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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
RODRIGO MOREIRA DE ALMEIDA
A UNIO MSTICA NA ENADA VI, 9, DE PLOTINO
VITRIA 2017
RODRIGO MOREIRA DE ALMEIDA
A UNIO MSTICA NA ENADA VI, 9, DE PLOTINO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia do Centro de Cincias Humanas e Naturais da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia, na rea de concentrao Metafsica. Orientador: Prof. Dr. Jorge Augusto da Silva Santos
VITRIA 2017
AGRADECIMENTOS
Agradeo ao Prof. Jorge Augusto da Silva Santos, pela receptividade e ateno
dispensada ao longo desse percurso e pelas valiosas sugestes dadas durante a
escrita do texto. Agradeo Prof. Barbara Botter, pela ajuda prestada para
esclarecimento e correo dos conceitos filosficos mencionados na dissertao,
bem como pelas indicaes de leitura, que foram fundamentais para a realizao
deste trabalho. Agradeo ao Prof. Ricardo da Costa, pelas dicas valiosas dadas na
qualificao. Agradeo minha me, Marlia, pelo apoio concedido ao longo de todo
o mestrado. Agradeo aos meus amigos do grupo Periagoge (Felipe, Ulisses,
Marcos, Rmulo e outros), que me introduziram ao estudo de religies comparadas,
sem o qual eu no teria chegado a Plotino. Agradeo Letcia, pela orientao e
apoio, mesmo antes da minha aprovao no mestrado. Agradeo ao colega de
mestrado Lus Cludio, cujas conversas via e-mail foram imprescindveis para
articulao do segundo captulo desta dissertao. Agradeo Hadassa, pelo apoio,
pela leitura dos originais e pelas sugestes propostas. Agradeo aos amigos que, de
alguma forma, me ajudaram na escrita desta dissertao, particularmente Daniel
Cabral, Marcelo Maroldi e Marcos Vinicios. Agradeo FAPES, pelo financiamento.
Existe no entanto o inexprimvel. o que se revela, o mstico. Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, proposio 6.522.
RESUMO
Este trabalho investiga o conceito de unio mstica com o Uno na Enada VI, 9 de
Plotino, intitulada Sobre o Bem ou o Uno. Inicialmente, examina-se esse conceito
dentro do contexto maior da metafsica de Plotino, na qual ele desempenha um
papel fundamental, como objetivo final da vida filosfica. Essa primeira parte da
pesquisa tambm prope uma leitura sincrnica da filosofia de Plotino, com o
objetivo de compreender a posio do neoplatonismo dentro da histria da filosofia
antiga e a apropriao que Plotino fez da tradio filosfica anterior. Em seguida,
procede-se ao estudo das caractersticas da unio mstica com o Uno, bem como
das etapas preliminares realizao dessa unio e do sentido em que deve ser
compreendido o adjetivo mstica, que a qualifica. A dissertao conclui com um
estudo sobre a importncia do simbolismo como instrumento capaz de auxiliar o
filsofo a alcanar a experincia mstica, ao suplementar as limitaes da linguagem
discursiva. Alm disso, apresenta-se tambm uma interpretao do simbolismo
geomtrico, presente no captulo 8 da Enada VI, 9.
Palavras-chave: Neoplatonismo; Plotino; Mstica; Metafsica; Histria da Filosofia
Antiga; Simbolismo.
ABSTRACT
This work investigates the concept of "mystical union" with the One in the Ennead VI,
9 of Plotinus, entitled On the Good or the One. Initially, it examines this concept in
the larger context of Plotinus' metaphysics, in which it plays a fundamental role, as
the ultimate goal of philosophical life. This first part of the inquiry also proposes a
synchronic reading of Plotinus philosophy, with the aim of understanding the position
of Neoplatonism within the history of Ancient Philosophy and Plotinus' appropriation
of the previous philosophical tradition. Next, it proceeds to study the characteristics of
the mystical union with the One, as well as the preliminary stages of realization of
this union and the sense in which must be understood the adjective "mystic", which
qualifies it. The dissertation concludes with a study on the importance of symbolism
as an instrument able to help the philosopher to achieve the mystical experience, by
supplementing the limitations of discursive language. Furthermore, it also presents
an interpretation of the geometric symbolism, present in chapter 8 of Ennead VI, 9.
Key-words: Neoplatonism; Plotinus; Mysticism; Metaphysics; History of Ancient
Philosophy; Symbolism
LISTA DE IMAGENS
Imagem 01 Sntese das diferenas entre o eleatismo e o platonismo....................29
Imagem 02 Esquema sintico do universo plotiniano.............................................43
Imagem 03 Esquema figurativo da relao entre Intelecto amante e Intelecto
sensato......................................................................................................................78
SUMRIO
TABELA DE TRANSLITERAO.08
1 INTRODUO...09
2 OS FUNDAMENTOS FILOSFICOS DA UNIO MSTICA COM O UNO EM
PLOTINO....................................................................................................................14
2.1 O LUGAR DE PLOTINO NA HISTRIA DA METAFSICA ANTIGA...................14
2.1.1 Parmnides e a descoberta do Ser...............................................................15
2.1.2 A teoria das Ideias de Plato e seus prolongamentos na teoria dos
primeiros princpios.............................................................................................17
2.1.3 A filosofia de Aristteles................................................................................32
2.1.4 A metafsica de Plotino...................................................................................35
3 A UNIO MSTICA COM O UNO NA ENADA VI,9..........................................52
3.1 PREPARAO PARA A UNIO MSTICA: OS EXERCCIOS ESPIRITUAIS.....62
3.2 A UNIO MSTICA COM O INTELECTO OU MSTICA INTELECTUAL.............68
3.2.1 Do Intelecto ao Uno.........................................................................................74
3.2 A UNIO MSTICA COM O UNO.........................................................................79
4 O SIMBOLISMO NA ENADA VI,9...................................................................100
4.1 OS LIMITES DO PENSAMENTO DISCURSIVO...............................................105
4.2 SIMBOLISMO E PENSAMENTO NO-DISCURSIVO: O SIMBOLISMO
GEOMTRICO NA ENADA VI, 9...........................................................................111
5 CONCLUSO...................................................................................................122
6 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.................................................................126
8
TABELA DE TRANSLITERAO
Observaes:
* Os acentos no foram considerados;
* A transliterao da letra psilon () como u foi feita apenas nos ditongos. Nos
demais casos, seguiu-se a transliterao como y;
* Nas citaes diretas, manteve-se, conforme o caso, a transcrio das letras gregas
ou a transliterao feita pelo autor.
x
o
p
r
, s
t
y/u
ph
ch
ps
o
h
a
b
g
d
e
z
e
th
i
k
l
m
n
9
1 INTRODUO
Plotino (c. 205-270) geralmente considerado um pensador mstico, ou at
mesmo como o maior dos msticos pagos1, o que pode soar estranho para ns,
leitores modernos, habituados a associar a mstica religio. Entretanto, o fato
que a filosofia de Plotino prope, como sua meta final, uma experincia de unio
com o Princpio, chamado de Uno ou Bem, a qual geralmente descrita como
uma forma de unio mstica. Se isso estranho para ns, certamente no era
para os primeiros ouvintes e leitores de Plotino, j que sua poca foi um perodo de
angstia2, marcada pela difuso de vrios cultos de mistrio, muitas vezes de
origem oriental, pelo aparecimento de textos como os Orculos caldeus e o Corpus
hermeticum, que prometiam a salvao por meio de um conhecimento esotrico,
para no falar do cristianismo e dos vrios grupos gnsticos. Como se v, a mstica
de Plotino no era algo estranho ao contexto da poca, marcada por uma grande
efervescncia religiosa. Ao que parece, esse pulular de alternativas espirituais foi
causada pelo descrdito em relao religio romana tradicional, que no
conseguia mais atender s necessidades espirituais do homem da Antiguidade
tardia, e tambm pela crise social e cultural pela qual passava o Imprio Romano
naquele momento:
O sculo III em que viveu Plotino representa a runa da civilizao antiga. Guerras e pestes despovoam e empobrecem o Imprio. O nvel cultural decai em toda parte. A religio pag, com seu politesmo, entra em agonia.
Influncias orientais nos cultos irrompem em todos os lugares.3
Mas, se, por um lado, a pluralidade de alternativas religiosas proporcionava
uma mirade de possibilidades para o homem dessa poca, tambm o deixava
profundamente confuso: afinal, entre tantos caminhos, qual deles escolher? A vida
de Plotino um timo exemplo dessa inquietao: segundo seu discpulo Porfrio,
Plotino se relacionou com os professores mais famosos que ento viviam em
1 MCGINN, 2012, p. 95.
2 Veja, por exemplo, o ttulo da obra de Dodds (1975), Pagos e cristos numa poca de angstia,
que trata da espiritualidade crist e pag entre o final do sculo II e o incio do sculo IV. 3 ULLMANN, 2002, p. 146.
10
Alexandria4, mas sempre saa decepcionado das lies. Aconselhado por um
amigo, se aproxima de Amnio Sacas, com quem permaneceu durante onze anos
como discpulo. Aps esse perodo com Amnio, Plotino decide conhecer in loco a
filosofia professada pelos persas e hindus e, para isso, se incorpora ao exrcito do
imperador Gordiano na Mesopotmia. Com o assassinato do imperador, a expedio
para o Oriente abortada e Plotino foge para Antioquia. Posteriormente, se
estabelece em Roma, onde abre uma escola de filosofia.
Todo esse vai-e-vem seria mera curiosidade biogrfica se ignorssemos o
contexto mais amplo em que viveu Plotino. Mas, levando isso em conta, sua
insatisfao intelectual no me parece fortuita: assim como os vrios movimentos
espirituais e religiosos da poca buscavam novos referenciais num mundo que tinha
perdido os antigos, Plotino busca, a seu modo, um novo centro de gravidade para
sua prpria existncia. Assim como a filosofia de Plato pode ser interpretada como
uma resposta ao desencantamento dos deuses da polis (e o descentramento que se
segue a isso)5, a filosofia de Plotino tambm uma resposta para a crise espiritual e
cultural de sua poca. Nesse sentido, a unio mstica com o Uno muito mais do
que uma mera doutrina filosfica: sendo ela o objetivo final da vida do filsofo,
tambm a experincia que d sentido a toda a trajetria intelectual e biogrfica de
Plotino. A seu modo, Plotino encontrou uma alternativa para o vcuo espiritual de
seu tempo e, com isso, abriu caminho para que outros tambm pudessem faz-lo.
Obviamente, a soluo de Plotino muito pessoal: j mencionei a variedade
de alternativas espirituais na Antiguidade tardia, algumas das quais muito mais
acessveis para o homem comum do que a ascese rigorosa e a intensa
concentrao mental exigidas como prembulo para a unio mstica com o Uno6.
Plotino conhecia algumas dessas vias, mas acabou finalmente por rejeit-las, j que
4 Vida de Plotino, 3, 5-10. Para todas as citaes da Vida de Plotino ao longo dessa dissertao,
utilizo a traduo de Ullmann (2002). Os nmeros indicam, respectivamente, o captulo e a seo no texto grego original de onde foi retirado o trecho, conforme a numerao indicada na traduo de Armstrong (1989). 5 Para Plato, a contemplao fornecia um novo acesso ao divino em uma era em que as divindades
tradicionais da polis grega tinham comeado a perder sua numinosidade, pelo menos entre aqueles que buscavam a verdade, retratados em Scrates e seu crculo. (MCGINN, 2012, p. 55) 6 Ver, mais adiante, o captulo 3 dessa dissertao.
11
a divina filosofia7 de seu mestre Plato, tal como ele a interpretava, era suficiente
para dar ao filsofo a possibilidade de contato com o divino8. Entretanto, se a
resposta que Plotino encontrou pode no servir para ns, podemos tentar diminuir a
distncia de dezoito sculos que nos separam dele procurando o que h de comum
entre a nossa poca e o sculo III.
O ponto de contato mais evidente a pluralidade de alternativas religiosas: o
homem do sculo XXI, assim como os contemporneos de Plotino, se v diante de
um cardpio muito variado de opes espirituais. E se, naquela poca, a religio
romana estava em crise, vivemos hoje numa sociedade em que a maioria de ns
no mais obrigada a seguir alguma religio. Se algum insiste em manter uma
prtica religiosa hoje em dia, no s o faz, na maior parte das vezes, de livre e
espontnea vontade, mas frequentemente indo alm do que oferecido pelas
religies habitualmente disponveis, j que a espiritualidade algo que interessa
muito pouco a muitas comunidades religiosas hoje em dia. Nesse caso, existem
duas alternativas bsicas: ou se rompe definitivamente com essa religiosidade
tradicional e se vai buscar a espiritualidade em algum grupo esotrico ou numa
religio oriental ou se procura essa espiritualidade alternativa dentro da prpria
religio tradicional. Em ambos os casos, no existem respostas prontas para
resolver esse impasse: cada resposta ser pessoal, como foi a de Plotino, e
exatamente por isso, ele pode servir como guia para essa busca.
Meu prprio contato com Plotino teve um pouco disso. Entre 2013 e 2014,
participei de um grupo que estudava religies comparadas. Chegamos a iniciar um
estudo, nunca concludo, sobre hindusmo e foi a partir da religio hindu que cheguei
a Plotino. Como eu tivesse vontade de voltar academia, depois de ter concludo
7 A expresso divina filosofia no hiperblica. No final da Antiguidade, havia uma tendncia a
considerar o platonismo como um prolongamento do pitagorismo o qual, por sua vez, remontaria ao poeta mitolgico Orfeu (cf. HADOT, 2011). Para citar um exemplo, Proclo afirma que Plato recebeu perfeito conhecimento a respeito dos deuses aps o contato com doutrinas rficas e pitagricas (Teologia platnica, I.5, 25-26, apud RAPPE, 2000, p.118, traduo minha). Levando em conta essa propenso a identificar o platonismo como o depositrio de uma sabedoria primordial, bem possvel que Plotino, como Proclo, tambm interpretasse dessa forma a filosofia de seu mestre. 8 Segundo Plutarco, Plato e Aristteles faziam culminar a filosofia numa epptica, isto , como nos
mistrios, na revelao suprema da realidade transcendente. (HADOT, 2011, p. 223). Segundo o mesmo autor, a prpria organizao das obras de Plotino reflete essa preocupao, com as Enadas V e VI, as ltimas na ordem editorial estabelecida por Porfrio, tratando da contemplao das realidades divinas, termo final da vida filosfica.
12
minha graduao em 2013, pensei primeiramente em fazer um projeto de
dissertao de mestrado comparando o neoplatonismo de Plotino com o Advaita
Vednta de Shankarchrya9, mas, por sugesto de uma amiga, abandonei esse
projeto pela excessiva pretenso e me concentrei exclusivamente em Plotino. A
consequncia desse percurso, do hindusmo ao neoplatonismo, foi uma mudana
radical em minha forma de encarar a espiritualidade. Criado numa comunidade
religiosa extremamente moralista e acachapante, tive uma inevitvel ampliao dos
meus horizontes com a leitura de Plotino, antes e durante o mestrado. E se, para
mim, o neoplatonismo teve essa importncia, penso que ele pode ter a mesma
relevncia tambm para outros leitores, apesar do distanciamento temporal.
Foi a partir dessa aproximao muito pessoal, exposta nesse rpido
parntese autobiogrfico, que cheguei a Plotino e ao tema da unio mstica,
assunto principal desta dissertao. Procurarei descrever as caractersticas
principais da experincia de unio com o Uno, sua fundamentao filosfica, e as
estratgias discursivas que Plotino encontra para expressar aquilo que, em ltima
anlise, est alm dos limites da linguagem, como j se pode entrever da citao de
Wittgenstein, que escolhi como epgrafe para este trabalho. Para isso, dividi a
dissertao em trs partes: na primeira, abordarei o lugar de Plotino dentro da
histria da metafsica antiga, mostrando em que medida ele se apropria, reinterpreta
e se afasta de seus antecessores. Nessa primeira parte, tambm apresentarei um
esboo da metafsica de Plotino10, mostrando como a unio mstica com o Uno tem
uma fundamentao filosfica muito bem definida. Na segunda parte, descreverei as
caractersticas da unio mstica e as suas etapas preliminares, abordando tanto os
9 O Advaita Vednta uma das correntes de interpretao do Vednta, (o conhecimento final a
respeito dos textos vdicos). Na poca, o que me levou a pensar na possibilidade dessa leitura comparativa foi um comentrio de Dayananda Saraswati, guru da linhagem advaitina, sobre a proximidade entre os dois pensadores. Mais tarde, lendo a exposio de Ren Gunon (2004) da metafsica do Advaita Vednta, pude constatar que as correspondncias so realmente impressionantes. Parte desse projeto abandonado pode ser visto em algumas notas de rodap ao longo dessa dissertao, que aproximam o neoplatonismo de Plotino metafsica de Shankarchrya. 10
Nesse captulo, em particular, e em todo este trabalho, de modo geral, procurei apresentar a filosofia de Plotino da forma mais sistemtica e coerente possvel, muito embora seja difcil encontrar uma resposta definitiva para algumas questes que surgem a partir da leitura das Enadas. Isso acontece no s por conta do carter assistemtico dos tratados compilados por Porfrio (escritos em pocas diferentes, para responder a questes pontuais que surgiam durante as aulas de Plotino), mas tambm por causa da presena recorrente das metforas no texto plotiniano. Isso deve ser levado em conta ao longo da leitura de toda esta dissertao.
13
exerccios espirituais quanto a experincia mstica que antecede a unio com o Uno,
a unio com o Intelecto, que alguns comentadores chamam de mstica intelectual.
Nessa seo, tambm haver uma discusso sobre o sentido em que se deve
entender a mstica plotiniana e suas diferenas em relao s experincias
msticas de cunho religioso, particularmente a mstica crist. Por fim, na terceira
parte, investigarei o uso do simbolismo por parte de Plotino, a fim de mostrar que,
muito mais do que artifcio ornamental para tornar mais palatvel a linguagem
abstrata da metafsica, o smbolo tem, nas Enadas, o papel de servir como um
suporte que prepara o filsofo para a unio com o Uno. Nessa ltima seo,
abordarei tambm as crticas de Plotino linguagem discursiva e apresentarei uma
anlise do simbolismo geomtrico, presente no captulo 8 da Enada VI, 9.
Para tratar desses assuntos, escolhi como texto-base, em meio ao conjunto
de 54 tratados das Enadas, o nono tratado da sexta Enada, que recebeu de
Porfrio, o discpulo de Plotino que compilou e publicou os textos do mestre, o ttulo
de Sobre o Bem ou o Uno. A escolha desse tratado especfico se deve a duas
razes principais: em primeiro lugar, pelo resumo que Plotino fornece, nesse tratado,
de sua prpria filosofia, de forma bastante acessvel; em segundo lugar, pela
descrio em detalhes que ele oferece da unio mstica com o Uno, o que ajudou a
delimitar melhor o tema dessa dissertao. Naturalmente, alm do texto da Enada
VI, 9, recorrerei tambm a outros textos das Enadas, para esclarecer as questes
que forem surgindo ao longo dessa dissertao. Todas as referncias aos textos das
Enadas sero feitas a partir da traduo inglesa de A. H. Armstrong, publicada em
sete volumes, com traduo minha para o portugus. Essas referncias sero
citadas da seguinte forma: em algarismos romanos, indico o nmero da Enada em
que o texto se encontra; em algarismos arbicos, indico, sucessivamente, o nmero
do tratado dentro dessa Enada, o captulo e as linhas no texto original grego de
onde foi retirada a citao. Para dar um exemplo, VI, 9, 11, 1-5 se refere a um texto
situado no nono tratado da sexta Enada, captulo 11, entre as linhas 1 e 5 do
original grego. A traduo de Armstrong foi cotejada com outras duas, a espanhola
de Jos Igal (2014) e a brasileira de Bernardo Lins Brando (2007), que consta
como apndice a sua dissertao de mestrado.
14
2 OS FUNDAMENTOS FILOSFICOS DA UNIO MSTICA COM O UNO EM
PLOTINO
Antes de analisar em que consiste a experincia de unio mstica com o Uno
em Plotino, necessrio expor os pressupostos metafsicos que permitiram ao
fundador do neoplatonismo articular e justificar filosoficamente essa mesma
experincia. Para isso, preciso no s apresentar, em linhas gerais, a estrutura da
metafsica de Plotino, mas, principalmente, investigar o lugar do neoplatonismo
plotiniano na histria do pensamento filosfico da Antiguidade, para que possamos
compreender em que medida Plotino d continuidade especulao aberta por
Parmnides (isto , a interrogao sobre o Ser) e em que medida a supera, com
doutrinas bastante inovadoras, do ponto de vista da tradio filosfica anterior. Para
explicitar esses pontos, abordarei sucessivamente esses dois tpicos: em primeiro
lugar, a posio de Plotino na histria da metafsica antiga e, em segundo lugar, a
exposio panormica da metafsica de Plotino. Esse segundo tpico, em particular,
mostrar que a unio mstica com o Uno, longe de ser um apndice descartvel do
neoplatonismo plotiniano, uma necessidade intrnseca dele, conforme se ver mais
adiante.
2.1 O LUGAR DE PLOTINO NA HISTRIA DA METAFSICA ANTIGA
A fim de localizar a posio de Plotino dentro da histria da metafsica antiga,
farei a seguir uma rpida exposio dos momentos dessa histria que considero
decisivos para a articulao do neoplatonismo. So eles: 1) a doutrina parmendica
do Ser e do No-Ser; 2) a teoria das Ideias de Plato e seus prolongamentos nas
doutrinas no-escritas e 3) a filosofia de Aristteles. Obviamente, no farei uma
exposio exaustiva dessas doutrinas, mas destacarei delas apenas os pontos mais
importantes para compreender o neoplatonismo de Plotino. Isso ajudar a entender
no s a apropriao (e a reinterpretao) feita por Plotino da tradio filosfica que
o antecede, mas tambm as inovaes que o neoplatonismo apresenta em relao a
essa mesma tradio.
15
2.1.1 Parmnides e a descoberta do Ser
Uma das caractersticas mais importantes do pensamento grego antigo,
desde os pr-socrticos, a convico de que explicar unificar11. Trata-se de um
pressuposto que revela uma caracterstica inerente ao esprito humano, a saber,
nossa tendncia a assimilar o que ainda desconhecemos quilo que j conhecemos.
Para os gregos, essa assimilao era possvel justamente porque as coisas que
compe o universo, independente das diferenas aparentes que as separem,
possuem uma natureza nica: se possvel assimilar o desconhecido ao conhecido
porque nossa mente captou algo em comum entre ambos. Os filsofos pr-
socrticos conceberam esse algo em comum como a physis, um princpio
unificador (ou um conjunto de princpios, concebidos unitariamente) que fosse capaz
de explicar a totalidade dos fenmenos do universo. Assim, vemos que os primeiros
filsofos gregos tentaram conceber a physis como gua (Tales), como fogo
(Herclito), como ar (Anaxmenes), como uma combinao de quatro elementos
(Empdocles), como tomo e vazio (Demcrito), etc.. Um destes filsofos, no
entanto, se destaca dos demais pela importncia que assume na histria da filosofia
posterior. Seu nome Parmnides e sua influncia na tradio que lhe sucedeu se
justifica por uma intuio aparentemente simples, mas cujas consequncias para a
histria do pensamento antigo foram comparadas ao impacto do cogito de Ren
Descartes na filosofia moderna12: para Parmnides, o princpio unificador da
realidade, a natureza comum a todas as coisas o Ser.
Se quisssemos reconstruir o caminho que Parmnides percorreu at chegar
a essa concluso, podemos dizer que, se um ser tudo aquilo que , logo
possvel identificar em todas as coisas que so as propriedades fundamentais do
Ser, que, dessa forma, assume o papel de princpio unificador da realidade.
Entretanto, tendo reduzido toda a realidade ao princpio comum do Ser, Parmnides
teve que explicar o que entendia por Ser e justamente a que surgem os
problemas que ele legar aos filsofos posteriores.
Em primeiro lugar, Parmnides supe um abismo intransponvel entre Ser e 11
REALE, 1997, p. 157. 12
KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 2010.
16
No-Ser: o Ser , e no pode absolutamente No-Ser, e o No-Ser no , e no
pode absolutamente Ser. Por conseguinte, o Ser eterno, pois, se tivesse comeo,
ou teria que vir do No-Ser, o que impossvel, ou teria que vir do Ser e, portanto, j
seria. Tampouco pode ser destrudo, pois a causa de sua destruio precisaria
primeiro ser para depois o destruir; logo, o ser indestrutvel, pois o que um ser
no pode destruir o Ser. E se o Ser no pode vir ao No-Ser, conclui-se que ele
sem comeo e sem fim. O Ser tambm imune s mudanas: no se pode dizer
que ele tenha sido no passado ou que ser no futuro, mas somente que ele . Com
efeito, toda mudana significa a passagem de algo que no para algo que teria
comeado a ser (ou, inversamente, de algo que para algo que teria deixado de
ser); porm, isso supe que o Ser, em algum momento passado, no tivesse sido
(ou que o Ser possa, em algum momento futuro, deixar de ser), o que impossvel,
conforme foi visto. Mas se a natureza comum a todas as coisas eterna e imutvel,
o que se pode dizer dos fenmenos que experimentamos na vida cotidiana, que
surgem, se transformam e desaparecem? Para Parmnides, o conhecimento que
obtemos a partir dos sentidos s pode produzir um saber equivocado. Como ele
prprio afirma, em seu poema Sobre a natureza, atribuir nomes como gerar-se e
destruir-se seguir a opinio dos mortais, que pensam falar verdadeiramente
sobre algo que, na realidade, inaltervel13. Por isso, tanto a metafsica quanto a
epistemologia de Parmnides no deixam lugar algum [...] para qualquer espcie de
crena no mundo que nos revelado pelos sentidos"14.
Ao tecer essas reflexes, Parmnides certamente ainda permanece dentro da
viso de mundo dos filsofos pr-socrticos, que buscavam a physis unificadora de
toda a realidade. notvel, por exemplo, que, em seu poema, ele no fale
literalmente de Ser, mas daquilo que (to eon). Isto que provavelmente no
uma realidade abstrata, mas a totalidade do universo, representada em seu poema
pela figura de uma esfera macia e limitada: Mas uma vez que h um limite
extremo, est completo, como a massa de uma esfera bem rotunda de todos os
13
Nada h ou haver para alm do que , visto que o Destino o acorrentou por forma a ser um todo inamovvel. Por isso tem sido chamado todos os nomes que os mortais lhe puseram, convencidos de que esses nomes eram verdadeiros - gerar-se e destruir-se, ser e no ser, mudar de lugar e alterar a cor brilhante. (DK 28 B 8 35-40). Para todas as referncias ao poema de Parmnides, utilizo a traduo de Carlos Alberto Louro da Fonseca (KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 2010). 14
KIRK; RAVEN; SCHOFIELD, 2010, p. 251.
17
lados, em igual equilbrio em todas as direces [sic] a partir do centro.15.
Entretanto, apesar de Parmnides possivelmente pensar numa realidade muito
concreta ao falar do Ser, a resposta que ele deu pergunta sobre a natureza da
physis j apontava para uma superao da perspectiva fsica dos primeiros filsofos
gregos, que ser consolidada posteriormente com Plato. Por isso, Parmnides,
mesmo que no o soubesse, , com toda justia, o fundador da ontologia, e suas
concluses sobre as caractersticas fundamentais do Ser tero influncia decisiva
para a articulao do pensamento platnico.
2.1.2 A teoria das Ideias de Plato e seus prolongamentos na teoria dos
primeiros princpios
O respeito temeroso que Plato nutria em relao a Parmnides16 no fruto
da simples admirao: de fato, como j adiantei acima, a filosofia platnica pode ser
vista como uma continuadora da intuio fundamental do pensador de Eleia a
respeito da estabilidade e imutabilidade do Ser. No entanto, se Plato concorda com
Parmnides a respeito dessas caractersticas do Ser, dele se distancia justamente
pela interpretao que d de sua natureza. Se Parmnides possivelmente pensava o
Ser como uma realidade muito concreta, Plato afirma que o Ser de natureza
inteligvel: em outras palavras, os atributos da estabilidade e da imutabilidade
pertencem a algo que no simplesmente a totalidade do universo, mas prprio
de entidades que s podem ser captadas mediante o exerccio da dialtica. Ao
conceber o princpio unificador do real como inteligvel, Plato introduz sua grande
contribuio histria do pensamento filosfico, a famosa teoria das Ideias17, cuja
finalidade, em resumo, explicar como possvel a estabilidade do Ser em meio
15
DK 28 B 8 40-45. 16
Parmnides me parece ser, nas palavras de Homero, venervel e terrvel. (Teeteto, 183 e). Todas as referncias aos dilogos de Plato so retiradas da edio inglesa de John M. Cooper (1997), com traduo minha para o portugus. 17
Ao longo dessa seo, uso o termo Formas ou Ideias, com inicial maiscula, para me referir ao conceito platnico.
18
instabilidade do mundo tal como percebido pelos sentidos (e que, por esse mesmo
motivo, no pode ser objeto de nenhum conhecimento verdadeiro):
Eu no compreendo mais, nem reconheo, essas outras causas sofisticadas, e se algum me diz que uma coisa bela porque tem uma cor ou forma brilhante ou algo assim, eu ignoro essas outras razes - porque tudo isso me confunde - mas eu simplesmente, ingenuamente e talvez tolamente, me apego a isso, que nada mais a torna bela alm da presena, ou da partilha, ou como voc possa descrever sua relao com aquele Belo que mencionamos, pois no vou insistir na natureza precisa da relao, mas que todas as coisas belas so belas pelo Belo. Isso, eu acho, a resposta mais segura que posso dar a mim ou a qualquer outra pessoa. E se eu ficar com isso, acho que nunca vou cair em erro.
18
Portanto, como lemos no trecho citado, a beleza dos entes sensveis no se
explica por sua cor, por sua figura, ou por qualquer outra caracterstica percebida
pelos sentidos: ela se explica pelo Belo em si, isto , pela Forma ou pela Ideia do
Belo, que, sendo a causa da beleza, ao mesmo tempo integra em sua unidade todas
as coisas belas. Sendo a verdadeira causa dos entes sensveis, a ideia tambm no
pode se modificar como eles: as coisas belas podem se tornar feias, mas o Belo em
si, caso se tornasse feio, deixaria eo ipso de ser a causa da beleza. Logo, a Ideia
no s una, mas tambm imutvel:
Retornemos, ento, s mesmas coisas com as quais lidamos anteriormente, quela realidade de cuja existncia estamos dando conta em nossas perguntas e respostas; elas so sempre o mesmo e no mesmo estado, ou elas variam de um tempo para o outro; pode a prpria Igualdade, o prprio Belo, cada coisa em si mesma, o real, ser alguma vez afetada por qualquer mudana? Ou ser que cada um deles que realmente , sendo uniforme por si s, permanece o mesmo e nunca de modo algum tolera qualquer mudana? Deve permanecer o mesmo, disse Cebes, e no mesmo estado, Scrates. E quanto aos muitos particulares belos, sejam eles homens, cavalos, roupas, ou outras coisas semelhantes, ou os muitos particulares iguais, e todos aqueles [particulares] que tm o mesmo nome que essas outras [realidades]? Ser que eles permanecem os mesmos ou, em total contraste com essas outras realidades, pode-se dizer, nunca, de qualquer forma, permanecem o mesmo que eles prprios ou em relao uns aos outros? Este o caso; eles nunca esto no mesmo estado.
19
Entretanto, to logo afirma a existncia das Ideias como entes inteligveis,
unitrios e imutveis, Plato tem que explicar qual a relao entre as ideias e os
entes sensveis. Se elas contrastam to fortemente com os seres percebidos pelos
18
Fdon, 100 d-100 e.
19
Fdon, 78 d-78 e.
19
sentidos (que no so apenas sensveis, mas tambm mltiplos e mutveis), muito
fcil exacerbar a separao entre ambos e chegar a alguma forma de dualismo
ontolgico20. Entretanto, se as Ideias explicam algo do mundo sensvel, evidente
que no pode haver uma oposio absoluta entre o sensvel e o inteligvel: ambos
so planos diferentes de uma mesma realidade, e no duas realidades separadas
entre si. Para explicar a relao entre esses dois planos, Plato emprega quatro
termos principais: mimese (o ente sensvel imita o inteligvel), parousia (o ente
inteligvel aparece no sensvel); metexis (o ente sensvel participa do inteligvel) e
koinonia (o ente sensvel comunga com o inteligvel). Entretanto, todos esses termos
so metforas para explicar a relao entre os dois planos da realidade, e, no fim
das contas, no explicam muito bem como se d, de fato, essa relao. Se o
caminho at o plano inteligvel se faz unicamente atravs da dialtica, o caminho de
volta para o plano sensvel precisa fazer uma espcie de concesso linguagem
potica, como Aristteles viu muito bem21. Mesmo se interpretarmos a relao entre
as Formas e os entes sensveis como uma relao entre constituinte e constitudo
(ou, para usar a expresso de Giovanni Reale, de normatividade ontolgica das
Formas diante dos seres sensveis)22, preciso explicar como ocorre essa relao e
em que medida as Formas podem ser ditas causas dos entes sensveis.
Certamente essa relao no pode ser direta e nem as Formas podem ser, para
usar uma linguagem aristotlica, causa eficiente dos seres sensveis, pois isso
destruiria a independncia ontolgica das prprias Ideias. De fato, no pode existir
causa eficiente sem um efeito que lhe seja correspondente; logo, se a Forma
causa eficiente dos seres sensveis, gerando-os diretamente, ela no pode ser
concebida como causa a no ser que existam seres sensveis. Ciente desse
problema, Plato introduz um intermedirio entre as Ideias e o mundo sensvel, a
saber, o Demiurgo, que garante, por um lado, a presena das Formas nos entes
20
No Fdon, Plato chega muito prximo disso. Nesse dilogo, sob influncia do orfismo, Plato afirma a necessidade de emancipar a alma do corpo, numa espcie de adeso tica a um dualismo antropolgico, que ter grande influncia sobre Plotino, como se ver no prximo captulo. 21
Dizer que as Formas so modelos e que as coisas sensveis participam delas significa falar sem dizer nada e recorrer a meras imagens poticas. (Metafsica, A 9, 991 a 20). Todas as citaes Metafsica de Aristteles so referentes traduo de Marcelo Perine (2015), a partir da verso italiana de Giovanni Reale. 22
REALE, 1997, p. 155.
20
sensveis, e, por outro, resguarda a independncia ontolgica delas, pois a relao
entre as Ideias e os entes sensveis no direta: o que est presente no mundo
fenomnico no a Ideia em si, mas apenas sua cpia, feita pelo Demiurgo.
Entretanto, estamos novamente diante do mesmo problema de antes: se o
Demiurgo, e no as Ideias, que tem uma causalidade eficiente sobre os entes
sensveis, o que vem a ser este Demiurgo, seno um smbolo que no explica muita
coisa? O prprio Plato parecia consciente das limitaes da linguagem para
explicar a relao entre o plano das Formas e o plano dos entes sensveis, ao
recorrer figura mitolgica do Demiurgo como personagem de uma histria
provvel (eikota mython) e nada mais alm disso:
Ento, no se surpreenda, Scrates, se acontecer, repetidamente, que ns no sejamos capazes de produzir relatos sobre um grande nmero de assuntos sobre os deuses ou o vir-a-ser do universo que sejam completamente e perfeitamente consistentes e precisos. Em vez disso, se ns pudermos propor relatos no menos provveis do que qualquer outro, devemos estar contentes, tendo em mente que tanto eu, o falante, quanto vocs, os juizes, so apenas humanos. Ento, devemos aceitar a histria provvel sobre essas matrias. Cabe a ns no procurar nada alm disso.
23
Mas esse no o nico problema que a teoria das Ideias enfrenta. Com
efeito, a participao, seja l como for entendida, implica necessariamente numa
analogia entre o plano inteligvel e o sensvel: no pode haver separao completa
entre ambos, pois seno, seria impossvel falar em participao, e tambm no
pode haver identidade completa, pois, dessa forma, a Ideia se tornaria mutvel como
o ente sensvel. Logo, a participao s pode ser analgica: a participao implica
uma semelhana e uma diferena, ou seja, entre o ser participante e o participado
h algo que os assemelha e algo que os distingue, que os separa. Em suma, esse
o conceito da analogia.24. A prpria ideia de mimese do inteligvel, que, como foi
dito acima, um dos termos que Plato utiliza para tratar da relao entre os dois
planos, pressupe a analogia, pois h um misto de semelhana e dessemelhana
entre o que imita e o objeto imitado. Porm, se os seres sensveis apenas imitam
imperfeitamente os seres inteligveis, como se pode, a partir dos seres sensveis,
que so os nicos dos quais temos conhecimento direto, chegar aos seres
23
Timeu, 29 c-29 d. 24
SANTOS, 2001, p. 266.
21
inteligveis? Se sempre partimos das cpias imperfeitas dos entes inteligveis,
qualquer conhecimento dos inteligveis ser, necessariamente, imperfeito:
Mas o conhecimento no seria o que pertence a ns da verdade que faz parte de nosso mundo? E no se seguiria que cada conhecimento particular que nos pertence , por sua vez, conhecimento de alguma coisa particular em nosso mundo?" "Necessariamente." "Mas, como voc concorda, ns no temos as prprias Formas nem elas podem pertencer a ns. "Sim, voc est certo." [...] Ento, a Beleza em si, o que ela , no pode ser conhecido por ns, nem pode ser o Bem, nem qualquer uma das coisas que ns tomamos para serem, elas prprias, Ideias. Parece que sim
25
No podemos sequer atribuir a existncia s Formas, pois toda a existncia
de que temos conscincia a existncia sujeita s transformaes e mutabilidade:
dado que nossa noo de existncia toda de origem sensvel, no podemos
aplica-la s Ideias de Plato sem destru-las.26. Sob essa perspectiva, o ceticismo
da Nova Academia parece uma sada natural: se todo nosso conhecimento dos
inteligveis imperfeito, ento os inteligveis, em ltima anlise, so incognoscveis.
Para compreender a resposta que Plato d a esse problema, preciso analisar
algumas caractersticas do mtodo que leva ao conhecimento dos inteligveis, a
saber, a dialtica.
Conforme j foi dito no incio desse captulo, para os gregos explicar algo
identificar, na multiplicidade dos seres existentes, uma natureza comum, que eles
compartilham entre si. No caso de Plato, essa natureza comum dada pela Ideia,
que rene a multiplicidade do mundo sensvel numa identidade sinttica de natureza
inteligvel. Entretanto, essa passagem do sensvel ao inteligvel no imediata, mas
mediada pelo que Plato, no final do livro VI dA repblica, chama de dianoia,
associado ao conhecimento dos objetos matemticos. Para Plato, os objetos da
matemtica esto numa posio intermediria entre as Ideias e o mundo sensvel:
por um lado, eles se aproximam do plano inteligvel por no estarem sujeitos ao
devir e por serem objeto de intuio intelectual pura, prescindindo de qualquer
25
Parmnides, 134 b-134 c. Traduo com pequenas modificaes. 26
GILSON, 2016, p. 39.
22
configurao sensvel determinada para poderem existir; por outro lado, eles se
aproximam do plano sensvel por serem muitos da mesma espcie, enquanto a
forma una. Isso significa que a matemtica no pode estabelecer seus postulados
a partir dos nmeros em si ou das formas geomtricas em si, mas sobre nmeros
particulares e formas geomtricas particulares, que so precisamente objeto da
dianoia. impossvel, por exemplo, demonstrar o teorema de Pitgoras por meio da
triangularidade, pois esta no possui nem catetos nem hipotenusas: preciso um
tringulo retngulo particular para realizar essa demonstrao. Isso significa que a
demonstrao pressupe o conceito de tringulo como axioma, mas no chega a
explicitar o processo pelo qual se encontrou esse conceito. Isso s possvel
mediante a noesis, que Plato associa ao conhecimento dos entes inteligveis:
tratando os axiomas como hipteses (e no como princpios, como no caso do
teorema), a noesis suprime o que neles no essencial para chegar intuio das
Ideias, as quais, por sua vez, so o que fundamenta a validade dos teoremas
matemticos e da cincia, de modo geral:
[...] tanto na antiga Academia como em Aristteles, a noesis consiste na intuio de uma forma ou de uma essncia, e essa apreenso da forma implica uma supresso do que no essencial: prprio do pensamento poder efetuar essa separao. Esse mtodo de separao e de supresso, , precisamente, a abstrao; ela muito especialmente utilizada por esses filsofos para definir as entidades matemticas: pela supresso da profundidade define-se a superfcie; pela supresso da superfcie, define-se a linha; pela supresso da extenso define-se o ponto.
27
A dialtica justamente o mtodo que permite chegar noesis, eliminando
as hipteses e procedendo ao primeiro princpio ele mesmo28. Sendo, portanto,
objeto de intuio intelectual, as Formas esto no nvel do pr-terico e, por isso,
tambm no podem ser expressas pelo discurso, que pode dar, no mximo, uma
prova indiciria de sua realidade. O pice da atividade dialtica o conhecimento
da melhor entre as coisas que so29, a saber, a Ideia do Bem. A singularidade
dessa Ideia expressa na comparao, exposta no livro VI dA repblica, entre o sol
27
HADOT, 2014, p. 218. 28
A repblica, VII, 533 d. 29
A repblica, VII, 532 c.
23
e o Bem. Segundo Plato, no plano sensvel, o sol est para a viso e para o visvel
aquilo que o Bem representa, no plano inteligvel, para o intelecto e para o inteligvel:
O sol no a viso, mas no a causa da prpria viso e visto por ela? Est certo. Digamos, ento, que isto o que eu chamei de descendncia do bem, que o bem gerou como seu anlogo. O que o prprio bem no reino inteligvel, em relao compreenso e s coisas inteligveis, o sol no reino visvel, em relao viso e s coisas visveis. Como? Explique um pouco mais. Voc sabe disso, quando viramos os olhos para coisas cujas cores no so iluminadas pela luz do dia, mas pelas luzes da noite, os olhos esto escurecidos e parecem quase cegos, como se a viso clara j no estivesse neles. Claro. Mas sempre que algum os volta para coisas iluminadas pelo sol, eles vem claramente, e a viso aparece nesses mesmos olhos? De fato. Bem, entenda a alma dessa mesma maneira: quando ela focaliza em algo iluminado pela verdade e pelo que , entende, sabe e aparentemente possui compreenso, mas quando se concentra no que misturado com a obscuridade, no que vem a ser e se degrada, ela opina e esmaecida, muda suas opinies desta maneira e daquela e parece desprovida de compreenso. Parece assim. De modo que o que d a verdade s coisas conhecidas e o poder de conhecer para o conhecedor a forma do bem. E embora seja a causa do conhecimento e da verdade, tambm um objeto de conhecimento. Tanto o conhecimento quanto a verdade so coisas belas, mas o bem outro e mais belo do que eles. No reino visvel, a luz e a viso so corretamente consideradas semelhantes ao sol, mas errado pensar que elas so o sol; ento, aqui correto pensar no conhecimento e na verdade como algo semelhante ao bem, mas [] errado pensar que qualquer um deles o bem, pois o bem ainda mais estimado. Isto que voc est dizendo uma coisa inconcebivelmente bela, se ele fornece tanto conhecimento quanto verdade e superior a eles em beleza. Voc certamente no pensa que uma coisa como essa poderia ser o prazer. Silncio! Vamos examinar sua imagem com mais detalhes, como segue. Como? Voc estar disposto a dizer, eu acho, que o sol no s prov as coisas visveis com o poder de serem vistas, mas tambm com o vir-a-ser, crescimento e nutrio, embora no seja ele mesmo que venha a ser. Como isso poderia ser? Portanto, voc tambm deve dizer que no s os objetos de conhecimento devem seu ser conhecido ao bem, mas seu ser tambm devido a ele, embora o bem no seja um ser, mas superior a ele em posto e poder.
30
Como se pode perceber, assim como o sol torna visveis os objetos da viso e
permite o exerccio dessa mesma faculdade, o Bem d s coisas conhecidas a
30
A repblica, VI, 508 b-509 b.
24
verdade, e a quem as conhece a faculdade de conhecer a verdade31. Por outro
lado, o Bem no nem o conhecimento e nem a verdade, da mesma forma que a
luz e a viso no so o sol: existe uma afinidade entre o Bem, o conhecimento e a
verdade, mas os trs no so idnticos, assim como a viso e a luz so afins ao sol,
mas sem serem, eles mesmos, o sol. Sendo o que permite a cincia e a verdade, o
Bem est acima deles e os excede em beleza. Por fim, da mesma forma que o sol
no apenas d s coisas a possibilidade de serem vistas, mas tambm a sua
gnese, seu crescimento e sua nutrio, embora ele mesmo no esteja sujeito
gerao, o Bem concede aos seres no s sua cognoscibilidade, mas tambm lhes
concede o Ser, embora ele mesmo no seja um ser, mas superior a ele em posto
e poder. Plato no se ocupou em definir o que a ideia do Bem; no entanto, a
descrio dada no livro VI dA repblica permite identificar duas caractersticas dela,
que sero fundamentais para o neoplatonismo.
Em primeiro lugar, o Bem superior ao Ser e concede o Ser aos seres. Pode-
se dizer, em linguagem aristotlica, que o Bem causa formal dos entes. Como tal,
ele no um ser, mas est alm do Ser, isto , o transcende. Em segundo lugar,
essa transcendncia no pode ser compreendida como uma separao absoluta,
pois o Bem abarca em si todos os seres, da mesma forma que o sol abarca todos os
objetos de viso com sua luz. Nesse caso, talvez fosse mais adequado falar no de
simples transcendncia, mas de transimanncia32 do Bem em relao ao seres,
j que ele est para alm deles, mas em seu prolongamento dialtico e sobre a
mesma linha33.
Essa ltima caracterstica pode ser vista mais claramente na relao entre o
Bem e o Uno das chamadas doutrinas no-escritas, o conjunto de ensinamentos
que Plato recusou-se a pr por escrito em seus dilogos, mas reservou
exclusivamente oralidade dialtica. Ora, no texto dA repblica possvel perceber
que Plato omite uma descrio completa do que fosse o Bem, como se a
explicitao de sua verdadeira natureza exigisse um prolongamento para alm dos
31
REALE, 1997, 251. Grifos do autor.
32
O termo de Santos (2007). 33
GILSON, 2016, p. 48, n. 23.
25
limites do dilogo34. Por outro lado, nos testemunhos indiretos que nos chegaram a
respeito das doutrinas no-escritas, vemos que Plato identifica o Bem com o Uno:
segundo Aristteles, Plato atribuiu a causa do bem ao primeiro de seus
elementos35, isto , ao Uno, e que os platnicos dizem que o Um o Bem-em-si;
eles pensavam que a sua essncia era, justamente, o Um.36. A identidade entre o
Bem e o Uno confirmada tambm por Aristxeno, discpulo de Aristteles, que
descreve nos seguintes termos a ocasio em que Plato resolveu expor
publicamente o contedo de suas doutrinas no-escritas:
Como Aristteles costumava contar, essa era a impresso demonstrada pela maioria dos que ouviam a conferncia de Plato Sobre o Bem. De fato, cada um tinha ido ouvi-la pensando poder aprender um desses que so considerados bens humanos, como a riqueza, a sade e a fora e, em geral, uma felicidade maravilhosa. Mas quando se viu que os discursos vertiam sobre coisas matemticas, nmeros, geometria e astronomia, e por ltimo, sustentava-se que existe um Bem, um Uno, creio que isso tenha parecido algo paradoxal. Conseqentemente [sic], alguns desprezaram a coisa, outros a lastimaram.
37
A partir das informaes coletadas nos testemunhos indiretos, possvel
concluir que Plato admitia dois nveis no plano inteligvel: as Ideias e os primeiros
princpios, isto , o Uno (idntico ao Bem dA repblica) e a Dade indefinida, a
partir dos quais as prprias Ideias se constituiriam. A existncia desses princpios
exigida pela necessidade de unificao que, para os gregos e, particularmente para
Plato, condio fundamental para explicar a verdadeira natureza das coisas. Se
as Formas cumpriam essa funo em relao ao plano sensvel, por outro lado, elas
no s mantm a multiplicidade no plano inteligvel, mas at mesmo a aumentam,
em comparao com a multiplicidade do sensvel, j que Plato admitia Ideias no
s dos entes individuais, mas tambm de suas qualidades, dos nmeros, das figuras
geomtricas, etc.:
34
Por exemplo, em 506 e, Scrates diz: Ento, vamos deixar, por enquanto, a busca pelo que o bem em si, pois, mesmo para alcanar a minha prpria opinio sobre isso, um assunto muito grande para a discusso [que] estamos agora comeando.. 35
Metafsica, A 6, 988 a 10. 36
Metafsica, N 4, 1091 b 10-1091 b 15. 37
Apud REALE, 1997, p. 162, grifos de Reale.
26
No obstante, a teoria das Idias [sic] d origem a uma ulterior pluralidade, mesmo no novo plano metafsico do inteligvel. De fato, se os muitos homens sensveis so unificados e explicados pela correspondente Idia de homem, as muitas rvores pela Idia de rvore, as muitas manifestaes do belo pela Idia de belo, e se assim para todas as realidades empricas indicadas pelo mesmo nome, evidente que a multiplicidade sensvel se mostre simplificada e resolvida pelas Idias inteligveis; mas a multiplicidade inteligvel, por sua vez, no resolvida. Tenha-se presente que Plato admite Idias no s para as coisas que chamamos realidades substanciais (homens, animais, vegetais etc.), mas tambm para todas as qualidades e para todos os aspectos das coisas sinoticamente reagrupveis (belo, grande, duplo, e assim por diante), de modo que o pluralismo do mundo das Ideias (ou seja, o pluralismo das realidades inteligiveis) se mostra digno de bastante considerao [...]
38
Portanto, a teoria dos primeiros princpios (ou protologia) um
prolongamento necessrio da teoria das Ideias e ser, posteriormente, vastamente
desenvolvida pelo neoplatonismo. Segundo a reconstruo das doutrinas no-
escritas realizada por Giovanni Reale, o Uno e a Dade indefinida se organizam
segundo uma estrutura polar, na qual o Uno, embora hierarquicamente superior
Dade, depende dela para manifestar sua eficcia produtiva. Esta compreendida
como o fundamento de toda multiplicidade e diferenciao, sobre a qual o Uno
exerce sua ao determinante e delimitadora. Portanto, da ao conjunta do Uno e
da Dade indefinida que surge toda a multiplicidade dos seres:
A ao do Uno sobre a Dade uma espcie de de-limitao, de-terminao e de-finio do ilimitado, do indeterminado, do indefinido, ou, como parece que o prprio Plato j dizia, de igualizao do desigual. Os entes que derivam da atividade do Uno sobre a Dade so, portanto, uma espcie de sntese que se manifesta como unidade-na-multiplicidade, que uma de-finio e de-terminao do indefinido e indeterminado. [...] Esse o ncleo da protologia platnica: o ser produto de dois princpios originrios e , portanto, uma sntese, um misto de unidade e de multiplicidade, de determinante e indeterminado, de limitante e ilimitado.
39
Assim, o misto entre Uno e Dade gera no s as Formas, mas a diferena
entre o plano sensvel e o inteligvel e tambm a diferena entre as Formas e os
objetos matemticos. De fato, na transio do plano sensvel ao plano inteligvel,
passando pelo plano intermedirio dos entes matemticos, h uma gradativa
unificao do mltiplo. Posteriormente, essa perspectiva ser desenvolvida pelo
neoplatonismo, inclusive diferenciando os modos de manifestao da Dade
38
REALE, 1997, p. 158, grifos do autor. 39
REALE, 1997, p. 165, grifos do autor.
27
indefinida como matria sensvel e matria inteligvel, como ser visto mais
adiante.
importante notar que, com a teoria dos primeiros princpios, Plato rompe
ainda mais decisivamente com a tradio parmendica. Se, no plano da teoria das
Ideias, o Ser das Formas contrasta com o No-Ser do mundo sensvel (entendendo-
se o No-Ser no como um nada absoluto, como pensava Parmnides, mas como
diferena em relao ao Ser), no plano da protologia, a Dade indefinida, identificada
com o No-Ser40, torna-se constitutiva do prprio Ser. Assim, o No-Ser deixa de ser
simplesmente uma diferena em relao ao Ser para se tornar uma diferena no
interior do prprio Ser. Esse rompimento de Plato com o eleatismo j estava
anunciado em alguns dilogos, particularmente O sofista, embora no haja neles,
obviamente, referncia direta protologia. A argumentao platnica nesse dilogo
pode ser reconstruda do seguinte modo: se cada Ideia una, logo ela ser ela
mesma e no outra; mas, se no outra, ela tambm no . Portanto, o no-ser,
de alguma forma, , entendendo-se por no-ser a alteridade e a diversidade.
Consciente do afastamento que isso significava em relao tradio eleata, Plato
apresenta suas ideias como um parricdio de Parmnides, pela boca do
personagem Estrangeiro de Eleia:
ESTRANGEIRO: Ento, eu tenho algo ainda mais urgente para pedir. TEETETO: O qu? VISITANTE: No pensar que eu estou me transformando em algum tipo de parricida. TEETETO: O que voc quer dizer? ESTRANGEIRO: A fim de nos defender, vamos ter de sujeitar a fala do pai Parmnides a um exame mais aprofundado, e insistir pela fora bruta que tanto que aquilo que no , de alguma forma, , e, novamente, que aquilo que , de alguma forma, no . [...] ESTRANGEIRO: Ento, isso [o que no ] tem tanto ser como qualquer um dos outros, como voc disse que tem? Devemos trabalhar a coragem, agora, para dizer que o que no definitivamente algo que tem sua prpria natureza? Devemos dizer que, assim como o grande era grande, o belo era belo, o no-grande no era grande, e o no-belo no era belo, da mesma forma que o que no tambm era e no ser, e uma forma
40
Um testemunho de Hermodoro, discpulo e amigo de Plato, recolhido por Simplcio, confirma a identificao da Dade indefinida com o No-Ser: De modo que tal coisa [a Dade] dita instvel, informe, indefinida e no-ser, em virtude da negao do ser. Com ela no tem nada a ver nem o princpio nem a essncia, mas move-se numa situao de desordem. (In Arist. Phys., p. 248, 13-16 DIELS apud REALE, 1997, p. 166, grifos de Reale)
28
entre as muitas que so? Ns, Teeteto, ainda temos alguma dvida sobre isso? TEETETO: No. ESTRANGEIRO: Voc sabe, nossa descrena em Parmnides foi ainda mais longe que sua proibio. TEETETO: Como? ESTRANGEIRO: Ns temos empurrado nossa investigao adiante e mostrado a ele algo at mesmo alm do que ele nos proibiu sequer de pensar. TEETETO: De que maneira? ESTRANGEIRO: Porque ele diz, lembre-se, Nunca se forar sobre ns, que o que no pode ser; Mantenha seu pensamento longe deste caminho de busca. TEETETO: o que ele diz. ESTRANGEIRO: Mas no apenas mostramos que aqueles que no so, so. Ns tambm fizemos aparecer o que acaba por ser a forma do que no . E, como mostramos que a natureza do diferente , cortada entre todos os seres em relao uns com os outros, ousamos dizer que o que no realmente isso, ou seja, cada parte da natureza do diferente que se ope ao que . TEETETO: E o que dissemos parece-me completamente e totalmente verdade.
41
Embora o rompimento de Plato com Parmnides j se mostre evidente
mesmo se desconsiderarmos as doutrinas no-escritas, na protologia que se
pode compreender melhor as consequncias desse rompimento, que sero
desenvolvidas mais tarde pelos neoplatnicos. Se a tradio eleata identifica o Ser
com o uno e o No-Ser com o mltiplo42, em Plato, a partir das informaes
coletadas nos testemunhos das doutrinas no-escritas, o Ser aparece como
unidade-na-multiplicidade e o No-Ser como Dade indefinida, isto , como princpio
da diferena que, segundo O sofista, a contraparte dialtica da identidade do Ser.
O esquema a seguir (imagem 01) resume as diferenas entre eleatismo e
platonismo.
Se o Ser deixa de ser simplesmente uno para se tornar unidade-na-
41
O sofista, 241 d, 258 c-258 e. Grifos de John M. Cooper. Traduo com ligeiras modificaes no original. 42
A identificao do mltiplo com o No-Ser foi feita explicitamente por Zeno de Eleia: os fragmentos que chegaram at nos (principalmente DK 29 B 3) e o testemunho dado por Plato do livro de Zeno (Parmnides,127 e-128 d) mostram que um dos objetivos de sua argumentao era provar que a afirmao do mltiplo leva a aporias insolveis; logo, o mltiplo no existe. Quanto ao prprio Parmnides, embora ele s tenha negado explicitamente a existncia do movimento, conforme j foi mostrado na seo anterior, a inexistncia do mltiplo uma consequncia lgica de suas teses: se o Ser uno, e se s o Ser , ento a multiplicidade no .
29
multiplicidade e se o No-Ser identificado com a Dade indefinida, com o que
pode ser identificado o Uno das doutrinas no-escritas? Levando em conta a
aproximao entre Uno e Bem, j exposta acima, e a descrio do Bem como alm
do ser nA repblica, o neoplatonismo identificar o Uno platnico com aquilo que
est acima do Ser, ou, para usar a linguagem da tradio procleana e dionisiana, o
hiper-ser. Sendo assim, o Uno, tal como a Dade indefinida, pode ser chamado
legitimamente de No-Ser, pois ambos so princpios constitutivos do Ser e,
portanto, so anteriores a ele. Porm, ao contrrio da Dade, que no-ser pela
ausncia de determinao, o Uno no-ser por ser princpio da determinao: a
unidade como princpio de determinao est acima do ser, o princpio material
indeterminado como no-ser est abaixo do ser.43. Isso confirma o carter polar dos
dois princpios, como j foi apontado anteriormente.
43
REALE, 1997, p. 166.
ELEATISMO
PLATO
SER
Uno
NO-SER
Mltiplo
NO-SER
Dade indefinida (princpio da multiplicidade)
?
Uno
SER
Unidade-na-multiplicidade
Imagem 01: Sntese das diferenas entre o eleatismo, particularmente o eleatismo zenoniano, e o platonismo, a partir da reconstruo do contedo das doutrinas no-escritas efetuada por Reale (1997). O No-Ser, em Plato (se levarmos em conta o testemunho de Hermodoro, citado acima), identificado com a Dade indefinida, que o princpio da diferena e da multiplicidade. Como tal, ela constitutiva do Ser, que no simplesmente uno, mas unidade-na-multiplicidade. O Uno platnico ser, posteriormente, identificado pelo neoplatonismo como superior ao ser; porm, no me pareceu claro se essa identificao j era feita nas doutrinas no-escritas: o prprio Giovanni Reale reconhece que a documentao da tradio indireta a respeito disso escassa (REALE, 1997, p. 166) e o nico documento que cita em seu favor um texto do neoplatnico Proclo. Por isso, preferi colocar o ponto de interrogao, para mostrar o silncio de Plato e da tradio indireta a respeito do status do Uno. O esquema adaptado de Krmer (apud BEZERRA, 2006, p. 34, n. 56)
30
Antes de terminar essa seo, convm recapitular aqueles pontos do
platonismo que foram tratados aqui e que sero objeto do particular interesse de
Plotino e dos neoplatnicos, de modo geral. Acrescentarei tambm algumas
informaes, alm do que j foi comentado, a fim de esclarecer as diferenas que
separam Plato de Plotino:
1) A relao entre as Formas e os entes sensveis: conforme foi apontado, Plato
negava que as Formas tivessem um causalidade eficiente sobre os entes sensveis,
por conta dos problemas que essa tese comporta. Por isso, as Formas teriam
apenas uma causalidade formal sobre o mundo sensvel, sendo o papel de causa
eficiente transferido para o Demiurgo. Entretanto, Plato no esclarece qual a
natureza desse personagem e, como aponta Taylor, difcil discernir, no mito do
Demiurgo, o que contedo filosfico e o que forma mtica44. Ao que parece, o
recurso ao mito foi a nica alternativa encontrada por Plato para explicar como os
entes sensveis podem, de algum modo, participar dos inteligveis. No entanto,
apesar disso, o discurso mtico utilizado por Plato permite identificar alguns dados
importantes. O mais notvel a ntida distino entre o Demiurgo e as Ideias:
preciso manter a distino em Plato entre Deus [i.e., o Demiurgo] e as Idias [sic], porque a atividade de Deus, como produtor de um mundo semelhante s Idias, a nica explicao que Plato oferece do mundo no qual se efetua a participao da realidade nas Idias. Se Deus fosse identificado com as Idias, ou com uma Idia suprema, permaneceria misteriosa a razo pela qual deve existir um devir
45.
Quanto relao entre o Demiurgo e os primeiros princpios (o Uno e a
Dade indefinida), importante notar que, em nenhum momento, Plato identifica o
Demiurgo com o Uno ou o Bem: o Demiurgo bom (agathos)46, mas no o Bem
(agathon). No entanto, embora no seja o Bem, ele o ente mais prximo do Bem, o
que o capacita a ser o artfice do mundo do devir:
[...] o Deus platnico, [...], tem acima de si hierarquicamente uma regra ou regras s quais deve ater-se e nas quais deve se inspirar na sua atividade.
44
TAYLOR, 1968, apud REALE, 1997, p. 519. 45
TAYLOR, 1968, apud REALE, 1997, p. 519. 46
Timeu, 29 e.
31
Nessa tica, o Bem a suprema regra (e o mundo das Idias [sic] no seu conjunto constitui como a totalidade das regras) na qual Deus se inspira e qual se atm, para realiz-lo em todos os nveis; e justamente por isso Ele o Bom e o timo por excelncia, ou seja, o ente mais prximo ao Bem.
47
Portanto, ao tratar do Demiurgo, Plato no s se limita a coloc-lo como o
vnculo que une as Ideias ao mundo sensvel, sem dar mais esclarecimentos a seu
respeito, mas tambm o coloca como subordinado s Ideias e aos primeiros
princpios.
2) O problema da cognoscibilidade das Ideias: um dos problemas levantados pelo
dilogo Parmnides a possibilidade de um conhecimento perfeito das Formas, j
que todo nosso conhecimento delas advm dos entes sensveis, que so suas
cpias imperfeitas. Para Plato, o conhecimento das Formas, embora parta das
representaes feitas a partir do conhecimento obtido pelos sentidos, requer uma
gradativa supresso dos dados dos sentidos. Como os entes matemticos, as
Formas seriam objeto de intuio intelectual pura e, portanto, no podem ser
expressas pelo discurso nem por meio de representaes mentais. Por si mesma,
toda Forma inefvel, e essa caracterstica foi justamente um dos alvos da crtica
aristotlica ao platonismo48: E depois, por que nenhum desses filsofos [platnicos]
fornece uma definio de Idia [sic]? Se tentassem faz-lo ficaria ento manifesta a
verdade do que dissemos [ou seja, que a Ideia indefinvel]49.
3) A ideia do Bem e a teoria dos primeiros princpios (protologia): se as ideias
esto no plano do pr-terico e pr-discursivo, o que garante a verdade e a
existncia delas? Para responder a essa pergunta, Plato apela para a ideia do
Bem, vrtice da hierarquia no plano inteligvel, o qual identificado com o Uno das
doutrinas no-escritas. Conforme os testemunhos recolhidos a partir da tradio
indireta, Plato admite dois princpios anteriores s formas e constitutivos delas, o
Uno e a Dade indefinida. O segundo princpio identificado com o No-Ser, por sua
47
REALE, 1997, p. 520, grifos do autor.
48
Tambm aqui intervm o discurso mtico para explicar como as Formas podem ser conhecidas: segundo o Fdon, as almas j tem conhecimento delas antes de se encarnarem num corpo. 49
Metafsica, Z 15, 1040 b.
32
ausncia de determinao, e permite a multiplicidade no plano inteligvel, sendo,
portanto, o No-Ser que constitutivo do Ser. Logo, a Dade indefinida o que
fundamenta a tese exposta nO sofista, sob a imagem plstica do parricdio de
Parmnides: a compreenso do No-Ser como diferena e alteridade no interior do
Ser. No entanto, se o No-Ser, entendido como multiplicidade sem qualquer
determinao, identificado com a Dade indefinida, e o Ser identificado com a
multiplicidade j determinada, com o que pode ser identificado o Uno das doutrinas
no escritas? Essa pergunta, ao que tudo indica, no pode ser respondida pelo
recurso tradio indireta dos ensinamentos orais de Plato.
Em resumo, ser principalmente sobre esses trs pontos problemticos ou
no desenvolvidos do platonismo que se debruar o neoplatonismo de Plotino.
Entretanto, antes de expor a interpretao que Plotino d desses pontos em sua
metafsica, necessrio mostrar outro marco de referncia que ser fundamental
para a articulao do neoplatonismo: a filosofia de Aristteles.
2.1.3. A filosofia de Aristteles
Sendo a filosofia de Aristteles um importante ponto de referncia no dilogo
de Plotino com a tradio, compreend-la significa no s compreender as
inovaes que Plotino traz em relao a essa mesma tradio, mas tambm ajuda a
esclarecer a forma como ele se apropria dos filsofos que o antecederam; com
efeito, o autor das Enadas colher tambm na obra do estagirita material para suas
prprias reflexes, como se ver a seguir. Por isso, uma exposio, ainda que
breve, de alguns aspectos da filosofia de Aristteles se justifica, a fim de mostrar em
que medida Plotino se afasta de Aristteles e o que Plotino aproveita de Aristteles.
Como foi visto na seo anterior, uma das crticas de Aristteles teoria das
Ideias de Plato est no carter metafrico de alguns de seus postulados (por
exemplo, a participao dos entes sensveis nas Ideias). Tais concesses
linguagem da poesia e do mito so inconcebveis para um esprito cientfico como o
de Aristteles; por isso, seu objetivo ser no s tentar resolver a seu modo os
33
pontos problemticos do platonismo, que j assinalei anteriormente, mas tambm
dar interrogao sobre o Ser, herdada de Parmnides, o carter de uma cincia
demonstrativa: Existe uma cincia que considera o ser enquanto ser e as
propriedades que lhe competem enquanto tal.50. Essa cincia, que Aristteles no
nomeia, se articula em torno do conceito de ousia, termo que s vezes traduzido
como essncia ou substncia, mas que sempre se refere a algo individual. Nesse
sentido, as Formas platnicas, que se atribuem a vrios seres, so universais e, por
isso, no podem ser substncias:
Com efeito, a substncia primeira de cada indivduo prpria de cada um e no pertence a outros; o universal, ao contrrio, comum: de fato, diz-se universal aquilo que, por natureza, pertence a uma multiplicidade de coisas. De que, portanto, o universal ser substncia?
51
Por conseguinte, a ousia no existe parte dos seres empiricamente
observveis, que so indivduos. Com isso, o segundo problema da teoria das Ideias
identificado na seo anterior, isto , o problema de sua cognoscibilidade, cai por
terra: se a ousia s se manifesta nos seres individuais, que so os nicos dos quais
temos conhecimento imediato, conhec-la no se torna mais algo problemtico, pois
a ousia se d nos entes sensveis, e no para alm deles, como as Formas
platnicas. Da mesma maneira, se as Ideias platnicas estavam para alm da
linguagem, a ousia aristotlica expressa atravs da definio. Esta , por assim
dizer, a expresso lingustica da ousia, presente no indivduo e captada pela alma.
Entretanto, se a ousia est presente no indivduo, ela no restrita a este ou
aquele indivduo, pois, neste caso, seria impossvel defini-la, pois a definio do
universal52. Por isso, Aristteles distingue dois sentidos do termo ousia, um
primrio, em que ousia se identifica com a Forma53 (eidos) do indivduo, que
universal, e outro secundrio, em que ousia o indivduo composto de matria e
forma:
50
Metafsica, 1, 1003 a 20.
51
Metafsica, Z 13, 1038 b 5-1038 b 10. 52
Metafsica, Z 11, 1036 a 25. 53
Nesta seo uso o termo Forma, com inicial maiscula, como traduo do termo aristotlico eidos, a no ser quando o contexto indique tratar-se do conceito anlogo de Plato.
34
Sem dvida, a definio da essncia de um ser material deve levar em conta sua matria: assim a definio do homem o determina inicialmente como animal portanto, como um corpo vivo; mas esse corpo, por sua vez, no determinadamente aquele de um homem seno em virtude da alma racional que sua forma, e por isso que a essncia ou forma de cada ser permanece a raiz ltima de sua substancialidade.
54
Portanto, para Aristteles, o indivduo uma manifestao da Forma presente
nele e somente nele. No preciso supor a existncia de um Demiurgo que atue
como mediador entre as Formas e os entes sensveis, como no platonismo, nem
muito menos de princpios como o Uno e a Dade indefinida para explicar a
pluralidade das formas. Porm, mesmo que a existncia das Formas no precise
ser justificada por princpios que sejam anteriores a elas, Aristteles ainda v a
necessidade de unificar a pluralidade das substncias de algum modo. Essa
unificao se faz por meio de uma hierarquizao: de fato, alm das substncias
compostas de matria e forma e que so corruptveis, tais como as substncias
animais e vegetais, por exemplo, existem tambm substncias compostas de
matria e forma que so incorruptveis (para Aristteles, esse o caso dos corpos
celestes) e tambm substncias que no so materiais de modo algum. Esse o
caso das cinquenta e cinco substncias moventes dos cus e do Primeiro Motor
Imvel, situado no topo da hierarquia dos moventes. Assim, a prioridade da
substncia (entendida como eidos) complementada pela prioridade da substncia
divina do Primeiro Motor Imvel55. Enquanto tal, ele existe como Bem e atrai todos
os seres para sua perfeio, como o amado atrai o amante. Mas, ao contrrio do
Bem platnico, que atua como causa formal dos seres, o Bem aristotlico atua como
causa final do movimento.
Antes de passar exposio do pensamento de Plotino, cabe acrescentar
uma caracterstica do Primeiro Motor de Aristteles, que ser fundamental para a
futura articulao do neoplatonismo: ele no s Inteligncia (coisa que o Demiurgo
platnico tambm ), mas principalmente Inteligncia que intelige a si mesma. De
fato, como explica Aristteles56, sendo o Primeiro Motor Imvel o melhor dos seres,
no pode inteligir nada diferente de si mesmo, pois seno haveria algo melhor que si
54
GILSON, 2016, p. 67. 55
Cf. AUBENQUE, 2012. 56
Cf. Metafsica, 9, 1074 b 30.
35
mesmo, a saber, o objeto de sua inteligncia, e o Primeiro Motor deixaria de ser o
melhor dos seres. Logo, a inteligncia divina no s pensamento, mas tambm
pensamento que pensa a si mesmo.
Para concluir essa seo, vamos retomar os tpicos que foram aqui tratados,
e que permitiram a Aristteles construir um paradigma filosfico alternativo ao
platonismo e que ser, por sua vez, um marco de referncia para a constituio do
neoplatonismo:
1) Em primeiro lugar, a Forma, para Aristteles, existe apenas no indivduo.
Portanto, no se coloca para Aristteles o problema da participao dos entes
inteligveis nos sensveis nem muito menos o meio que permitiria essa participao
(que, para Plato, seria o Demiurgo).
2) Em segundo lugar, as Formas nos indivduos so conhecidas pela definio, que
so sua expresso lingustica. A Forma no objeto de intuio intelectual nem
algo inefvel, mas pode ser perfeitamente captada pelo raciocnio e expressa pelo
discurso.
3) O Bem, para Aristteles, no causa formal do ente, mas causa final: todos os
entes tendem teleologicamente a ele, como o amante tende ao amado. Ao mesmo
tempo, este Bem concebido como pensamento de pensamento, ou seja, ele no
s uma Inteligncia, mas tambm inteligncia que pensa aquilo que h de
melhor (ou seja, pensa a si mesma). Este ltimo aspecto ser fundamental para o
conceito plotiniano de Nous, como se ver a seguir.
2.1.4 A metafsica de Plotino
Para comear a exposio da metafsica de Plotino, partirei da anlise de
alguns trechos do captulo 2 da Enada VI, 9, no qual Plotino afirma que as Formas
(as Ideias platnicas) no tm a primazia, e tampouco o Intelecto57 (o Primeiro Motor
57
Ao longo dessa dissertao, uso a expresso Intelecto, com inicial maiscula, para me referir ao Nous, a segunda hipstase (ou nvel de realidade, como se ver mais adiante) do universo plotiniano,
36
Imvel de Aristteles, que Intelecto que intelige a si mesmo): existe algo que
anterior a ambos e que serve de fundamento tanto para as Formas quanto para o
Intelecto. A respeito das Formas, j apontei acima que, conforme o testemunho das
doutrinas no-escritas de Plato, elas tm como fundamento dois princpios
polares, o Uno e a Dade indefinida. Deixarei para mais adiante o comentrio sobre
as diferenas que separam a metafsica de Plotino da protologia de Plato. Por hora,
analisarei os argumentos que Plotino avana, contra Aristteles, para negar a
prioridade do Intelecto:
E claro tambm a partir do seguinte que o Intelecto no pode ser o primeiro: necessrio que o Intelecto exista em seu pensamento, e que o melhor Intelecto, aquele que no olha para fora de si, pensa o que est antes dele; pois, ao virar para si mesmo, se volta para o seu princpio. E se o prprio Intelecto o que pensa e o que pensado, ser duplo e no nico e, assim, no [ser] o um; mas se olha para outro, certamente deve ser para aquilo que melhor do que ele e antes que ele. Mas, se ele olha tanto para si prprio e para o que melhor do que ele, assim tambm segundo. E preciso supor que o intelecto tal que est presente ao Bem e ao primeiro e olha para ele, mas est tambm presente consigo mesmo e pensa a si mesmo, e pensa a si mesmo como sendo todas as coisas.
58
Nesse trecho, Plotino retoma a argumentao aristotlica do livro da
Metafsica: para Aristteles, como j vimos, o Intelecto divino no pode inteligir nada
diferente de si mesmo, pois seno deixaria de ser o mais divino e o mais excelente;
logo, ele deve necessariamente inteligir a si mesmo. Entretanto, a soluo
aristotlica no satisfaz Plotino, pois pensar a si mesmo pressupe o
autodesdobramento do sujeito59 e, portanto, a preservao de uma certa dualidade.
Se o Intelecto , simultaneamente, o que pensa e o que pensado, ser duplo, pois
manter a distino lgica entre o sujeito cognoscente e o objeto conhecido:
A multiplicidade do intelecto pode ser reduzida a uma unidade existencial, mas no conceitual. A extrema reduo conceitual possvel do intelecto permanece uma dualidade, revelando-nos que ele intelecto e inteligvel, sujeito inteligente e objeto inteligido.
60 e Alma, tambm com inicial maiscula, para me referir terceira hipstase. As mesmas expresses com inicial minscula se referiro ao intelecto e alma humanos, respectivamente. 58
VI, 9, 2, 30-40. Traduo com ligeiras modificaes. 59
AUBENQUE, 2012, p. 43. 60
BARACAT JNIOR, 2008, p. 164.
37
Por conseguinte, o Intelecto no pode ser o primeiro e, alm de pensar a si
mesmo, deve tambm pensar o que est antes dele e que, por sua vez, tem a
primazia. Isto que est antes do Intelecto o que Plotino, no trecho acima, chama o
Bem. Por outro
Por outro lado, ao pensar a si mesmo, o Intelecto pensa tambm todas as
coisas (pensa a si mesmo como sendo todas as coisas). Ao falar em todas as
coisas, Plotino tem em mente as Ideias platnicas: seguindo uma linha de
interpretao j avanada pelo mdio-platonismo61, ele identifica as Ideias de Plato
com pensamentos do Intelecto divino. Logo, o Intelecto mais uma vez no pode ser
o primeiro, pois se contm a totalidade das Formas, deve ser necessariamente
mltiplo, pois as Formas so mltiplas:
E, alm disso, o ser universal, que tem todos os seres nele, ser ainda mais mltiplo e diferente do um, e ter o um pela partilha e participao. [...]. Mas se ele Intelecto, dessa forma tambm deve ser muitos; e ainda mais se incluir as Formas. Pois a Ideia no una, mas, ao invs, um nmero, tanto cada uma individualmente quanto a Idia total, e una da maneira pela qual o universo um.
62
Nesse trecho, Plotino retoma pontos que j haviam sido trabalhados por
Plato, tanto em seus dilogos como nas chamadas doutrinas no-escritas. Como
j foi dito acima, se cada Ideia una, logo ela ser ela mesma e no outra; mas, se
no outra, ela tambm no . Logo, cada Ideia, considerada individualmente,
formada por um misto de Ser e No-Ser, de identidade e diferena, e, por isso, no
pode ser una. Esse o motivo da polmica de Plotino contra a tese aristotlica da
identidade entre ser e unidade63. Usando os mesmo exemplos de Aristteles, Plotino
mostra que o ser individual no pode ser uno, pois composto de partes:
61
As Ideias platnicas tornam-se, consequentemente, [no mdio-platonismo,] Pensamentos-de-Deus-que-pensa-a-si-mesmo, e enquanto tais so o eterno paradigma e a regra de todas as coisas. (REALE, 1997, p. 34).
62
VI, 9, 2, 20-25. Traduo com ligeiras modificaes. 63
"Ora, o ser e o um so a mesma coisa e uma realidade nica, enquanto se implicam reciprocamente um ao outro (assim como se implicam reciprocamente princpio e causa), ainda que no sejam passveis de expresso com uma nica noo. (Mas no mudaria nada se os considerssemos idnticos tambm na noo, o que seria at uma vantagem). De fato, as expresses 'homem' e 'um homem' significam a mesma coisa, do mesmo modo que 'homem' e ' homem' (Metafsica, 2, 1003 b 20-1003 b 25).
38
De qualquer maneira, homem e ser vivo e racional so muitas partes e essas muitas [partes] so unidas pelo um. Homem e um so, portanto,
diferentes, e um tem partes e o outro no tem partes.64.
No contexto desse argumento, Plotino chama de partes as espcies de um
gnero: na medida em que uma espcie particular pressupe sua diferena
especfica em relao a outras espcies dentro de um mesmo gnero, ela
pressupe, juntamente com a identidade, tambm a diferena. Em outras palavras, a
Forma do Homem pressupe a diferena em relao a todas as outras Formas
abarcadas pelo gnero Animal65 e que so suas espcies; logo, a diferena em
relao s outras espcies constitutiva da Forma do Homem, e isso impede que a
Forma seja uma unidade simples, isto , uma unidade que no seja composta de
partes.
Consideradas como totalidade, as Ideias so igualmente mltiplas,
conforme j foi apontado. O prprio Plato percebeu essa dificuldade, e postulou,
nas doutrinas no-escritas, a existncia de um nvel superior ao das prprias
Ideias, a saber, o nvel dos princpios, que incluem o Uno e a Dade indefinida.
Plotino tambm prope um nvel superior ao das Ideias, mas, ao contrrio de Plato,
no supe dois princpios polares, mas apenas um princpio, que, seguindo seu
mestre, ele tambm denomina Uno ou Bem. Entretanto, se na protologia platnica a
Dade era o princpio da multiplicidade, e Plotino admite apenas um nico princpio,
ele deve explicar como que, do Uno, surge a multiplicidade. A resposta que o Uno
gera a Dade, atravs de uma processo ou emanao (proodos) a partir de si
mesmo. O Uno difunde, a partir de sua prpria unidade, o que Plotino, usando uma
terminologia aristotlica, denomina matria inteligvel66, que identificada com a
Diade indefinida das doutrinas no-escritas de Plato:
64
VI, 9, 2, 15-20. 65
Pode-se notar, aqui, que gnero e espcie so tratados como Formas platnicas, o que mostra a j mencionada sntese entre o platonismo e o aristotelismo, iniciada pelo mdio-platonismo e que tem prosseguimento com o neoplatonismo. 66
De acordo com Aristteles, a matria inteligvel um substrato para os entes matemticos fora da matria perceptvel (FERNANDES, 2010, p. 626). Para usar um exemplo, um crculo com o mesmo dimetro de outro se distingue deste ltimo, mesmo que ambos no sejam projetados na matria perceptvel (por exemplo, se ambos forem desenhados numa folha de papel). Essa distino entre indivduos portadores de uma mesma essncia, que no precisa se manifestar de forma perceptvel, s pode ser resultado de um substrato inteligvel, que recebe diferentemente essa essncia idntica.
39
No pensamento plotiniano observa-se uma fuso entre a Dade indefinida da tradio platnica com a matria inteligvel aristotlica. John Michael Rist mostrou que a Dade indefinida plotiniana corresponde primeira efuso do Uno (saindo da unidade na identidade para a distino na alteridade; En., II.4.5.28-39) e constitui a base do mundo inteligvel, plano da unio das Formas com a matria inteligvel.
67
A Dade indefinida (ou matria inteligvel), sendo outra em relao ao Uno,
mltipla. Entretanto, na medida em que essa alteridade gerada pelo prprio Uno,
ela no pode ser totalmente diferente dele. Logo, ele ser una, mas de uma unidade
de ordem inferior, que, parafraseando o prprio Plotino, pode ser chamada de Una-
mltipla68. Entretanto, nesse ponto, no temos mais a matria inteligvel per se, mas
a matria inteligvel determinada como Nous (o Intelecto que possui a totalidade do
inteligvel e que, por isso, uno-mltiplo). Isso significa que, alm da processo
(proodos), existe tambm o retorno ou converso (epistrophe), no qual a matria
inteligvel se determina como Intelecto, que inclui a totalidade das Formas e, por
isso, mltiplo. Em outras palavras, a partir da negao inicial da unidade na
processo, o gerado se assimila ao gerador na converso. Mais tarde, Proclo
esquematizar esse processo no esquema tridico mone (a unidade simples e
absolutamente no-diferenciada do Uno), proodos (a negao dessa unidade pela
afirmao da multiplicidade) e epistrophe (a suprassuno69 da multiplicidade
numa unidade que tambm mltipla e diferenciada).70 Processo e converso so,
assim, dois conceitos fundamentais para a metafsica plotiniana.
Mas porque necessria essa passagem da unidade multiplicidade? A
nica resposta que Plotino pode dar a essa pergunta que existe uma espcie de Em Plotino, a matria inteligvel no simplesmente um substrato para os entes matemticos, mas , principalmente, aquilo que recebe a atividade do Uno e a manifesta sob a forma da multiplicidade inteligvel das Ideias.
67
FERNANDES, 2010, p. 627. Segundo o mesmo autor, essa aproximao entre o conceito aristotlico de matria inteligvel e o conceito platnico de Dade indefinida foi feita, antes de Plotino, pelo neopitagrico Moderato de Gades (floruit 80-90 d.C). A obra de Moderato era conhecida por Porfrio (como comprovam algumas menes a ele em sua obra Vida de Pitgoras) e possvel que tambm Plotino tivesse tido acesso a ela. 68
Mas Parmnides, em Plato [i.e., no dilogo platnico Parmnides] fala com mais preciso e distingue um do outro o primeiro Uno, que mais propriamente chamado Uno, e o segundo que ele chama de Uno-mltiplo e