixar de lembrar aqui as palavras de 140 Como sublinha Monar (2001, 293) “the decision-making procedures retain much of the weakening features of the ‘old’ Third Pillar and, at least for the transitional period of five years, the areas ‘communitarized’ under Title IV TEC appear almost like an intergovernmental pillar within the EC frameworks”.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
Lucas Pires que, referindo-se a este novo “espaço”, escrevia: “[U]m ‘espaço público’ é uma
espécie de novo estaleiro de trabalho político e jurídico e esse, agora integrando Schengen,
pode ser especialmente fértil (...)” [sublinhado no original].
2.1.5 A “cooperação reforçada”: uma Europa de geometria variável?
Ao contrário do que poderia fazer supor a algo rígida estrutura institucional e jurídica
da Comunidade, a ideia de “flexibilidade” tem acompanhado a evolução da integração
europeia ao longo dos anos. Na verdade, a consciência de que uma abordagem “flexível” é
por vezes a única forma de conseguir a desejada mudança, tem porventura sido a chave do
sucesso da empresa comunitária. Mas, tal como o próprio processo global de integração, o
conceito de flexibilidade tem evoluído, abrindo as portas a novas possibilidades, mas também
a novos perigos141.
Com as excepções permitidas por Maastricht assistimos, como já tivemos ensejo de
referir, ao desabrochar de uma Europa “a vários níveis”. De facto, a possibilidade concedida à
Dinamarca e ao Reino Unido de ficar de fora da UEM, mesmo cumpridos os critérios de
convergência, e a recusa deste último país em participar na política social, acordada assim a
Onze (Protocolo 14), são dois exemplos que apontam para uma integração onde, não só a
“velocidade”, mas também os objectivos dos vários intervenientes começam a ser diferentes.
Na verdade, como sublinha Schoutheete (2001, 151): “[I]n both cases we are beyond the
(orthodox) framework of the two-speed concept: the ultimate objective is no longer common.
We are in the (unorthodox) field of variable geometry: two member states choose not to
participate in a common policy” [ênfase nossa].
141 Como enfatiza Ruttley (2002, 246) “[P]olitical realism has demanded the signatories to the Maastricht and Amsterdam Treaties accept fundamental political differences and adopt a variegated approach (...) This is the price being paid for keeping the Union together. It does, however, lead to incoherence and to a slowing (...) of the process of unification”.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
Com Amesterdão, a ideia de flexibilidade conhece novos desenvolvimentos.
Ocupando um papel de destaque nos debates que antecederam a assinatura do Tratado, esta
questão foi, contudo, abordada de forma inovadora. Se antes tinha surgido como resposta para
um dado problema (caso da União Económica e Monetária ou da política social), durante a
CIG a “flexibilidade” foi discutida como conceito geral, a ser introduzido como tal no
Tratado, e cuja aplicação é transversal - salvo as excepções previstas - aos vários pilares da
União142. O resultado foi a inclusão de um novo título no TUE que consagra expressamente
uma inovadora forma de flexibilidade - a cooperação reforçada.
O objectivo principal do novo mecanismo era permitir que os Estados-membros que
pretendiam instaurar entre si uma cooperação mais estreita o pudessem fazer sem o veto dos
restantes e utilizando para tal o quadro institucional da União. Desta forma, evitava-se
também a proliferação de subsistemas paralelos - caso de Schengen - fora do sistema
comunitário. Por outro lado, esta nova abordagem procurava igualmente antecipar uma
resposta aos inevitáveis problemas que um alargamento maciço provocaria ao nível das
tomadas de decisão. Se o consenso já é difícil, e muitas vezes impossível a Quinze, será
certamente bastante mais complicado numa Europa de 25 ou 30 Estados.
Procurando salvaguardar a indispensável coesão do projecto europeu os negociadores
do Tratado fizeram depender a instauração da “cooperação reforçada” de um conjunto
rigoroso de pré-condições, de entre as quais se destacam: a obrigatoriedade de favorecer a
realização dos objectivos da União; o respeito pelos princípios dos tratados e do quadro
institucional único da União; a sua utilização como último recurso; o envolvimento de pelo
menos a maioria dos Estados-membros; a proibição de pôr em causa o acervo comunitário e a
igualdade entre os Estados-membros; e, a não exclusão definitiva dos não-participantes.
Dada a diversidade de motivos que a justificam, e a existência de diferentes pilares da
142 Cf. Schoutheet. 2001. “Closer cooperation: political background and issues in the negotiation”. In The European Union after the Treaty of Amsterdam, Jörg Monar and Wolfgang Wessels, eds. London: Continuum.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
União (sujeitos a procedimentos distintos), procedeu-se igualmente a uma diferenciação do
âmbito e da forma de aplicação da “cooperação reforçada”. Foi assim estabelecida uma
cláusula geral aplicável ao TCE e aos sectores do terceiro pilar (artigos 43º a 45º TUE),
fixando as condições gerais e as regras institucionais, e duas cláusulas particulares aplicáveis,
respectivamente, ao primeiro pilar (artigo 11º TCE) e ao terceiro pilar (artigo 40º TUE),
explicitando as condições específicas para cada domínio143. Já no que respeita ao segundo
pilar, não foi explicitamente prevista a “cooperação reforçada”, muito embora tenha ficado
consagrada uma cláusula de “abstenção construtiva” que - se correctamente aplicada - poderá
também facilitar os avanços da integração neste domínio. De facto, nos termos do artigo 23º,
nº 1 do TUE embora não seja obrigado a aplicar a decisão, o Estado que se abstiver “deve
reconhecer que ela vincula a União (...) [e] abster-se de qualquer actuação susceptível de
colidir com a acção da União baseada na referida decisão ou de a dificultar”. Ao excluir a
PESC da “cooperação reforçada” procurou-se, sobretudo, evitar que o seu uso neste campo
(com impacto externo por excelência) pudesse pôr em risco a ainda muito frágil, se existente,
imagem de uma Europa unida. No entanto, ao estabelecerem a possibilidade de uma
abstenção que não põe em causa a tomada de decisão, os negociadores do Tratado
esforçaram-se por ultrapassar as, de outro modo inevitáveis, limitações impostas pela
exigência de unanimidade no domínio da segurança e política externa. Em suma, sem negar a
importância da consagração de um mecanismo que encerra potencialidades tão profícuas
quanto problemáticas, Amesterdão não deu neste campo um passo tão ambicioso como uma
primeira análise poderia fazer supor. De facto, numa tentativa de evitar uma possível
143 A autorização para a instauração de uma “cooperação reforçada” é concedida pelo Conselho deliberando por maioria qualificada, com a salvaguarda de que “se um membro do Conselho declarar que, por importantes e expressas razões de política nacional, tenciona opor-se à concessão de uma autorização por maioria qualificada, não se procede a qualquer votação” (artigo 11º, nº 2 TCE). Neste caso, o Conselho deliberando por maioria qualificada poderá submeter a questão ao Conselho Europeu que tomará uma decisão por unanimidade. À Comissão é confiada a tarefa de verificar a compatibilidade entre os pedidos de “cooperação reforçada” e as condições requeridas pelo Tratado, muito embora, se no âmbito do primeiro pilar lhe compete a apresentação da proposta, no terceiro pilar lhe caiba apenas pronunciar-se sobre esta. Por sua vez, o PE é consultado, no primeiro pilar, e somente informado, no terceiro pilar.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
fragmentação da União em “núcleo da frente”, por um lado, e “pelotão da retaguarda”, por
outro, os líderes europeus acabaram por manietar o novo instrumento de integração:
“In Maastricht they [os chefes de Estado e de governo] had accepted, at the last
minute, to go beyond the two-speed approach on differentiation and to accept a form
of variable geometry. At Amsterdam they accepted, also at the last minute, something
very similar to the Luxembourg compromise, which many of their countries had
systematically rejected over the years, and which is an even greater departure from the
norm” (Monar and Wessels 2001, 165).
Justifica-se, portanto, a afirmação de Geoffrey Edwards e Eric Philippart144 que, referindo-se
à cooperação reforçada, consideram que esta, e citamos, “remains a subject on which doubts
and uncertainties are such that the issue is unlikely to be ignored”. Compreendendo as críticas
não podemos, todavia, esquecer que a Amesterdão se fica a dever um novo conceito de
“flexibilidade” que apesar dos condicionamentos “rasga a possibilidade de novas formas de
tracção dianteira da construção europeia” (Lucas Pires 1998, 25), e que, em nossa opinião,
não poderia deixar de ser apresentado com alguma prudência, sob pena de os riscos que
encerra se sobreporem aos seus inegáveis benefícios.
2.2 O Reforço da Capacidade de Actuação Externa da União
Os conflitos vários que emergiram após o desmembramento da União Soviética e do
fraccionamento da Jugoslávia145 tornaram ainda mais evidente a urgência de conferir à União
Europeia uma maior capacidade de gestão e solução de crises. De facto, o balanço do
desempenho europeu na cena internacional, mesmo depois da entrada em vigor do segundo
pilar de Maastricht, foi, no mínimo, modesto, sobretudo se tivermos em conta que se trata de
144 Cf. Monar and Wessels, op. cit., 165. 145 Actualmente “Estado da Sérvia-Montenegro”.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
uma das maiores entidades comerciais do mundo. Parece indubitável que a PESC contribuiu
para o acertar de posições entre os Estados-membros, conferindo-lhes, através de uma
actuação mais concertada, um peso político que certamente não obteriam individualmente. De
facto, num sistema multi-nível, o nível supra-nacional parece apresentar-se,
incontestavelmente, como o mais adequado para lidar com as ameaças e os desafios
internacionais que ultrapassam cada vez mais a capacidade individual de resposta dos
Estados. Não obstante, a impossibilidade de solucionar as crises no terreno sem recorrer à
ajuda externa146, tornou premente a necessidade de uma reforma da política externa e de
segurança comum introduzida por Maastricht. De facto, apesar de alguns progressos, a PESC
não chegou para afirmar a identidade internacional da União no domínio político, revelando,
na prática, inúmeras incoerências conceptuais e fragilidades institucionais e legais:
“[T]hey include an insufficient forward planning and analysis capacity, an
unsatisfying vertical and horizontal coherence, the incapability for speedy reactions,
the declaratory character of CFSP decisions often lacking real substance, the highly
disputed financing of joint actions, the low-profile external representation, the lack of
legal personality and of a genuine treaty-making capacity, the inadequate cooperation
in security and defence policy as well as the incapacity for military action”
(Regelsberger and Schmalz 2001, 250).
Aproveitando a oportunidade que lhes era conferida pela conferência intergovernamental de
1996/97 os líderes europeus procuraram reformular alguns dos aspectos menos bem
conseguidos desta política, por forma a conferir-lhe maior coerência e eficácia. Partindo das
considerações anteriormente elaboradas pelo Grupo de Reflexão147, teve lugar um árduo
146 Referimo-nos, como é compreensível, ao principal aliado do outro lado do Atlântico – os EUA. 147 Numa tentativa de evitar os erros cometidos durante as negociações que antecederam o Tratado de Maastricht, nomeadamente a falta de uma preparação adequada da CIG sobre a união política, os chefes de Estado e de governo, reunidos em Corfu (24 e 25 de Junho de 1994), tomaram várias decisões com o intuito de tornar mais eficaz a próxima CIG já prevista pelo Tratado. De entre as várias medidas acordadas, merece especial destaque a criação de um Grupo de Reflexão (composto por representantes dos ministros dos Negócios
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
processo de negociações cujo objectivo final passava por reforçar o compromisso político de
formação de uma política externa verdadeiramente comum, dotar a União de melhores e mais
eficazes meios operacionais e ultrapassar os obstáculos resultantes da complexa estrutura de
pilares da União. O resultado está visível nas modificações introduzidas no Título V do TUE
(artigos 11º a 28º), no acordo interinstitucional entre o PE, o Conselho e Comissão sobre as
disposições relativas ao financiamento da PESC, em quatro declarações, e no protocolo sobre
a UEO.
Com o Tratado de Amesterdão, assiste-se a um salto qualitativo no segundo pilar de
Maastricht, que vê o seu carácter operacional reforçado, conquanto continue dependente da
vontade expressa dos Estados. As novas disposições reforçam o papel do Conselho Europeu
como entidade que define os princípios e orientações gerais da PESC, incluindo em matérias
com implicação no domínio da defesa (artigo 13º TUE). Por outro lado, são especificados os
objectivos desta política (artigo 11º, nº 1 TUE), nomeadamente no que respeita à salvaguarda
dos valores comuns e da independência e integridade da União. É também estabelecida uma
cláusula de solidariedade política (artigo 11º, nº 2 TUE) que obriga os Estados-membros a
agir concertadamente. Este compromisso fundamental pode ser entendido já como uma
resposta aos conflitos emergentes entre grandes e pequenos. Numa tentativa de lhe conferir
maior eficiência, dotou-se a PESC de instrumentos mais coerentes (artigo 12º TUE) e de uma
forma de decisão aparentemente mais eficaz. Merecem particular destaque as novas
“estratégias comuns” decididas pelo Conselho Europeu e executadas pelo Conselho de
Ministros através da adopção de acções ou posições comuns (artigo 13º TUE). Ainda assim,
não é muito clara a distinção entre as várias modalidades de decisão, pelo menos no que
respeita aos objectivos definidos para a PESC. Já no que concerne à votação, o Tratado
estabelece a regra da unanimidade para as decisões neste domínio, com excepção para os
Estrangeiros dos Quinze, por um membro da Comissão e por dois membros do PE), ao qual foi confiada a preparação da nova conferência intergovernamental.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
casos em que se “adopte acções comuns ou posições comuns com base numa estratégia
comum [ou] qualquer decisão que dê execução a uma acção comum ou a uma posição
comum”, em que será aplicada a regra da maioria qualificada (artigo 23º TUE). Sem
surpresas, nas decisões com implicações em matéria de defesa foi mantida a unanimidade.
Como tivemos já oportunidade de referir, embora não preveja a instituição de uma
“cooperação reforçada” no domínio do segundo pilar, o Tratado introduz um outro tipo de
“flexibilidade” sob a forma de uma “abstenção construtiva” (artigo 23º, nº 1 TUE), que
permite aos Estados-membros abster-se sem que, com isso, impeçam a aprovação das
decisões148. Desta forma, os Estados-membros que optarem pela abstenção ficam dispensados
de aplicar a decisão, embora aceitem que esta vincula a União. Como que para “temperar”
este avanço é, todavia, prevista no ponto 2 do mesmo artigo a possibilidade de um Estado
bloquear uma decisão (entretanto tomada por maioria qualificada) invocando “importantes e
expressas razões de política nacional”. Neste caso, o Conselho de Ministros, deliberando por
maioria qualificada, pode solicitar que a questão seja submetida ao Conselho Europeu, a fim
de ser tomada uma decisão por unanimidade. Daqui se depreende que é difícil avaliar o real
aumento de eficácia do processo decisório saído de Amesterdão, ainda que se possa concluir
pela positiva, sobretudo, se “não houver uma interpretação extensiva da noção de Estratégia
Comum para forçar a unanimidade”149. Aliás, como notam Regelsberger e Schamalz (2001,
258):
“[T]he extent to which qualified majority voting will be applied to the implementation
of common strategies, joint actions and common positions, will largely depend on the
skills of the respective Presidency in a given situation and on the behaviour of those
among the Fifteen which insist traditionally on a strict application of the unanimity
148 A decisão não será aprovada se as abstenções excederem 1/3 dos votos ponderados nos termos do artigo 205º TCE. 149 Cf. Barros Moura. 1997. “O Tratado de Amesterdão: Conteúdo, Problemas e Perspectivas”. Europa Novas Fronteiras, Novembro, 79.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
rule”.
Apesar das inquestionáveis vantagens que tal passo acarretaria, a União Europeia continuou
sem personalidade jurídica, embora o artigo 24º preveja que sempre que seja necessário
celebrar um acordo com Estados ou organizações internacionais, o Conselho possa,
deliberando por unanimidade, autorizar a Comissão a encetar negociações para esse efeito.
Tal disposição não implica, todavia, qualquer transferência de competências dos Estados-
membros para a UE. De resto, no que respeita à representação externa da União, poucos
progressos foram conseguidos, tendo o Tratado confirmado, como era previsível, o anterior
modelo da presidência rotativa (artigo 18º TUE). Não obstante, naquilo que pode ser encarado
como uma tentativa de dotar esta representação de maior visibilidade e continuidade,
Amesterdão substitui o anterior modelo de troika por um novo modelo composto pelo
Conselho da presidência, pela Comissão e pelo secretário geral do Conselho que exercerá as
funções de Alto-representante para a PESC (outra das inovações deste Tratado). As partes
envolvidas estão, porém, longe de terem igual importância. De facto, entre as três, é possível
estabelecer uma hierarquia que reserva claramente à presidência o lugar cimeiro. Quanto à
Comissão, o Tratado prevê que esta seja “plenamente associada”, o que lhe garante uma certa
independência nesta parceria. Por último, ao secretário geral do Conselho compete assistir a
presidência, daqui decorrendo que o seu lugar na estrutura decisional da PESC dependerá, em
grande medida, da sua relação com a presidência em funções.
Com a nomeação de um Alto-representante para a política externa e de segurança
comum, procurou-se, sobretudo, personalizar a imagem da União neste domínio. Reconhecida
a ineficaz intervenção da Comunidade na vertente externa, resultado, em grande medida, de
uma descoordenação da actuação dos Estados-membros e da descontinuidade das formações
do Conselho150, optou-se por “profissionalizar” a PESC. Apesar das evidentes vantagens em
150 Subdividido, como se sabe, em inúmeros conselhos especializados.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
termos de “continuidade”, a instituição deste cargo não deixa de se apresentar como uma
“faca de dois gumes”. A existência de um “senhor PESC” (como é vulgarmente conhecido),
embora confira uma maior “visibilidade” à União, não deixa de ser mais uma “acha na
fogueira” da confusão sobre o seu verdadeiro representante. Parece-nos, na verdade, que, sem
uma coordenação interna realmente eficaz, as demasiadas “caras” que agem em nome da
União acabarão por se tornar um entrave à edificação de uma imagem internacional forte e
coesa151. A lógica subjacente à instituição deste cargo percebe-se, todavia, melhor se
relacionada com a nova Unidade de Planeamento de Política e de Alerta Precoce prevista
numa Declaração do Tratado de Amesterdão. Procurando contrariar a falta de um
planeamento antecipado no domínio da PESC, a nova estrutura, colocada precisamente sob a
responsabilidade do Alto-representante para a PESC, visa propiciar uma análise mais
profunda e sistemática das percepções europeias acerca dos desenvolvimentos internacionais,
bem como formular opções de política que contribuam para um aumento da capacidade da UE
na prevenção de conflitos. Enquadrada no secretariado geral do Conselho, será composta por
pessoal proveniente deste órgão, dos Estados-membros, da Comissão e da UEO (entretanto
fundida na PESC após Nice). Assim, a sua eficácia dependerá, não só do pessoal escolhido,
mas também do acesso à informação, nomeadamente a fornecida pelos serviços diplomáticos
nacionais e pelas delegações da Comissão no exterior (Monar and Wessels 2001, 257). Sendo
uma espécie de observatório da política internacional, esta unidade, se bem sucedida, poderá
ter um papel crucial na definição de uma resposta adequada e, sobretudo, atempada, aos
acontecimentos internacionais, por parte da União.
Compreendendo que seria impossível falar de segurança externa sem ponderar a
151 O excesso de “caras” da União serviu, aliás, de mote a algumas das propostas apresentadas à Convenção sobre o futuro da Europa, a propósito da reforma institucional. Entre as soluções é apontada a fusão do cargo de Alto-representante para a PESC com o do comissário para as relações externas, e a possibilidade de eleição de um Presidente da União, numa tentativa clara de contrariar aquela que é uma das maiores fraquezas da UE a nível externo – a falta de um representante que lhe permita “falar a uma só voz” e que seja capaz, simultaneamente, de “ombrear” em termos de prestígio com o chefe de Estado de qualquer país.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
questão da defesa, os líderes europeus tentaram com Amesterdão avançar um pouco mais na
embrionária Identidade Europeia de Segurança e Defesa (IESD). Desta forma, o
compromisso entre as duas áreas, inevitavelmente interligadas, aparece plasmado no artigo
17º TUE de acordo com o qual “[A] política externa e de segurança comum abrange todas as
questões relativas à segurança da União, incluindo a definição gradual de uma política de
defesa comum (...)” [sublinhado nosso]. Simultaneamente, é reafirmado o papel da UEO como
parte integrante do desenvolvimento da União, prevendo-se mesmo a possibilidade da sua
integração na União Europeia. Face à nova conjuntura internacional, caracterizada sobretudo
por conflitos à escala regional, a União deverá intervir com o intuito, não de fazer a guerra,
mas de garantir a paz, inserindo-se neste espírito as chamadas Missões de Petersberg, que
incluem missões humanitárias e de evacuação, missões de manutenção da paz e missões de
forças de combate para a gestão de crises. À UEO caberá preparar e executar as decisões e
acções da União com repercussões em matéria de defesa. Percebe-se assim nestes “pequenos
passos” um esforço dos responsáveis europeus para acrescentar à União a indispensável
dimensão de segurança e defesa, já que a classificação de “potência civil” (notavelmente
antecipada por François Duchêne, em 1972), se torna mais dilemática perante as ambições de
um maior aprofundamento político. Como sublinha Lobo-Fernandes (2001, 8): “[C]hegados
ao século XXI, os actuais Quinze estados da União Europeia vivem, assim, num dilema
assente no referido modelo de potência civil caracterizado pelo uso de instrumentos não-
militares e as exigências doravante mais ambíguas do sistema internacional pós-guerra fria”
[ênfase nossa]. Não se trata, como temeram alguns, de rejeitar a tradicional aliança com os
EUA152 ou de questionar a importância da Aliança Atlântica153, mas apenas de afirmar a
152 Aliás, como nota William Wallace (1997, 227), “[M]ost would (at least tacitly) prefer the Americans to continue to provide leadership and see this as preferable either to the inherent tensions contained within the Franco-German relationship, or an attempt to create a larger ‘concert’ of core countries, or to the eventual emergence, faute de mieux, of German leadership. (...) It is easier to build and maintain regional order within a stable global order; and easier, perhaps, to build a regional order under the impetus of external pressures and
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
credibilidade da União Europeia como actor internacional, dotando-a dos intrumentos
necessários a uma actuação externa eficaz. Dada a importância de tal tarefa prevê-se desde
logo a eventual convocação de uma CIG para rever as disposições sobre a defesa (artigo 17º,
nº 5 TUE).
Em suma, qualquer avanço na dimensão da segurança e defesa deve ser entendido
como um meio privilegiado de aprofundamento político, ao contribuir para a edificação de
uma União capaz de exercer convenientemente as suas responsabilidades e de fazer valer os
seus interesses, ainda que preservando a fundamental relação transatlântica154. Sem pretender
desenvolver esta questão, parece-nos, todavia, evidente que as dramáticas transformações da
cena internacional tornaram imperativo o avanço da Europa neste domínio, tendo em vista
não o fim da parceria EUA - UE, mas a progressiva “equiparação” das partes. Uma União
dotada de maior autonomia em matéria de segurança e defesa, longe de se tornar um
concorrente, poderá ser, em nossa opinião, um aliado precioso para os EUA, ao mesmo tempo
que será capaz de tomar em mãos a protecção dos seus cidadãos155.
external leadership than through agreement among the major regional powers, let alone through following the guidance of a (potentially hegemonic) power within the region itself” [ênfase no original]. 153 Como se sabe, no período da Guerra Fria as questões de defesa e segurança eram definidas, em termos da Europa Ocidental, pelos EUA. Esta é, aliás, uma das explicações para que não tenha havido um real avanço nestas matérias na Europa comunitária. É certo que coexistiram sempre duas dinâmicas: uma mais europeísta, liderada pela França (há mesmo quem considere que o debate sobre a defesa europeia é especificamente francês) e outra mais atlantista encabeçada pelo Reino Unido (e na qual se insere, por exemplo, Portugal), mas é também uma realidade que a visão europeísta nunca teve força institucional. Na verdade, os componentes da defesa europeia estavam “subsumidos” na actuação dos Estados Unidos e da NATO. A prova disto é a pouco notória intervenção da UEO, como o demonstra a classificação de “[B]ela Adormecida das organizações europeias” (Pascal Fontaine 1998, 12) ou de “peso pluma institucional” (Leandro et al. 2000, 81). Todavia, em virtude das grandes transformações ocorridas na cena internacional, parece chegado o momento de o projecto europeu evoluir de forma a que, sem pôr em causa esta parceria, possa tornar possível uma maior autonomia do continente europeu. 154 Os ulteriores desenvolvimentos neste domínio, que abordaremos mais à frente, vêm confirmar esta ideia. A título de exemplo, veja-se apenas a Declaração de Colónia que refere explicitamente que “a Aliança continua a ser a base da defesa colectiva dos seus Estados-membros”. 155 A ideia de dotar a UE de uma real autonomia no âmbito da segurança e defesa ganha uma importância acrescida se tomarmos em consideração os receios manifestados por alguns de que os EUA venham, gradualmente, a “desresponsabilizarem-se” da gestão de conflitos no continente europeu. Como nota Wallace (1997, 227) “[M]ost (…) fear that American leadership will be more uncertain and intermittent, and American demands for others to carry the burden more insistent”.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
2.3 Conclusão: Amesterdão, um Tratado de Transição
Se tivermos em consideração as expectativas que rodearam a conferência
intergovernamental de 1996/97, compreendemos facilmente os motivos que levaram muitos a
considerar o Tratado de Amesterdão “um perfeito fracasso”. Ainda assim, parece-nos evidente
que, malgrado algumas claras limitações, este Tratado representa um esforço considerável no
caminho da integração política.
Com disposições importantes na área da política social, a comunitarização de parte do
terceiro pilar e alguns “pequenos passos” na segurança e defesa, Amesterdão avançou na
construção de uma união que procura ir de encontro às preocupações dos seus cidadãos.
Faltou, no entanto, a vontade política e o consenso necessários para proceder a uma reforma
de fundo das instituições, capaz de preparar a UE para os desafios que advirão do próximo
alargamento. Sendo esta uma reforma percebida como indispensável, não admira que o seu
adiamento tenha ditado a “crucificação” deste Tratado. Perdeu-se, efectivamente, uma
oportunidade-chave para, atempadamente, se levar a cabo uma reflexão cuidada sobre esta
matéria, proceder às indispensáveis modificações e remeter para uma CIG posterior somente
os pequenos acertos que, após um período de transição, se revelassem necessários.
O relativo (in)sucesso de Amesterdão veio mesmo colocar em questão o próprio
método de revisão dos tratados, que tendo sido concebido para uma Comunidade de seis
Estados, parece aproximar-se do esgotamento numa União cada vez mais heterogénea e cuja
decisão se estende a matérias cada vez mais sensíveis156. Como resultado, quase se pode dizer
que o número de CIG’s aumenta proporcionalmente à diminuição do número de decisões
tomadas. De facto, o adiamento das questões mais importantes para a conferência
intergovernamental seguinte (muitas vezes já prevista no novo tratado), longe de constituir a 156 Como sublinham Monar e Wessels (2001, 1) “[W]ith the Treaty of Amsterdam the EU has now arrived at a political agenda which is in all but name similar to that of a state: there is now no major area of policy-making left outside of the scope of actual or potential action by the EU institutions”.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
excepção, parece, curiosamente, ter-se tornado a regra. Deixar apenas na mão dos Estados a
decisão sobre matérias que cada vez mais entram na esfera da soberania nacional aparenta ser,
portanto, um método ultrapassado, não só por não se coadunar com a delicadeza das questões
abordadas, mas também porque se mostra totalmente inadequado à construção de uma União
que se deseja mais transparente, mais democrática e mais próxima dos seus cidadãos. Não
admira, portanto, os cada vez mais modestos resultados, que levam mesmo alguns a
considerar que, em vez de avançar, a Europa se limita a “marcar passo”. Como referia Lucas
Pires (Novas Fronteiras 1997, 117): “o paradoxo ou círculo vicioso consiste também nisto: os
Estados emparedados entre a globalização, a europeização e o crescente pluralismo interno
(territorial e cooperativo) necessitam cada vez mais de delegar poderes, mas quanto menos
fortes se sentem mais resistem em delegar”.
Em suma, olhado através da “lente das expectativas” Amesterdão conduziu a
resultados modestos e, em alguns campos, mesmo decepcionantes. Todavia, não podemos,
nem devemos, esquecer que tais resultados são também um reflexo da crescente inadequação
da metodologia utilizada para as reformas dos tratados e de uma conjuntura pouco favorável
ao avanço do projecto europeu157. Ainda assim, pelo potencial que encerram algumas das
medidas adoptadas (sobretudo se sujeitas a uma certa clarificação), o Tratado de Amesterdão
não deixa de merecer pelo menos um “suficiente”. Como notava ainda Lucas Pires (Novas
Fronteiras 1997, 123): “[N]o início prometera-se, pelo menos, um Maastricht 2. Talvez seja só
um Maastricht 1,5”. Parece-nos, sobretudo, que o seu saldo só poderá ser correctamente
avaliado se o entendermos como uma espécie de “precursor do futuro” que marca “the
beginning of a new phase of flexible, pragmatic constitution-building in order to
accommodate the diversity of a continent-wide polity” (Moravcsik and Nicolaidis 2000,
157 Como é demonstrado pelo moroso processo de ratificação do Tratado, que só viria a entrar em vigor a 01 de Maio de 1999 (quase dois anos depois da sua elaboração).
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
248)158. Curiosamente, embora provenha de dois “intergovernamentalistas”, esta análise não
deixa de ir ao encontro de uma das características básicas de um “federalismo” europeu: a da
construção de uma união alicerçada no respeito pela diversidade. Se entendida como
instrumento de progressão e não de bloqueio, a “flexibilidade” poderá revelar-se uma
ferramenta eficaz para o progresso do empreendimento comunitário.
158 Citados em Burgess 2000, 248.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
Capítulo III
O Tratado de Nice: um Passo em Frente, Dois Atrás?
Conscientes de que as reformas operadas por Amesterdão seriam, por si só,
insuficientes para garantir o eficaz funcionamento das instituições europeias numa
Comunidade alargada, os líderes europeus deixaram plasmada no Protocolo relativo às
Instituições na Perspectiva do Alargamento da UE, a obrigatoriedade de se proceder à
necessária reforma institucional159. É assim que a 14 de Fevereiro de 2000, menos de um ano
depois da entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, a União Europeia inicia nova ronda de
negociações, desta feita para tentar encontrar uma solução para os chamados left-overs de
Amesterdão.
A nova conferência intergovernamental, que decorreu em 2000 sobre a égide das
presidências portuguesa e francesa da União, tinha, por conseguinte, um mandato muito
preciso, que consistia em preparar a UE para a adesão iminente160 de um número significativo
de novos Estados. Versando inicialmente sobre a dimensão e composição da Comissão e a
ponderação dos votos no Conselho, a agenda da CIG acabou por se alargar a diversos
domínios, como a extensão da votação por maioria qualificada e a “cooperação reforçada”.
Para além destes, foram ainda incluídos na discussão um conjunto de outras matérias161,
destacando-se o aumento dos poderes do PE, a reforma do sistema jurisdicional, o avanço na
política europeia de segurança e defesa, e a adopção de uma Carta dos Direitos
Fundamentais.
159 A reforma institucional realizar-se-ia, de acordo com este documento, em duas fases: uma anterior à data da entrada em vigor do primeiro alargamento (a respeitante ao número de comissários) e outra um ano antes da data em que a União Europeia passasse a ser constituída por mais de 20 Estados-membros. Todavia, a aceleração das negociações de adesão, acabaria por determinar a junção das duas etapas, ambas “resolvidas” pelo Tratado de Nice. 160 O Conselho Europeu de Helsínquia definiu como objectivo que a primeira ronda de novas adesões à UE se concretizasse até ao final de 2002, de forma a que os novos membros possam já participar nas eleições para o PE, que terão lugar em 2004. 161 Algumas das quais não cabem na classificação de left-overs de Amesterdão.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
Depois de um primeiro semestre dedicado sobretudo a negociações preparatórias162, e
de os trabalhos da presidência francesa não terem evoluído ao ritmo esperado, ficou claro que
as reformas mais importantes apenas seriam decididas na cimeira de Nice. Sem surpresa, esta
foi, de facto, a cimeira de “todas as maratonas”. Quatro dias e uma noite de intensas e
acaloradas reuniões conferiram-lhe a marca de uma das mais longas da história comunitária,
com as decisões mais prementes suspensas até aos últimos minutos das negociações. O acordo
final foi alcançado na Acrópolis de Nice, às primeira horas da madrugada de 11 de Dezembro
de 2000, dando origem a um novo texto que opera a terceira reforma dos tratados
comunitários em menos de uma década.
À semelhança do que já se havia passado com o seu antecessor, mal viu a luz do dia, o
Tratado de Nice foi alvo de críticas contundentes, que reflectiam a desilusão face aos
resultados obtidos. Longe da prometida reforma de fundo, este Tratado limitava-se à reforma
mínima indispensável ao alargamento, frustrando, assim, as expectativas existentes. Por outro
lado, e com consequências certamente mais preocupantes, as intermináveis discussões que
marcaram a cimeira de Nice tornaram evidente uma luta pelo poder que, embora previsível e
possivelmente inevitável, há muito vinha sendo adiada163. Em vez de uma reponderação
cuidada do peso dos Estados-membros, que permitisse conservar o princípio fundamental da
igualdade entre Estados numa Europa alargada, Nice revelou-se uma oportunidade para os
países de maior dimensão recuperarem o poder que consideravam ter vindo a perder nos
anteriores tratados. Como sublinha Lobo-Fernandes, num artigo publicado no Expresso de 07
de Junho de 2003, “a maioria qualificada requerida nas votações no Conselho de Ministros da
UE subiu de 71% para 74%. Isto quer dizer que os quatro grandes (...) detêm uma minoria de
bloqueio que corresponde na prática a dizer que determinarão em todas as circunstâncias o
162 A presidência portuguesa ficou marcada pelo facto, no mínimo insólito, da apresentação precoce do programa da presidência francesa, o que acabaria por condicionar os seus trabalhos. 163 Como sublinha Pierre Vimont (2001, 163) “[W]hat Amsterdam let us see dimly, Nice confirmed in detail: this IGC was essentially a power struggle among Member States and was bound to lead to laborious and laboured conclusions in an atmosphere of tension over the last four days of negotiation”.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
futuro da União”. O resultado foi, por conseguinte, uma “pouco recomendável” supremacia
dos “grandes” sobre os “pequenos”, através de um novo desequilíbrio de poderes tão
complexo e confuso (não apenas para o cidadão, mas para os próprios legisladores) que se
arrisca a tornar-se paralisante164.
Não admira, portanto, a emergência de vozes particularmente críticas que se fizeram
ouvir no período que se seguiu, sendo que, mesmo as reacções favoráveis, resultavam mais do
alívio de se ter conseguido um tratado e menos da satisfação pelo seu conteúdo. Entre as
opiniões mais duras conta-se a de Jacques Delors (ex-presidente da Comissão Europeia), que
segundo o jornal El País de 06 de Junho de 2001 se referiu ao Tratado de Nice como “um
fracasso completo [que] não poderá aplicar-se nunca” (nossa tradução)!
Como se vinha, de certo modo, tornando hábito, a onda de contestação que se seguiu
à assinatura do Tratado deixava adivinhar um difícil e moroso processo de ratificação. Às
inúmeras críticas, somou-se a rejeição do Tratado num primeiro referendo realizado na
República da Irlanda. Apesar dos potenciais efeitos perversos o não irlandês acabou,
curiosamente, por ter um efeito aglutinador, unindo grande parte dos europeus em torno da
necessidade de ratificar Nice. Compreendeu-se que, se é verdade que o novo Tratado havia
gorado as esperanças dos que ambicionavam um avanço mais determinado no sentido de uma
Europa mais integrada, não é menos verdade que introduziu as modificações necessárias ao
164 Como notou ainda Lobo-Fernandes “[T]he inefficiencies in the Nice Treaty system stem from a combination of adding 12 new Council members and raising the majority threshold from 71 percent of Council votes to 74 percent, which makes it even more difficult for voting ministers to reach an agreement (…) In order to restore efficiency, without further weakening small member nations, the way forward could be a lowering of the majority thresolds” (cf. Lobo-Fernandes. 2002. “The European Project and Its Future”, Universidade de Cincinnati, 15 de Outubro). De notar que este problema continua a existir, apesar dos novos critérios de votação acordados pelos membros da Convenção Europeia. Segundo o artigo 24º do projecto de constituição, a partir de 01 de Novembro de 2009, a vmq será definida “como uma maioria de Estados-Membros que represente, no mínimo, três quintos da população da União”. Percebe-se, assim, que a solução proposta pelo autor em relação à vmq aprovada em Nice vá de encontro à posição a adoptar pelo governo português nesta matéria, nas negociações da próxima CIG: “[O] novo sistema de votação levanta dúvidas. Lisboa preferia decisões aprovadas por maioria de países que representam 50 por cento da população, em vez de 60 por cento. Parece uma diferença mínima, mas deixa ‘respirar’ os países pequenos” (cf. “Portugal não assina de Cruz”. Independente, 12 de Setembro de 2003). Também Paulo de Pitta e Cunha considera que o “(...) sistema de ponderação [consagrado no projecto de constituição europeia] deveria ser restabelecido e rediscutido” sob pena de, se tal não vier a acontecer, os Estados médios e pequenos sofrerem um “intolerável esmagamento sob o peso demográfico dos Estados grandes” (cf. “O Projecto da Convenção Europeia e a Próxima CIG”. Público, 06 de Setembro de 2003).
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
alargamento, pelo que a sua não ratificação teria consequências notoriamente mais graves do
que a sua adopção. Efectivamente, o efeito de um sinal negativo dessa natureza em países
que, há uma década, aguardam pacientemente para integrar a família comunitária, seria
devastador165. Se existe mérito em Nice é precisamente o de representar a ansiada luz verde
para uma “adesão em massa” à União Europeia, e, deste ponto de vista, não pode deixar de
ser considerado um tratado histórico.
Com uma votação positiva num segundo referendo na República da Irlanda166, e
cumprido o necessário processo de ratificação, as disposições do Tratado de Nice entraram
em força a 01 de Fevereiro de 2003. Tentaremos, de seguida, fazer uma análise das principais
reformas introduzidas por este Tratado e das suas consequências para a integração política.
Recorreremos para o efeito à divisão que temos seguido entre dimensão interna e externa da
União, destacando, todavia, aquilo que designaremos por “processo de constitucionalização”
que, embora enquadrável na primeira dimensão, nos parece, pelo salto em frente que pode
representar, merecer ser tratado autonomamente.
3.1 A Eficácia Interna da União e a Questão da Legitimidade do Projecto Comunitário
Por muitos apelidado de “Tratado pequeno”, Nice não deixou de cumprir os objectivos
mínimos que lhe eram exigidos, ao introduzir um conjunto de reformas destinadas, na sua
165 A este propósito é de referir a “campanha” levada a cabo pelos principais candidatos à adesão, aquando do segundo referendo irlandês. De acordo com o Jornal de Notícias, de 20 de Outubro de 2002, os presidentes da República Checa, da Polónia, da Hungria e da Eslováquia redigiram um comunicado apelando aos irlandeses para que lhes dessem a “chance histórica” de poderem aderir à União. No mesmo sentido vão as palavras de Gunther Verheugen, comissário europeu para o alargamento: “[I] hope very much that Irish voters will understand that it is not only the future of Ireland that is at stake but the future of Europe and the future of countries which have suffered under decades of dictatorship and war and are trying desperately to join a union of free and democratic nations” (citado em Lobo-Fernandes 2002, 3). 166 Depois de uma rejeição a 07 de Junho de 2001, o Tratado de Nice seria finalmente aprovado com 63% dos votos, num segundo referendo realizado a 19 de Outubro de 2002. O sim irlandês veio, deste modo, colocar um ponto final em 16 meses de um preocupante “suspense” sobre o novo alargamento europeu. Para este reacertar de agulhas muito terá contribuído a grande campanha de esclarecimento sobre o novo Tratado levada a cabo pelo governo irlandês e algumas concessões conferidas à Irlanda, nomeadamente no que respeita à garantia do seu estatuto de neutralidade.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
maioria, a garantir a funcionalidade das instituições comunitárias numa União que verá, num
futuro próximo, o seu número de membros perto de duplicar. Como sublinha Pierre Vimont
(2001, 160-161): “Nice is certainly not the great reforming Treaty that many had wanted it to
be. But that was never its aim (…) The aim of the Conference was therefore unambiguous. It
was to find solutions to the Amsterdam left-overs and thus allow the Union to clear the way
of enlargement”.
3.1.1 As principais reformas institucionais
a) reformas institucionais relativas ao alargamento
O Tratado de Amesterdão havia falhado a oportunidade de levar a cabo uma reforma
de fundo do sistema institucional. Entre as muitas questões sem resposta, destacavam-se as
relativas à composição da Comissão e à reponderação de votos no Conselho de Ministros,
matérias com influência directa na delicada questão da balança de poder entre Estados-
membros e que se repercutiriam, como consequência, na distribuição de lugares nas restantes
instituições. A solução encontrada em Nice167 aparece sob a forma de um “pacote” composto
por quatro reformas interligadas: a reforma da Comissão; a reponderação dos votos; a nova
maioria qualificada; e a redistribuição de lugares nas instituições comunitárias168.
No que à Comissão diz respeito, o Protocolo relativo ao Alargamento da União
Europeia confirma no seu artigo 4º, nº 1, o que havia ficado definido em Amesterdão,
prevendo que, a partir de 01 de Janeiro de 2005, esta instituição será composta por um
comissário de cada Estado-membro. O novo Protocolo vai, todavia, mais longe ao
estabelecer, no ponto seguinte, a invalidação desta regra a partir do momento em que a União
atinja os 27 Estados-membros. Neste caso, o número de comissários deverá ser inferior ao
167 Conforme Protocolo relativo ao alargamento da União Europeia. 168 Cf. Monar and Wessels, op cit., 322.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
número de países, adoptando-se para a sua designação um sistema de rotatividade baseado no
princípio da igualdade. Pela delicadeza da reforma que, pese embora a independência dos
comissários em relação ao país de origem, os Estados encaram como uma ameaça à sua
capacidade representativa, remeteu-se para o Conselho, decidindo por unanimidade, a
definição deste sistema bem como o estabelecimento do número adequado de comissários.
Permanece, portanto, pelo menos até à aplicação definitiva das alterações previstas,
um forte elemento de “nacionalidade” na composição da Comissão, contrariando a máxima de
independência que os tratados apontam como característica fundamental deste colégio e que
seria o garante da sua supranacionalidade169. Continua, deste modo, o enfraquecimento desta
instituição170, tendência já perceptível nos tratados anteriores, mas que Nice vem acentuar de
forma substancial. Ainda assim, é de realçar a tentativa de melhorar a eficácia interna da
Comissão, nomeadamente através de um reforço assinalável do papel do seu presidente. De
acordo com o artigo 217º TCE cabe ao presidente da Comissão a sua organização interna,
tendo em vista garantir uma actuação consistente, eficiente e baseada na colegiatura.
Compete-lhe ainda distribuir as responsabilidades pelos comissários, nomear o(s) vice-
presidente(s), podendo inclusive exigir a resignação de um dos membros da Comissão, depois
de obter o apoio do colégio. No mesmo sentido, estão os esforços de reforma administrativa
levados a cabo pela própria instituição, numa tentativa de recuperar a credibilidade perdida na
sequência dos mediáticos problemas que atingiram a anterior Comissão presidida por Jacques
Santer171, ditando a sua demissão em bloco. A crise da “Comissão Santer” ter-se-á, aliás,
169 De facto, as acaloradas discussões sobre o número de comissários na cimeira de Nice, demonstraram claramente que os Estados-membros vêem no seu comissário uma espécie de “embaixador”, ligação que, longe de acentuar a desejada natureza supranacional da Comissão, privilegia o carácter intergovernamental, contribuindo para o enfraquecimento e perda de eficácia desta instituição. 170 Que seria mesmo a “grande perdedora” desta cimeira, não fosse pelo considerável reforço do papel do seu presidente. 171 Tratou-se, indubitavelmente, da crise mais grave da história da Comissão Europeia. As suspeitas de má gestão e corrupção que pesavam sobre alguns dos seus membros acabariam por resultar na sua resignação colectiva (a 17 de Março de 1999), na sequência da moção de censura apresentada pelo PE. Se é certo que esta demissão veio sublinhar a eficácia do controlo parlamentar, não conseguiu evitar que a instituição considerada “guardiã
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
reflectido nas próprias reformas previstas no Tratado, já que o reforço da autoridade do
presidente da Comissão vem também clarificar a questão da atribuição de responsabilidades,
ao permitir a responsabilização individual de um dos membros pelos erros cometidos sem que
a instituição, no seu todo, seja posta em causa. Por outro lado, o novo estatuto do presidente
poderá servir de contrapeso ao notório enfraquecimento da Comissão, deixando em aberto a
possibilidade - ainda que remota - de esta instituição se poder tornar num verdadeiro
executivo europeu. No mesmo sentido afigura-se-nos, aliás, a adopção da maioria qualificada
na nomeação do presidente e, numa segunda fase, dos membros da Comissão (artigo 214º
TCE). De facto, o fim da exigência de “comum acordo” terá pelo menos a enorme vantagem
de permitir ao Conselho172 eleger, não o “mínimo denominador comum”, mas o candidato
mais forte. Tal inovação, não deixa, porém, de encerrar algumas dificuldades: por um lado, o
candidato continua a depender da aprovação do PE, o que, em caso de desacordo, poderá
resultar em complexas negociações com esta instituição; por outro, o fim da unanimidade
poderá confrontar o presidente com novos desafios, pois se até aqui era nomeado o candidato
de todos os países, com o novo sistema poderá ser indigitado um candidato considerado
indesejado por alguns.
Deste modo, ainda que possa contribuir para um aumento da eficácia interna da
Comissão, o reforço do papel do seu presidente parece não ser suficiente para um verdadeiro
fortalecimento desta instituição. A sua débil posição no domínio da PESC permaneceu quase
inalterada, enquanto que nas mais “comunitarizadas” matérias da justiça e assuntos internos
(áreas de grande dinamismo legislativo) continua obrigada a partilhar com os Estados-
membros o direito de iniciativa, pelo menos até 2004 (por força do período de transição
estabelecido pelo Tratado de Amesterdão). Igualmente fora do seu campo de actuação fica o
dos tratados” se visse a braços com a árdua tarefa de voltar a construir a imagem de credibilidade e eficácia, para a qual muito tinha contribuído o desempenho do seu anterior presidente, Jacques Delors. 172 Numa primeira fase (a da designação do presidente da Comissão) reunido a nível dos chefes de Estado e de governo.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
que restou do terceiro pilar de Maastricht, nomeadamente o funcionamento da Eurojust
(artigo 31º TUE), e alguns aspectos da política social, não lhe sendo atribuído, por exemplo,
qualquer papel no novo Comité de Protecção Social (artigo 144º TCE), para além da
nomeação de dois dos seus membros173. Por outro lado, a - para alguns - excessiva
concentração das reformas efectivas no papel do presidente da Comissão faz temer que a
influência e capacidade de decisão deste colégio passem a depender, em demasia, da
personalidade do nomeado e da sua capacidade quer para liderar, quer para desenvolver um
trabalho construtivo com as demais instituições comunitárias.
Sem surpresa, a questão da redistribuição de lugares no Conselho foi uma das mais
problemáticas do Tratado de Nice. Para além de opor grandes e pequenos Estados, as difíceis
negociações acabaram por criar divisões no seio dos grandes (opondo, por exemplo,
Alemanha e França) e dos pequenos (casos da Bélgica e da Holanda), que lutavam por uma
representação proporcional. O acordo possível ficou consagrado no artigo 3º do Protocolo
relativo ao alargamento da União Europeia de acordo com o qual, a partir de 01 de Janeiro
de 2005, o artigo 205º ¶ 2 TCE passará a contemplar a seguinte ponderação de votos nas
decisões do Conselho que exijam maioria qualificada: França, Alemanha, Itália e Reino
Unido 29; Espanha 27; Holanda 13; Portugal, Bélgica e Grécia 12; Áustria e Suécia 10;
Dinamarca, Finlândia e Irlanda 7; Luxemburgo 4. Para além da nova distribuição de votos dos
Estados-membros, os líderes europeus acordaram ainda numa atribuição de votos aos países
candidatos (com excepção da Turquia)174. Cumprindo o que já havia ficado definido em
Amesterdão175, o novo compromisso marca uma tentativa clara de anular a, até então, “sobre-
representação” dos pequenos Estados, considerada insustentável em virtude do próximo
173 Cf. Monar and Wessels, op. cit., 323. 174 Polónia 27; Roménia 14; República Checa e Hungria 12; Bulgária 10; Lituânia e Eslováquia 7; Chipre, Estónia, Letónia e Eslovénia 4; Malta 3. 175 Relembre-se, a este propósito, o artigo 1 do Protocolo relativo às instituições na perspectiva do alargamento da União Europeia, que fazia depender a perda de um dos comissários por parte dos grandes Estados da sua compensação através da alteração da ponderação de votos no Conselho.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
alargamento. Todavia, como tivemos já ocasião de referir, a questão do equilíbrio de poder
entre Estados reveste-se de extrema delicadeza, na medida em que nos pratos da balança se
confrontam normalmente o interesse nacional e o interesse da UE como um todo. Por
conseguinte, se não for baseada num sistema racional e coerente, qualquer tentativa para
corrigir um provável desequilíbrio, poderá resultar num acentuar deste. Tal parece ser, aliás, o
que aconteceu na reforma avançada por Nice. De facto, numa tentativa de satisfazer os
interesses de determinados Estados-membros em detrimento do interesse geral, a nova
ponderação de votos foi efectivada ao “sabor das conveniências”, acabando por agravar
algumas das desproporcionalidades existentes176.
Ainda assim, esta nova ponderação de votos no Conselho não poderá ser desligada do
acordo alcançado quanto à nova votação por maioria qualificada. Saído de difíceis
negociações, o compromisso obtido longe de simplificar o sistema de decisão vem torná-lo
ainda mais complexo. Com efeito a partir de Janeiro de 2005, as novas disposições do
Tratado177 estabelecem que, enquanto a União for constituída por 15 Estados-membros, para
que uma proposta da Comissão seja adoptada pelo Conselho será necessário um mínimo de
169 votos em 237, isto é, uma percentagem de 71,3% dos votos. De referir que esta
percentagem será ajustada com cada nova adesão, de modo a que não exceda a percentagem
resultante da distribuição de votos estabelecida na Declaração relativa ao Alargamento.
Todavia, a este requisito somam-se ainda mais dois: de acordo com o que ditará o
reformulado artigo 205º, nº 2 TCE, os votos desta maioria qualificada deverão ser formados
por uma maioria de Estados-membros, se o Conselho decidir com base numa proposta da
Comissão, e por, pelo menos dois terços dos Estados-membros, em todos os outros casos; por
176 Considere-se, a título de exemplo, o caso de Espanha e da Alemanha. De acordo com a ponderação de votos em vigor, embora tenha mais do dobro da população, a Alemanha tem apenas mais 25% votos que a Espanha. Todavia, a nova ponderação, longe de corrigir esta desproporcionalidade, acentua-a ainda mais ao reduzir a diferença para apenas 7,4 %, ainda que a nova maioria qualificada introduza na ponderação o elemento populacional, que pesará obviamente a favor da Alemanha. Cf. Monar and Wessels, op. cit., 324. 177 Ver Protocolo relativo ao alargamento da União Europeia, artigo 3º, nº 1 e nº 2.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
sua vez, o nº 4 do referido artigo estabelece que quando uma decisão deva ser adoptada pelo
Conselho por maioria qualificada, um membro do Conselho pode pedir a confirmação de que
essa maioria representa pelo menos 62% do total da população da União Europeia.
Significa isto que, cumpridos os três requisitos, estamos, na verdade, perante um
cenário de “tripla maioria” (votos ponderados, número de Estados e população) que só muito
duvidosamente poderá contribuir para aumentar a eficácia do sistema de decisão. Igualmente
preocupante é o facto de a introdução do factor demográfico, favorecer a formação de
“minorias de bloqueio”, contribuindo desse modo para um aumento significativo do peso dos
grandes países178, com particular destaque para a Alemanha179 (o Estado mais populoso da
UE), que foi a clara vencedora da cimeira de Nice. Percebe-se, assim, que este país tenha
aceite, quase sem protesto, uma “sub-representação” na atribuição de votos no Conselho, uma
vez que tal desequilíbrio será largamente compensado pela sua força populacional. De facto,
se é certo que este novo elemento permitirá a uma combinação de três dos quatro grandes
(França, Alemanha, Itália e Reino Unido) travar a adopção da decisão, à Alemanha bastará o
apoio de outro Estado grande e de um dos pequenos (com excepção do Luxemburgo) para
bloquear a decisão. Já numa Europa alargada (a 27 membros), os votos dos quatro maiores
Estados serão necessários para travar uma decisão, ainda que a Alemanha permaneça numa
posição favorável dado que, juntamente com dois outros grandes, poderá impedir a adopção
da decisão com base na percentagem da população.
O novo sistema de votação por maioria qualificada - de uma complexidade assinalável
para uma Europa a Quinze - necessitará inevitavelmente de adaptações à medida que o
178 Contrariamente ao que acontece em relação aos Estados de maior dimensão, a introdução deste critério penaliza fortemente os pequenos e médios Estados que, para travar uma decisão precisam de reunir um grupo de pelo menos oito elementos, formando portanto, numa União a 15, uma “maioria de bloqueio”. 179 Como escreve A. Mendonça Pinto num artigo de opinião publicado no semanário Expresso, de 30 de Dezembro de 2000, tratou-se de “manter uma aparência ou ficção de igualdade entre os maiores, particularmente entre a França e Alemanha, ou melhor, de disfarçar uma desigualdade a favor da Alemanha que já tinha começado a emergir (...) que agora ficou consagrada no Tratado de Nice e que se tornará mais evidente quando a Alemanha, depois do alargamento, passar a ser o eixo geográfico da UE”.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
número de membros for aumentando180. Não obstante, é de salientar como positivo o facto de
as novas disposições não permitirem uma divisão entre os membros actuais e os novos
membros, uma vez que nenhum dos grupos poderia, por si só, estabelecer uma maioria
qualificada. Não ficou, todavia, acautelada uma tensão igualmente problemática, que consiste
no “confronto” entre Este e Oeste, contando cada uma das “coligações” com o necessário
número de votos para bloquear uma decisão não desejada.
Em suma, embora não altere radicalmente a percentagem de votos a considerar ou as
regras em vigor, a nova vmq não vai de encontro à necessidade de aumentar a eficácia nas
tomadas de decisão comunitária. Na verdade, a introdução dos dois novos elementos (maioria,
ou dois terços, dos membros e critério populacional) tornarão as decisões no Conselho mais
complexas e, talvez mais preocupante, menos transparentes. O que ficou plasmado no novo
compromisso foi o resultado de uma espécie de “troca de favores” onde os interesses
nacionais ocuparam sempre o primeiro lugar, relegando para segundo plano o indispensável
aumento da legitimidade, representatividade e transparência do processo de tomada de
decisão. Sem embargo, as consequências práticas de tão intricado sistema dependerão, em
larga medida, da composição das maiorias numa Europa alargada, havendo quem considere
que as preferências políticas terão maior peso na formação de alianças do que a questão do
tamanho181.
Igualmente difícil de explicar é o critério que presidiu à nova distribuição de lugares 180 As percentagens já previstas nas declarações e protocolos relativos ao alargamento revelam alguma confusão dos líderes europeus que adoptaram em cada um dos documentos valores contraditórios. Como sublinha Monar (2001, 325) na Declaração relativa ao alargamento da UE ficou estabelecido que após o alargamento aos doze países candidatos, para formar uma maioria qualificada seriam necessários 258 votos de um total de 345, correspondendo a uma percentagem de 74,78%. Esta disposição está, todavia, em contradição com a Declaração respeitante ao limiar da maioria qualificada que aponta 91 como o número mínimo de votos para formar uma minoria de bloqueio depois da adesão dos doze países candidatos. Ora tal significaria uma maioria qualificada de, no mínimo, 255 votos em vez de 258, sendo equivalente a uma percentagem de 71,26%. Para aumentar ainda mais a confusão a mesma Declaração respeitante ao limiar da maioria qualificada determina que após o alargamento a percentagem de votos que constitui uma maioria qualificada será menor do que a actual e que aumentará até atingir um máximo de 73,4%, o que significa que a percentagem da maioria qualificada terá que ser revista a cada vaga do novo alargamento. Também digno de nota é o facto de este número (73,4%) ser simultaneamente mais alto que o actual e mais baixo do que resultaria do mínimo de 258 votos em 345 exigido na Declaração relativa ao alargamento. 181 Cf. Bond and Feus, op. cit., 45.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
no Parlamento Europeu182. Começando por ignorar o número máximo de 700 parlamentares
acordado em Amesterdão183, as novas disposições de Nice (com efeito a partir de 01 de
Janeiro de 2004 - artigo 190º, nº 3 TEC) prevêem para esta instituição um número máximo de
732 membros. Ora, considerando que o anterior número havia sido fixado precisamente com o
intuito de estabelecer um limite que garantisse o eficaz funcionamento da assembleia
europeia, dificilmente se compreende como é que a sua dilatação poderá contribuir para servir
o mesmo objectivo. Por sua vez, também a atribuição de lugares, propriamente dita, suscita
muitas dúvidas. Neste campo, os vencedores indiscutíveis foram a Alemanha e o pequeno
Luxemburgo, únicos dois países que viram o seu número de lugares inalterado apesar do
alargamento. Assim, a partir de Janeiro de 2004, passará a ser a seguinte a distribuição
parlamentar (artigo 190º nº 1 TEC): Alemanha 99; França, Itália e Reino Unido 72; Espanha
50; Holanda 25; Bélgica, Grécia e Portugal 22; Suécia 18; Áustria 17; Dinamarca e Finlândia
13; Irlanda 12; Luxemburgo 6. É, contudo, de notar que nas próximas eleições parlamentares
de 2004 estes números poderão ser inflacionados, uma vez que o Tratado estabelece ainda
que, nessa altura e independentemente do número de novos Estados-membros, o número de
lugares no PE deverá ser o mais próximo possível do limite fixado de 732 lugares184.
Também algo surpreendente foi a distribuição de lugares entre os futuros membros da
União, que ficou muito aquém da pretendida proporcionalidade em função da população de
cada país, sobretudo quando comparada com o número de lugares atribuídos aos actuais
membros da UE185. Segundo o estipulado na Declaração relativa ao alargamento da União
182 A este propósito Monar (2001, 325) escreve: “[T]he changes to size and composition of the Parliament are among the most puzzling of the Nice negotiations”. 183 Com as alterações introduzidas pelo Tratado de Amesterdão no artigo 189º TCE podia ler-se: “[O] número de deputados do Parlamento Europeu não será superior a setecentos”. 184 Sublinhe-se que mesmo com a entrada dos dez novos Estados, prevista para 01 de Maio de 2004, o número de parlamentares perfará apenas 681 lugares, não atingindo portanto o limite fixado. 185 Como nota igualmente Monar (2001, 326) países como a República Checa e a Hungria, cuja população é superior à da Bélgica e de Portugal, obtiveram, todavia, um número de lugares inferior a estes Estados. Por sua vez, a Estónia, com uma população três vezes superior ao Luxemburgo, viu ser-lhe atribuído o mesmo número de lugares. Idêntica situação atinge o Chipre que, quando comparado com o Luxemburgo, aparece claramente sub-representado.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
Europeia aos países candidatos serão atribuídos os seguintes lugares no PE: Polónia 50;
Roménia 33; República Checa e Hungria 20; Bulgária 17; Eslováquia 13; Lituânia 12;
Letónia 8; Eslovénia, Estónia e Chipre 6; Malta 5. Parece pois, assim, que a nova fixação de
lugares no Parlamento Europeu, longe de inverter a desproporcionalidade representativa desta
instituição, contribuiu, em alguns casos, para um acentuar significativo desta. Ora, se um
défice de representatividade é por si só suficientemente grave, parece-nos que deverá merecer
especial atenção quando verificado na instituição que é, por excelência, a representante dos
interesses dos cidadãos.
Ao que se passou com a distribuição de lugares no PE, podemos, todavia, opor o
exemplo do Comité Económico e Social. Precisamente com o intuito de garantir que os seus
membros sejam mais representativos dos vários grupos sociais e económicos que compõem a
sociedade civil, o Tratado procedeu a uma ligeira alteração das regras que regem a
composição deste órgão186. Simultaneamente, visando manter a eficácia da sua actuação, foi
estabelecido um limite máximo de 350 depois do alargamento, mantendo-se, até lá, o número
actual. Na mesma linha vão, aliás, as alterações relativas ao Comité das Regiões. Tendo em
vista aumentar a sua legitimidade democrática a nova redacção do artigo 263º TCE faz
depender a participação neste órgão de uma das duas seguintes condições: ser titular de um
mandato eleitoral a nível regional ou local; ser politicamente responsável perante uma
assembleia eleita. Também na questão do número de membros a semelhança se mantém, já
que este número deverá manter-se inalterado até ao alargamento, não podendo, depois deste
concretizado, exceder os 350 lugares.
b) reformas institucionais independentes do alargamento
Para além destas medidas, estritamente relacionadas com o alargamento, Nice 186 A qualificação dos membros que compõem o Comité Económico e Social foi modificada, determinando-se agora, nos termos do artigo 257º TCE, que este órgão “é composto por representantes das diferentes componentes de carácter económico e social da sociedade civil organizada”.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
procedeu ainda a outras reformas no campo institucional, destacando-se a revisão do sistema
judicial187 e as novas disposições relativas à tomada de decisão.
Com o intuito de reformular a divisão de competências entre o Tribunal de Justiça e o
Tribunal de Primeira Instância os líderes europeus procederam a uma minuciosa e detalhada
reforma do sistema judicial188. O resultado ficou, no essencial, consagrado no Estatuto do
Tribunal de Justiça (alterável pelo Conselho), conquanto as disposições do Tratado
contenham também consideráveis alterações. Assim, de acordo com as novas regras, o
Tribunal de Justiça terá um juiz por Estado-membro e reúne em câmaras (três ou cinco juízes)
ou numa grande Câmara (onze juízes), se tal for solicitado por um Estado-membro ou por
uma instituição comunitária que seja parte na respectiva instância. As anteriores reuniões
plenárias deixam, portanto, de ser a regra, ainda que possam ter lugar nas situações em que o
Tribunal considere de excepcional importância ou sempre que para tal lhe seja apresentado
um requerimento em aplicação das disposições do Tratado relativas à intervenção do poder
judicial no afastamento de um membro das instituições comunitárias. O número de
advogados-gerais é, por sua vez, fixado em oito.
Quanto ao Tribunal de Primeira Instância será composto, no mínimo, por um juiz por
Estado-membro189, escolhidos pela sua independência e habilitações para o cargo a ocupar.
Em geral, as novas disposições aumentam a importância e a responsabilidade deste Tribunal
(artigo 225º TCE), cujas decisões só podem ser objecto de recurso para o Tribunal de Justiça
em questões de direito (incompetência ou violação do direito comunitário pelo Tribunal de
Primeira Instância e irregularidades processuais que prejudiquem os interesses do recorrente).
Uma das grandes novidades é a possibilidade conferida ao Conselho de, agindo por
187 Para uma análise detalhada desta reforma ver, por exemplo, Kim Feus. 2001. “Substantive Amendments: The Treaty of Nice explained”. In The Treaty of Nice explained, ed. Bond and Feus. London: The Federal Trust, 38-39. 188 Estas reformas, que representam as maiores alterações institucionais de Nice, foram, na sua maioria, delineadas à margem da CIG por um grupo de peritos em direito, designado “Amigos da Presidência”. 189 O Estatuto do Tribunal de Justiça (artigo 48º) fixa em 15 este número.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
unanimidade mediante proposta da Comissão e após consulta ao PE e ao Tribunal de Justiça,
ou a pedido deste último e após consulta à Comissão e ao PE, criar painéis judiciais (artigo
225ºA TCE) encarregados de ouvir e determinar em primeira instância certas categorias de
acção ou de procedimentos em matérias específicas. Por sua vez, as decisões destes painéis
podem ser objecto de recurso para o Tribunal de Primeira Instância, ainda que limitado às
questões de direito (a menos que na decisão que cria o painel esteja também previsto o
recurso nas questões de facto).
Nesta reforma do sistema judicial ressalta ainda a extensão dos direitos do PE como
litigante, que aparece agora em igualdade de circunstâncias com o Conselho, a Comissão e os
Estados-membros. Para além disto, é também alargada ao PE a possibilidade, até então
reservada ao Conselho, Comissão e Estados-membros, de obter a opinião do Tribunal de
Justiça sobre a compatibilidade com a lei comunitária de um acordo internacional a realizar
entre a Comunidade e um país terceiro.
Como se pode concluir pelas alterações aqui mencionadas esta foi, talvez, a “grande
reforma” de Nice, estendendo-se as suas repercussões para lá do sistema institucional
propriamente dito, para se reflectirem também numa transformação significativa do sistema
legal da União.
Para além da reforma judicial, Nice introduziu ainda algumas correcções nas
disposições concernentes ao Tribunal de Contas; numa tentativa de lhe conferir maior eficácia
na supervisão do orçamento comunitário, o Tratado prevê que, à habitual avaliação global,
esta instituição possa somar avaliações específicas sobre cada domínio importante da
actividade da UE (artigo 248º, nº 1 TCE). Para além disto, a Declaração respeitante ao
Tribunal de Contas convida à adopção de medidas que permitam melhorar a cooperação entre
esta instituição e as instituições nacionais de fiscalização, nomeadamente através da criação
de um comité de contacto.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
Na sequência do que já vinha sendo praticado em anteriores revisões dos tratados, a
agenda da CIG 2000 contemplou a possibilidade de se avançar um pouco mais na
generalização da votação por maioria qualificada. Ainda assim, das cerca de 70 matérias
sujeitas à regra da unanimidade, somente 45 foram consideradas para alteração. O
compromisso final resultou no alargamento da vmq a 35 novas áreas, sendo que destas apenas
22 veriam a modalidade de votação alterada aquando da entrada em vigor do Tratado
(remetendo-se as restantes alterações para uma data posterior ou após uma decisão do
Conselho caso a caso).
Apesar da evidente precaução dos líderes europeus, num domínio cuja alteração é
considerada por alguns como um passo “sem retorno” no caminho da supranacionalidade,
foram acordados em Nice compromissos importantes. De facto, algumas das áreas sujeitas
(agora) à maioria qualificada revestem-se de particular importância para o progresso do
projecto comunitário. Assim, no domínio interno, a vmq passa agora a aplicar-se, entre outras,
às medidas de incentivo à não discriminação (artigo 13º, nº 2 TCE); às disposições destinadas
a facilitar o direito de liberdade de circulação e de residência (artigo 18º, nº 2 TCE); à
cooperação judicial em matérias civis (artigo 65º, nº 5 TCE); às medidas com vista à rápida
introdução do euro nos novos Estados-membros (artigo 123º, nº 4 TCE); à definição das
tarefas, objectivos e organização dos fundos estruturais (ainda que somente a partir de Janeiro
de 2007 e sujeito à aprovação das perspectivas financeiras plurianuais para 2007-2013 –
artigo 161º TCE); à nomeação da Comissão, do Tribunal de Contas, do CES e do Comité das
Regiões (artigos 214º, nº 2; 247º, nº 3; 259º, nº 1 e 263º TCE, respectivamente); à decisão
sobre o estatuto e condições gerais de exercício das funções dos membros do PE (artigo 190º,
nº 5 TCE); à adopção das regras de actuação do Tribunal de Justiça, do Tribunal de Primeira
Instância e do Tribunal de Contas (artigos 223º, 224º e 248º, nº 4 TCE, respectivamente).
Igualmente assinalável é a sua extensão a matérias do domínio externo, onde se contam, por
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
exemplo, a nomeação do secretário-geral do Conselho (artigo 207º, nº 2 TEC) e de
representantes especiais para a PESC (artigo 23º, nº 2 TUE); a celebração de acordos
internacionais para dar execução a uma acção comum ou a uma posição comum (artigo 24º, nº
3 TUE); a decisão sobre a posição da Comunidade a nível internacional no que respeita às
questões com especial interesse para a UEM (artigo 111º, nº 4 TCE); a negociação e
celebração de acordos nos domínios do comércio de serviços e dos aspectos comerciais da
propriedade intelectual, ainda que sujeito a limitações (artigo 133º, nº 5 TCE); a cooperação
económica, financeira e técnica com os países terceiros (artigo 181ºA nº 2 TEC)190.
Apesar do considerável número de matérias que coloca sobre a regra da votação por
maioria qualificada, Nice não deu todavia um salto drástico neste domínio. Na verdade, nas
áreas consideradas particularmente sensíveis191, isto é, aquelas que interferem mais
directamente com o poder individual de cada Estado-membro, a unanimidade prevaleceu, ao
mesmo tempo que, em algumas das novas matérias, a adopção da vmq ficou condicionada por
substanciais excepções192. Daqui resulta, que embora continuando a tendência iniciada pelos
seus mais recentes “predecessores”, o novo Tratado não avançou, todavia, o suficiente para
fazer da votação por maioria qualificada a regra. Ainda assim, como nota Monar (2001, 329)
há que assinalar uma mudança qualitativa, na medida em este tipo de votação tornou-se agora
o procedimento predominante no que respeita às nomeações e aprovação dos estatutos das
instituições comunitárias e conheceu uma extensão significativa em algumas das áreas da
representação externa da União (sector tradicionalmente sujeito à unanimidade).
190 Cf. Monar (2001, 327-328). 191 É o caso, por exemplo, da reforma dos tratados, da adopção de estratégias comuns no domínio da PESC, da harmonização fiscal ou da cultura. 192 Assim, por exemplo, no domínio da liberdade de movimento e de residência a vmq não se aplica às disposições sobre passaportes, bilhetes de identidade, autorização de residência e segurança ou protecção social. Também no domínio da cooperação judicial em matérias civis continuam sujeitas à regra da unanimidade as disposições relativas às leis sobre a família. Por sua vez, a maioria qualificada só se aplicará às disposições que respeitam à política de asilo se as regras comuns e os princípios básicos tiverem sido adoptados por unanimidade. Igualmente sujeita a excepções estão as medidas respeitantes à introdução do euro nos novos Estados-membros, uma vez que a unanimidade se continua a manter na fixação da taxa de conversão (Monar and Wessels 2001, 328).
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
Se nas modalidades de votação a avaliação é, portanto, positiva, o mesmo não parece
poder dizer-se do procedimento de co-decisão, domínio em que as mudanças foram pouco
significativas. Depois de rejeitarem a proposta do PE, que estabelecia uma ligação automática
entre o alargamento da votação por maioria qualificada a novas matérias e a co-decisão, os
líderes europeus acordaram apenas numa limitadíssima extensão desta última, que passa
também a aplicar-se: às medidas de incentivo à não discriminação (artigo 13º, nº 2 TCE); às
medidas relativas à liberdade de circulação e de residência, salvo as excepções previstas
(artigo 18º, nº 2 TCE); à cooperação judicial em matérias civis (artigo 65º TEC); às medidas
específicas de apoio às acções no campo da política industrial (artigo 157º TEC); à adopção
de acções específicas com vista à coesão económica e social, com excepção dos fundos
estruturais (artigo 159º TCE); aos regulamentos dos partidos políticos a nível europeu e às
regras relativas ao seu funcionamento (artigo 191º TCE). O Tratado de Nice prevê ainda a
possibilidade de uma antecipação da data prevista por Amesterdão para a aplicação da co-
decisão a algumas das matérias comunitarizadas do terceiro pilar (artigo 67º TCE) e a certas
vertentes da política social (artigo 137º TCE), desde que o Conselho assim o decida por
unanimidade. Para além disto, Nice prevê igualmente um alargamento das matérias sujeitas a
parecer do Parlamento Europeu, que passa a aplicar-se à verificação da existência de um risco
manifesto de violação grave dos direitos fundamentais por parte dos Estados-membros (artigo
7º TUE); à instituição de uma “cooperação reforçada” nas áreas do primeiro pilar sujeitas à
co-decisão (artigo 11º, nº 2 TCE); e, por último, à reforma dos fundos estruturais e de coesão
(somente a partir de 01 de Janeiro de 2007 - artigo 161º TCE).
Avançou-se também no que respeita aos partidos políticos a nível europeu, uma vez
que este Tratado consagra a base jurídica necessária à definição do seu estatuto e das regras
relativas ao seu funcionamento. De acordo com as novas disposições, compete ao Conselho,
no âmbito da co-decisão, a decisão nesta matéria (artigo 191º ¶ 2, TCE). Apesar da
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
importância que medidas facilitadoras da criação de verdadeiros partidos europeus poderiam
ter para a formação de uma “consciência política europeia”, os líderes europeus mostraram
alguma relutância, deixando claro que o disposto no artigo 191º TCE “não implica nenhuma
transferência de competência para a Comunidade Europeia nem afecta a aplicação das normas
constitucionais nacionais”193.
Embora tenhamos assistido a um aumento dos poderes legislativos do Parlamento
Europeu, a sua afirmação como verdadeiro co-legislador ficou, todavia, muito aquém do
desejável, perdendo-se, uma oportunidade soberana para reafirmar a vontade, que parecia
estar latente em Maastricht e Amesterdão, de alicerçar a construção da nova União Europeia
numa verdadeira democracia parlamentar. Carecendo o projecto comunitário de legitimidade
democrática, a opção escolhida por Nice parece, pois, desviar-se do caminho acertado.
3.1.2 Um reforço tímido da Europa dos cidadãos194
No domínio da cidadania poucas foram as alterações introduzidas pelo Tratado de
Nice. É, no entanto, de destacar a nova redacção do ponto 2 do artigo 18º TCE que confere à
Comunidade maior margem de actuação no que respeita à concretização da plena liberdade de
circulação e residência dos cidadãos da União195. Se, de acordo com as anteriores disposições,
o Conselho podia apenas tomar medidas para facilitar estes direitos, a partir de agora poderá
adoptar (através da co-decisão) tais medidas, mesmo nos casos em que este Tratado não tenha
193 Declaração respeitante ao artigo 191º do Tratado que institui a Comunidade Europeia. 194 Neste domínio mereceria também destaque a elaboração da Carta dos Direitos Fundamentais da UE, mas dada a importância de tal passo para o “processo de constitucionalização” em curso, abordaremos as possíveis implicações desta Carta no ponto que dedicaremos a esta temática. 195 Com as alterações introduzidas por Amesterdão no ponto 2 do artigo 18º TCE podia ler-se: “[O] Conselho pode adoptar disposições destinadas a facilitar o exercício dos direitos a que se refere o número anterior; salvo disposição em contrário do presente Tratado, o Conselho delibera nos termos do artigo 251º. O Conselho delibera por unanimidade em todo o processo previsto neste artigo”. Por sua vez, com a redacção que lhe foi dada por Nice, o texto do artigo passa a ser o seguinte: “[S]e, para atingir esse objectivo, se revelar necessária uma acção da Comunidade sem que o presente Tratado tenha previsto poderes de acção para o efeito, o Conselho pode adoptar disposições destinadas a facilitar o exercício dos direitos a que se refere o nº 1. O Conselho delibera nos termos do artigo 251º”.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
previsto poderes de acção para o efeito. Ficam, todavia, explicitamente excluídas desta
medida as disposições relativas a passaportes, bilhetes de identidade, autorizações de
residência, segurança social e protecção social (artigo 18º, nº 3 TCE).
Por outro lado, e reagindo a um perigo de violação das liberdades fundamentais na
Áustria196, os líderes europeus aproveitaram a oportunidade para reforçar as disposições
destinadas a garantir o cumprimento dos direitos fundamentais por parte de todos os Estados-
membros. Com tal objectivo, foi introduzido um novo ponto no artigo 7º do TUE197 que
procura somar à punição, o princípio de prevenção. Tratou-se, na verdade, de “aprender com
os erros cometidos”, uma vez que a situação na Áustria pôs “a nu” o facto do referido artigo
7º não oferecer base legal para a actuação da Comunidade nas situações em que a violação
dos direitos e liberdades fundamentais fosse previsível, mas não tivesse ainda ocorrido. Por
esta razão, as medidas a adoptar no caso austríaco foram decididas pelos Estados-membros, e
não pelo Conselho enquanto instituição, facto que suscitou uma acesa controvérsia. Para
evitar idênticos constrangimentos no futuro, o Tratado de Nice atribui ao Conselho a
competência para verificar a existência de um risco manifesto de violação dos princípios
fundamentais enunciados no nº 1 do artigo 6º TUE198 e para lhe dirigir as recomendações
apropriadas. Cabe ainda ao Conselho a verificação regular da validade dos motivos que
196 Tratou-se, como é sabido, da possível participação na coligação governamental do líder do partido de extrema direita Jörg Haider que, por ser um defensor de ideias consideradas xenófobas e discriminatórias, era visto pela comunidade internacional como uma ameaça à democracia e aos direitos humanos. Como medida de precaução a presidência portuguesa da União aprovou, a 31 de Janeiro de 2000, uma declaração em nome dos 14 Estados-membros que previa o corte de relações bilaterais com a Áustria se tal situação se viesse a verificar, tendo sido acordadas também uma série de outras medidas punitivas. 197 O artigo 7º do TUE determinava o procedimento a adoptar em caso de violação dos direitos fundamentais por parte de um Estado-membro da União Europeia. Com a introdução do novo ponto este artigo passa a aplicar-se também em caso de “risco manifesto” de violação: “[S]ob proposta fundamentada de um terço dos Estados-membros, do Parlamento Europeu ou da Comissão, o Conselho, deliberando por maioria qualificada de quatro quintos dos seus membros, e após parecer favorável do Parlamento Europeu, pode verificar a existência de um risco manifesto de violação grave de algum dos princípios enunciados no nº 1 do artigo 6º por parte de um Estado-Membro e dirigir-lhe recomendações apropriadas. Antes de proceder a essa constatação, o Conselho deve ouvir o Estado-Membro em questão e pode, deliberando segundo o mesmo processo, pedir a personalidades independentes que lhe apresentem num prazo razoável um relatório sobre a situação nesse Estado-Membro. O Conselho verificará regularmente se continuam válidos os motivos que conduziram a essa constatação”. 198 Princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos do Homem e pelas liberdades fundamentais, bem como do Estado de Direito.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
conduziram à constatação da violação. No caso de o Estado-membro em causa não conseguir
reparar a situação será então desencadeado o procedimento, já anteriormente previsto pelo
artigo 7º (agora ponto nº 2 e seguintes), destinado a verificar a existência de uma violação
grave e persistente dos supracitados princípios e à aplicação das respectivas sanções (este
procedimento manteve-se inalterado pelas disposições de Nice).
3.1.3 Um passo limitado para a Europa social
Para além da tentativa de simplificação de algumas das disposições sociais, visando,
sobretudo, uma melhor compreensão dos artigos do TCE, pouco se avançou neste domínio.
Apesar da posição favorável de alguns Estados à adopção da regra da maioria qualificada
neste domínio, a unanimidade acabaria por se manter nas áreas mais sensíveis199, ainda que
seja prevista a possibilidade de o Conselho decidir, por unanimidade, sujeitar algumas destas
matérias ao procedimento de co-decisão e à vmq (artigo 137º, nº 2 TCE). A porta entreaberta
por esta última possibilidade é, todavia, quase totalmente encerrada pelo nº 4 do mesmo artigo
que determina que “[A]s disposições adoptadas ao abrigo do presente artigo: não prejudicam a
faculdade de os Estados-Membros definirem os princípios fundamentais dos seus sistemas de
segurança social nem devem afectar substancialmente o equilíbrio financeiro desses sistemas
(...)”.
Assim, a única verdadeira inovação de Nice, nesta área, é a criação pelo Conselho, e
após consulta ao PE, de um Comité de Protecção Social (artigo 144º TCE) que, tendo carácter
consultivo, ficará encarregue de promover a cooperação em matéria de protecção social entre
os Estados-membros, juntamente com a Comissão. Composto por dois membros nomeados
por esta instituição e outros dois nomeados por cada um dos Estados-membros, compete-lhe 199 Segurança e protecção social, protecção dos trabalhadores, representação e defesa colectiva dos interesses dos trabalhadores e empregadores e condições de emprego para nacionais de países terceiros a residir no território da Comunidade.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
nomeadamente: acompanhar a situação social nos Estados-membros; promover a troca de
informações e experiências entre os Estados-membros e com a Comissão; e preparar
relatórios, formular pareceres e desenvolver outras actividades nos domínios da sua
competência, quer a pedido do Conselho ou da Comissão, quer por sua própria iniciativa. No
cumprimento do seu mandato, cabe-lhe também estabelecer os necessários contactos com os
parceiros sociais.
3.1.4 Uma maior operacionalização da “cooperação reforçada”
Apesar de à data da conferência intergovernamental de 2000 não ter ainda sido
oficialmente instituída uma “cooperação reforçada”200, muitas eram as dúvidas quanto à real
operacionalidade deste instrumento, sobretudo em virtude da possibilidade de veto nacional
prevista por Amesterdão201. Por esta razão, a reforma do recém-criado mecanismo foi
introduzida na agenda da CIG, ficando o acordo final plasmado no TUE e no TCE através da
introdução de um número considerável de novas regras e da reformulação de algumas das
antigas.
Sem surpresas, pode dizer-se, entre as inovações mais importantes conta-se a adopção
da votação por maioria qualificada, mesmo no caso de a decisão ter sido submetida ao
Conselho Europeu, o que se traduz, na prática, na eliminação do chamado “travão de
emergência”, isto é, da possibilidade de veto nacional (artigos 11º, nº 2 TCE e 40ºA nº 2
TUE). Igualmente digna de nota, é a extensão da “cooperação reforçada” às disposições da
PESC, ainda que limitada às acções comuns e às posições comuns que não tenham
200 Se excluirmos o Acordo de Schengen, por muitos considerado como o primeiro exemplo da instituição de uma “cooperação reforçada”. 201 Relembre-se que o artigo 11º, nº 2 do TCE previa a possibilidade de não realização da votação para a autorização de uma cooperação reforçada no caso de um Estado-membro “declarar que, por importantes e expressas razões de política nacional, tenciona opor-se à concessão de uma autorização por maioria qualificada (...)”. Igual possibilidade é conferida pelo artigo 40º, nº 1 do TUE, desta feita em relação às matérias do terceiro pilar.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
implicações em matéria militar ou de defesa (artigos 27ºA – 27ºE TUE). Foi também fixado
em oito o número mínimo de Estados necessários à instauração de uma “cooperação
reforçada” significando, portanto, que, após o alargamento, este mecanismo poderá ser
utilizado por um grupo constituído por menos de metade dos membros da União (ao contrário
do que era previsto pelo Tratado Amesterdão)202.
Conscientes de que as inovações introduzidas por Nice facilitam a utilização do
mecanismo instituído por Amesterdão, os negociadores daquele Tratado procuraram
igualmente contrariar os riscos de fragmentação política que este mecanismo encerra. Neste
sentido, sujeitam a instituição de uma “cooperação reforçada” a novas condições: reforçar o
processo de integração; permanecer nos limites das competências da União ou da
Comunidade e não incidir nos domínios que são da competência exclusiva da Comunidade;
não prejudicar o mercado interno ou a coesão económica e social; não constituir uma restrição
nem uma descriminação ao comércio entre os Estados-membros e não provocar distorções de
concorrência entre eles (artigo 43º TCE, alíneas a), d), e) e f), respectivamente). Para além
disto, é também reforçada a sua utilização como “último recurso”, ideia que aparece agora
consagrada num artigo próprio (43ºA TUE), de acordo com o qual as “cooperações
reforçadas” só poderão ser iniciadas depois de se estabelecer no Conselho que os seus
objectivos não podem ser atingidos, num prazo razoável, através da aplicação das disposições
relevantes dos tratados. Ao Conselho e à Comissão cabe cooperar, para assegurar a
consistência das actividades desenvolvidas neste domínio, e a sua coerência com as políticas
da União e da Comunidade (artigo 45º TUE).
Em síntese, fazendo um balanço das alterações introduzidas pelo Tratado de Nice no
que respeita à “cooperação reforçada” conclui-se que se tratou, como já referimos, de uma
tentativa de contrabalançar uma maior operacionalidade deste instrumento com um reforço
202 De acordo com o artigo 43º, alínea d) do TUE uma “cooperação reforçada” deveria envolver “pelo menos a maioria dos Estados-membros”.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
das salvaguardas em relação aos seus riscos potenciais. Ainda assim, e malgrado a
redundância, diríamos que, no cômputo geral, o Tratado de Nice flexibilizou a “flexibilidade”.
3.1.5 Um resultado muito modesto no terceiro pilar
No domínio do terceiro pilar, o Tratado de Nice procedeu apenas a pequenos
rearranjos ou a alterações pontuais. De uma maneira geral, as emendas feitas aos artigos
obedecem ao objectivo geral de imprimir maior celeridade à criação da “área de liberdade,
segurança e justiça” prevista por Amesterdão. Assim, para facilitar os progressos neste
domínio, foi, como tivemos já ensejo de indicar, removida a possibilidade de veto nacional na
instituição de uma “cooperação reforçada” nas matérias deste pilar, que passa agora a estar
sujeita à supervisão do Tribunal de Justiça. Idêntico objectivo presidiu à instituição da
Eurojust (Unidade Europeia de Cooperação Judicial – artigos 29º e 31º TUE), que terá como
missão executar as tarefas definidas no Conselho Europeu de Tampere (Outubro de 1999).
Esta nova unidade, composta por magistrados e advogados nacionais, substituirá a Unidade
criada interinamente pelo secretariado do Conselho e dedicar-se-á a combater o crime
organizado, nomeadamente através da promoção da coordenação das autoridades judiciais
nacionais, do apoio às investigações criminais em casos de crimes internacionais e da maior
viabilização dos pedidos de extradição graças a uma cooperação reforçada entre a Eurojust e a
Rede Judicial Europeia.
Tratam-se, é imperioso reconhecê-lo, de passos modestos numa área de importância
extrema e que, como o comprovam os recentes acontecimentos na cena internacional203,
deveria receber uma atenção prioritária. A comunitarização total do que ainda resta do
terceiro pilar de Maastricht teria sido, indubitavelmente, o caminho indicado. Todavia, face à 203 Referimo-nos, obviamente, aos perigos que representa as novas formas de terrorismo internacional, e em particular o atentado terrorista que, a 11 de Setembro de 2001, fez “tremer” a América e o mundo, e pôs irremediavelmente em causa o conceito de segurança colectiva.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
evidente falta de vontade política e de consenso para tal passo, parece-nos que a via da
coordenação e da cooperação, reforçada em Nice, embora não sendo um “óptimo” poderá ser,
ainda assim, uma situação de second best.
3.2 A Identidade Externa da União: o Perpetuar do Abismo entre os Avanços de Jure e
os Avanços de Facto
Com o objectivo de conferir uma maior operacionalidade ao segundo pilar saído de
Maastricht, Nice continua a tentativa iniciada por Amesterdão para melhorar os
procedimentos e instrumentos ao serviço da Política Externa e de Segurança Comum. Não
obstante, como resultado da excessiva concentração dos negociadores do Tratado nas
reformas institucionais, o compromisso assumido neste domínio acabou por ser bastante
parco.
Uma das novidades é a possibilidade agora prevista de uma “cooperação reforçada” no
âmbito da PESC (artigo 27ºA – 27ºE TUE), sempre com a condição de salvaguardar os
valores e servir os interesses da União, como um todo. Não obstante, o tratado limita
expressamente a sua incidência à implementação de uma acção comum ou posição comum, ao
mesmo tempo que excluiu a sua aplicação às matérias com implicações militares ou de
defesa204 (artigo 27ºB TUE). Por outro lado, se no primeiro e segundo pilares o veto nacional
foi eliminado, o mesmo não aconteceu em relação à PESC onde o “travão de emergência”
continua a poder ser accionado por qualquer um dos Estados-membros (artigo 27ºC TUE). No
que respeita à celebração de acordos internacionais no domínio da PESC (artigo 24º TUE)
deixa de ser exigida a unanimidade para que o Conselho possa deliberar, a menos que tais
204 De referir que em virtude da extensão deste mecanismo ao segundo pilar e para evitar confusões quanto ao seu âmbito de aplicação (que como sabemos não inclui matérias com implicações militares ou de defesa) é substituída no nº 4 do artigo 17º TUE a anterior expressão “cooperação reforçada” por “cooperação mais estreita”, procurando-se assim distinguir o instrumento agora colocado à disposição dos Estados na área da PESC de outro tipo de cooperação que poderá estabelecida a nível bilateral entre os membros da União.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
acordos incidam sobre uma matéria em relação à qual é exigida unanimidade para a adopção
das decisões internas. São também alargadas as funções e responsabilidades do Comité
Político, agora designado Comité Político e de Segurança (CPS), que passa a exercer, sob
responsabilidade do Conselho, o controlo político e a direcção estratégica das operações de
gestão de crises, podendo mesmo, se para tal for autorizado por aquela instituição, tomar as
decisões relevantes no que respeita a uma operação específica (artigo 25º TUE). Outra
modificação importante diz respeito à figura do representante especial, com competência nas
questões políticas específicas, cuja nomeação pelo Conselho deixa de estar sujeita à regra da
unanimidade (artigo 23º, nº 2 TUE).
Finalmente, ao contrário do que acontecia com Amesterdão, assiste-se agora a uma
quase total ausência de referência à União da Europa Ocidental. De facto, a gradual
transferência das tarefas desta organização para a União Europeia, traduziu-se num “apagar”
no tratado das passagens que lhe eram dedicadas205. Por sua vez, no domínio da defesa não
foram contempladas pelos legisladores quaisquer inovações, perdendo-se assim uma
oportunidade importante para consagrar de jure os consideráveis avanços já concretizados na
prática. De facto, de acordo com as decisões do Conselho Europeu de Colónia, de 3 e 4 de
Junho de 1999, a União Europeia deveria tornar-se rapidamente apta a assumir as suas
responsabilidades no domínio da prevenção de conflitos e gestão de crises – as chamadas
missões de Petersberg (tal como previsto no artigo 17º, nº 2 TUE). Com este objectivo, foi
também acordado que a União deveria estabelecer uma capacidade autónoma para tomar
decisões e mesmo conduzir operações militares, nos conflitos em que a Organização do
Tratado do Atlântico Norte (NATO) não estivesse envolvida.
Por sua vez, no Conselho Europeu de Helsínquia, que teve lugar a 10 e 11 de
205 A única referência à União da Europa Ocidental que se mantém com Nice resulta da possibilidade contemplada neste Tratado de dois ou mais Estados-membros estabelecerem entre si uma cooperação mais estreita “a nível bilateral, no âmbito da UEO e da NATO, na medida que essa cooperação não contrarie nem dificulte a cooperação prevista no presente Título [PESC]” (artigo 17º, nº 4 TUE).
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
Dezembro do mesmo ano, foi ainda decidido que a UE deveria melhorar a eficácia dos seus
recursos na gestão de crises e a rapidez da sua intervenção. Com este objectivo, foi
estabelecido o chamado headline goal de Helsínquia que consistia na criação de uma Força
Europeia de Reacção Rápida (FERR): em regime de cooperação voluntária nas operações
lideradas pela UE, os Estados-membros deveriam ser capazes de, até 2003, pôr em acção,
num prazo de 60 dias, e manter pelo menos durante um ano, um grupo de 60 000 militares
capazes de levar a cabo qualquer uma das tarefas incluídas nas missões de Petersberg. Esta
força deveria ser também totalmente auto-suficiente em termos militares (incluindo
capacidade de comando, controlo e informação, logística e outros apoios adicionais,
nomeadamente reforço aéreo e naval).
Para facilitar o cumprimento das metas traçadas, foi acordada no âmbito do Conselho
a criação de órgãos e estruturas políticas e militares permanentes que permitam à União
“assegurar a necessária orientação política e direcção estratégica a essas operações,
respeitando ao mesmo tempo o quadro institucional único”206. Dada a necessidade de uma
preparação cuidada de estruturas com tão importantes responsabilidades, ficou também
decidido - como medida provisória - criar no âmbito do Conselho, a partir de Março de 2000,
os seguintes orgãos: um comité político e de segurança provisório, a nível de altos
funcionários/embaixadores, encarregado de dar seguimento - sob a direcção do Comité
Político (previsto por Amesterdão) - às conclusões do Conselho Europeu de Helsínquia,
preparando recomendações sobre o funcionamento futuro da política europeia comum de
segurança e defesa e resolvendo as questões pontuais relacionadas com a PESC, em contacto
estreito com o secretário geral/Alto-representante; um órgão provisório composto por
representantes militares dos estados-maiores dos Estados-membros aptos a fornecer os
conselhos militares solicitados pelo comité político e de segurança provisório; por último, o
206 Cf. União Europeia, Presidência. 1999. “Conclusões do Conselho Europeu de Helsínquia”, 6.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
reforço do secretariado-geral do Conselho por peritos militares destacados pelos Estados-
membros para apoiar nos trabalhos relativos à Política Europeia Comum de Segurança e
Defesa (PECSD)207 e formar o núcleo do futuro Quadro de Pessoal Militar. Seria ainda
reafirmado o papel primordial do secretário-geral do Conselho, que exerce também as funções
de Alto-representante para a PESC, cabendo-lhe fornecer os necessários estímulos ao
aumento da eficácia e visibilidade da PESC e da PECSD. Neste sentido, deverá contribuir,
nos termos do Tratado da União Europeia, para a formulação, elaboração e execução das
decisões políticas.
Finalmente, os chefes de Estado e de governo debruçaram-se sobre os aspectos não
militares da gestão de crises pela UE. Assim, com o objectivo de reforçar e melhorar a
coordenação dos instrumentos não-militares, nacionais e colectivos, de resposta a crises,
decidiu-se pela oportunidade de elaborar um Plano de Acção onde fossem apresentados os
objectivos da União e detalhadas as acções específicas e os passos a dar para desenvolver uma
capacidade de reacção rápida de gestão civil de crises, nomeadamente através do
desenvolvimento de uma força de policiamento civil e da criação de mecanismos de
financiamento rápido, como, por exemplo, um Fundo de Reacção Rápida da Comissão208.
Embora algumas das inovações previstas pelos dois conselhos europeus, acima
mencionados, permanecessem ainda no papel, à data da cimeira de Nice, o Tratado de Nice
não trouxe também reais progressos nesta matéria. Já as conclusões da presidência deixam
antever um provável queimar de etapas. Começando por confirmar os compromissos
anteriores assumidos, o Conselho Europeu de Nice reafirma a vontade de tornar a UE
rapidamente operacional em matéria de segurança e defesa209. A União deverá, assim, assumir
207 A sigla adoptada em relação a esta política varia com os textos comunitários aparecendo, não raramente, como PESD. 208 Ver, por exemplo, Anexo 2 ao Anexo IV: “Relatórios da Presidência”. In União Europeia, Presidência. 1999. “Conclusões do Conselho Europeu de Helsínquia”. 209 Na Declaração respeitante à Política Europeia de Segurança e Defesa, anexa ao Tratado de Nice, pode ler-se: “[D]e acordo com os textos aprovados pelo Conselho Europeu de Nice relativos à política europeia de
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
as funções de gestão de crises da UEO, tornando-se, para tal, indispensável o reforço das suas
capacidades neste sector, de forma a que esteja apta a intervir com, ou sem, recurso aos meios
da NATO.
Deste modo, como, aliás, já era previsto pelo Conselho Europeu de Helsínquia, é
acordada a substituição dos organismos militares e políticos provisórios, a funcionar desde
Março de 2000, por três novos orgãos permanentes que deverão ser criados rápida e
independentemente da ratificação do Tratado de Nice: um Comité Político e de Segurança
(CPS), um Comité Militar da União Europeia (CMUE) e o Estado-Maior da União Europeia
(EMUE)210.
O Comité Político e de Segurança Permanente, sediado em Bruxelas, será composto
por representantes nacionais, a nível de altos funcionários/embaixadores, e encarregar-se-á de
todos os aspectos da PESC, incluindo a PECSD, de acordo com as disposições do TUE e sem
prejuízo das competências da Comunidade. Na eventualidade de uma operação militar de
gestão de crises, cabe ao CPS delinear, sob a autoridade do Conselho, a direcção estratégica e
política da operação. O CPS fornecerá igualmente orientações ao CMUE.
Por sua vez, o Comité Militar da União Europeia será constituído por chefes do
Estado-Maior, na pessoa dos seus representantes militares, embora reúna ao nível dos chefes
de Estado-Maior sempre que necessário. Este Comité prestará aconselhamento militar e fará
recomendações ao CPS, exercendo também a direcção militar de todas as actividades
militares no âmbito da UE. Sempre que estejam em discussão decisões com implicações no
domínio da defesa, o presidente do CMUE participará nas reuniões do Conselho.
Finalmente, o Estado-Maior da União Europeia - incluído nas estruturas do Conselho -
desempenhará as funções de peritagem e apoio militar à PECSD, incluindo a condução de
segurança e defesa (...), o objectivo da União Europeia é que aquela se torne rapidamente operacional” [sublinhado nosso]. 210 Ver Anexo VI “Relatório da Presidência sobre a Política Europeia de Segurança e Defesa” e Anexos III, IV e VI ao Anexo VI. In União Europeia, Presidência, 2000. “Conclusões do Conselho Europeu de Nice”.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
operações militares de gestão de crises lideradas pela UE. Para além destas, exercerá ainda as
funções de alerta precoce, avaliação da situação e planeamento estratégico para as missões de
Petersberg, incluindo a identificação das forças europeias nacionais e multinacionais.
Apesar da criação destas duas últimas estruturas militares, o Relatório da Presidência
sobre a Política Europeia de Segurança e Defesa deixa claro que a ambicionada capacidade
de gestão de crises e prevenção de conflitos não envolve a criação de um exército europeu211 e
que a decisão de pôr à disposição destas operações os recursos nacionais caberá sempre aos
Estados-membros. Por outro lado, é reafirmada a importância da NATO que continua a ser a
base da defesa colectiva dos seus membros. Significa isto que a criação da Força Europeia de
Reacção Rápida, longe de pôr em causa a importância daquela organização, contribuirá antes
para o estabelecimento de uma parceria estratégica entre a UE e a NATO na gestão de crises212
sempre com respeito pela autonomia da capacidade de decisão das duas organizações. Prevê-
se, assim, a consulta mútua e a cooperação nas matérias de segurança, defesa e gestão de
crises que envolvam interesses comuns, de modo a que seja posta em prática a resposta militar
mais apropriada.
Por sua vez, para além da importância em termos de parceria com a NATO, o
desenvolvimento de uma capacidade autónoma de reacção rápida, como parte integrante da
211 Ora, este parece-nos ser um aspecto que importa desmistificar, até porque julgamos que seria demasiadamente naïf pensar-se que se pode preparar uma força exclusivamente para missões de paz, conhecidos que são os inúmeros riscos inerentes a tais missões. A este propósito somos tentados a concordar com o embaixador português José Cutileiro quando diz que “não há forças armadas para missões de paz e forças armadas para a guerra: há forças armadas para a guerra que podem também ocupar-se de missões de paz” (Leandro et al. 2000, 95). 212 A este propósito parece-nos adequado trazer para o debate, ainda que superficialmente, a questão das reduzidas verbas destinadas à defesa. Como é sabido, a preparação de uma força desta envergadura implica que se gaste mais e melhor, sendo ingenuidade pensar que dotar a Europa de meios militares que lhe permita diminuir significativamente a sua dependência dos aliados americanos e trasformar-se num parceiro “mais igual” no seio da NATO, não implicará um aumento das despesas militares. A questão principal reside, portanto, em saber até que ponto as nossas populações e os nossos parlamentos estão sensibilizados para esta realidade. Parece-nos que os governos e sobretudo os seus líderes desempenharão aqui um papel crucial. Importa essencialmente que os eleitores tomem consciência de que se é verdade que a “Europa é uma ilha de estabilidade” (pelo menos no lado Ocidental) está “rodeada por um mar de instabilidade com algumas tempestades a dirigirem-se para ela” (Leandro et al. 2000, 15), bastando lembrar, a título de exemplo, que vivemos “paredes meias” com uma situação no Médio Oriente que continua a ser um “barril de pólvora” prestes a explodir.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
PESC, terá igualmente como objectivo permitir aos europeus dar uma resposta mais efectiva e
coerente aos pedidos das Nações Unidas ou da Organização para a Segurança e Cooperação
na Europa (OSCE). Facilitar-se-á, deste modo, uma cooperação mais estreita entre estas duas
organizações internacionais e reforçar-se-á a contribuição da União Europeia para a
manutenção da paz e segurança internacionais.
Finalmente, o Relatório da presidência faz ainda referência ao projecto de
desenvolvimento de capacidades civis nos quatro domínios prioritários identificadas na
cimeira de Santa Maria da Feira de 19 e 20 de Junho de 2000 (polícia, reforço do Estado de
Direito, reforço da administração civil e protecção civil)213. Neste domínio específico foi
acordado que os Estados-membros deverão estar aptos, até 2003, a fornecer 5000 polícias
para missões internacionais, 1000 dos quais prontos a ser mobilizados num espaço inferior a
30 dias.
Para concluir, se contabilizarmos os compromissos assumidos pelos líderes europeus,
nos diversos conselhos europeus desde Amesterdão, podemos facilmente constatar que foram
dados passos significativos no domínio da segurança e defesa. Não obstante, é verdade que a
grande maioria destes avanços é feita à margem da moldura institucional e dos procedimentos
de decisão da União, não tendo sido ainda consagrados em letra de tratado. Esta situação,
aparentemente inconciliável com o desejo expresso na Declaração relativa à política
europeia de segurança e defesa214 de tornar esta política operacional o mais rapidamente
possível, parece poder explicar-se pelas ainda grandes divergências internas na União, que
opõem Estados como a França, grande defensor de uma capacidade de defesa europeia tão
independente e autónoma quanto possível, a outros, como o Reino Unido, que continua a
defender vigorosamente o papel insubstituível da NATO e a preservação do stato quo. Uma
outra explicação residiria no facto de alguns membros da União continuarem a defender 213 Ver União Europeia, Presidência. 2000. “Conclusões do Conselho Europeu de Santa Maria da Feira”. [www.Europa.eu.int/council/off/conclu/june2000/june2000_pt.pdf] (11.11.2001). 214 Anexa ao Tratado de Nice.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
aguerridamente a manutenção do carácter intergovernamental do segundo pilar saído de
Maastricht, pelo que os avanços só foram possíveis porque acordados à margem dos tratados
sob a capa de uma “cooperação” que pouco mais implica que uma parceria estratégica
semelhante à realizada entre aliados no quadro tradicional das relações internacionais.
Ainda assim, é de referir que mesmo sem a força jurídica que só a consagração num
tratado lhe poderia conferir, os passos já dados neste domínio representam, pelo menos, um
indicador positivo da provável evolução, a prazo, para uma política de segurança e defesa
comum, alicerçada nos valores europeus de solidariedade e respeito pelos direitos
fundamentais, e dotada dos instrumentos necessários a uma actuação coordenada, coerente e
eficaz por parte dos Estados-membros da União215.
3.3 O “Processo” de Constitucionalização: a Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia
O ano de 2000 ficou marcado não só pelas árduas negociações da conferência
intergovernamental que daria origem ao Tratado de Nice, mas também por um reacender do
debate político sobre uma futura reestruturação de base constitucional da UE, catapultado, em
grande medida, pelo discurso (polémico) do ministro dos Negócios Estrangeiros alemão
Joschka Fischer (proferido, “a título pessoal”, na Universidade de Humboldt a 12 de Maio de
2000). Não obstante, apesar dos estímulos exteriores fornecidos por alguns dos líderes
europeus envolvidos nas negociações da CIG, esta, demasiadamente concentrada na herança
deixada por Amesterdão, acabaria por não se debruçar realmente sobre um possível desenho
215 Mais do que uma previsão, esta pretende ser uma nota de optimismo, até porque, como sublinha Anne-Marie Le Gloannec, “[A]t present Europe as a security and defense entity does not have any common strategies”. Uma possível explicação para esta “falta de unidade” é-nos dada pela mesma autora alguns parágrafos à frente: “(...) the EU is set up precisely to prevent hegemony and disperse rather than concentrate power. There is a disjunction between the very nature of EU and the requirement of authority in an European Security and Defense Policy”. Cf. Anne-Marie Le Gloannec. 2001. “Europe as an International Actor.” World Politics, Annual Editions 02/03. Guilford, CT: McGrow-Hill-Dushkin, 112-114.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
constitucional da União, muito embora a sua agenda contemplasse alguns pontos
potencialmente relevantes nesta matéria.
O mais importante de todos é sem dúvida a decisão de elaborar, na sequência do que
aliás tinha ficado definido no Conselho Europeu de Colónia (Junho 1999), uma Carta dos
Direitos Fundamentais da União. Inovadora por si só, marcou a diferença também no método
escolhido para lhe dar forma, tendo sido preparada, à margem da CIG, por uma convenção216
composta por representantes dos governos e parlamentos nacionais, da Comissão e do
Parlamento Europeu217. Tratou-se, na verdade, de uma espécie de fórum que permitiu um
debate alargado a grupos tradicionalmente excluídos das negociações. Pondo em prática
procedimentos únicos, a Convenção abriu as suas sessões ao público e disponibilizou na
Internet todos os documentos preparatórios. Para além disto, realizou também audiências com
representantes do Comité Económico e Social, do Comité das Regiões, da sociedade civil em
geral e dos países candidatos. O Tribunal de Justiça e o Conselho Europeu tomaram parte nos
trabalhos, como observadores.
Menos de um ano depois da sua primeira reunião, e apesar das opiniões divergentes a
propósito do conteúdo do documento, a Convenção sobre a Carta dos Direitos Fundamentais
da UE deu por concluídos os trabalhos a 02 de Outubro de 2000, tendo o projecto da Carta218
sido submetido ao Conselho Europeu de Biarritz, que o aprovou por unanimidade, a 14 de
Outubro do mesmo ano.
216 A ideia de criar um grupo ad hoc composto por representantes das várias instituições comunitárias para elaborar a Carta dos Direitos Fundamentais havia sido também decidida pelo Conselho Europeu de Colónia, de Junho de 1999. Todavia, a composição precisa deste grupo, designado “Convenção” só viria a ser determinada pelo Conselho Europeu de Tampere de Outubro do mesmo ano. 217 Método que viria a ser novamente escolhido para levar a cabo o “indispensável” debate sobre o futuro da Europa. À nova convenção - que iniciou os seus trabalhos em Fevereiro de 2002 e realizou a sessão de encerramento em 10 de Julho de 2003 - coube desta feita promover uma discussão alargada sobre a arquitectura política e institucional da União, que culminou na elaboração de um projecto (ou projectos) de tratado constitucional que servirá de base às discussões da próxima reforma dos tratados, agendada para Outubro de 2003. 218 A Carta dos Direitos Fundamentais da UE é composta por um Preâmbulo e por 54 artigos divididos em sete capítulos: dignidade (1 a 5); liberdades (6 a 19); igualdade (20 a 26); solidariedade (27 a 38), direitos dos cidadãos (39 a 46); justiça (47 a 50) e disposições gerais (51 a 54).
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
Apesar de ter merecido nota positiva por parte dos chefes de Estado e de governo, a
oposição firme de alguns países, com particular destaque para o Reino Unido, impediu a sua
integração no Tratado. O resultado foi a “proclamação solene” da Carta, na cimeira de Nice
que, longe de lhe conferir um estatuto claro, deixa em aberto uma série de interrogações
quanto aos seus verdadeiros efeitos legais. Ter-se-á perdido uma oportunidade política para
acrescentar formalmente uma dimensão constitucional aos tratados comunitários e dar um
passo decisivo no “processo de constitucionalização” da União219.
Seriam, todavia, os líderes europeus que adiaram este salto no processo de integração,
os mesmos que acabariam por reconhecer a necessidade de um debate aprofundado sobre o
futuro constitucional da União Europeia. Com este propósito, foi acrescentada à acta final da
Conferência uma Declaração respeitante ao futuro da União que “apela a um debate mais
amplo e aprofundado sobre o futuro da União Europeia”. O mesmo texto remeteria para o
Conselho Europeu de Laeken, de Dezembro de 2001, a aprovação de uma nova declaração
propondo as iniciativas apropriadas para dar seguimento ao processo de revisão de matérias
tão importantes como a delimitação de competências entre a União e os Estados-membros
(com respeito pelo princípio da subsidiariedade), o estatuto da Carta dos Direitos
Fundamentais da UE, a simplificação dos tratados, e o papel dos parlamentos nacionais na
arquitectura europeia. Ficou igualmente decidida a convocação para 2004 de uma nova
conferência intergovernamental destinada a introduzir nos tratados as alterações necessárias.
219 Importa referir que, de acordo com o texto final apresentado pela Convenção Europeia sobre o futuro da Europa ao Conselho Europeu de Salónica (19 e 20 de Junho de 2003), a Carta dos Direitos Fundamentais constituirá a parte II do futuro tratado constitucional. Está, portanto, uma vez mais nas mãos dos líderes europeus, a possibilidade de conferirem a este documento o estatuto que lhe é devido numa União que se deseja capaz de garantir com eficácia os direitos dos seus cidadãos.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
3.4 Conclusão: uma (Re)avaliação de Nice
Confinado quase exclusivamente ao mandato que havia herdado de Amesterdão, Nice
foi, em muitos aspectos, um tratado decepcionante. Mesmo no domínio da reforma
institucional, e embora tendo desbloqueado o processo de alargamento, há quem se questione
se as controvérsias e disputas que antecederam o acordo não são um sinal da falta de
“preparação mental” da União e dos Estados-membros para um alargamento da dimensão do
que se avizinha220.
De facto, mais do que a uma “preparação construtiva” para o alargamento assistimos
na cimeira de Nice a um cenário clássico de balança de poder: “[T]he enphasis at the Nice
negotiations was clearly on the protection of acquired interests against the effects of
enlargement rather than on a constructive preparation for enlargement” (Monar 2001, 333)
[ênfase no original]. O resultado culminaria num novo desequilíbrio de poderes que favorece
claramente “as grandes potências”, com particular destaque para a Alemanha. Não espanta,
pois, que a cimeira que chegou a ser apelidada de “Feira do Poder”221 tenha conferido uma
inesperada actualidade a conceitos típicos da “ordem diplomática clássica”, que já não eram
utilizados, na Europa, desde o fim da Segunda Guerra Mundial222.
Apesar das suas inquestionáveis limitações, julgamos ser possível olhar o novo
Tratado através da lente da esperança. Se Nice não é o grande tratado reformador que muitos
esperavam, provavelmente não merecerá também o epitáfio de “fracasso completo” com que
alguns o brindaram. Talvez a sua “pequenez” seja um prenúncio de que as grandes reformas
220 Cf. Monar and Wessels, op. cit., 333. 221 Expressão que apareceu em vários artigos publicados na imprensa sobre a Cimeira de Nice, e que foi mesmo título de um artigo de opinião da autoria do, então secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Francisco Seixas da Costa, publicado no semanário Expresso de 16 de Dezembro de 2000. (Refira-se, todavia, que, no artigo referido, tal expressão aparece “amenizada” por um ponto de interrogação). 222 De facto, se passarmos uma breve revista pelos artigos publicados na imprensa nos dias que se seguiram à cimeira de Nice não será difícil encontrar expressões do tipo “jogo de potências”, “batalha pelo poder”, “conflitos de interesse e de influências”, ao mesmo tempo que se assiste em força à recuperação das noções de “vencedores” e “vencidos” e de “ganhadores” e “perdedores”.
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Primeira Parte - De Maastricht a Nice: Rumo a uma União de Estados ou entre Estados?
exigem uma preparação cuidada e de que um “corrupio” de conferências intergovernamentais
poderá não ser o método adequado para fazer avançar o projecto europeu. A esperança surge-
nos assim das ilações que, mesmo de uma má experiência, se podem tirar para o futuro. O
grande desafio do pós-Nice não é apenas a construção de uma nova Europa, mas é também ser
capaz de utilizar, nessa construção, o que se aprendeu com os “erros” cometidos.
A Europa encontra-se numa bifurcação223, e Nice, mais do que o fim de uma etapa,
marca o início de uma nova fase de reflexão sobre o caminho a seguir. Na eminência de um
“alargamento em massa” da UE parece chegado o momento de pensar em novas formas de
governar e de gerir as mudanças. O método de Monnet, gradualista e dos pequenos passos,
serviu a empreitada comunitária durante 50 anos224. Talvez tenha chegado o tempo de, sem
esquecer uma cuidada ponderação, arriscar um salto maior. Até porque o velho dilema que
opõe o alargamento ao aprofundamento é uma falsa questão, que só continua a fazer sentido
para aqueles que vêem no primeiro uma forma de contrariar o segundo, através da diluição da
União numa mera zona de comércio livre. Compreende-se hoje que longe de constituírem
alternativas mutuamente exclusivas, estas duas vias poderão representar as duas faces de uma
mesma moeda. O debate político está lançado e espera-se que, assim, possam ser corrigidas as
falhas do passado, nomeadamente aquela que fez da Europa comunitária uma construção de
elites, que negligenciou durante anos a opinião dos seus verdadeiros destinatários. Nada se
constrói de cima para baixo e mesmo se, contrariando a mais elementar lógica, assim se fizer,
pairará sobre essa obra um risco de desabamento iminente. O Tratado de Nice tornou possível
223 A ideia de que a UE necessita de clarificar a sua opção política é hoje consensual. O próprio texto da Declaração de Laeken (que abordaremos mais à frente) situa a União numa “encruzilhada”. Apesar de concordamos com a metáfora utilizada, pela ideia de escolha que deixa adivinhar, optamos, no entanto, por seguir nesta matéria a imagem utilizada por Lobo-Fernandes num artigo intitulado “O Tratado de Nice e o Futuro da UE: A Bifurcação”. A nossa opção encontra explicação no facto de, à semelhança do autor, considerarmos que à União se apresentam, não múltiplos cenários (como a expressão “encruzilhada” poderia fazer supor), mas apenas dois: “[P]odemos talvez resumir o actual debate na bifurcação entre um caminho pragmático-evolucionista e uma via federal-constitucional” (2001, 13) [sublinhado nosso]. 224 A este propósito não poderíamos deixar de citar Duverger que, em 1997, escrevia “(...) the framework elaborated by Jean Monnet almost half a century ago has become incomprehensible and powerless” [ênfase nossa]. Maurice Duverger. 1997. ”The Political System of the European Union.” European Journal of Political Research, vol 31, Nos. 1-2, Fevereiro 1997, 141.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
o alargamento. Compete agora aos construtores europeus garantir que a União lhe consiga
sobreviver225.
225 Note-se, todavia, que a “sobrevivência” do projecto europeu depois do alargamento requererá mais do que uma reforma institucional. Referimo-nos, por exemplo, ao desejável – senão indispensável – redimensionamento” do orçamento comunitário pois, como enfatiza Porto, (2002, 51 e 57), “[S]ob pena de ficarem em causa princípios e objectivos que têm de permanecer, a solução não poderá deixar de passar por algum alargamento do orçamento da União (...) [que] tem, todavia, de ser feito à custa dos países mais ricos do centro da Europa, pois são os que mais beneficiarão com o alargamento”. Recuperando a afirmação proferida por Jacques Delors numa sessão plenária do PE - “um alargamento mal feito poderá ser o fim da União Europeia” - o autor lembra que tal “profecia” poderá acontecer quer por razões institucionais, quer pela quebra da coesão: “[É] pois grande e complexo o desafio de um alargamento (ou de vários alargamentos) a que não poderá fugir-se, mas que, no interesse de todos, não poderá ser feito (ou não poderão ser feitos) à custa da coesão e do reforço da União Europeia” [sublinhado nosso].
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SEGUNDA PARTE
NICE E O PÓS-NICE: QUE CENÁRIOS PARA A NOVA EUROPA?
“The sovereign nations of the past can no longer solve the problems
of the present: they cannot ensure their own progress or control their
own future (…) Yet amid this changing scenery the European idea
goes on (…) Where this necessity will lead, and toward what kind of
Europe, I cannot say (…) The essential thing is to hold fast to the
few fixed principles that have guided us since the beginning”
(Monnet 1978, 523-524).
“(…) acaba por ser secundário o qualificativo que se utilize para
concretizar o modelo europeu, com ou sem a palavra ‘federal’.
Trata-se de uma experiência única, com interesses específicos a
atender, que não é necessário enquadrar em algum arquétipo já
existente” (Porto 1999, 14-15).
O Tratado de Nice resolveu o problema institucional que impedia a conclusão das
negociações do alargamento. O pós-Nice é, portanto, a altura certa para os europeus voltarem
a centrar a sua atenção nas questões fundamentais. A Europa comunitária está, talvez, no mais
importante ponto da sua história: é imperioso repensar a sua governação, o seu método, as
suas instituições, em síntese, redefinir o projecto europeu.
Conscientes da necessidade de tão árdua empreitada, os Quinze marcaram para
Outubro de 2003 uma nova conferência intergovernamental para a revisão dos tratados, cuja
agenda, embora possa ser alargada, inclui já quatro temas de crucial importância: a
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
delimitação das competências entre os Estados-membros e a Comunidade (no respeito pelo
princípio da subsidiariedade); o estatuto da Carta dos Direitos Fundamentais; a simplificação
dos tratados; e o papel dos parlamentos nacionais na arquitectura europeia226.
Numa tentativa de ultrapassar insuficiências metodológicas do passado,
nomeadamente a notória falta de preparação de algumas das CIG’s anteriores, ficou também
decidido que a nova conferência intergovernamental seria precedida por um fórum de
discussão alargado e aberto à participação directa e indirecta dos cidadãos da União. O grande
objectivo deste espaço de reflexão é, na verdade, levar a cabo uma espécie de brainstorming
sobre o futuro da Europa, cujos resultados possam servir de base às negociações que terão
lugar em finais de 2003.
Assim, naquela que quase pode ser encarada como uma tentativa de se redimirem do
compromisso “mínimo” acordado em Nice, os líderes europeus deram sinal verde a uma
reforma profunda do projecto comunitário, ao deixarem plasmada na Declaração respeitante
ao futuro da União a vontade de continuar e de aprofundar o debate político sobre a
arquitectura constitucional da UE, lançado, à margem da CIG, por algumas personalidades
europeias de destaque.
226 Ver Declaração respeitante ao futuro da União, anexa ao Tratado de Nice.
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
Capítulo IV
A Declaração de Laeken: uma Nova Oportunidade?
Na Declaração respeitante ao futuro da União, os Chefes de Estado e de governo
remetiam para o Conselho Europeu de Laeken a aprovação de uma declaração que, na
sequência do relatório apresentado pelo Conselho Europeu de Gotemburgo, previsse as
medidas adequadas para dar seguimento ao processo de reflexão em curso227. Assim, em
meados de Dezembro de 2001, cerca de nove meses depois da abertura formal do debate228, as
atenções dos europeus voltavam a centrar-se nos resultados de uma cimeira europeia. Tendo o
período que mediou as duas datas ficado marcado por um proliferar de originais e
interessantes intervenções sobre a nova Europa229, eram elevadas as expectativas em relação
ao documento a apresentar pela presidência belga da União.
4.1 O Projecto da Declaração: um Documento Ambicioso
O projecto de declaração apresentado pelo primeiro-ministro belga, Guy Verhofstadt,
era um texto ambicioso que defendia abertamente uma união de cariz federalista. O texto,
dividido em três partes230, começa por apresentar uma análise algo sombria do estado da
integração europeia, ao constatar a existência de uma certa incompreensão, senão mesmo mal
estar, face ao projecto europeu. Reconhecendo que os cidadãos não compreendem a ligação
227 Cf. Declaração respeitante ao futuro da União, ponto 4. 228 Lançado formalmente a 07 de Março de 2001 por Göran Persson, primeiro-ministro da Suécia (país que presidiu à União no primeiro semestre de 2001). Na mesma altura foi igualmente anunciada a abertura de um novo sítio na internet “Futurum” que disponibiliza aos cidadãos os vários contributos para a reflexão e lhes permite uma participação activa no debate. 229 Lembre-se, a título de exemplo, a proposta de uma Federação de Estados-nação apresentada por Jacques Delors e secundada, embora com algumas alterações, por Joschka Fischer, ou, no extremo oposto, a defesa da “Europa das nações livres” avançada por Tony Blair. 230 A primeira intitulada “A Europa numa encruzilhada” faz uma descrição das fraquezas e dos pontos fortes da União; a segunda enumera “Os desafios e as reformas numa União renovada” e a última descreve o funcionamento da Convenção sobre o futuro da Europa.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
entre os objectivos da União e a sua vida quotidiana, o documento aponta o dedo à rigidez e,
sobretudo, à falta de transparência das instituições europeias, que se ocupam pouco das
preocupações concretas do cidadão e em demasia de questões que, dada a sua natureza,
poderiam ser confiadas aos eleitos dos Estados-membros e das regiões. Também no plano
internacional, o texto apresentado pela presidência belga é critico. Referindo-se ao 11 de
Setembro como um acontecimento que desmistificou a existência de uma ordem mundial
estável, os belgas reconhecem que a Europa unida deverá ter um papel de primeiro plano
numa nova ordem planetária, competindo-lhe ser capaz de desempenhar um papel
estabilizador no plano mundial e de constituir uma referência para numerosos países e povos.
Face aos novos desafios, a declaração apela a uma reforma profunda da Europa que
deverá mesmo, de certo modo, “reinventar-se”. Verhofstadt reafirma, deste modo, a
necessidade de um debate alargado sobre o que se espera do projecto europeu. A reflexão será
levada a cabo por uma convenção que, durante um ano, discutirá as questões deixadas em
aberto pelo Tratado de Nice. Findo o prazo estipulado para a conclusão dos trabalhos, a
convenção emitirá “recomendações” que serão levadas em consideração pelos negociadores
da próxima reforma dos tratados agendada para Outubro de 2003.
O projecto da Declaração contém ainda algumas sugestões da presidência belga para
uma futura arquitectura institucional da UE. Entre as propostas aparece a possibilidade de
tornar a Comissão Europeia no órgão central executivo da União e de conferir o poder
legislativo ao Conselho de Ministros e ao Parlamento Europeu. A novidade está na atribuição
aos parlamentos nacionais do papel de uma espécie de “terceira” instituição legisladora. É
igualmente ponderada a possibilidade de uma eleição directa do presidente da Comissão e
mesmo de um presidente do Conselho Europeu, ao mesmo tempo que é lançada a ideia da
criação de uma circunscrição europeia para a eleição de uma parte dos deputados do PE. A
comunitarização da PESC (que passaria a ser gerida pela Comissão) é outra das hipóteses
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
considerada. O documento questiona ainda a pertinência do actual mecanismo das
presidências rotativas da União e estabelece uma ligação entre a necessidade de simplificação
dos tratados, definida em Nice, e a criação de uma constituição europeia. Sem surpresas, este
primeiro esboço da Declaração de Laeken suscitou grande controvérsia e mereceu mesmo
uma forte oposição por parte de alguns Estados-membros, encabeçados pela França e Reino
Unido, que consideraram o documento demasiadamente ambicioso nas suas ideias
integracionistas231.
4.2 A Declaração Adoptada: o Recuo na Ambição Federal
Depois de vários “retoques”, melhor apelidados de “recuos”, que visavam na medida
do possível “contentar” as duas visões distintas que continuam a prevalecer na União
Europeia, o texto final do documento foi adoptado pelo Conselho Europeu de Laeken. De
acordo com as suas Conclusões, esta Declaração e as perspectivas que abre representam para
o cidadão “uma etapa decisiva em direcção a uma União mais simples, mais forte no
perseguir dos seus objectivos essenciais e mais presente no mundo”.
Dando seguimento às instruções que haviam ficado definidas na Declaração
respeitante ao futuro da Europa, nomeadamente a de promover um amplo debate que
antecedesse os trabalhos da próxima CIG, foi também acordada pelos chefes de Estado e de
governo a convocação de uma convenção composta por representantes dos governos
nacionais, da Comissão, do PE, dos parlamentos nacionais e dos países candidatos, e
presidida pelo francês Valéry Giscard d’Estaing. Para além do antigo chefe de Estado francês
foram ainda nomeados, desta feita para vice-presidentes, o antigo primeiro-ministro italiano
Giuliano Amato e o antigo primeiro-ministro belga Jean-Luc Dehaene. Igualmente decidida,
231 A dimensão da contestação ao projecto da Declaração apresentado pela presidência belga da União é facilmente perceptível se considerarmos as 100 emendas textuais que o Reino Unido propôs.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
ficou a composição do Praesidium da convenção que, para além das três personalidades
referidas, integra também representantes da Espanha, Dinamarca e da Grécia (os três países
que ocuparão a Presidência da UE durante os trabalhos da convenção), bem como da
Comissão, do PE e dos parlamentos nacionais.
Aparecendo em anexo às conclusões do Conselho Europeu, a Declaração de Laeken
abre a porta a reformas institucionais substanciais, preparadas através de um método inovador
– a convenção – que já havia provado os seus méritos aquando da elaboração da Carta dos
Direitos Fundamentais da União. A primeira parte da Declaração, que obedece ao sugestivo
título “A Europa numa encruzilhada”, é dedicada a uma análise da situação actual da UE e
procura fazer um balanço entre as suas linhas de força e fraquezas. Antes das alterações finais,
este foi, aliás, o capítulo mais criticado no projecto inicial, em virtude do seu tom pessimista e
das suas tendências consideradas “demasiadamente” federalistas. O novo texto,
substancialmente diferente do inicialmente proposto, começa por afirmar que a União
Europeia é um êxito, embora reconheça que esta deve ser mais democrática. Se é verdade que
os cidadãos apoiam os grandes objectivos da União, nem sempre entendem a relação entre
esses objectivos e a actuação da Comunidade. Nesta medida, o desejo vai para instituições
menos pesadas e rígidas e, sobretudo, mais eficientes e transparentes. Igualmente importante é
o aumento da capacidade de controlo democrático da actuação comunitária. Por sua vez, a
União deve deixar aos Estados-membros e às regiões as questões que, pela sua natureza,
possam com vantagem ser resolvidas a esse nível.
Para além da vertente interna, a Europa deve também criar condições para intervir
eficazmente na cena internacional. Num mundo globalizado em rápida mutação, os autores do
documento questionam se “não deverá a Europa, agora que está finalmente unida,
desempenhar um papel de vanguarda numa nova ordem planetária, o de uma potência que está
em condições de desempenhar um papel estabilizador a nível mundial e de constituir uma
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
referência para inúmeros países e povos”. Este parece ser, aliás, o desejo do cidadão que para
além de solicitar a intervenção da Comunidade em áreas como a segurança e justiça, a luta
contra a criminalidade transfronteiriça, a imigração, o emprego e a protecção social,
ambiciona também um papel mais importante para a Europa ao nível dos assuntos externos,
da segurança e da defesa. Ainda assim, o documento reconhece que o mesmo cidadão que
pensa que a União poderia ir mais longe em determinadas áreas, considera que esta intervém
em demasia e é excessivamente burocrática noutros domínios. Em resumo, para ir de encontro
aos desejos do cidadão é preciso uma abordagem comunitária “clara, transparente, eficaz e
conduzida de forma democrática”.
A segunda parte da Declaração é dedicada aos desafios e às reformas numa União
renovada. Concebida com a finalidade de servir de base aos trabalhos da Convenção, esta
segunda parte agrupa em quatro sub-títulos232 mais de meia centena de questões abertas que
ultrapassam, em larga medida, os temas definidos pelo Conselho Europeu de Nice.
Subordinado ao tema geral de uma melhor repartição e definição das competências na EU, o
primeiro conjunto de interrogações prende-se, sobretudo, com a forma de tornar mais
transparente a repartição das competências e com a oportunidade de reestruturar essa
repartição, sem correr o risco de a mesma resultar numa ingerência excessiva da União nos
assuntos dos Estados-membros ou numa paragem da dinâmica europeia.
O segundo bloco de questões é dedicado à simplificação dos instrumentos da União.
As respostas visam aqui clarificar “quem faz o quê” e, talvez mais importante, perceber se os
diferentes instrumentos da União não deverão ser em menor número e melhor definidos. Por
sua vez, a terceira série de perguntas obedece a um desejo de mais democracia, transparência
e eficácia na União Europeia. Tendo como ponto de partida a necessidade de examinar o
papel dos parlamentos nacionais na construção europeia, nomeadamente no que respeita ao 232 “Uma melhor repartição e definição das competências na União Europeia”; “A simplificação dos instrumentos da União”; Mais democracia, transparência e eficácia na União Europeia” e “A caminho de uma Constituição para os cidadãos europeus”.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
seu contributo para a legitimação do projecto europeu, as questões dividem-se em três grupos:
um primeiro, que diz respeito à legitimidade das três instituições principais da União (PE,
Comissão e Conselho); um segundo, que centrado no papel dos parlamentos nacionais, coloca
a possibilidade da sua representação numa instituição nova; e, um terceiro, que é dedicado à
forma de melhorar o processo de decisão e de funcionamento das instituições numa União
alargada. Por último, no quarto sub-título da Segunda Parte - a caminho de uma constituição
para os cidadãos europeus - são contempladas as questões relativas à simplificação dos
tratados. Colocadas de forma gradual, tais questões começam por concernir à simplificação
dos tratados existentes, sem que o seu conteúdo seja alterado, centrando-se depois na
possibilidade de uma reestruturação desses tratados e passam, em seguida, pela reflexão sobre
a conveniência de incluir a Carta dos Direitos Fundamentais no tratado de base. Este sub-
título é finalizado com uma interrogação fulcral que consiste em saber se esta simplificação e
reestruturação poderá conduzir, a prazo, à aprovação, na União, de um texto constitucional.
A Terceira e última parte da Declaração de Laeken reporta à convocação de uma
Convenção sobre o futuro da Europa. Esta é uma parte central da Declaração dado que do
sucesso desta convenção (encarregada de debater os problemas essenciais colocados pelo
futuro desenvolvimento da União e de analisar as diferentes soluções possíveis) dependerá,
em larga medida, o êxito das negociações da próxima revisão dos tratados agendada para
2003. Para além da nomeação do presidente e dos dois vice-presidentes, os chefes de Estado e
de governo deixaram ainda definida a composição geral da convenção, a duração dos
trabalhos, os métodos de trabalho, a forma de participação dos cidadãos e o que se espera do
documento final elaborado pela convenção233.
233 Uma vez que dedicaremos um capítulo aos trabalhos da Convenção escusámo-nos de proceder aqui a uma exposição pormenorizada desta parte da Declaração.
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
4.3 Conclusão: uma “Declaração Histórica” ou uma “Declaração Biodegradável”?
Apelidada por alguns de “histórica”234, a Declaração aprovada pelo Conselho Europeu
de Laeken não escapou também a duras críticas. Franklin Dehousse, director do Royal
Institute of International Relations, qualificou-a mesmo de “biodegradável”, considerando-a
um simples anúncio que, para além de ser insuficiente para compensar as carências dos
tratados, demonstra as reticências de muitos chefes de governos em abordar seriamente as
implicações do alargamento235. Não obstante, a imprensa internacional foi quase unânime no
aplauso à Declaração, o mesmo se passando com os membros do PE que a acolheram
positivamente numa sessão extraordinária que teve lugar em Bruxelas, dois dias após o
Conselho Europeu de Laeken.
Se é certo que, pelo fim dos tabus provocado por algumas das suas interrogações e,
sobretudo, pelo método inovador que propõe para a preparação dos trabalhos da CIG, a
Declaração de Laeken representa um marco iniludível na história da construção europeia, ela
não deixa, também, como poderemos ver pelos exemplos que se seguem, de estar eivada de
ambiguidades que justificam algumas das críticas que lhe foram apontadas.
Por um lado, algumas das interrogações colocadas são contraditórias - como é
aparente na temática da repartição de competências - onde se procura garantir que uma nova
repartição de competências não conduza a um aumento “furtivo” das competências da União
e, ao mesmo tempo, assegurar que a dinâmica da integração europeia (que pressupõe, como
sabemos, um aumento de competências da União) não enfraqueça. Por outro lado, e no que
respeita ao resultado dos trabalhos da Convenção, a Declaração fornece também indicações
ambivalentes. Assim, cabe ao grupo de trabalho elaborar um documento final que pode
compreender quer diferentes opções, quer recomendações, no caso de se chegar a um 234 Afirmação atribuída ao Chanceler alemão Gerhard Schröder. Cf. Cécile Barbier. 2001. “Déclaration de Laeken”. Demain l’Europe, Dezembro 2001, nº 3, 5. [http://www.ciginfo.net/demain/fr] (12.01.2002). 235 Ibidem, 4.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
consenso. O mesmo será dizer que, embora desejável, a elaboração de um único documento
merecedor do acordo de todos não faz parte das “obrigações” desta Convenção. Daqui resulta
que, no final dos trabalhos, poderão subsistir propostas contraditórias que, pese embora a
vantagem de terem sido discutidas previamente, continuarão, ainda assim, a empurrar para a
CIG seguinte o peso total da decisão. O próprio período de tempo que medeia a data de
conclusão dos trabalhos da Convenção e o início das negociações da conferência
intergovernamental esteve longe de ser consensual. Apesar de alguns defenderem que entre as
duas fases deveria decorrer o mínimo de tempo possível (isto é, apenas o tempo indispensável
para a recepção do documento final da Convenção e para a convocação da CIG), a Declaração
acabou por estabelecer entre ambas um intervalo de mais de seis meses236.
Ainda que aparentemente criticável, esta espécie de “flexibilidade” presente no texto
da Declaração de Laeken é facilmente compreensível, se entendida como a forma encontrada
para conciliar as diferentes leituras do projecto europeu que continuam a coexistir no seio da
União. Por esta razão, uma avaliação correcta da importância desta Declaração dependerá, em
grande parte, dos resultados dos trabalhos da Convenção sobre o futuro da Europa. Pensamos,
no entanto, que a Declaração de Laeken cumpriu, ainda que sem grandes ambições, o papel
que lhe estava destinado, na medida em que indica caminhos e fornece pistas para a etapa que
se segue. Compete, portanto, aos membros da Convenção, escutando os cidadãos, partir
dessas orientações para levar o mais longe possível a reflexão sobre o futuro da integração
europeia. Cabendo a última palavra aos líderes europeus que tomarão parte na CIG, não
podemos estabelecer uma relação directa entre o sucesso da Convenção e o sucesso da
próxima revisão dos tratados, mas julgamos poder dizer que o “chegar a bom porto” daquela,
será meio caminho andado para o êxito desta.
236 Refira-se, todavia, que, embora inicialmente prevista para 2004, a próxima conferência intergovernamental terá início em Outubro de 2003 (cerca de três meses depois do fim da Convenção sobre o futuro da Europa).
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
Capítulo V
A Convenção Europeia
Malgrado a árdua maratona negocial, os resultados saídos do Conselho Europeu de
Nice ficaram muito aquém das expectativas. Conscientes do amplo grupo de questões que
deixavam sem resposta, os líderes europeus agendaram para 2004 uma nova reforma dos
tratados. Se este é um procedimento a que já nos temos habituado nas CIG’s anteriores, o
mesmo não se pode dizer do amplo debate sobre o futuro da União que os chefes de Estado e
de governo decidiram que teria lugar no período de tempo que medeia as duas conferências.
Esta é, de facto, uma “novidade” que poderá marcar verdadeiramente a diferença em relação
às experiências passadas.
De acordo com as indicações da Declaração respeitante ao futuro da União, anexa ao
Tratado de Nice, foi aprovada pelo Conselho Europeu de Laeken uma nova declaração
(Declaração de Laeken237) que, para além de fazer uma breve análise da actual situação da
UE, coloca um número alargado de questões que servem de guia à reflexão em curso. O
mesmo documento contempla ainda a convocação de uma Convenção sobre o futuro da
Europa238 que, pela primeira vez na história da integração comunitária, permitirá a muitos
europeus ser parte activa da construção do seu futuro comum. Tendo por missão “debater os
problemas essenciais da União e analisar as diferentes soluções possíveis” este espaço de
discussão alargado está aberto à participação, directa e indirecta, dos cidadãos, que têm assim
uma oportunidade única para se tornarem, também eles, arquitectos deste grande projecto.
Para facilitar a troca de contributos e a audição da sociedade civil decorrerá, em paralelo com
os trabalhos da Convenção, um Fórum que se espera possa estruturar e alargar o debate
público sobre o futuro da União já em curso. 237 Ver capítulo IV da Segunda Parte desta dissertação: “A Declaração de Laeken: uma nova oportunidade?”. 238 A Convenção sobre o futuro da Europa realizou a sua sessão inaugural a 28 de Fevereiro de 2002 e encerrou os trabalhos a 10 de Julho de 2003.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
5.1 O Porquê da Convocação de uma Convenção
Até há bem pouco tempo na história da construção comunitária, falar em revisão dos
tratados era falar de uma conferência intergovernamental que, em última instância, senta à
mesa das negociações os chefes de Estado e de governo dos países membros239. Este método,
que resultou durante as primeiras décadas da integração comunitária240, tem vindo
aparentemente a perder alguma eficácia.
Embora tenha a vantagem de se alicerçar no “poder real”, isto é, na legitimidade que
uma eleição democrática confere aos que tomam as decisões, a conferência
intergovernamental padece, ainda assim, de sérias fragilidades. Por um lado, ela é
demasiadamente “elitista”, deixando de fora das negociações um grande leque de actores que
poderiam, e deveriam, ter uma palavra a dizer. Ela é, na verdade, um exemplo flagrante do
chamado défice democrático da União, justificando plenamente o epitáfio de Europa das
Elites que tantas vezes vemos mencionado nas análises sobre construção comunitária. Depois,
sendo os parceiros das negociações os representantes máximos dos Estados-membros, a
tendência é para uma defesa dos interesses nacionais em detrimento da opção pelo que seria o
interesse do todo. As preocupações eleitorais, aliadas a um receio de aceitar uma posição que
possa de alguma forma “subalternizar” o Estado que representam, levam a que as negociações
resvalem frequentemente para uma espécie de “troca de concessões recíprocas” que
prejudicam, muitas vezes, o interesse comum. Finalmente, como somatório destas duas, a
CIG torna-se demasiadamente complexa para os cidadãos, contribuindo, preocupantemente,
239 Por uma questão de rigor cabe-nos referir que houve na história da integração europeia uma tentativa de “contornar” este método clássico de revisão dos tratados. Tal tentativa foi levada a cabo pelo primeiro parlamento europeu eleito por sufrágio universal directo que apresentou, em 1984, um projecto de tratado para a União. Caso tivesse merecido um acolhimento favorável, este tratado poderia ter marcado o início de um método alternativo à conferência intergovernamental. 240 Relembre-se que as CIG’s serviram também para criar tratados, e não apenas para os rever: Tratado de Paris que fundou a CECA em 1951; Tratado de Paris que fundou a CED em 1952 (não chegou a entrar em vigor); Projecto do Tratado da Comunidade Política Europeia (Roma, Paris 1953-1954); Tratado de Roma que fundou a CEE e a EURATOM em 1957.
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
para o aumento do alheamento generalizado sobre o processo de construção europeia e para o
reaparecimento de um eurocepticismo que questiona a vantagem de pertencer a uma União
que “não nos ouve” e “não se compreende”.
O método da convenção, que provou já os seus méritos241, surge assim como uma via
alternativa que, pela variedade de actores que envolve e pela abertura das negociações, poderá
evitar as principais desvantagens de uma a CIG. De facto, como sublinha Paul Magnette242, se
bem concebida, a Convenção será capaz de apresentar mesmo uma série de vantagens em
relação ao método habitualmente utililizado: primeiro, ela é convocada pelos chefes de Estado
e de governo, que fixam o seu mandato, a sua composição e as suas regras, pelo que não corre
o risco de se processar ao sabor das conveniências; em segundo lugar, tendo uma composição
mista (que mistura numerosos e diferentes actores nas negociações) evitará mais facilmente as
as “trocas de favores” (normalmente presentes nas CIG’s), estando por isso mais apta a chegar
a uma verdadeira deliberação. Por último, sujeita às obrigações de consultação e de
publicitação, a Convenção assegura uma melhor participação, directa ou indirecta, dos
cidadãos e das associações que representam os seus interesses. Aliás, sendo composta por
uma maioria de parlamentares sem responsabilidades políticas imediatas, a Convenção está de
certa forma melhor colocada que as conferências diplomáticas tradicionais para iniciar o
debate sobre o futuro da União. Em nossa opinião, este é, talvez, o maior mérito deste
método. Efectivamente, numa Europa que se quer mais transparente, mais democrática e mais
próxima dos cidadãos, é difícil aceitar que as decisões de fundo, que implicam, muitas vezes,
uma viragem no rumo da empreitada comunitária, possam ficar exclusivamente nas mãos de
um punhado de governantes que, sem embargo das suas qualidades e da sua legitimidade
democrática, colocarão sempre os interesses nacionais acima dos interesses do todo.
241 Método utilizado para elaborar, à margem da CIG 2000, a Carta dos Direitos Fundamentais da União. 242 Cf. Paul Magnette. 2001. “Quo vadis Europe”. In Europe 2004 – Le Grande Debat: Setting the Agenda and Outlining the Options. Jean Monnet Groupe on the Future of Europe, Brussels, 15 e 16 de Outubro de 2001. [http://www.consuniv.org/post_nice/contributions.html].
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
Em síntese, a convenção aparece, deste modo, como uma espécie de compromisso
entre a urgência de reformar o método até aqui utilizado (e que se tem vindo a revelar
insuficiente) e a necessidade de ter em conta o “poder real” (na figura dos representantes dos
eleitos nacionais). Poderemos talvez ir mais longe e dizer que, tal como foi definida, a sua
composição reflecte já a governação multi-nível da União ao colocar em pé de igualdade
representantes dos governos nacionais e das instituições europeias (que por sua vez devem
ouvir os cidadãos):
“[S]’inspirant de la fameuse doctrine fédérale de la ‘doublé légitimité’, elle mele élus
nationaux et européens; tenant compte des spécificités du ‘modèle communautaire’,
elle inclut les repésentants des gouvernments de la Commission, et designe des
organes consultatifs. Au total, la convention apparaît comme un précipité de
l’ensemble des éléments du système politique européen” (Magnette 2001, 4)
[sublinhado nosso].
Ao convocarem a Convenção sobre o futuro da Europa, os chefes de Estado e de
governo deram, por conseguinte, um passo decisivo naquele que parece ser o caminho
acertado, muito embora não tenham procedido a um corte radical com o passado. A
conferência intergovernamental manteve o seu papel inalterado, permanecendo o método
eleito para a revisão dos tratados. O que mudou foi, na realidade, a preparação da CIG que,
desta vez, usufruirá das conclusões de um grupo de reflexão extremamente alargado, onde os
vários pontos de vista estarão representados. Embora sem força vinculativa, esta inovação não
deixa de ter uma importância crucial se pensarmos que os assuntos que ocupam actualmente a
agenda comunitária são normalmente questões de extrema delicadeza que interferem, muitas
vezes directamente, com a soberania de cada Estado-membro. Efectivamente, uma das
explicações para os crescentes insucessos das CIG’s reside precisamente na natureza dos
assuntos abordados. Por uma questão de simplicidade recorreremos aqui à “velha” distinção
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
feita pelos cientistas políticos entre high politics e low politics243, pretendendo com ela ilustrar
que os acordos têm sido mais simples na área comercial e económica do que, por exemplo,
em áreas como a segurança e a política externa. É certo que, na prática, esta distinção se
apresenta difícil, senão mesmo impossível, bastando lembrar que a integração económica é,
por muitos, entendida como a força motora da integração política. Não obstante, se
reflectirmos sobre a história da construção comunitária veremos que, à medida que as
temáticas foram tocando mais directamente o núcleo da soberania dos Estados, foi sendo mais
difícil estabelecer compromissos e, quando conseguidos, o método intergovernamental
prevaleceu244.
Para concluir, parece-nos sobretudo importante relembrar que, embora a última
palavra permaneça nas mãos dos governos nacionais, a Convenção representa uma
oportunidade ímpar para que os restantes actores europeus possam participar na edificação de
um projecto político para a Europa. Embora sem força vinculativa, o documento saído da
Convenção terá pelo menos o mérito de ser o resultado de uma reflexão dos europeus sobre o
que querem fazer em conjunto e qual o rumo desejado para a União. Os cidadãos, verdadeiros
destinatários do projecto comunitário, têm aqui um ensejo único para encurtarem o seu
distanciamento em relação à União e para participarem activamente da construção da nova
Europa. É certo que este é apenas um pequeno passo para a Europa dos Cidadãos (até porque
o consentimento e o apoio destes implicará mais e melhores esclarecimentos, mais e melhores
oportunidades de participação), mas é um passo gigantesco para a democratização da
construção comunitária. As expectativas em relação aos resultados da Convenção são
elevadas, embora possamos dizer contraditórias. Sendo comparada por alguns à Convenção de
243 Distinção originalmente empregada por Ernest Haas para explicar o motivo pelo qual o spillover num determinado nível de decisão política poderia não influenciar outro nível. 244 Relembre-se, a título de exemplo, a PESC que, volvidas duas revisões dos tratados, mantém ainda inalterado o seu carácter intergovernamental.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
Filadélfia245 (que como sabemos deu origem à Constituição dos Estados Unidos da América
de 1787) é vista, por outros, como uma oportunidade para consagrar um modelo que devolva
aos Estados algumas das competências já delegadas246. Entre as duas vias existe um mar de
alternativas que têm agora oportunidade de ser discutidas247.
5.2 Composição e Regras de Funcionamento da Convenção
Tendo como finalidade “assegurar uma preparação tão ampla e transparente quanto
possível da próxima Conferência Intergovernamental”, o Conselho Europeu de Laeken
decidiu que a Convenção seria composta por representantes dos principais participantes no
debate sobre o futuro da União. Assim, para além de um presidente e de dois vice-
presidentes248, designados pelo próprio Conselho Europeu, fazem parte desta Convenção 15
representantes dos chefes de Estado ou de governo dos Estados-membros (1 por Estado-
membro); 30 membros dos parlamentos nacionais (2 por Estado-membro); 16 membros do
Parlamento Europeu e dois representantes da Comissão. Foi também acordada a participação
plena nos debates dos países candidatos à adesão, que estarão representados nas mesmas
245 O Presidente da Convenção, Valéry Giscard d’Estaing, foi uma das personalidades europeias a estabelecer esta comparação. Cf. Daniela Spinant. 2002. “Historical Convention on EU future to kick off”. Euobserver.com, 28 de Fevereiro de 2002. [http://www.euobserver.com/index.phtml?selected_topic =9&action=view&article_id=5368] (04. 03. 2002). Não obstante, se é verdade que as palavras “convenção” e “constituição” evocam a experiência americana, muitas são as diferenças que a separam da actual realidade europeia. Como sublinha Peter Norman, num artigo de opinião publicado na edição on-line do Financial Times, de 25 de Fevereiro de 2002: “there is a world of difference between 13 lightly populated pre-industrial former colonies and 15 modern EU states with their different cultures and 50 years of gradual integration behind them” [ênfase nossa]. 246 Entre os muitos exemplos bastará lembrar a proposta do Chanceler alemão Gerhard Schröder que defendia uma “renacionalização” da PAC. Cf. Daniela Spinant. 2002. “Germany to plead for radical reform of farm policy”. Euobserver.com, 27 de Fevereiro de 2002. [http://www.euobserver.com/index. phtml?selected_topic=9&action=view&article_id=5344] (04.03.200). 247 Nesta matéria concordámos com Yves Mény que, numa análise sobre a Convenção publicada na edição on-line do Le Monde, escrevia: “[L]a question cruciale au coeur du débat (...) n’est rien d’autre que la conciliation des souverainetés contradictoires de l’ensemble et des parties”. Para ajudar na difícil tarefa Mény propunha aos convencionais uma releitura dos Federalist Papers, especialmente do nº 29 em cuja conclusão, atribuída a Madison, se pode ler: “La Constitution proposée n’est strictement ni une constitution nationale ni une constitution fédérale; c’est un composé des deux” [sublinhado nosso]. Cf. Yves Mény. 2002. “Constituer l’Europe”. Le Monde.fr, 27 de Fevereiro. 248 Lugares ocupados por Valéry Giscard d’Estaing e por Giuliano Amato e Jean-Luc Dehaene, respectivamente.
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
condições dos Estados-membros (um representante do governo e dois dos parlamentos
nacionais)249. Estes países não podem, todavia, bloquear qualquer consenso que se venha a
formar entre os membros actuais da União.
A Declaração de Laeken estipula ainda que sejam convidados, na qualidade de
observadores, três representantes do Comité Económico e Social, juntamente com três
representantes dos parceiros sociais europeus; seis representantes do Comité das Regiões (a
designar por este Comité entre as cidades e as regiões com competência legislativa); e, o
Provedor de Justiça Europeu. O presidente do Tribunal de Justiça e o presidente do Tribunal
de Contas poderão igualmente intervir perante a Convenção (a convite do Praesidium).
Com o objectivo de impulsionar e fornecer uma primeira base para os trabalhos da
Convenção, os chefes de Estado e de governo acordaram na criação de um Praesidium da
Convenção do qual fazem parte o presidente, os vice-presidentes e nove membros oriundos da
Convenção (os representantes de todos os governos que durante a Convenção exerçam a
presidência do Conselho, dois representantes dos parlamentos nacionais, dois representantes
dos membros do PE e dois representantes da Comissão)250. Para um melhor desempenho das
suas funções o Praesidium poderá consultar, sempre que necessário, os serviços da Comissão
e os peritos da sua escolha sobre qualquer questão técnica que deseje aprofundar. Poderá
ainda, para o efeito, criar grupos de trabalho ad hoc. No decurso dos seus trabalhos o
Praesidium será assistido por um secretariado da Convenção (assegurado pelo Secretariado-
Geral do Conselho) que poderá integrar peritos da Comissão e do PE.
As reuniões da Convenção, que se prolongarão até Junho de 2003, terão lugar em
Bruxelas, estando todos os debates, bem como a totalidade dos documentos oficiais,
249 Para além dos 105 “convencionais”, a Declaração de Laeken prevê ainda que sejam designados membros suplentes, que tomarão parte nos trabalhos na ausência daqueles. 250 Respondendo a uma exigência dos países candidatos que entenderam como injusta a inexistência de um representante seu no Praesidium da Convenção, os inicialmente doze membros deste órgão decidiram acolher um novo elemento, que terá o estatuto de membro convidado, e deverá ser escolhido pelos países candidatos entre os seus parlamentares.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
disponíveis ao público. Os trabalhos da Convenção dividir-se-ão em três fases: uma fase de
escuta - “o que esperamos da Europa?” - que abrange os primeiros cinco meses de trabalho;
uma fase de estudo - “quais são as propostas em cima da mesa?” - que corresponderá ao
período da reflexão e estudo aprofundado251; e, finalmente, a fase da recomendação e das
propostas que, de acordo com as previsões iniciais, decorrerá entre finais de 2002 e inícios de
2003. Compete ao presidente da Convenção apresentar a cada conselho europeu um relatório
oral sobre o “andamento” dos trabalhos, o que lhe permitirá recolher o feed-back dos chefes
de Estado e de governo. Depois de estudadas as diversas temáticas, cabe aos “convencionais”
elaborar um documento final que poderá compreender quer diferentes opções (neste caso
deverá ser indicado o apoio de cada uma delas), quer recomendações (havendo consenso).
Será este documento final que, juntamente com os resultados do debates nacionais sobre o
futuro da União, servirá de ponto de partida para os trabalhos dos líderes europeus que, na
conferência intergovernamental de 2003, tomarão as decisões finais252.
Pretendendo-se com este novo método um maior envolvimento dos cidadãos, o
Conselho Europeu de Laeken acordou também na criação de um Fórum que, actuando
paralelamente aos trabalhos da Convenção, está aberto à participação das organizações
representativas da sociedade civil (parceiros sociais, meio empresarial, organizações não 251 O artigo 15 do Regulamento interno da Convenção atribuía ao Praesidium a faculdade de criar grupos de trabalho, por recomendação do presidente da Convenção ou de um número significativo de membros. Confrontados com a difícil tarefa de responder a um número muito elevado de questões, os membros da Convenção entenderam como necessária a criação inicial de seis grupos de trabalho. A evolução dos trabalhos da Convenção e o alargado número de questões decisivas para o avançar do projecto europeu acabariam, todavia, por ditar a necessidade de estabelecer uma “segunda série” responsável pelo estudo de novas temáticas. Assim, no total foram criados onze Grupos de Trabalho, cada um dos quais ficou encarregue de reflectir e apresentar soluções sobre uma das seguintes matérias: subsidiariedade; integração da Carta dos Direitos Fundamentais / adesão da Comunidade/União à Convenção Europeia dos Direitos do Homem; personalidade jurídica da União; papel dos parlamentos nacionais; competências complementares da União (sua legitimidade e o seu exercício); governação económica da União e da zona euro; a acção externa da União; a defesa; a simplificação dos tratados; a liberdade segurança e justiça e a Europa social. A estes somaram-se, ainda, círculos especiais de discussão, como é o caso do círculo de discussão sobre o Tribunal de Justiça, presidido pelo comissário António Vitorino. De referir que destes grupos emanaram propostas de grande importância para o avanço do projecto europeu, como sejam, por exemplo, a atribuição de personalidade jurídica à União como um todo, o reforço do papel atribuído aos parlamentos nacionais na vida comunitária (nomeadamente através do controlo da observância do princípio da subsidiariedade) ou a integração da Carta dos Direitos Fundamentais da UE no tratado constitucional. 252 Para uma exposição mais detalhada das regras de funcionamento da Convenção ver “European Convention Rules of Procedures” [http://european-convention.eu.int/].
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
governamentais, círculos académicos, entre outros). O objectivo é criar uma rede estruturada
de organizações que serão regularmente informadas sobre os trabalhos da Convenção e cujas
contribuições servirão para alimentar o debate. Sempre que se julgue necessário estas
organizações poderão mesmo ser ouvidas ou consultadas sobre assuntos específicos.
5.3 A Reforma Institucional: as Principais Propostas em Debate
O debate sobre a reforma institucional merece, sem dúvida, o título de “um dos mais
aguardados” da Convenção sobre o futuro da Europa253. O alargamento, já decidido, a dez
novos países, e a perspectiva de uma nova ronda de adesões num futuro próximo, tornam
inadiável a necessidade de operar uma reforma profunda no sistema de governação
comunitário254. Sem ela, a “Grande Europa” corre o risco de uma paralisia involuntária, cuja
consequência será um indesejável “marcar passo” do processo de integração europeia, ou,
considerando o pior dos cenários, o seu retrocesso. Por outro lado, é chegado o momento de a
Europa definir novos objectivos políticos. O avançar do processo de integração inscreveu na
agenda comunitária questões tradicionalmente da competência dos Estados-membros. Hoje
são os cidadãos que solicitam “mais Europa” em áreas tão importantes como a política
externa europeia (na sua componente comercial, diplomática e militar), a segurança e
estabilidade interna ou na afirmação de um modelo social europeu. Para garantir o apoio dos
cidadãos, os líderes europeus compreenderam a necessidade de adaptar as instituições
europeias às novas exigências. Todavia, como em todas as matérias com influência directa na
essência do projecto europeu, as diversas soluções avançadas são substancialmente
253 Num artigo publicado na edição on line da BBC News o debate sobre a reforma institucional era apelidado de debate-chave dado que “it ultimately decide who runs the European Union and where the real power lies”. Cf. “Radical Reform Plans Gets First Euro-test”. BBC News, 20 Janeiro 2003. 254 A este propósito gostaríamos de chamar a atenção para um contributo apresentado à Convenção por Alain Lamassoure, onde este faz uma análise particularmente interessante das principais instituições europeias e da sua evolução na nova Europa. Cf. Alain Lamassoure. “Novas Instituições para uma Nova Europa”, CONV 452/02, CONTRIB 166.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
heterogéneas, estando longe de merecer o apoio unânime dos Estados-membros. As
tendências dividem-se entre modelos que privilegiam o poder dos Estados, portanto, a
vertente intergovernamental e os que preconizam um reforço das instituições mais
suprancionais, nomeadamente da Comissão. Às diferenças de opinião, alicerçadas na
tradicional dicotomia intergovernamentalidade / supranacionalidade, há que somar também
uma tendência crescente para a divergência de posições entre “grandes” e “pequenos”, numa
espécie de “luta pelo poder” a que já nos vamos habituando.
Numa época em que a Europa se encontra numa bifurcação, o debate adivinha-se
difícil, mas entre as posições extremadas que defendem um “Estado federal” ou uma simples
“cooperação entre Estados-nação” cabe um leque considerável de propostas que oferecem
alternativas verdadeiramente interessantes. Preconizando uma “solução de compromisso” uma
boa parte dessas propostas deixa já antever uma aposta num modelo de tipo neofederal que,
não pretendendo criar um novo Estado, aspira antes a unir a diversidade de um continente sob
uma forma nova. Dificilmente rotulável com recurso aos “velhos” conceitos jurídicos255
porque integra (e julgamos que continuará a integrar) um misto de elementos federais e
intergovernamentais, esta entidade só poderá ser apreendida na sua essência através da lente
de um federalismo novo, que associa elementos dos diferentes modelos existentes (americano,
alemão, suíço), mas que não se confunde com nenhum deles.
5.3.1 A Comissão Europeia
Num artigo de opinião publicado na edição on-line do Financial Times, Charles
Grant256 escrevia: “[T]he European Comission is a pale shadow of its former self, lacking the
self-confidence and authority it enjoyed in the era of Jacques Delors”. Sem contemplações, o 255 No campo dos conceitos têm sido avançadas algumas fórmulas inovadoras, destacando-se a de “nova Confederação”, a de “União de Estados e de Povos”, ou a mediática “Federação de Estados-nação”. 256 Cf. Charles Grant. 2002. “The European Union Needs a New Leader”. FT.com, 07 de Outubro de 2002.
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
Director do Centre for European Reform traduz de forma clara a situação actual da instituição
mais supranacional da UE. Não negando o esforço empreendido (sobretudo após a crise da
“Comissão Santer”) para dar um renovado alento ao papel da Comissão no triângulo
institucional, a verdade é que as sucessivas revisões dos tratados (com particular destaque
para Nice) têm-na penalizado notoriamente. O resultado é hoje uma instituição a braços com
um sério problema de descrédito e falta de autoridade, muito longe de ser o desejado “motor
da integração europeia”257. A necessidade de mudança no seu modus operandi foi há muito
percebida, estando já em curso algumas medidas com vista a uma maior transparência, clareza
e eficácia no desempenho das suas funções. Sem embargo, o caminho a percorrer é ainda
longo e dependerá, em larga medida, do papel que as diferentes propostas para a reforma do
sistema institucional comunitário lhe reservam.
A maioria dos contributos apresentados à Convenção no âmbito da reforma
institucional aponta para a necessidade de um reforço do papel da Comissão no actual
triângulo institucional: uma União cada vez mais heterogénea só poderá funcionar com um
poder executivo forte258. Esta ideia merece especial apoio dos pequenos e médios países que
vêem nesta instituição a garante do interesse geral da União e a consideram uma espécie de
“porta voz” daqueles que, pelo menor peso político, teriam maior dificuldade em fazer valer a
sua opinião num contexto mais intergovernamental. A estes junta-se a Alemanha, que vê no
257 Num contributo intitulado “De Nouvelles Institutions por une Novelle Europe” apresentado por Alain Lamassoure à Convenção sobre o futuro da Europa pode ler-se: “[D]epuis le traité de Maastricht et l’élargissement précédent, la Commission est ‘l’homme malade’ de l’Union. La raison en est simple: sa légitimité politique s’est affaiblie au moment même où elle aurait dû se renforcer. (...) le renforcement de la règle du partage égalitaire des Commissaires entre les Etats (Amsterdam, Nice) dans un ensemble où s’accroît spectaculairement la disparité démographique entre les pays sape la représentativité de la Commission (…) Et nous n’étions alors que quinze : à vingt-cinq, la Commission aura vécu ” (CONV 452/02, CONTRIB 166, 3) [sublinhado no original]. 258 A este propósito apraz-nos notar que a tendência é para se falar cada vez mais em poder executivo e menos em governo europeu. Ora, como sabemos a União não é um Estado, não nos parecendo, portanto, que deva seguir o tradicional modelo de soberania estatal (um Parlamento e um governo responsável apenas perante aquele). De facto, na originalidade da partilha de poderes na UE julgamos residir uma boa parte do seu sucesso, embora reconheçamos que é indispensável eliminar alguma ambiguidade que se foi instalando ao longo dos anos. Ainda assim, julgamos que a fórmula adequada para uma entidade que não é, nem pretende tornar-se, um Estado continuará a ser a divisão de poderes e não a sua separação nos termos do modelo proposto por Montesquieu (poder executivo, legislativo e judicial entendidos como três ramos autónomos).
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
reforço do poder da Comissão a possibilidade de dar um passo em frente na ambicionada
“federalização” da União. Não obstante, as formas encontradas para atingir tal objectivo
variam substancialmente.
Entre as principais inovações merece particular atenção a que envolve o presidente da
Comissão. Assim, como forma aparente de aumentar a legitimidade desta instituição uma
parte significativa dos contributos apresentados à Convenção propõe a eleição do seu
presidente pelo Parlamento Europeu, sujeito a posterior aprovação pelo Conselho Europeu
(ambos deliberando por maioria qualificada259). A Comissão passaria, deste modo, a estar
investida de uma dupla legitimidade, sendo responsável politicamente, quer perante o
Parlamento Europeu, quer perante o Conselho Europeu260. Este é um ponto fulcral dado que o
aumento da responsabilização da instituição que detém o monopólio da iniciativa261, tem
como consequência um reforço da legitimidade da própria União Europeia. Por seu turno, um
presidente eleito gozaria também de maior autoridade e legitimidade junto do colégio de
comissários.
Os críticos desta proposta consideram, no entanto, que a mesma resultaria numa
politização inaceitável desta instituição - já que tornaria inevitável o fim da sua neutralidade
política – comprometendo gravemente a sua proclamada imparcialidade. Ainda que, em
259 De referir que alguns dos contributos defendem a deliberação por maioria simples, pelo menos no PE. 260 Como se sabe, o presidente da Comissão é, actualmente, designado pelo Conselho, sendo posteriormente esta designação sujeita à aprovação pelo PE (artigo 241º TCE). O novo sistema proposto visaria, portanto, como refere Olivier Duhamel (CONV 506/03, CONTRIB 207, 2-3) inverter esta ordem, por forma a cumprir três objectivos: um presidente mais legítimo; uma Comissão mais eficaz; e, finalmente, uma UE mais democrática. 261 O Tratado de Roma atribuiu à Comissão a responsabilidade quase exclusiva do direito de iniciativa legislativa. As sucessivas revisões dos tratados vieram confirmar, no geral, esta tendência. Como resultado, o monopólio da inicitiva legislativa da Comissão cobre a quase totalidade do domínio comunitário, com excepção para o Título IV do TCE (em que, provisoriamente, a Comissão partilha a iniciativa com os Estados-membros) e para algumas disposições específicas do tratado (como por exemplo, as modificações dos estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais ou as medidas punitivas em caso de violação dos princípios fundamentais por um Estado-membro). De realçar, porém que, como é referido num contributo apresentado à Convenção intitulado “O Direito de Iniciativa da Comissão”, o monopólio de jure do direito de iniciativa atribuído à Comissão não corresponde a um monopólio de facto. Na verdade, esta instituição limita-se, na maior parte das vezes, a “transformar em acto jurídico as obrigações assumidas pela Comunidade no plano internacional, a propor ‘actos devidos’ em virtude do Tratado ou do direito derivado e a dar seguimento aos pedidos de legislação que emanam do Conselho, do Parlamento Europeu, dos Estados-membros e das partes interessadas (agentes económicos, sindicatos, ONG, etc.)” (CONV 230/02, CONTRIB 79, 4). A “pressão legislativa” a que está sujeita é, aliás, uma das dificuldades apontadas pela Comissão para uma adequada observância do princípio da subsidiariedade.
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
teoria, esta reforma pareça mudar de facto a natureza da Comissão (dado que o novo processo
de escolha do seu presidente compromete de alguma forma a sua independência face aos
interesses partidários) julgamos, todavia, que tal não será uma mudança indesejável (até
porque, poder-se-á contra-argumentar, o método actual dificilmente poderá ser apontado
como garante de independência em relação aos interesses nacionais). Aliás, como sublinha
Duhamel (CONV 506/03, 3), mesmo com o modo de designação actual, a Comissão, não é
apenas um “secretariado administrativo”, mas é já um órgão político: “[E]lle a été et est
présidée par des hommes politiques, choisi par des dirigeants politiques, accepté par um
Parlement politique”. Por outro lado, não será de mais notar que as competências desta
instituição (iniciativa legislativa e controlo da sua execução) são, na sua essência,
eminentemente políticas262, tornando deste modo menos compreensível a exigência de
neutralidade política. Por último, mas não menos importante, este parece-nos ser um passo em
frente para uma União que se ambiciona mais democrática e mais próxima dos cidadãos. De
facto, para que seja possível construir uma ligação real entre os cidadãos e as instituições
europeias, afigura-se indispensável que aqueles possam sentir que “têm uma palavra a dizer”
na escolha dos “governantes” comunitários (à semelhança do que acontece, aliás, a nível
nacional263). Não obstante, actualmente as eleições europeias não têm qualquer efeito político
directo sobre o governo da União. Ora, a designação do presidente da Comissão pelo PE (em
simultâneo, na medida do possível, com a eleição desta assembleia) teria precisamente a
vantagem de corrigir, pelo menos em parte, esta lacuna, contribuindo assim para a afirmação
gradual de um sentimento de pertença à União264.
262 Como sublinha Alain Lamassoure (COV 507/03, CONTRIB 208, 3) “[D]ans une démocratie moderne, seuls les organes d’expertise et de jugement doivent être politiquement indépendants; leurs membres sont choisis en fonction de leur seule compétence professionnelle. Au contraire, l’initiative des lois et le contrôle de leur exécution sont au cœur de la fonction politique”. 263 A nível nacional, a escolha dos responsáveis pelo Executivo decorre directa (por sufrágio universal) ou indirectamente (por designação da maioria parlamentar) do voto dos cidadãos. 264 De referir que a eleição directa do presidente da Comissão pelos eleitores europeus seria, provavelmente, a solução ideal, embora reconheçamos que tal necessitaria talvez de um outro estádio de desenvolvimento da vida política europeia. Como nota Duhamel (CONV 506/03, CONTRIB 207, 3) “(...) l’élection de facto du président
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
Quanto à nomeação do colégio de comissários, as propostas atribuem, no geral, esta
responsabilidade ao Conselho (de comum acordo com o presidente da Comissão),
estabelecendo ainda como condição a aprovação (prévia ou posterior) do PE. É, contudo, de
referir que, embora em número mais reduzido, alguns contributos consideram que esta tarefa
deveria ser confiada exclusivamente ao presidente eleito: “si son Président est issu d’une
élection démocratique, la meilleure solution est de lui permettre de constituer son équipe
de commissaires comme il l’entend” [ênfase no original]265. Por seu turno, no que respeita
às competências da Comissão, as propostas apontam, na sua maioria, para um reforço e
alargamento destas, ainda que domínios como a segurança, a defesa e a justiça permaneçam
fora do seu âmbito de acção. Já no que concerne ao seu funcionamento interno, é reconhecida
a necessidade de uma estruturação do colégio que possibilite manter a eficácia desta
instituição depois de consumado o alargamento. Para além da questão do número de
Comissários, cuja solução (plasmada no Protocolo relativo ao alargamento, anexo ao Tratado
de Nice) parece desagradar profundamente aos Estados de menor dimensão266, é necessário
proceder a uma reformulação do funcionamento interno da Comissão. Neste sentido, a
solução poderá passar por uma reestruturação do colégio em torno das principais funções da
União, com a ressalva de que deverão ser salvaguardados os equilíbrios políticos e
geográficos. A responsabilidade de tal tarefa deverá incumbir ao presidente eleito, para quem
são reclamados, pela própria instituição, mais poderes de direcção política (no seio da
instituição e fora dela)267.
de la Commission par les electeurs est l’objectif démocratique fondamental à l’arrière-plan de l’option en faveur de son élection par le Parlement, mais il ne s’agit que d’un objectif lointain et aléatoire, qui dépend des évolutions à venir de la vie politique européenne”. 265 Cf. Lamassoure. “O equilíbrio das Instituições”, CONV 507/03, CONTRIB 208, 4. 266 Num artigo de opinião intitulado “A Igualdade dos Estados na UE”, João Cravinho faz a defesa de uma Comissão colegial “em cujas decisões votem por igual todos os comissários, havendo sempre um comissário por Estado-membro”, considerando que tal configuração não impederia esta instituição de se organizar adequadamente, por exemplo, através da atribuição de pelouros executivos apenas a dez ou quinze dos seus membros. Diário Notícias, 22 de Fevereiro de 2003. 267 Ver, por exemplo, a comunicação da Comissão sobre a arquitectura institucional “Para a União Europeia: Paz, Liberdade, Solidariedade”. CONV 448/02, CONTRIB 165, 19.
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
Em síntese, embora configurando diferentes soluções, as propostas de reforma da
Comissão apontam quase invariavelmente no sentido de um reforço da legitimidade
democrática e da eficácia da instituição encarregue de enunciar o interesse geral da União,
mas que tem visto fragilizada a sua posição no triângulo institucional pelas últimas reformas
dos tratados. Se adoptadas as novas propostas - sobretudo a eleição do seu presidente pelo PE
- a tónica parece voltar a colocar-se no seu direito de iniciativa legislativa e no seu evoluir
para uma espécie de “executivo da União” que, nas palavras de Lamassoure, “[C]’est un
exécutif, qui n’a pas une compétence générale comme un gouvernement national, mais qui
s’apparente au moins à l’exécutif d’une collectivité territoriale, gérant des compétences
propres limitées” (CONV 507/ 03, 5) [sublinhado nosso].
5.3.2 O Conselho de Ministros268
A necessidade de uma reforma no Conselho de Ministros há muito bem sendo
268 A reforma do Conselho de Ministros e do Conselho Europeu estão de alguma forma relacionadas na medida em que do ponto de vista jurídico, podemos talvez considerar o Conselho Europeu como sendo o Conselho da UE reunido com uma composição especial - chefes de Estado e de governo, mais o presidente da Comissão – e para fins claramente definidos (na verdade, as opiniões dividem-se quando se trata de atribuir a classificação de instituição ao Conselho Europeu, pelo menos no sentido jurídico, embora tal nos pareça a designação mais apropriada). Por esta razão consideramos a possibilidade de integrar neste subtítulo as propostas apresentadas à Convenção para a reforma do Conselho Europeu. Optamos, todavia, por não o fazer, por consideramos que tais propostas estão já, em grande medida, explicitadas nos vários subtítulos dedicados às três instituições do triângulo institucional e, sobretudo, no que concerne à presidência da União. Não poderíamos, no entanto, deixar de apresentar uma pequena nota relativa a esta instituição central da UE. Formalmente reconhecido pelo Acto Único Europeu, o Conselho Europeu viu a sua base legal consagrada pelo TUE, ainda que tenha sido deixado de fora da parte relativa às instituições do TCE e, consequentemente, tenha ficado livre dos seus “checks and balances”. Não obstante, as suas reuniões estão longe de ser um exemplo de mera cooperação intergovernamental, sobretudo pela importância das decisões tomadas. De facto, as sucessivas revisões dos tratados contribuiram para fazer desta instituição o verdadeiro motor da integração política. Ainda assim, a necessidade de uma reforma não passou despercebida: a sua demasiadamente sobrecarregada agenda e a falta de preparação adequada das suas reuniões tornaram o consenso cada vez mais difícil. Como nota Charles Grant, num artigo intitulado “The European Union Needs a New Leader” publicado no FT.com de 07 de Outubro de 2002, “[B]ut what of the European Council, where the heads of government and the Commission president are supposed to discuss strategy? This has became a bureaucratic circus, with many national delegations running to over a hundred officials (…) The prime ministers spend too long on technical questions that ministerial councils have failed to resolve. Their meetings often produce fine declarations (…) but there is no effective mechanism for ensuring prime ministers to fulfil their promises”. Apesar das diferentes soluções apresentadas para reforma desta instituição, sobretudo no que repeita à sua presidência, os principais contributos apresentados à Convenção convergem pelo menos na necessidade de “recentrar” o papel do Conselho Europeu na definição das grandes orientações políticas e estratégicas da União.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
percebida. Entre as principais críticas contam-se a “obscuridade” do processo deliberativo, a
ainda frequente exigência de unanimidade na tomada de decisão, e uma excessiva subdivisão
em conselhos especializados. O Conselho Europeu de Helsínquia, de Dezembro de 1999,
marcou o arranque de um processo de mudança que culminaria com a aprovação, pelo
Conselho Europeu de Sevilha, de um conjunto de medidas relativas à estrutura e ao
funcionamento do Conselho de Ministros.269 Entre as principais alterações contam-se, por
exemplo, a criação de uma nova formação “Assuntos Gerais e Relações Externas” (em
substituição da formação “Assuntos Gerais”); a abertura ao público das sessões do Conselho,
sempre que este delibere em co-decisão com o PE; a cooperação entre presidências (sempre
que seja perceptível que a discussão de um determinado dossiê, iniciada num dado semestre,
se estenderá ao semestre seguinte); e, a programação das actividades do Conselho através da
aprovação pelo Conselho Europeu, com base numa proposta conjunta das presidências
envolvidas (elaborada em consulta com a Comissão e por recomendação do conselho dos
Assuntos Gerais) de um programa estratégico plurianual270 (para os três anos seguintes).
Apesar destas e de outras medidas aprovadas, a necessidade de uma reforma mais
profunda do Conselho de Ministros continuou a impor-se, nomeadamente no que respeita ao
seu funcionamento interno e à tomada de decisão. Quanto à segunda questão, os contributos
apresentados à Convenção vão, em geral, no sentido de uma extensão da vmq que deve tornar-
se a regra (de par com uma extensão do procedimento de co-decisão). Também em discussão
está a possibilidade de tornar públicas as sessões do Conselho em que este exerça funções
legislativas. Já no que respeita ao primeiro ponto são várias as propostas em debate. Pela sua
originalidade, abordaremos aqui preferencialmente os contributos de Pierre Lequiller e de
269 De referir que a reforma iniciada em Helsínquia, e que viria a ser prosseguida em Gotemburgo, Barcelona e Sevilha, visava não apenas a organização e funcionamento do Conselho de Ministros, mas também do Conselho Europeu. Cf. “Conclusões do Conselho Europeu de Helsínquia”, Anexo III “Um Conselho Eficaz para uma União alargada”; e “Conclusões do Conselho Europeu de Sevilha”, Anexos I e II. 270 À luz do qual é apresentado anualmente ao conselho dos Assuntos Gerais um programa operacional anual das actividades do Conselho, proposto conjuntamente pelas duas presidências seguintes.
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
Adrian Severin.271
A solução apresentada por Lequiller sugere a divisão do Conselho em três grandes
formações: Economia e moeda (a cargo dos ministros da economia e das finanças); Política
externa e de segurança comum (composta pelos ministros dos negócios estrangeiros e,
eventualmente, pelos ministros da defesa); e Assuntos internos e Justiça (da responsabilidade
dos ministros da administração interna e da justiça), a que se somariam seis conselhos
sectoriais.272 As presidências das diferentes formações seriam asseguradas por ministros em
exercício de um grupo de países (segundo regras de rotação geográfica e por um período de,
por exemplo, dois anos e meio), com excepção da formação “Política externa e de segurança
comum” cuja presidência competiria ao, também novo, ministro dos negócios estrangeiros da
União.
A ideia de criar um cargo de ministro dos negócios estrangeiros europeu, ou, pelo
menos, de um representante europeu para as relações externas273 é, aliás, comum a várias
271 Cf. Pierre Lequiller “Um Presidente para a Europa”, CONV 320/02, CONTRIB 108, e Adrian Severin “A Reforma Institucional”, CONV 488/03, CONTRIB 191. De referir que estes contributos propõem uma reforma geral das instituições, pelo que as soluções apontadas para o Conselho, e por nós abordadas neste subponto, representam apenas uma parte de propostas globais. 272 Para além das três grandes formações gerais, Lequiller propõe seis conselhos sectoriais: emprego, política social, saúde e consumidores; competitividade (mercado interno, indústria e investigação): transportes, telecomunicações e energia; agricultura e pescas; ambiente; e educação, juventude e cultura. Estes conselhos sectoriais fazem parte de uma lista de nove formações do Conselho, previstas pelo Conselho Europeu de Sevilha, com excepção das três primeiras (assuntos gerais e relações externas; questões económicas e financeiras; e justiça e assuntos internos), que são, com pequenas alterações, apresentadas, na proposta deste membro da Convenção, como formações principais. 273 Esta é, aliás, uma das propostas apresentadas pelo Grupo de Trabalho VII encarregue de debater a acção externa da União. De acordo com as conclusões deste Grupo, plasmadas no seu “Relatório final”, para se conseguir um reforço da coerência e eficácia das decisões de política externa, bem como da utilização dos instrumentos no domínio das relações externas, há que reconsiderar os actuais papéis do Alto-representante para a PESC e do comissário das relações externas. Entre as várias soluções possíveis, mereceu uma tendência favorável o exercício de ambos os cargos por um “Representante Europeu para as Relações Externas” (importa sublinhar que o relatório do Grupo de Trabalho enuncia expressamente que, embora tenham sido considerados outros títulos - como o de “Ministro dos Negócios Estrangeiros da UE” e o de “Secretário da UE para as Relações Externas” - a opinião dominante é favorável ao de “Representante Europeu para as Relações Externas” por não corresponder a nenhum título utilizado a nível nacional). Ainda segundo o mesmo relatório, esta personalidade, que combinaria as funções do Alto-representante e do comissário das relações externas, seria nomeada pelo Conselho Europeu, deliberando por maioria qualificada, com a aprovação do presidente da Comissão e o acordo do PE; receberia mandatos directos do Conselho e responderia perante este relativamente às questões do domínio da PESC; seria membro efectivo da Comissão (preferencialmente seu vice-presidente) e, na qualidade de comissário das relações externas, apresentaria propostas ao colégio e participaria de pleno direito nas decisões tomadas por este em relação a matérias actualmente da competência da Comunidade; e,
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
propostas apresentadas à Convenção, surgindo como uma tentativa de conferir maior
coerência e credibilidade à União na cena internacional, através da concentração - numa
mesma pessoa - das funções do Alto-representante para a PESC e do comissário das relações
externas. Ainda que a necessidade de reduzir o número de representantes externos da União
seja consensual, a proposta não deixou de suscitar divisões no seio da Convenção, sobretudo
porque, segundo as conclusões do Grupo de Trabalho VII (encarregue de apresentar soluções
para melhorar a eficácia da acção externa da UE) este representante teria assento na
Comissão, mas seria responsável perante o Conselho nas matérias da PESC (double
hatting)274. Esta dualidade que, no fundo, é resultado da própria realidade da União (cuja
política externa e de segurança apesar de comum é claramente intergovernamental) levanta de
facto algumas dúvidas em termos de eficácia e de coerência interna, ainda que, sem uma
(pouco provável) “comunitarização” da PESC, outra solução se afigure difícil.
Uma das ideias mais inovadoras da proposta de Lequiller consiste na criação
(paralelamente às formações sectoriais do Conselho de Ministros) de um “Conselho
permanente da União” que seria presidido pelo “Presidente da Europa”. Composto por
representantes permanentes dos Estados-membros, tal Conselho, deveria reunir pelo menos
uma vez por mês e teria a seu cargo a coordenação, preparação e apoio dos conselhos
europeus, das questões institucionais e administrativas e dos dossiês cujas questões são
transversais a várias políticas da União. Ainda que compreendendo a intenção por detrás de
tal solução - nomeadamente no que respeita a uma exigência de maior coerência e
continuidade nos trabalhos do Conselho (quer enquanto Conselho de Ministros, quer quando
reunido a nível de chefes de Estado e de governo) - julgamos, todavia, que a introdução de
uma nova instituição, ou pelo menos, de uma nova formação, dificilmente poderá contribuir
finalmente, asseguraria a representação externa da União, substituindo a actual troika. Cf. Relatório Final do Grupo de Trabalho sobre a Acção Externa, CONV 549/02, WG VII 17, 5. 274 De acordo com um artigo publicado no euobserver.com, Andrew Duff referiu-se mesmo a essa pessoa como sendo “a council cuckoo inside a commission nest”. Cf. Honor Mahony. 2002. “Convention Debates the Merits of ‘Double Hatting’”. Euobserver.com, 21 de Dezembro.
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
para a indispensável “descomplexificação” da estrutura institucional da UE.
A proposta apresentada pelo representante da Roménia – país candidato - na
Convenção é indubitavelmente mais radical. Defendendo uma reforma institucional profunda,
alicerçada na separação de poderes à la Montesquieu (executivo, legislativo e judicial), a
adopção da solução preconizada por Severin implicaria uma “requalificação” da natureza de
todas as instituições da União, bem como a divisão do conselho em lado executivo - conselho
executivo - e lado legislativo - conselho legislativo. Do lado executivo, passariam a fazer
parte o Conselho Europeu, composto pelos chefes de Estado e de governo; o conselho de
coordenação, composto pelos ministros dos assuntos europeus; o conselho dos assuntos
externos, composto pelos ministros dos negócios estrangeiros e presidido pelo ministro dos
Negócios Estrangeiros da União; e, ainda, os conselhos especializados, num máximo de dez, e
compostos pelos ministros das respectivas áreas (o conselho de coordenação, o conselho dos
assuntos externos e os conselhos sectoriais formariam o Conselho de Ministros). Ao conselho
executivo, Severin atribui quatro grandes funções: uma função de liderança, desenvolvida
essencialmente pelo Conselho Europeu; uma função de coordenação e uma função de
implementação levadas a cabo pelo conselho de coordenação e pelos conselhos sectoriais; e,
finalmente, aquilo que ele designa como uma função, ou, mais exactamente, um direito de
“call-back”, exercido pelo conselho de coordenação.
Por sua vez, o conselho legislativo seria formado pelos representantes pessoais dos
chefes de Estado e de governo dos Estados-membros e transformar-se-ia, na realidade, numa
segunda câmara do PE, isto é, num Senado. O seu papel principal consistiria, por conseguinte,
em “moderar” as actividades e decisões do Parlamento e da Comissão, por forma a torná-las
compatíveis com as aspirações e preocupações dos Estados-membros. Para tal, ser-lhe-ía
atribuído o poder de decidir, por maioria qualificada, sobre as propostas iniciadas pela
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
Comissão275; ao qual se somaria, ainda, o monopólio da ratificação dos tratados da União e o
direito de “call-back”.
Operadas as modificações acima enumeradas, seria possível proceder então a uma real
separação de poderes, sendo o ramo executivo da competência da Comissão (que passaria a
ser “the main executive body” e que se tornaria, gradualmente, no governo da União) e dos
“conselho executivo”/conselho de coordenação; cabendo o ramo legislativo ao conselho
legislativo e ao PE (num sistema bicamarário), e ficando o ramo judicial a cargo de um
sistema de tribunais europeus.
A proposta do Severin destaca-se, assim, no nosso ponto de vista, pela sua
originalidade apresentando uma solução substancialmente diferente da maioria dos
contributos, sobretudo no que respeita à separação de poderes. O seu principal mérito assenta
no pressuposto da necessidade de uma clarificação entre o exercício do poder executivo e do
poder legislativo, por forma a permitir ao cidadão identificar as responsabilidades de cada
uma das instituições no processo de decisão. Ainda assim, não estamos totalmente seguros
que a tradicional separação de poderes de Montesquieu (característica interna dos Estados
demo-liberais) seja a solução indicada para uma entidade que não é, e que não nos parece que
se venha a tornar, pelo menos num futuro próximo, um Estado. Por outro lado, com excepção
do poder judicial (cuja atribuição está claramente definida na actual estrutura institucional) a
solução apresentada por Severin, sobretudo pelo número de formações e instituições que têm
a seu cargo cada um dos restantes poderes, em pouco parece contribuir para uma
simplificação do intrincado processo de actuação comunitária.
Pelo exposto, parece-nos que, mais do que pela separação de poderes, a solução
passará por uma melhor divisão destes, por forma a que o “exercício partilhado” não sirva
apenas para camuflar “quem na realidade faz o quê”. A este propósito, não poderíamos deixar
275 Com a ressalva de que qualquer modificação a uma proposta da Comissão necessitaria da aprovação desta última, o que, não se verificando, implicaria a exigência de unanimidade na tomada de decisão.
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
de referir a comunicação da Comissão intitulada “Um Projecto para a Europa” (COM (2002)
247 final) onde se pode ler:
“[V]árias vezes se sublinhou o carácter inovador e o equilíbrio específico da
construção comunitária que organiza, não a separação, mas a divisão dos poderes.
Deste modo, o poder legislativo pertence ao Parlamento Europeu, mas também ao
Conselho; por seu turno, este partilha o poder executivo com a Comissão que dispõe
do monopólio da iniciativa legislativa, enquanto que a aplicação das políticas retorna
em grande medida às administrações nacionais ou regionais” [sublinhado nosso].
Sendo de esperar que o próprio sucesso do projecto comunitário imponha a readaptação das
suas principais premissas - mesmo daquelas que foram a chave de tal sucesso - não nos
parece, todavia, que o modelo a adoptar tenha forçosamente de ser o estatal, até porque a
União Europeia apresenta, como sabemos, um modelo de governação multi-nível, que não se
enquadra totalmente em soluções decalcadas de qualquer outro modelo. Não obstante, e
voltando à proposta de Severin, parece-nos que esta representa, ainda assim, uma base
interessante de reflexão, preconizando soluções que poderão servir de mote à inevitável
reforma do triângulo institucional. Referimo-nos, por exemplo, à proposta de criação de um
parlamento bicamarário, capaz de traduzir a dupla legitimidade em que assenta a União
(povos e Estados), talvez a forma mais eficaz de tornar o PE num verdadeiro co-legislador,
catapultando-o para o papel devido numa União que se quer verdadeiramente democrática,
como tem defendido com especial ênfase Lobo-Fernandes276.
5.3.3 O Parlamento Europeu
No que respeita à instituição parlamentar, os contributos apresentados à Convenção
276 Ver, por exemplo, Lobo-Fernandes. 2003. “Por um Sistema Bicamarário na UE”. Expresso, 07 de Junho.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
convergem num grande número de matérias. Assim, a “confirmação” da função legislativa do
Parlamento Europeu - nomeadamente através da generalização do processo de co-decisão - é
uma das soluções mais defendidas, o mesmo acontecendo com o alargamento das suas
competências no domínio da aprovação e controlo do orçamento comunitário277. Igualmente
consensual parece ser a necessidade de consagrar no futuro tratado constitucional os
princípios básicos de um procedimento eleitoral uniforme. Como forma de reforçar as
medidas já adoptadas neste sentido278 é sugerida, por exemplo, a possibilidade de as eleições
se realizarem no mesmo dia em todos os Estados-membros. Especial destaque merece o
contributo da Comissão (CONV 448/02) que propõe a criação de listas europeias apresentadas
em toda a União (em simultâneo com as nacionais), a partir das quais seria eleita uma
percentagem dos deputados europeus. Esta parece-nos ser uma proposta particularmente
interessante, sobretudo se encarada como um primeiro passo para a criação de partidos a nível
europeu, medida, em nossa opinião, fundamental para a criação de uma consciência política
europeia e, para o consequente, aprofundamento da democracia a nível europeu.
Apesar desta sintonia em torno de algumas das questões-chave, não deixaram de ser
introduzidas no debate soluções menos consensuais, embora igualmente pertinentes. É o caso
da eleição, pelo PE, do presidente da Comissão, ou da criação de uma segunda câmara em
representação dos Estados. Esta última hipótese pode vir a revelar-se uma solução interessante
para corrigir o “(des)equilíbrio institucional” que, desde o Tratado de Roma, tem penalizado a
instituição que representa os cidadãos 279. Conciliando as duas legitimidades da União
277 A este propósito, é introduzida por Jan Kohout (CONV 485/03, CONTRIB 188) uma questão particularmente interessante. Kohout chama a atenção para a necessidade de se regulamentar no futuro tratado constitucional as condições de dissolução do PE que, de acordo com o representante da República Checa na Convenção, deveria ter lugar sempre que esta instituição falhasse repetidamente a aprovação do orçamento comunitário ou de uma proposta de grande importância, para a qual a Comissão tivesse o apoio do Conselho de Ministros e do Conselho Europeu. 278 Sobre esta matéria refira-se que as decisões do Conselho de 25 de Junho de 2002 e de 23 de Setembro de 2002 (2002/772/CE/EURATOM), que alteram o acto relativo à eleição dos representantes ao PE por sufrágio universal directo, permitem já um sistema eleitoral mais homogéneo. 279 Note-se que o presidente da Convenção, Valéry Giscard d’Estaing, sugeriu a criação de um “Congresso dos Povos da Europa”, uma espécie de fórum onde estariam representados os parlamentares nacionais e europeus e
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
(população e Estados), um sistema bicamarário permitiria ultrapassar a complexa “tripla
maioria” nascida em Nice que, longe de servir a igualdade dos Estados, parece antes
contribuir para um profundo desequilíbrio280. Por outro lado, parece-nos também que tal
sistema não pressuporia necessariamente a criação de uma nova intituição, embora implicasse
inevitavelmente uma “readaptação” das instituições existentes (sobretudo do Conselho)281.
5.3.4 A presidência da União
A presidência da União é porventura um dos temas que mais controvérsia tem
suscitado no debate sobre o futuro da Europa. Apesar disso, ou talvez, por causa disso, é
também uma das matérias que mais propostas tem originado. Actualmente, cada Estado-
membro exerce a presidência por seis meses, em ciclos de 7 anos e meio por ordem alfabética
(no segundo ciclo inverte-se a ordem dos pares de modo a que cada um tenha oportunidade de
exercer a presidência nos dois semestres do ano). Pensada para um grupo de seis Estados, a
“presidência rotativa” depara-se agora com um fim que vem sendo anunciado pelos
ao qual poderia, eventualmente, ser atribuída a competência de eleger um presidente da União (CONV 369/02, 13). Na mesma linha, a proposta conjunta sobre a arquitectura institucional apresentada por espanhóis e ingleses à Convenção contempla também a possibilidade de criação de um Congresso que, reunindo uma vez por ano, seria uma espécie de “reedição” da actual Convenção europeia e teria como missão debater o programa da Comissão e a agenda do Conselho. A escolha dos seus membros ficaria a cargo dos parlamentos nacionais e do PE. Sublinhe-se, todavia, que, neste caso, o documento refere explicitamente que tal Congresso seria “(...) an informal political body, not a new institution, entitled to adopt resolutions or recommendations only” (CONV 591/03, CONTRIB 264, 4), embora não possamos deixar de o considerar uma nova peça no xadrês comunitário. A estes dois exemplos soma-se, também, o contributo de József Szájer (representante do parlamento húngaro na Convenção) que propõe a criação de um “Comité das Minorias Nacionais e Étnicas” composto por representantes das minorias nacionais e étnicas e dos povos indígenas que vivem nos Estados-membros (CONV 580/03, CONTRIB 258). 280 De facto, julgamos que mesmo as reticências dos países mais pequenos - que vêem na sua reduzida população uma clara desvantagem em termos negociais – poderiam eventualmente ser ultrapassadas se fosse equacionado um método que garantisse o princípio da igualdade entre Estados. 281 Neste domínio, diversas soluções se afiguram possíveis, parecendo-nos particularmente interessante a proposta de Elena Paciotti (membro suplente da Convenção). Tomando em consideração a absoluta necessidade de separar as funções executivas e legislativas do Conselho, Paciotti sugere que o Conselho exercendo a sua função legislativa em co-decisão como PE se torne numa espécie de “Câmara dos Estados”, composta pelos ministros responsáveis pelos assuntos europeus (CONV 486/03, CONTRIB 189), 4). Ainda que qualquer solução deste tipo mereça uma cuidadosa reflexão (até porque qualquer “novo arranjo institucional” não deve servir para complicar e obscurecer ainda mais o já de si intrincado relacionamento entre as instituições), parece-nos, todavia, que fornece um exemplo claro de como o bicamaralismo poderia resultar de um “rearranjo” da actual estrutura institucional.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
sucessivos alargamentos. Não negando o sucesso desta fórmula, a maioria dos líderes
europeus parece concordar que, tal como foi idealizada há quase cinquenta anos, dificilmente
servirá com eficácia uma Europa alargada. As divergências começam, pois, nas alternativas
apontadas: enquanto que uns advogam o fim da presidência rotativa e a eleição de um
presidente do Conselho (ou mesmo da União), outros defendem uma reformulação desta que
não ponha em causa o princípio basilar da rotatividade. As propostas apresentadas à
Convenção são, portanto, o reflexo destas duas visões distintas, para as quais é possível
encontrar na argumentação de cada um dos lados as vantagens e desvantagens de uma ou de
outra opção.
Para os que apontam a necessidade de acabar com o sistema rotativo as razões
afiguram-se claras: tal sistema determina uma constante mudança na liderança do Conselho,
dificultando a continuidade dos seus trabalhos e enfraquecendo, consequentemente, a
desejada credibilidade e coerência externa da União282. De facto, seis meses parece um
período execessivamente limitado para o desenvolvimento e execução de grandes projectos,
ficando, por conseguinte, a sua continuidade comprometida pelo início de uma nova
presidência cujas prioridades poderão ser diferentes das defendidas pela sua predecessora. Por
outro lado, numa União a 25, o já longo interregno entre as presidências exercidas por um
mesmo país, aumentaria exponencialmente, fazendo perder, como consequência, o que
consideramos uma das grandes vantagens da presidência rotativa: a maior visibilidade que
confere à actuação comunitária para os nacionais do país que ocupa a presidência (e o
subsequente fortalecimento da ligação entre os cidadãos e a União).
Apesar de partilharem os argumentos contra a manutenção do actual sistema de
rotação, as alternativas encontradas pelos que advogam um corte com o passado estão longe
282 Há quem aponte razões menos “altruístas” considerando, por exemplo, que os grandes Estados-membros (leia-se com maior influência política) não quererão delegar poderes substanciais nos assuntos externos e de defesa a uma União que, a cada seis meses, é presidida por um Estado-membro diferente, independentemente do seu tamanho e da sua importância na cena internacional. Cf. Josef Zieleniec. 2003. “A Questão da Presidência da União Europeia”, CONV 492/03, CONTRIB 195, 3.
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
de ser consensuais. Em termos gerais podemos, todavia, dividir os contributos apresentados à
Convenção em dois grandes grupos: os que defendem um presidente unificado para a União283
e os que preconizam uma presidência bicéfala284. No primeiro caso, a presidência rotativa
daria lugar a uma presidência permanente (por um período de, por exemplo, cinco anos)
ocupada por um “Presidente da União” (ou “Presidente da Europa”) eleito pelo Conselho
Europeu e confirmado pelo Parlamento Europeu285 (e, consequentemente, responsável perante
os dois). Exercendo a presidência quer da Comissão quer do Conselho Europeu, caber-lhe-ia
gerir os trabalhos das duas instituições, apoiando-se para tal nos serviços da Comissão e nos
serviços do secretariado do Conselho. Como resultado, o titular de tal cargo passaria a ser “a
face da União”, quer a nível externo (para os países terceiros), quer no plano interno (para os
cidadãos da União). Por outro lado, na opinião dos defensores desta proposta, este “duplo
exercício” teria a grande vantagem de conseguir transcender a abordagem tradicional que
opõe as legitimidades nacionais dos Estados (representadas pelo Conselho) à legitimidade
europeia (representada pela Comissão): “il appartient au Président de l’Europe d’assumer et
de conjuguer cette double légitimé” (CONV 320/02, 7).
Sendo uma proposta nitidamente arrojada, é talvez aquela que melhor serviria a
ambição de uma imagem forte e coesa da União na cena internacional. Não obstante, a sua
concretização implicaria um salto considerável na actual arquitectura institucional, só
exequível, em nossa opinião, numa “fase mais avançada” da construção comunitária. De
facto, a existência de um presidente europeu com real peso político (e não meramente
simbólico) pressuporia, em primeiro lugar, uma confluência de opiniões em relação ao futuro 283 Ver, por exemplo, Andrew Duff e Lamberto Dini. 2003. “Uma Proposta de Presidência Unificada”, CONV 524/03, CONTRIB 219; ver também Pierre Lequiller. 2002. “Um Presidente para a Europa”, CONV 320/02, CONTRIB 108. 284 Ver, por exemplo, “Contributo Franco-alemão para a Convenção Europeia sobre a Arquitectura institucional da União”, CONV 489/03, CONTRIB 192; ver também Henri de Bresson. 2003. “Paris et Berlin Proposent une Double Présidence de l’UE”. Le Monde.fr, 15 de Janeiro ; e “Les Principaux Points de la Contribuition Franco-allemande”. Le Monde. fr, 16 Janeiro de 2003. 285 Importa notar que uma das propostas faz depender a eleição do presidente da União, não da confirmação do PE, mas de um voto de investidura do “Congresso dos Povos da Europa” (proposto por Giscard d’Estaing). Cf. Pierre Lequiller. 2002. “Um Presidente para a Europa”, CONV 320/02, CONTRIB 108, 7.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
da integração europeia. Ora, a tradicional divisão entre a Europa intergovernamentalista (que
aposta no reforço do Conselho Europeu) e a Europa “federal” (que “joga as suas cartas” num
“ressuscitar” da Comissão), tornaria certamente árdua, senão impossível, a tarefa de exercer
imparcialmente a presidência destas duas instituições (a menos que existisse uma
transformação profunda da sua natureza). Por outro lado, mesmo considerando um cenário de
evolução de cariz neofederal - com a transformação gradual da Comissão em executivo
europeu e a limitação das actividades do Conselho Europeu à “grande” orientação política –
afigura-se-nos difícil que a mesma pessoa possa gerir, simultaneamente, a instituição
competente para traçar as linhas mestras do projecto político e a instituição responsável pela
sua execução. Às prováveis dificuldades no plano interno, há ainda que acrescentar que,
também no domínio externo, o impacto de um tal cargo na imagem e credibilidade da União
dependeria, em última instância, da força e prestígio político da personalidade eleita.
À presidência unificada opõem-se os defensores de uma presidência bicéfala,
preconizada pela França e Alemanha e apoiada por ingleses e espanhóis. Numa tentativa
evidente de pôr novamente em marcha o motor franco-alemão da Europa, o presidente francês
Jacques Chirac e o chanceler alemão Gerhard Schroeder decidiram, entre outras iniciativas,
elaborar um contributo conjunto para apresentar à Convenção no âmbito do debate sobre a
reforma institucional. Das várias medidas propostas destaca-se a opção por uma presidência
bicéfala da União que é, na realidade, uma “solução de compromisso” entre a vontade alemã
de reforçar a Comissão, e o desejo francês de conferir um papel de liderança ao Conselho
Europeu na nova Europa286. Assim, o contributo franco-alemão propõe um presidente da
Comissão eleito pelo Parlamento Europeu (por maioria qualificada dos seus membros) e 286 Como está subentendido nas próprias palavras do presidente francês, num discurso proferido no Palácio do Eliseu, em 14 de Janeiro de 2003: “(...) si nous voulions avoir, avec le moteur franco-allemand, une véritable impulsion pour l’Europe de demain, nous devions trouver de solutions simples et où chacun devait accepter de faire une concession à l’autre. Nous avons donc décidé une nouvelle fois que l’Allemagne et la France feraient chacune un pas vers l’autre. Dans cet esprit, la France a accepté que le Président de la Commission soit élu par le Parlement européen et l’Allemagne a accepté que le Conseil européen soit présidé par un Président élu par le Conseil à la majorité qualifiée pour une période de deux ans et demi renouvelables ou de cinq ans” [sublinhado nosso].
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
aprovado pelo Conselho Europeu (decidindo por maioria qualificada) de par com um
presidente do Conselho Europeu eleito, pela própria instituição (deliberando por maioria
qualificada), por um período de cinco, ou dois anos e meio, renovável. Aos dois presidentes
eleitos caberiam funções distintas, relacionadas sobretudo com a orientação e supervisão dos
trabalhos das respectivas instituições. Ao presidente do Conselho Europeu competiria ainda a
representação da União na cena internacional (aquando das reuniões de chefes de Estado e de
governo), sem prejuízo das competências atribuídas à Comissão e ao seu presidente, e
sabendo também que a condução da PESC ficaria a cargo do novo ministro europeu dos
negócios estrangeiros. De referir ainda que a personalidade escolhida para presidente do
Conselho Europeu exerceria funções a tempo inteiro durante a vigência do seu mandato,
resultando assim numa espécie de “profissionalização” deste cargo. Este é aliás, em nossa
opinião, um dos aspectos positivos desta proposta, já que a acumulação das responsabilidades
europeias com as exigências nacionais (a par com a excessiva diversificação dos assuntos
analisados pelo Conselho Europeu e o escasso número de reuniões anuais) acaba por
condicionar a preparação da agenda desta instituição e resultar, não raramente, em longas e
penosas maratonas negociais. Por outro lado, como sublinha Charles Grant287, um líder do
Conselho Europeu a tempo inteiro poderia servir de garante ao cumprimento dos
compromissos assumidos durante as reuniões da instituição, mas que são frequentemente
“esquecidos” ou adiados.
Recebida com agrado pela Espanha e pelo Reino Unido288, a proposta franco-alemã foi
287 Cf. Charles Grant. 2002. “The Twin Peaks of European Leadership”. FT. com, 16 de Janeiro. 288 Sublinhe-se que estes dois Estados-membros apresentaram igualmente uma proposta conjunta à Convenção que, apesar de preconizar também o fim da presidência rotativa, revela, não obstante, algumas diferenças em relação ao contributo franco-alemão. Assim, espanhóis e ingleses propõem um presidente da Comissão eleito pelo Conselho Europeu (deliberando por maioria qualificada) e só depois submetido à aprovação do PE (invertendo, portanto, os termos da proposta franco-alemã). Por outro lado, as reuniões sectoriais do Conselho seriam garantidas por uma presidência colectiva, com duração de dois anos, o que permitiria aos pequenos e médios países orientar algumas políticas comunitárias durante um determinado período. Novidade é também a possibilidade de criação de um Congresso, cujos membros seriam indicados pelos parlamentos nacionais e pelo PE. Reunindo uma vez por ano, o novo orgão político poderia debater o programa da Comissão e a agenda do Conselho. A finalizar a proposta aparece ainda a referência à necessidade de reforma do Tribunal de Justiça. Para
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
alvo de fortes desconfianças por parte dos Estados-membros mais pequenos (receosos de uma
concentração excessiva do poder nas mãos dos “grandes”) e de alguns membros da Comissão.
Uma das principais críticas está relacionada com o perigo de uma coabitação difícil289 entre os
dois pólos de poder. A ideia de que as competências dos dois presidentes não colidirão é
refutada por aqueles que consideram inevitável o aparecimento de tensões entre ambos:
“[S]ome supporters of the new president (...) urge us to ‘balance’ him or her with a
Commission president who would act, on the model of the French fifth republic, as a
prime minister or even chief executive. But the outcome of creating both a strog
Council and Commission president would sadly be all too predictable: the two figures
would compete with each other to speak to the EU’s allies abroad” (Peter Sutherland
2003, 2).
Este parece-nos, de facto, um risco provável, até porque o contributo franco-alemão não
apresenta regras claras para esta “coabitação”. Por outro lado, são também legítimos os
receios de uma complexificação das relações institucionais. Ainda que teoricamente os dois
presidentes actuem em esferas distintas, na prática tal delimitação poderá não ser fácil,
sobretudo se pensarmos que, pelo menos nos termos actuais, o presidente da Comissão
participa nas reuniões do Conselho Europeu. Igualmente sem resposta fica a questão do
controlo democrático, sendo, neste campo, grande a diferença que separa os dois presidentes.
De facto, se a proposta franco-alemã faz depender a eleição do presidente da Comissão do PE
e do Conselho Europeu (tornando-se assim a Comissão duplamente responsável perante estas
duas instituições), advoga a eleição do presidente do Conselho Europeu pelos seus pares, não
havendo portanto qualquer intervenção parlamentar. Ora, tal situação parece apresentar-se, o efeito, espanhóis e britânicos sugerem uma melhor divisão de funções entre este tribunal, o Tribunal de Primeira Instância e os painéis judiciais (criados por Nice), devendo o Tribunal de Justiça ocupar-se exclusivamente dos casos mais importantes (no documento é mesmo sugerida uma possível mudança de nome dos tribunais para reflectir os respectivos papéis). 289 De acordo com um artigo publicado na edição on-line do Le Monde, o presidente da Comissão Romano Prodi considerou que uma presidência bicéfala da União conduziria a uma coabitação “impossible”, invocando mesmo “le risque que l’Europe se brise, car il n’y aura pas d’unité de pouvoir”. Cf. “La Proposition Franco-allemande de Double Présidence de l’UE Ne Fait Pas l’Unanimité”. Le Monde. fr, 15 de Janeiro de 2003.
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
pois, em contradição com o desejado aumento da legitimidade democrática, um dos
objectivos centrais da reforma em curso: “[M]uch of the debate in and around the Convention
is about how to make EU institutions more democratic and accountable. A permanent
president of the Council, appointed by is or her peers, unccountable to any parliament and
without any clear democratic mandate, hardly tackles this problem” (Sutherland 2003, 3).
Em síntese, embora apresente algumas vantagens indiscutíveis (nomeadamente em
termos de estabilidade e de continuidade dos trabalhos do Conselho) a solução preconizada
pela França e pela Alemanha para a presidência da União levanta também alguns problemas
pertinentes. A esta ambiguidade não é certamente alheia o facto de a proposta ser o
“compromisso possível” entre uma visão mais intergovernamental da União preconizada pela
França e a defesa de um sistema mais “federal” desejado pela Alemanha. A tentativa de
conjugação dos dois ideais que durante anos tem dividido os construtores do projecto europeu
não poderia resultar noutro senão num modelo híbrido, que dificilmente satisfará
completamente os defensores de uma e de outra corrente. Ainda assim, não podemos esquecer
que a própria União é na sua essência uma entidade híbrida, cujo sucesso parece residir
precisamente num modelo misto que conjuga elementos supranacionais e
intergovernamentais. Por outro lado, pelo menos no que respeita ao relacionamento dos dois
presidentes, é sempre possível conceder o “benefício da dúvida” pois, como sublinha
Duhamel290: “[O]n peut redouter (...) une rivalité nuisible entre les deux présidents et
l’institutionnalisation d’une sorte de cohabitation au sommet de l’Europe, mais on peut aussi
penser que le président s’européanisera inéluctablement et travaillera de concert avec le
président de la Commission”.
Embora reconhecendo a necessidade de uma readaptação do sistema rotativo das
presidências, os pequenos países (incluindo os futuros Estados-membros) têm rejeitado
290 Cf. Henri Bresson. 2003. “Britanniques et Espagnols Approuvent une Double Présidence de l’Europe”. Le Monde.fr, 16 de Janeiro.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
veementemente a sua irradicação. Defendendo que a reforma das instituições deve preservar e
não perturbar o equilíbrio institucional e a igualdade entre os Estados-membros, a solução
poderia passar por uma “presidência de equipa”. Embora esta seja uma ideia que reúne alguns
apoiantes, são muitas as divergências quanto à melhor forma de a pôr em prática. Para o
representante da República Checa na Convenção, Jan Kohout, esta equipa deveria ser
composta por três países, cada um dos quais exerceria a presidência em três conselhos
sectoriais, por um período de 18 meses. Já a presidência do Conselho Europeu e das restantes
formações do Conselho encarregadas de definir as estratégias (COREPER, conselho dos
assuntos gerais) seriam exercidas na equipa sempre pelo mesmo Estado por um período de
seis meses, sob a coordenação dos restantes membros da presidência (CONV 485/03,
CONTRIB 188). Consideravelmente diferente, embora igualmente interessante, sobretudo
pela sua originalidade, é a solução apresentada por Péter Balázs (representante do governo
húngaro na Convenção); considerando que qualquer reforma da presidência do Conselho deve
respeitar três princípios básicos – igualdade dos membros; melhoria da eficiência e da
consistência; e estabilidade do Conselho através do reforço da continuidade – Balázs propõe
uma presidência de equipa composta por quatro países (four wheels) por um período de um
ano. Durante este período aplicar-se-ia o que Balázs designa por “rolling, four wheels drive
system” ou seja, a cada seis meses, dois membros da presidência (the two front wheels)
sairiam para dar lugar a dois novos membros291. A distribuição de responsabilidades (nas
formações principais do Conselho) seria acordada pela equipa, com base na experiência e
capacidades dos seus membros (country-profiled division of labour), enquanto que a
presidência dos corpos intermédios (COREPER, etc.) e dos grupos de trabalho seguiria a
nacionalidade do presidente do Conselho relevante.
Uma terceira solução poderia passar pela manutenção da rotatividade somente em 291 De acordo com as regras deste sistema, cada Estado-membro exerceria a presidência de seis em seis anos, frequência mais favorável que os actuais sete anos e meio, sobretudo se pensarmos que, consumado o alargamento a dez novos países, este intervalo aumentará para uns excessivos 12 anos e meio.
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
algumas das formações do Conselho. Esta é, aliás, a solução defendida pela Comissão que,
num contributo apresentado à Convenção no âmbito do debate sobre a reforma
institucional292, recomenda a manutenção da rotação semestral para a presidência do Conselho
Europeu, Conselho dos Assuntos Gerais e COREPER. Já para as restantes formações do
Conselho, a presidência poderia ser exercida por um membro do Conselho eleito pelos seus
pares, por um período de um ano, o que apresentaria a vantagem de conferir uma maior
continuidade aos trabalhos desta instituição. Esta solução aparece, assim, como uma espécie
de “meio termo” entre o fim da presidência rotativa e a eleição de um presidente do Conselho,
apresentando-se por isto, em nossa opinião, como um modelo a ponderar. De facto, perante
uma previsível ausência de consenso quanto ao fim do sistema rotativo, uma solução
intermédia como a proposta pela Comissão poderia permitir, pelo menos, um pequeno salto
qualitativo. A sua grande vantagem estaria em conferir a algumas formações do Conselho –
como, por exemplo, uma possível formação dedicada às relações externas e defesa293 - a
estabilidade indispensável ao sucesso. O seu maior inconveniente seria o de não contribuir
para a simplificação da arquitectura institucional, ainda assim, talvez um preço pequeno a
pagar por um consenso no seio da Convenção e, posteriormente, na CIG294.
292 CONV 448/02, CONTRIB 165, 17. 293 Como se sabe esta é uma área em que a estabilidade e continuidade dos trabalhos se apresenta como crucial. Como refere Le Gloannec (2002, 114) “(...) the EU is set up precisely to prevent hegemony and disperse rather than concentrate power. There is a disjunction between the very nature of the EU and the requirement of authority in a European Security and Defense Policy” [sublinhado nosso]. 294 A este propósito não poderíamos deixar de referir a ideia de uma presidência tricéfala considerada num artigo publicado na edição on-line do jornal francês Le Monde. De acordo com Daniel Vernet a solução para ultrapassar, quer a provável concorrência entre dois presidentes da União, quer a excessiva concentração de poderes nas mãos de um único presidente (e portanto capaz de conseguir o consenso na Convenção) poderia passar por uma presidência colegial, composta pelo presidente da União e (ao mesmo nível, ou abaixo deste) pelos presidentes da Comissão e do Conselho. Neste colégio, cujo nome permanece por definir (já que directório ou triunvirato carregam pesadas conotações negativas), os presidentes das duas instituições exerceriam, no essencial, as funções actuais, enquanto que o presidente da União teria sobretudo um papel representativo. Para Vernet, tal fórmula teria a vantagem de satisfazer os partidários da Comissão, os pequenos países (que mantêm a presidência rotativa do Conselho) e os que desejam uma representação estável da União, embora reconheça que tem a desvantagem de tornar ainda mais complexo o, já de si pouco compreensível, sistema institucional. Ainda assim, como sublinha o mesmo autor “(...) le consensus au sein de la Convention est peut-être à ce prix”. Cf. Daniel Vernet. 2003. “L’Union Européenne Pourrait Être Dotée d’une Présidence Tricéphale”. Le Monde.fr, 14 de Janeiro. Igualmente merecedora de nota nos parece ser a fórmula de Josef Zieleniec, membro do Senado da República Checa. Num contributo para o debate sobre a reforma institucional, apresentado à Convenção, Zieleniec propõe o estabelecimento de uma presidência de longo prazo da União Europeia, cujo presidente seria
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
5.4 Conclusão: o Projecto de Constituição – uma Breve Nota
A Declaração de Laeken, ao mesmo tempo que criava uma Convenção encarregue de
analisar temas cruciais à definição do projecto europeu, estabelecia como objectivo último
desta Convenção a redacção de um projecto de tratado constitucional para a UE. Após longos
meses de profunda reflexão e acalorados debates, a Convenção atingiu finalmente a sua fase
mais importante: transformar em projecto de constituição o resultado dos muitos contributos
que lhe foram sendo apresentados. Esta é, sem dúvida, a tarefa mais árdua que os seus
membros enfrentam, já que deles se espera que sejam capazes de elaborar um texto
“aceitável” para todos, o mesmo será dizer, um texto capaz de conciliar os interesses de
grandes e pequenos Estados, mas que represente um real aprofundamento da integração
europeia.
Em Fevereiro de 2003295, o Praesidium da Convenção deu luz verde à fase decisiva de
“constitucionalização” da UE, ao apresentar aos restantes convencionais os primeiros dois
conjuntos de artigos do futuro tratado constitucional – artigos 1º a 16º e 24º a 33º – bem como
eleito pelo Conselho Europeu (por maioria qualificada reforçada, ou mesmo por consenso). Por sua vez, a escolha do candidato pelo Conselho Europeu estaria limitada por um procedimento específico de designação dos candidatos que deveria envolver outros actores da vida política europeia (como por exemplo os parlamentos nacionais ou o PE). O presidente eleito desempenharia um papel preponderante nas relações externas, mas teria poderes muito limitados a nível interno, onde coexistiria com uma presidência rotativa do Conselho reformada (“a reformed rotating internal presidency”), embora gozasse do estatuto oficial do mais alto representante da União, interna e externamente. Cf. Josef Zieleniec. “A Questão da Presidência da União Europeia”, CONV 492/03, CONTRIB 195. 295 Importa sublinhar que o Praesidium havia já apresentado à Convenção, em finais de Outubro de 2002, um anteprojecto de tratado constitucional, que serviu como uma espécie de amostra da provável estrutura do futuro tratado. Ver “Anteprojecto de Tratado Constitucional”, CONV 369/02. Por outro lado, a Convenção recebeu também inúmeros contributos, individuais e colectivos, propondo soluções concretas para uma futura Constituição. Entre estes merece especial destaque o estudo solicitado pela Comissão e realizado por Marie Lagarrigue, Paolo Stancanelli, Pieter Van Nuffel, Alain Van Solinge, sob a direcção de François Lamourex (com a assistência técnica de Marguerite Gazze). Intitulado “Constituição da União Europeia” (mas conhecido como “Penelope”) este documento de trabalho é consideravelmente mais ambicioso que o documento oficial da Comissão sobre a reforma institucional. De facto, são vários os artigos francamente inovadores destacando-se, por exemplo, o estabelecimento de uma cláusula de mútua defesa (artigo 28º) ou a transformação da justiça e assuntos internos numa das políticas principais da UE (artigo 11º). Igualmente merecedora de nota é a possibilidade de um Estado se retirar da União (artigo 103º), no caso de ser acordada uma revisão da constituição europeia que não seja compatível com os requisitos constitucionais desse Estado; neste caso, o mesmo artigo prevê também a conclusão de um acordo que passará a governar as relações entre o Estado em causa e a União. Cf. “Estudo de Viabilidade: Contribuição para um Anteprojecto de Constituição da União Europeia (Documento de Trabalho)” [http://europa.eu.int/futurum/documents/offtext/const051202_pt.pdf] (11 de Fevereiro de 2003).
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
uma proposta de reformulação dos protocolos relativos à aplicação dos princípios da
subsidariedade e da proporcionalidade, e ao papel dos parlamentos nacionais296. As críticas
não se fizeram esperar, tendo a Convenção recebido um total de mais de 1000 propostas de
emenda, só para o primeiro conjunto de artigos que, segundo os críticos, não reflectem os
resultados do trabalho da Convenção297. A título de exemplo, refira-se que as divergências
começam logo no artigo primeiro que institui a União. A fonte da discórdia é, sem surpresa, a
utilização da expressão “em moldes federais”298 para definir a gestão de determinadas
competências comuns (à União e aos Estados-membros), encarada pelos defensores da via
intergovernamental (nomeadamente pelos representantes do Reino Unido) como um primeiro
passo para a edificação de um estado federal. Igualmente alvo de contestação foi o artigo
14º299 respeitante à PESC, considerado por alguns como uma verdadeira desilusão300. De
facto, numa área onde a fragilidade da União é clara301, o futuro tratado constitucional limita-
se a fazer uma “declaração de intenções” que pouco parece contribuir para dar significado ao
“epitáfio comum” presente no nome desta política. Ainda assim, talvez esta “falta de
ambição” encontre explicação precisamente na fragilidade desta política, comprovada pela
recorrente dificuldade de concertação dos Estados da UE quando confrontados com uma
situação de crise eminente na cena internacional. De facto, a divisão dos governos europeus 296 Os documentos datam respectivamente de 06, 26 e 27 de Fevereiro. Ver “Projecto de Artigos 1º a 16º do Tratado Constitucional”, CONV 528/03; “Projecto de Artigos 24º a 33º do Tratado Constitucional”, CONV 571/03; e “Projecto de Protocolos Relativos: à Aplicação dos Princípios da Subsidiariedade e da Proporcionalidade; ao Papel dos Parlamentos Nacionais na União Europeia” CONV 579/03. 297 David Heathcoat-Amory (militante do partido conservador britânico e membro do PE) acusou mesmo o presidente da Convenção e o Praesidium de fazerem um “uso selectivo” das conclusões dos grupos de trabalho: “by selectively using only the conclusions from the working groups which suit their purpose, Giscard d’Estaing and his presidium have today presented the first chapters of a fully-fledged constitution”. Cf. Honor Mahony. 2003. “Strong Reactions to First Constitutional Articles”. Euobserver.com, 07 de Fevereiro. 298 De referir que tal expressão viria a ser retirada do projecto final de constituição, em grande medida fruto das fortes pressões do primeiro-ministro britânico Tony Blair. Como consequência, na versão final do documento apresentado pela Convenção ao Conselho Europeu de Salónica (20 de Junho de 2003) a expressão “em moldes federais”, inicialmente presente no artigo 1º, nº,1 é substituída pela expressão “em moldes comunitários”. Cf. CONV 820/1/03 REV 1. 299 Na versão final do projecto de constituição é o artigo 15º. 300 De acordo com um artigo publicado no euobserver.com, o próprio presidente da Convenção, Valérie Giscard d’Estaing, considerou que este artigo causou “a mixture of scepticisme and sadness”. Cf. Honor Mahony. 2003. “First Articles of EU Constitution Produced”. Euobserver.com, 06 de Fevereiro. 301 Posta a nu em situações de tensão internacional, como foi o caso dos graves conflitos que assolaram os Balcãs, ou da crise iraquiana.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
em relação à intervenção armada no Iraque (simplisticamente reduzida, em nossa opinião, ao
pró ou anti-americanismo), ao mesmo tempo que realçou a imperatividade de uma política
externa e de segurança comum real, parece, paradoxalmente, ter tornado mais difícil, pelo
menos no curto prazo, o salto necessário para atingir tal objectivo.
Em suma, considerados demasiadamente ambiciosos por uns e decepcionantemente
modestos por outros, os artigos apresentados só parecem capazes de unir os defensores das
“duas visões da Europa” nas muitas críticas que suscitam. A discussão adivinha-se intensa e o
desejável consenso não será certamente tarefa fácil. Na “arena” gladia-se, uma vez mais, uma
Europa intergovernamental, dominada pelos Estados versus uma Europa federal. E, no
entanto, entre as duas opções existe um modelo neofederal que julgamos respeitar melhor os
interesses dos Estados e dos cidadãos europeus. Não se trata exactamente, julgamos nós, de
um ponto intermédio numa escala, até porque nos parece que o processo de integração
europeia é demasiadamente complexo para ser apreendido por uma escala linear em cujos
extremos se encontram a “associação de Estados” e o “Estado federal”. Mais do que um
“meio termo” o novo federalismo que associamos à construção comunitária afigura-se, pois,
como uma “terceira via”, entendida não como um contraponto à Europa intergovernamental,
mas como um modelo misto que, não desprezando a importância da flexibilidade e da
cooperação, aproveita da doutrina federal o que melhor poderá servir os povos e os Estados
europeus: o exercício descentralizado do poder (uma Europa mais perto dos cidadãos) e o
respeito pela diversidade (unidade na diversidade). Ainda assim, e para aqueles que o
consideram uma simples etapa na contrução de um superestado, importará chamar ao debate a
questão dos limites da integração pois, como reconheceu o próprio Haas, o spillover não é
automático, e a comprová-lo está uma história comunitária recheada de exemplos de avanços,
mas também de alguns recuos. Significa isto que, sem “automaticidade do processo”, a
escolha está em última instância nas mãos dos líderes europeus e, esperamos, dos cidadãos.
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Segunda Parte: Nice e o pós-Nice: que Cenários para a Nova Europa?
Para concluir, considerada a UE um exemplo de “federalismo às avessas”302 (se
analisada tendo em conta os parâmetros tradicionais de uma federação) parece-nos, todavia,
que tal classificação, embora rigorosa do ponto de vista jurídico, perderá sentido se
entendermos a construção comunitária como precursora de uma doutrina política própria, que
é simultaneamente causa e resultado da evolução institucional e da transferência de
competências (à medida que são percebidas pelos Estados como melhor realizadas em
conjunto). Em nossa opinião a UE será, pois, o exemplo “às direitas” de um novo modelo
político que, à falta de melhor designação, se optou catalogar como neofederalismo, mas que
apresenta em relação ao federalismo tradicional diferenças assinaláveis (desde logo, o não
visar a criação de um Estado federal). Os desafios colocados à Convenção são grandes, como
grandes são também as expectativas em relação aos seus resultados. Não obstante, mais do
que encontrar uma classificação formal303 importará, sobretudo, que a União seja percebida
pelos seus cidadãos; só assim estes serão capazes de compreender que um ocasional sacrifício
do “interesse nacional” ao interesse do todo (e, sublinhe-se, do todo) será certamente
compensado pela mais-valia que a pertença a uma entidade deste tipo poderá representar no
complexo jogo das relações internacionais304.
302 Este “federalismo invertido” é mesmo apontado por Álvaro de Vasconcelos (2003, 4) como um entrave à transformação da União Europeia num actor internacional de peso: “[P]ara que a norma e a justiça prevaleçam como elementos essenciais da ordem mundial, é necessário que a União Europeia se transforme numa parte imprescindível à resolução dos grandes problemas internacionais. Para isso a Convenção Europeia deve resolver o problema básico da União: o de ser uma federação às avessas. Ou seja, uma federação que não transferiu para o centro, ao contrário das outras, competências significativas no domínio da política externa e da defesa” [sublinhado nosso], observação esta que vai, aliás, ao encontro da imagem de confederação invertida proposta por Brandão e Lobo-Fernandes, op. cit. (ver pág. 53). 303 Como nota Porto (1999, 14-15) “(…) acaba por ser secundário o qualificativo que se utilize para concretizar o modelo europeu, com ou sem a palavra ‘federal’. Trata-se de uma experiência única, com interesses específicos a atender, que não é necessário enquadrar em algum arquétipo já existente” [ênfase nossa]. 304 Como nota Sidjanski (2001, 58) “[T]he objective of the federal European system is to allow member states to find, together, the capacity to act which, alone, they are no longer capable of doing” [ênfase nossa].
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CONCLUSÃO
A última década do Século XX ficou marcada por profundas transformações
geopolíticas e estratégicas. A queda do Muro de Berlim, a desintegração do Império Soviético
e, o consequente rearranjo do mapa europeu, aliados a uma globalização de cariz
contraditório, ditaram a necessidade de definir novas regras para o complexo jogo das
relações internacionais. Confrontados com uma metamorfose no próprio continente europeu,
os líderes comunitários compreenderam a necessidade de “dar o salto” para a integração
política, única forma de a Comunidade estar apta a responder aos desafios que lhe eram
colocados simultaneamente pela emergência de um conjunto de jovens democracias desejosas
de entrar no “clube europeu”, e por um recrudescer de tendências fragmentárias resultante do
fim da ordem rígida imposta pelo regime da “cortina de ferro”. Com esta dissertação,
procuramos compreender em que medida a evolução que marcou a última década comunitária
deixa antever a construção de um modelo novo que, faute de mieux, catalogámos de
neofederal, e que poderá resultar, pela hibridez das suas premissas, numa “superação” da
habitual dicotomia intergovernamentalismo/ supranacionalismo.
O TUE, o primeiro marco da nova fase, criou as bases de uma união política que
trouxe consigo elementos tão importantes como a cidadania europeia ou o princípio da
subsidiariedade. Embora tenha avançado menos do que faziam supor as expectativas que
rodearam a sua negociação, Maastricht foi, inquestionavelmente, um sinal claro do
redimensionamento dos objectivos da Comunidade, que de projecto essencialmente
económico passou também a político. Maastricht não conseguiu, porém, “escapar” às
questões fundamentais de poder que opõem os Estados às instituições europeias. O resultado
foi uma União alicerçada numa estranha e complexa estrutura de pilares que deixa fora da
alçada da Comunidade duas áreas de importância crucial: a política de segurança e a justiça e
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
assuntos internos. Apesar do salto qualitativo que representava, o TUE era, portanto,
demasiadamente ambivalente para delinear com clareza o caminho escolhido para a União e,
se é certo que algumas das suas disposições apontavam iniludivelmente para um modelo de
cariz neofederal, a forma final deste modelo permanecia envolta num grande ponto de
interrogação.
Do Tratado que se lhe segiu – Amesterdão - esperava-se que pudesse avançar no
ainda longo percurso da integração política, colmatando assim algumas das conhecidas
“fraquezas” do TUE. A agenda da CIG 96/97, inicialmente limitada às questões definidas por
Maastricht, acabaria por se alargar gradualmente a um número significativo de novas
matérias, fazendo prever “a grande reforma” do sistema comunitário. Não obstante, as
negociações revelaram-se difíceis, e o novo Tratado - que trouxe algumas modificações
importantes na área da política social, comunitarizou uma parte do terceiro pilar e deu alguns
pequenos passos na segurança e defesa - não se livrou do rótulo de “fracasso”. Perdera-se
aparentemente uma oportunidade para operar uma reforma de fundo do modo de governação
comunitário, essencial ao alargamento que se avizinhava e imprescindível para reequilibrar o
triângulo institucional.
O relativo insucesso de Amesterdão colocou em cheque o próprio método de revisão
dos tratados – a CIG - que se sucedia a ritmo cada vez mais acelerado e produzia cada vez
menos resultados efectivos. Não obstante, uma nova conferência intergovernamental havia
ficado agendada. Inicialmente confinada aos chamados “left overs” de Amesterdão, a agenda
da nova CIG acabaria por se estender a outros domínios. Pela natureza das temáticas, as
discussões revelaram-se infrutíferas e as decisões foram adiadas até à última cimeira. Em
Nice, a Europa assistiu a uma luta exacerbada pelo poder entre “grandes” e “pequenos” que,
apelidada de “contas de mercearia”, fez recear pelo futuro do projecto europeu.
Nice foi, assim, talvez a maior desilusão dos últimos anos da integração europeia.
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Conclusão
Sendo o “Tratado possível”, esteve longe de operar a prometida reforma de fundo, limitando-
se a “desbloquear” o alargamento. Este é, sem dúvida, um sucesso (talvez o único deste
Tratado), mas a “factura” a pagar é elevada. A “maquilhagem” institucional operada por Nice
foi feita às custas do princípio fundamental da igualdade dos Estados-membros, deixando-os a
braços com um complexo desequilíbrio de poderes que dificilmente acrescerá alguma eficácia
à tomada de decisão.
Conscientes da necessidade de debater o futuro da União, os líderes europeus
agendaram para 2004305, uma nova conferência intergovernamental. O Tratado que se
esperava pudesse marcar o culminar de uma etapa na caminhada comunitária – a integração
política - passou a ser visto, antes, como o ponto de partida para uma fase decisiva que, se
bem sucedida, marcará o salto para um novo estádio da integração europeia. Podemos talvez
destacar nesta fase quatro grandes momentos: a Declaração respeitante ao futuro da União
(anexa ao Tratado de Nice); a Declaração de Laeken (de Dezembro de 2001); a Convenção
sobre o Futuro da Europa e a próxima conferência intergovernamental (que se apoiará nos
trabalhos da Convenção). O primeiro dos quatro, a Declaração respeitante ao futuro da
União, abriu a porta a um salto qualitativo da maior importância, ao reconhecer no seu ponto
3 a necessidade de um debate amplo e alargado sobre o futuro da União “que associe todas as
partes interessadas” (incluindo a sociedade civil). Foi dado, assim, um passo determinante
para evitar erros do passado, nomeadamente a notória falta de preparação das CIG’s
anteriores e, a ainda mais preocupante, ausência de envolvimento dos cidadãos nas reformas
comunitárias. A Declaração de Laeken veio, por sua vez, dar seguimento ao processo de
reflexão em curso; colocando um leque alargado de questões, dá o mote para uma reforma
profunda do sistema comunitário, preparada através de um método inovador - a convenção –
que havia já dado provas de eficácia aquando da redacção da Carta dos Direitos
305 Antecipada, posteriormente, para Outubro de 2003.
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
Fundamentais. Tendo como missão “assegurar uma preparação tão ampla e transparente
quanto possível da próxima conferência intergovernamental” coube-lhe ainda a árdua tarefa
de, decorrida a fase de estudo e debate, elaborar um projecto de tratado constitucional que,
juntamente com os resultados dos debates nacionais sobre o futuro da União, servirá de base
aos trabalhos dos líderes europeus que, na próxima CIG (Outubro de 2003), tomarão as
decisões finais. Os artigos apresentados foram objecto de inúmeras propostas de emenda,
deixando adivinhar a dificuldade de redigir um texto capaz de contentar simultaneamente
defensores e opositores de uma Europa de cariz federalizante. Esperamos, ainda assim, que a
constituição europeia possa, ao contrário do que aconteceu com o TUE, libertar-se desta
“guerra ideológica” que divide os Estados-membros e que fez daquele Tratado um exemplo
de sincretismo, mas não de uma desejável superação da tensão.
Pelo exposto é, pois, claro que a União se confronta, no pós-Nice, com a
inevitabilidade de uma escolha, como é sugerido, também, pela imagem de “encruzilhada”
usada recorrentemente em vários documentos oficiais. É chegada a hora de repensar os
objectivos da União e de racionalizar os seus meios. A dificuldade da tal tarefa é evidente,
sobretudo se pensarmos que tal implicará necessariamente um rearranjo da repartição de
poderes, não apenas entre Estados e a União, mas também no interior desta. Não partilhamos,
todavia, o pessimismo daqueles que vêem o projecto europeu como estando mergulhado numa
crise, parecendo-nos antes que, como sugeriu Lobo-Fernandes306, “os problemas da UE são,
na verdade, o resultado do seu sucesso”, diríamos mesmo, a prova dele. De facto, quanto mais
a União apresenta resultados (a concretização do euro é, apenas um exemplo possível)
maiores desafios terá que enfrentar, e maior a necessidade de adaptar o seu modo de
governação. O mesmo se passa, de resto, em relação aos sucessivos alargamentos,
simultaneamente explicados por, e explicativos de, um fenómeno de integração regional bem
306 Seminário “As Instituições da Nova Europa Democrática”, Universidade do Minho, 25 de Fevereiro de 2003.
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Conclusão
sucedido307. O próprio défice de legitimidade308 da União (ou pelo menos a crescente
consciência dele) poderá encontrar justificação no progresso da empreitada comunitária.
Como notou Caporaso (2000, 42), quanto mais a UE se afasta da classificação de mera
organização internacional (se é que alguma vez o foi) mais central se torna a questão da
democracia. Trata-se, julgamos nós, de uma natural “transposição” das exigências de
“democraticidade” do nível nacional para o supra-nacional: o progressivo assumir pela União
de algumas das funções anteriormente da competência exclusiva dos Estados, não tendo sido
secundado por um proporcional aumento da participação política dos cidadãos na vida
comunitária, leva estes últimos a exigir das instituições comunitárias o mesmo nível de
responsabilização e controlo democrático exigido aos governos nacionais. É neste sentido,
aliás, que entendemos a crescente defesa de um governo europeu que, em nossa opinião, não
poderá ser, todavia, confundido com o de um Estado. Partilhamos, nesta matéria, da opinião
de Jean-Louis Quermonne (2002, 33) quando defende que a noção de governo não é
consubstancial à de estado soberano, depreendendo-se, portanto, que pode ser entendida fora
deste quadro309. No âmbito da Comunidade, parece-nos, que a passagem da “simples”
governação a um governo só poderá ser percepcionada como benéfica se houver uma
“comunitarização” da noção de governo, e não uma mera transposição do modelo estatal.
Como sublinha ainda Quermonne (2002, 33) “[S]i l’Union européenne n’est pas un Etat, elle
n’est pas davantage (...) une simple organisation internationale. Il convient donc de légitimer
épistémologiquement à son endroit l’usage du terme ‘gouvernement’, en surtout si l’on retient
l’acceptation de ‘gouvernement mixte’”, isto é, um governo alicerçado numa estrutura 307 Num seminário realizado na Universidade do Minho, Maria João Seabra considerou mesmo os alargamentos como sendo o exemplo flagrante do sucesso da política externa da UE. “As Instituições da Nova Europa Democrática”, Universidade do Minho, 25 de Fevereiro de 2003. 308 Como refere Stéphane Rodrigues (2001, 304), “[L]’UE est confrontée à un paradoxe grandissant: plus elle est présente dans les faits (…) moins elle semble présente dans les esprits”. 309 Como sublinha Mario Telò (2001, 13) “[T]he majority of international scientific publications has come to the conclusion that the EC and the EU are uniques cases of political systems, radically innovative in comparison to the classical institutional form of the nation State. The logical implication of this is that the government of the EU – the same remarks applies to its representation, democratic control, citizenship, and so on – cannot be analogous to the state models (…)” [ênfase nossa].
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A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
institucional capaz de respeitar a dualidade das fontes de legitimidade da União. Julgamos, de
facto, que qualquer reforma do modo de actuação comunitário deverá ter como objectivo
principal o reforço da legitimidade democrática, só conseguida com um aumento da
participação (esclarecida) dos cidadãos na escolha dos seus representantes europeus310. Ora,
esta última estará, por sua vez, indissociavelmente ligada a uma “descomplexificação” do
processo de decisão e a uma clarificação do exercício de competências, não apenas entre os
Estados e a União, mas também entre as instituições comunitárias.
À medida que se esgota o tempo do debate, permanecem as dúvidas quanto ao estádio
de fusão que a União pretende atingir. Sabemos que não é ainda uma comunidade política,
pelo menos conforme caracterizada por Amitai Etzioni no seu Political Unification311. O
projecto de constituição apresentado pelo Praesidium à Convenção deixa cair a expressão
“uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa” que substitui pela afirmação
expressa de uma União alicerçada na “vontade dos povos e dos Estados da Europa de
construírem o seu futuro comum”. É, deste modo, reafirmado o carácter único da construção
comunitária - assente na dupla participação dos Estados e do povo – ao mesmo tempo que é
310 A propósito da necessidade de um maior envolvimento dos cidadãos na vida comunitária não poderíamos deixar de introduzir uma pequena nota sobre a participação indirecta. O aumento de poder da CE/UE foi secundado pelo desenvolvimento de uma vasta rede de grupos de interesse, lobbies e peritos que “gravitam” em torno das instituições comunitárias. A sociedade civil, se devidamente organizada, tem portanto nestas redes uma oportunidade privilegiada para fazer valer os seus interesses, até porque, como se sabe, a Comissão tem por hábito, enquanto desenvolve as suas propostas numa dada matéria, consultar lobbies especializados, organizados a nível europeu. A troca de informação continuada e estruturada entre estes grupos poderá, pois, constituir uma forma não negligenciável de participação (indirecta) dos cidadãos no dia-a-dia da construção europeia, sabendo-se que, como refere Sidjanski (2001, 72), parafraseando Alexis de Tocqueville, “[I]t is thus that a vast network of associations is woven which (...) forms the social infrastructure of democracy”. 311 Para Etzioni (1965, 4) uma “comunidade política” pressupõe três características: dispor de um controlo efectivo sobre o recurso aos meios de violência; possuir um centro de decisão capaz de afectar de maneira significativa a distribuição dos recursos e dos benefícios na comunidade; e, finalmente, constituir o principal centro de identificação política para a grande maioria dos cidadãos politicamente sensibilizados. Ora, como sabemos, a União Europeia apresenta um profundo desequilíbrio entre as três vertentes, estando a dimensão normativa (económica) consideravelmente mais desenvolvida que as outras duas. O grande desenvolvimento económico coroado pela criação de uma união económica e monetária é, aliás, uma realidade aparentemente paradoxal, pois, na maioria das experiências de integração a união política precedeu a criação de uma moeda única. Não admira, portanto, que H. Brugmans (citado em Sidjanski 2001, 44) considere que estamos perante “the federal process upside down”.
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Conclusão
indicado o lema que deve guiar a reconfiguração das instituições312. Em 1993, no pós-
Maastricht, Elfriede Regelsberger (1993, 87-90) apontava três possíveis cenários de evolução
da UE. O primeiro, que designava por status-quo-plus, era o pior cenário por permitir um
alargamento sem aprofundamento (teriam lugar apenas as alterações numéricas
indispensáveis). O segundo cenário - o federal/constitutional – radicalmente oposto ao
anterior, implicaria uma profunda transformação do sistema comunitário (“a profound
deepening”), para um bem sucedido alargamento. Com o aumento do número de membros
aumentaria também a necessidade de eficácia; por outro lado, a expansão das áreas de
intervenção da União ditariam a necessidade de maior controlo democrático. Esta autora
previu, na realidade, entre outras alterações, um reforço efectivo da co-decisão; a
metamorfose da Comissão num governo europeu (eleito pelo PE) e a transformação do
Conselho de Ministros numa câmara alta do Parlamento (em representação dos Estados),
evolução defendida igualmente por Robert Toulemon e Lobo-Fernandes313. Finalmente, o
terceiro e último cenário – o pragmático evolucionista – é uma espécie de “meio-termo” entre
os dois primeiros, pressupondo alargamentos selectivos (portanto, limitados), secundados por
uma estratégia de aprofundamento mais incremental (neste cenário a configuração
institucional mudaria de acordo com as necessidades de cada novo alargamento). Se até aqui 312 Qualquer que seja a reforma institucional deverá, portanto, reflectir esta condição dualista (união de Estados e de povos) reafirmada no projecto de Constituição. Neste sentido, a opção por um parlamento bicamarário parece ser aquela que melhor apreende esta dupla dimensão, embora consideremos a possibilidade de uma ponderação (por exemplo, na câmara da população) que previna as, em nossa opinião, indesejáveis “minorias de bloqueio” que perigam de “resvalar” para um directório europeu. 313 Segundo Toulemon (1998, 122) “[T]he future role of the Council must logically be to become an upper house of the Union’s Parliament (…) To those who are against any ‘reduction’ of today’s Council into a Council of States and upper chamber of the Parliament it should be pointed out that the states would retain, through the European Council – whose preeminent role nobody questions, the upper hand concerning the basic policy guidelines of the Union”. Ainda a propósito da provável evolução do projecto europeu Jacques Vandamme (1998, 151-152) escreveu: “[W]hether or not one believes that Economic and Monetary Union will necessarily lead to political Union, it is clear that monetary union will have important political and constitutional ramifications. If all of these elements are taken together (…) then in my opinion we are no longer very far from a federal model adapted to European reality. This model might be dubbed ‘federal union’ (…) The difference between the concept of a federal union and that of a federal state is that the creation of a federal state would involve the transfer of all the most important components of national sovereignty, with compulsory means of implementation at the level of the central authority (…) But it is not unthinkable. It is even, I would venture, predictable – in the longer term. We can – must - dream about future freedoms, but we most also live with the restraints of the present. We should be informed by the constitutional experiences of others but we do not need slavishly to follow them. Federal union is Europe’s own constitutional experiment” [ênfase no original].
- 184 -
A União Europeia pós-Nice na Bifurcação: que Caminho(s)?
temos assistido, sobretudo, a uma variação deste último cenário314, a fase actual da União
parece apontar para o segundo e mais ambicioso dos três – o federal/constitucional. De facto,
o processo de “constitucionalização” está em curso e a opção neofederal apresenta-se hoje,
pelo menos para alguns, como uma via racional para responder com eficácia aos
(imponderáveis) desafios com que os Estados europeus se confrontam actualmente315: “graças
à sua flexibilidade e adaptabilidade, o federalismo revela-se uma resposta eficaz às exigências
múltiplas da sociedade pós-industrial, do homem novo e da era pós-nacional” (Sidjanski
1996, 218). A concretizar-se, julgamos, estaria dado um passo assinalável para uma mutação
qualitativa do sistema internacional, até aqui definido pela centralidade do estado soberano.
Estarão os países membros e os cidadãos dispostos a tal?
Para concluir, apenas um última nota sobre a incerteza conceptual que rodeia o futuro
modelo político da UE. Estado federal, Federação de Estados-nação, Nova Confederação,
têm sido muitas as hipóteses de classificação aventadas para a nova Europa. Parece-nos,
todavia, que o debate semântico tem frequentemente feito perder de vista um princípio
crucial: tão importante como definir o que é a União é definir o que ela faz. Da Constituição
europeia espera-se, portanto, que explicite com clareza os princípios basilares, os objectivos e
as competências da UE, em suma, que permita aos cidadãos apreender claramente “para que
serve a União”316. Se conseguir, julgamos estar garantido o sucesso do projecto europeu, pois,
persuadimo-nos que hoje, como há meio século atrás, a União Europeia (qualquer que seja o 314 Ainda que sejamos tentados a integrar Nice, tomado isoladamente, no primeiro cenário. 315 Não poderíamos deixar de relembrar aqui a célebre profecia de Pierre-Joseph Proudhon que, em 1921, escrevia: “[O] século XX iniciará a era dos federalismos, ou a humanidade recomeçará um purgatório de mil anos” (P. J. Proudhon, citado em Sidjanski 1996, 195). Proudhon foi o primeiro a desenvolver um conceito global do federalismo, tendo a sua teoria de uma sociedade federalista servido de inspiração a um movimento desenvolvido nos anos trinta e conhecido actualmente como federalimo integral ou global. Refira-se, ainda que, como nota Ferdinand Kinski (1994, 81), a metodologia de Proudhon era identificada com uma “dialéctica aberta” que, contrariamente à síntese hegeliana (que suprime a tensão entre a tese e a antítese), mantém as polaridades: “[I]l n’est pas nécessaire de dissoudre les régions dans la nation ou les nations dans l’Europe unie. La ‘dialectique ouvert’ du fédéralisme n’est pas une philosophie du ‘ou – ou’, mais du ‘et – et’” [sublinhado nosso]. 316 Como sublinha Renaud Dehousse (2000, 200), parafraseando Joseph Weiler, “the EU cannot expect to receive the kind of emotional allegiance which derives from the sense of belonging to a community united by ethnic or linguisticties, as the later are notoriously absent at european level: it must demonstrate its usefulness day after day” [ênfase nossa].
- 185 -
Conclusão
rótulo escolhido) continua a configurar-se como a melhor forma de os Estados da Europa
alcançarem crescentes patamares de segurança e de prosperidade e, também, de alcançarem
uma democracia mais participativa.
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