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85 A VELHICE NA CONSTITUIÇÃO PAULO ROBERTO BARBOSA RAMOS Promotor de Justiça Titular da Promotoria de Justiça Especializada dos Direitos dos Cidadãos Portadores de Deficiência e Idosos da Capital São Luís, Professor Assistente do Departamento de Direito Público da UFMA, Mestre em Direito pela UFSC, Doutorando em Direito Constitucional pela PUC/SP. Introdução O conhecimento das normas constitucionais sobre a velhice é de fundamental importância para que se dissemine na sociedade a idéia segundo a qual os velhos são sujeitos de direito. Sabe-se que a velhice é visualizada pela sociedade brasileira de forma negativa. Em regra, as pessoas fazem tudo para evitar a velhice, apesar de a natureza empurrar os homens, salvo motivo de força maior, para essa etapa da vida. A visão consoante a qual a velhice é o fim de um ciclo faz com que homens e mulheres abdiquem, quando chegam a essa etapa da vida, de seus direitos, como se a velhice acarretasse a perda da condição humana. A incorporação dessa idéia torna os velhos seres que ruminam o passado e digam, dia após dia, que seu tempo já passou, esquecendo-se de que é o tempo que está no homem e não o contrário. Disso tudo decorre uma séria consequência: a apatia política dos velhos. Ora, se o tempo de quem é velho já passou, não há mais como interferir no presente. Assim, os velhos são, sutilmente, excluídos da sociedade em que vivem. Com intenção de contribuir para mudar essa visão, elaborou-se este trabalho, que se divide em três partes: a primeira aborda a gênese da idéia de velhice e a sua percepção como temática social relevante. A segunda analisa a velhice enquanto direito humano fundamental. A terceira trata da proteção constitucional da velhice. 1. A velhice enquanto questão social relevante 1.1. A gênese da ideia de velhice A idéia de velhice, como qualquer outra, é histórica. As idéias são concebidas a partir de conceitos atribuídos aos fatos. Da mesma forma

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A VELHICE NA CONSTITUIÇÃO

PAULO ROBERTO BARBOSA RAMOS

Promotor de Justiça Titular da Promotoria de JustiçaEspecializada dos Direitos dos Cidadãos Portadores de

Deficiência e Idosos da Capital São Luís, ProfessorAssistente do Departamento de Direito Público da

UFMA, Mestre em Direito pela UFSC, Doutorando emDireito Constitucional pela PUC/SP.

Introdução

O conhecimento das normasconstitucionais sobre a velhice é defundamental importância para que sedissemine na sociedade a idéiasegundo a qual os velhos são sujeitosde direito.

Sabe-se que a velhice évisualizada pela sociedade brasileirade forma negativa. Em regra, aspessoas fazem tudo para evitar avelhice, apesar de a natureza empurraros homens, salvo motivo de forçamaior, para essa etapa da vida.

A visão consoante a qual avelhice é o fim de um ciclo faz comque homens e mulheres abdiquem,quando chegam a essa etapa da vida,de seus direitos, como se a velhiceacarretasse a perda da condiçãohumana. A incorporação dessa idéiatorna os velhos seres que ruminam opassado e digam, dia após dia, que seutempo já passou, esquecendo-se de queé o tempo que está no homem e não ocontrário.

Disso tudo decorre uma sériaconsequência: a apatia política dosvelhos. Ora, se o tempo de quem évelho já passou, não há mais comointerferir no presente. Assim, os velhossão, sutilmente, excluídos dasociedade em que vivem.Com intenção de contribuir paramudar essa visão, elaborou-se estetrabalho, que se divide em três partes:a primeira aborda a gênese da idéiade velhice e a sua percepção comotemática social relevante. A segundaanalisa a velhice enquanto direitohumano fundamental. A terceira tratada proteção constitucional da velhice.

1. A velhice enquanto questão socialrelevante

1.1. A gênese da ideia de velhice

A idéia de velhice, comoqualquer outra, é histórica. As idéiassão concebidas a partir de conceitosatribuídos aos fatos. Da mesma forma

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que aquelas, os conceitos, dos quaisas ideias decorrem, não são absolutos,porquanto inscritos na dinâmica dosvalores e das culturas que propiciamas condições para que dado fenômenovenha a ser enunciado1.

Diante dessas observações, é pos-sível afirmar que a idéia de velhice de-corre dos valores e das representaçõessociais acerca desse fato, razão pela qualnão existe uma substancialidade abso-luta no ser da velhice2.

É certo que os homens, em re-gra, nascem, crescem, amadurecem emorrem. No passado distante, do mes-mo modo que no recente, também foiassim. Por outro lado, é preciso desta-car que essas fases da vida não eram,até antes da consolidação do modelode sociedade capitalista, objeto de sa-beres. O homem era visto como umtodo. Não havia diferenciação entrecriança, jovem, adulto, velho, visan-do-se com essa classificação uma fi-nalidade específica.

A velhice era um fato sobre oqual não incidia nenhum valor,nenhuma preocupação, nenhumdiscurso, nenhum saber. Logo, não eratema de relevância, na medida em queinexistente no próprio imaginário so-cial. Quanto a essa questão, Briman,inspirado nas pesquisas realizadas porFoucault, assinalou que atransformação das fases da vida deinevitável sequência empírica numaordem necessária, fundadabiologicamente, é uma invençãorecente na história ocidental (séculos

XVIII-XIX), uma vez que foijustamente nesse período que surgiramas condições de possibilidade para adisseminação e absorção da ideologiacientificista do evolucionismo, quefirmou o ciclo biológico da existênciahumana em faixas etárias bemdelineadas3.

A preocupação de estudar econhecer o homem em cada uma desuas fases biológicas teve um objetivofundamental na sociedade capitalista:construir o homem ideal para produzire reproduzir o capital. Por isso, sóinteressa a esse modelo de sociedadehomens dóceis, saudáveis eresistentes. Em razão disso, váriossaberes foram construídos paraviabilizar homens com esse perfil.É claro, portanto, que dentro dessaperspectiva de homem, o EstadoCapitalista tenha direcionado suapolítica no sentido de melhorar ascondições biológicas e sanitárias dapopulação, especialmente porque sedescobriu que a riqueza de uma naçãose encontra principalmente noshomens que trabalham paratransformar as matérias-primas e nãosomente nestas. Ante essa descoberta,abriu-se na história ocidental umespaço privilegiado para o sabermédico, uma vez que adequado a daras orientações científicas necessáriaspara a melhoria da condição eugênicada espécie humana. Até então tal sa-ber não tinha alcançado esse status nocontexto dos saberes hegemônicos.Para realizar sua missão, o saber

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médico periodizou a vida e, comoconsequência, passou a analisá-laatravés de fases. Dessa forma, àsetapas etárias do homem foramatribuídos valores diferenciados, deacordo com a sua utilidade para aprodução e reprodução da riqueza.Passando a questão a ser visualizadapor essa óptica, a velhice ao mesmotempo em que se constituiu em objetode saber, passou a ocupar, enquantofenômeno social alvo de discurso, umlugar marginalizado, pois traduzida —já que o foco de análise inicial dessefato era apenas o biológico — comoetapa de existência da conclusão dospotenciais evolutivos4. Emacontecendo isso, a velhice ficou semvalor simbólico na sociedade,porquanto se apresentou, comosinônimo de decadência, de etapa fi-nal, de ausência de futuro, como se elanão fosse, como bem anotou o velho esábio Bobbio, a continuidade da vida,de todo o resto anterior vivido5.Essa perspectiva negativa da velhice,presente na gênese de sua idéiamesma, teve como maiorconseqüência um fato do qual osvelhos ainda hoje, de todo, nãoconseguiram superar: a sua exclusãoda vida social6.

1.2 A velhice enquanto questão so-cialrelevante – no Mundo e no Brasil –breves considerações

Ao se identificar a velhice comofenômeno associou-se imediatamente

a ela a noção de decadência. Em razãodisso, o Estado, a sociedade e a famíliadeixaram de encará-la como questãosocial relevante, ocupando-se dela,tão-somente, numa perspectivafundada na idéia de filantropia e depiedade. Tal percepção decorreu,dentre outros fatores, da visão segundoa qual os velhos tinham pouca ounenhuma utilidade na produção ereprodução da riqueza. Essa ideologiaimpôs a esse segmento um nível devida miserável, além do fato deaqueles que chegavam a essa fase davida, por conta de toda essa lógicaperversa, serem poucos e terem curtotempo de existência pela frente.

Com a consolidação do modelode sociedade capitalista, as classesdirigentes, despertadas pela lógica dosistema que lhes competia dirigir,perceberam que a riqueza de umanação não se encontrava apenas nasmatérias-primas disponíveis, mas,fundamentalmente, nos homens quetrabalhavam para transformar essasmatérias. Cientes desse fato,desenvolveram políticas sanitárias quecontribuíram decisivamente para adiminuição da mortalidade infantil,proporcionando, com isso, o aumentoda população, ao mesmo tempo emque criaram condições mais favoráveispara que esta tivesse um crecimentomais saudável, tornando-se, assim,mais apta ao trabalho.

Associada a essas políticas esuas conseqüências, a tecnologiamédica avançou, trazendo consigo ascondições para a descoberta de

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medicamentos capazes de curar e, atémesmo, evitar doenças que, até então,dizimavam as populações.

Evidente que no ambiente so-cial, onde tudo isso aconteceu, onúmero de pessoas idosas aumentouenormemente, uma vez que os perigose os riscos de morte prematuradiminuíram drasticamente. Assim, umproblema que era pouco visívelsocialmente, começou a fazer parte daagenda política de povos e governos,já que se apresentou, a partir dessemomento, como questão socialrelevante, pois fundamental para odesenvolvimento das sociedades.

Como o envelhecimento dapopulação inicialmente se deu nospaíses ditos desenvolvidos, eles foramdando, gradativamente, ao longo dasúltimas vinte décadas, respostasrazoáveis à questão do envelhe-cimento, de forma que hoje a velhicenesses países é uma questão menosdramática que nos países pobres, comoo Brasil, que passaram, em curtoespaço de tempo, e recentemente, avivenciar esse fenômeno, sem contar,em contrapartida, com políticaspúblicas adequadas e com recursosdisponíveis para fazer face àsdemandas típicas desse segmentopopulacional7.

É preciso ressaltar, todavia, quea questão da velhice não está de todoresolvida nos países desenvolvidos.Pelo contrário, tem sido uma dasmaiores preocupações, nos últimosanos, dessas sociedades, especifica-mente no que diz respeito ao

pagamento de benefícios previden-ciários e a tratamentos médicos.

Consoante observações deKalache, os tratamentos médicos daspopulações idosas são extraordina-riamente caros, porquanto as doençasdas quais são acometidas, em regra,incuráveis, exigem longo acompanha-mento e dependem de alta tecnologia8.

No que diz respeito aosbenefícios previdenciários, há cadavez menos pessoas ativas responsáveispela manutenção do sistema debenefícios aos idosos, na medida emque as taxas de mortalidade são cadavez menores, assim como as defecundidade, além do fato de asfamílias programarem-se para nãoprocriar, reduzindo-se, assim, a maridoe mulher.

Se a velhice é um problemadramático para os países pobres,apresenta-se aos países ricos, pelomenos, como sério problema.

Vista a questão por essa óptica,a velhice revela-se numa problemáticaefetivamente mundial, que tende a seagravar, pois conforme as últimasprojeções da Organização das NaçõesUnidas — ONU, a população commais de 60 anos será de 2 bilhões em2050, bem distante da cifra de 200milhões de 19509. Não é precisoressaltar que a maior parte dessapopulação irá concentrar-se nosgrandes centros urbanos dos paísespobres.

No que concerne especifica-mente ao Brasil, tem-se informações deque a partir da década de 60 se

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registrou um significativo declínio nasua taxa de fecundidade. Atribui-seesse fenômeno a muitos fatores, dentreeles, ao acesso, por parte da populaçãofeminina, a informações concernentesa métodos contraceptivos e à mudançada estrutura familiar imposta pelaindustrialização. Associado a isso, atecnologia médica começou a se fazerpresente, com mais intensidade, nocotidiano da população carente,especialmente através das váriascampanhas de vacinação, quecontribuíram para diminuir e, atémesmo, erradicar graves doenças quevitimavam os brasileiros. Com isso, apopulação deixou de correr algunsgraves riscos de morte prematura,passando a viver mais.Diante desse quadro, é correto afirmar-se que o processo de envelhecimentoda população brasileira foi um tantoquanto artificial, uma vez que nãodecorreu de políticas sanitárias,característica de países hojeconsiderados desenvolvidos, masprincipalmente da tecnologia médica,que em nada melhorou as condiçõesde saneamento básico, água potável econdições habitacionais dapopulação10.

Em se situando a velhice nasociedade brasileira nesse contexto,ela se coloca ao lado de tantos outrostípicos problemas de países pobres.Sendo assim, e para que o Brasil dêcondições dignas de vida a essesegmento já bastante representativo desua população, porquanto já alcançou

7,1% do seu total, somado ao fato deque crescerá até 2025, segundo aOrganização Mundial de Saúde, naproporção de 16 vezes contra 5 vezesda população total11 12, é precisosuperar inúmeros desafios, inclusiveos da superposição de problemas e dacarência de recursos (os disponíveistêm a função apenas de alimentar alógica da especulação financeira glo-bal), encarando-se, definitivamente, avelhice não só como questão funda-mental ao desenvolvimento, mas,principalmente, como direito humanofundamental.

2. A velhice enquanto direitohumano fundamental

Sob as ressonâncias darevolução francesa, Kant, na últimadécada do século XVIII, escreveu umtexto no qual formulou o seguintequestionamento: O gênero humanoestá em constante progresso paramelhor?13

Revelando estar atento aodesenrolar de todos os fatos de suaépoca, o grande filósofo respondeu àsua pergunta de. maneira afirmativa,sem, todavia, deixar de fazer a seguinteressalva: o progresso moral não énecessário, mas apenas possível.14.E Kant respondeu dessa forma porquepercebeu que a revolução francesaconseguiu despertar, e não somenteentre os franceses, a consciência doestado de miséria, penúria, sofrimen-

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to, indigência e infelicidade em que vi-viam os homens, tudo por conta deuma estrutura de poder implantada quese firmava em bases ilegítimas, já quenegava aos homens a condição de su-jeitos de direito. Ora, sem essa con-cepção, os homens não poderiam seratores da história, capazes de interfe-rir nos governos, obrigando seusgovernantes a agirem em benefício detodos.

O despertar para essa concepçãode homem gerou a sensação deinsuportabilidade ante a organizaçãosocial anterior, precipitando, assim, aformação de uma nova consciência,segundo a qual aos homens não po-deria ser negado o direito de darem asi uma constituição civil que julgas-sem boa. Eis, pois, construído o cam-po fértil para a consolidação da idéiaconsoante a qual o homem é o senhorda história, responsável pelo seu des-tino, ser de direitos.

Se essa noção de homemapontou para um avanço no processocivilizatório, por via do progressomoral que representou tal consciência,ela sofreu sérias investidasreacionárias por parte da estruturasócio-econômica que lhes deu ascondições de possibilidade. Assim, seo sistema capitalista possibilitou quenovas ideias aflorassem nos maisdiversos campos, como forma deminar a estrutura de poder do antigoregime, que insistia em se perpetuar,ao derrubá-lo, passou a negar todosos princípios sobre os quais havia se

amparado, especialmente os direitoshumanos fundamentais. A própriasituação dos velhos, nessa fase dasociedade capitalista, demonstraesse fato.

Ora, se os velhos eram vistoscomo inúteis à produção e àreprodução do capital, isso significavaque os homens não tinham valor, nãopossuíam, na realidade, direitosfundamentais, nem mesmo o maiselementar deles: o direito à vida. Osdireitos fundamentais, nesse contexto,não passaram de mera retórica.

Esse desprestígio dos direitosfundamentais do homem, que antes detudo são um marco no avanço doprocesso civilizatório, ainda persisteno atual momento histórico, apesar dosgrandes esforços que alguns setores dacomunidade mundial vêm fazendo nosentido de reconhecê-los não somentecomo valores, mas como normas.

No que diz respeito ao aspectonormativo dos direitos humanos,Müller fez uma colocação muitointeligente, quando destacou que portrás das normas de direitos humanos éque se encontram as representaçõesdos valores da dignidade, da liberdadee da igualdade de todos os seresdotados de semblante humano15.

Em sendo assim, a velhice é, defato, um direito humano fundamental.E é um direito humano fundamentalporque ser velho significa ter direito àvida, significa dar continuidade a essefluxo, que deve ser vivido comdignidade. Dessa forma, caso se queira

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que a sociedade avance moralmente,faz-se necessário que se reconheça avelhice como direito fundamental,levando-a, enquanto tal, efetivamentea sério, respeitando-a, porque, dessaforma, as demais fases da vida tambémestarão protegidas, uma vez que umavelhice digna e longa representa ocoroamento de uma vida na qual ohomem foi respeitado enquanto serhumano.

3. A velhice nas Constituiçõesmodernas

3.1 A velhice no Direito Constitu-cional Comparado

A constituição escrita surgiujustamente para tornar de todosconhecido que os direitos humanossão, em razão de sua própria condiçãode fundamentais, imprescritíveis einalienáveis, e que a função de todo equalquer governante é atuar no sentidode fazer com que esses direitos sejam,de fato, respeitados, porque só dessamaneira a sociedade avançarámoralmente.

Ora, se a função de cada coisa éo seu fim, a função da constituiçãoescrita, que traduz o grande pacto so-cial na modernidade, é garantir osdireitos fundamentais do homem,através de regras claras de limitaçãodo poder dos governantes.

Todavia, a constituição, nagrande maioria dos países, não passa

de mera peça ornamental na arena dasrelações de força, porquanto nãofunciona como efetivo instrumento delimitação do poder, na medida em queas forças políticas não a prestigiamenquanto marco do processocivilizatório.

Por outro lado, não se podenegar que todos aqueles que namodernidade ascenderam ao poderbuscaram a legitimação do exercíciodo seu comando na constituiçãoescrita, o que demonstra, no mínimo,o prestígio desse documento político,mesmo entre aqueles que, de fato,ignoram-no.

Como prova disso, bastaobservar que a constituição escritasempre esteve presente na retórica dosditadores, maiores violadores dosdireitos fundamentais.

Em essência, a constituiçãoescrita, antes de tudo, carrega consigodois valores fundamentais damodernidade: a noção deessencialidade dos direitosfundamentais e a idéia da necessidadede os cidadãos da comunidadeparticiparem da elaboração das leisque irão regê-los.

Qualquer documento escrito quenão preencha esses requisitos (respeito aos direitos fundamentais e aoambiente democrático), mesmo vindoa ser chamado de constituição, não éuma constituição.

A perversão da idéia deconstituição escrita, a ponto deditadores outorgarem documentos

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com esse nome em suas nações,desconsiderando o que de maisessencial nela existe, que são osdireitos fundamentais, marco delimitação do poder, não significa queos direitos humanos não sejambásicos, essenciais, parâmetro aindicar o avanço no processocivilizatório. Pelo contrário, na medidaem que os governanates agemdesrespeitando os direitos humanos,mais estes se revitalizam - não que odesrespeito seja condição sine qua nonde revitalização -, demonstrando quea despeito de todas as aberrações , detodos os massacres, de toda aignorância, de todo o terror, de toda afalta de seriedade, o progresso moralé possível.

É nesse contexto que a velhice,antes sequer presente no imagináriosocial, apresenta-se não somente comoproblemática social relevante, mas,principalmente, como direito humanofundamental, reconhecido pela própriaconstituição de todos os povos, aDeclaração Universal de DireitosHumanos, no seu art. XXV.

Assim, tendo a própriaconstituição de todos os povos, queinfelizmente ainda não possuiefetividade na maioria dos países,registrado que a velhice traduz aprópria força do direito à vida, queprecisa ser vivida com dignidade,alguns países consideraram adequadoinscrever também em suas própriasconstituições normas claras concer-nentes à proteção dessa etapa da vida.

É evidente que muitos paísesque inscreveram em suas constituiçõeso direito à dignidade na velhice,fizeram-no como mera retórica,enquanto que outros, com sériadisposição em vê-lo efetivado.

Ao todo, na atualidade, 12(doze) constituições modernas trazemem seus textos normas de proteção àvelhice. São elas: Constituição daRepública Federativa do Brasil,promulgada em 05/10/88;Constituição da República Popular daChina, adotada em 04/12/82, na VSessão da V Assembléia da RepúblicaPopular da China; Constituição daRepública de Cuba, de 24/02/76;Constituição Espanhola, sancionadapor Sua Majestade, o Rei, ante asCortes, em 27/12/78; Constituição daRepública de Guiné-Bissau, aprovadaem 16/05/84, pela AssembléiaNacional Popular; Constituição daRepública da Itália, de 01/01/48, comas emendas de 09/02/63, 27/12/63 e22/11/67; Constituição Política dosEstados Unidos Mexicanos, de 31/01/17, com emendas publicadas em 08/02/85; Constituição Política do Peru,promulgada em 12/07/79; Constituiçãode Portugal, de 25/04/76; Constituiçãoda Confederação Suiça, promulgada em29/05/74, com emendas de dezembrode 1985; Constituição da RepúblicaOriental do Uruguai, aprovada em 24/08/66, com emenda de 1967 eConstituição da República da Venezu-ela, promulgada em 23/01/61, comemenda de 09/05/73.

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Deve-se ressaltar que apenas umpaís africano trata da velhice em suaconstituição, Guiné-Bissau, fato queindica a situação dos direitoshumanos, como um todo, nos paísesdesse continente, marcados, em regra,pelas guerras, fome e corrupção.

Na Europa, continente no quala velhice, tanto enquanto problema so-cial relevante como direito fundamen-tal, primeiro se colocou, somente aEspanha, Itália, Portugal e Suiçatratam dela em suas constituições.Dos países pertencentes ao blocosocialista, ainda sobreviventes à quedado muro de Berlim, tanto a Chinaquanto Cuba abordam a velhice emsuas constituições.

Na América, somente algunspaíses latinos trataram da velhice emsuas constituições: Brasil, México,Peru, Uruguai e Venezuela. Sabe-se,todavia, que a constitucionalizaçãodesses direitos nesses países possui ummero cunho retórico, porquanto não hátradição na américa latina de osdireitos humanos serem respeitados.

3.1.1 A velhice nas Constituiçõeseuropéias

De todas as Constituições docontinente europeu, a que melhoraborda o direito à velhice é aportuguesa. Essa Constituição, aolongo dos seus artigos 64, 67 e 72,estabelece um conjunto de obrigaçõesao Estado, não só com o objetivo de

garantir assistência social aos velhos,mas fundamentalmente, com vista aassegurar-lhes efetiva participação navida social, fato que representa, emrelação à concepção inicial da idéia develhice, o reconhecimento dos velhosenquanto sujeitos de direito, o quesignifica o primeiro passo em direçãoà efetiva inclusão desse segmento nasociedade em que vive.

Assim dispõem os artigosreferidos: O direito à proteção da saúdeé realizado pela criação de um serviçonacional de saúde universal, geral egratuito, pela criação de condiçõeseconômicas, sociais e culturais quegarantam a proteção (...) da velhice epela melhoria sistemática dascondições de vida (...) inclusiveatravés do desenvolvimento daeducação sanitária do povo,incumbindo, designadamente, aoEstado para a proteção da família,promover a criação de (...) umapolítica de terceira idade, garantindo-se aos seus integrantes direito àsegurança econômica e a condições dehabitação e convívio familiar e comu-nitário que evitem e superem o isola-mento ou a marginalização social. Epara finalizar, determina essa Consti-tuição que a política de terceira idadedeve englobar medidas de cáratereconômico, social e cultural tendentesa proporcionar às pessoas idosasoportunidades de realização pessoal,através de uma participação ativa navida da comunidade16.

A Constituição espanhola,apesar de menos extensa que a

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portuguesa no concernente a normasde proteção à velhice, trata dessesegmento naquilo que é essencial. Daíseu art. 50 enunciar que os poderespúblicos garantirão, mediante pensõesadequadas e periodicamenteatualizadas, a suficiência econômicados cidadãos durante a terceira idade.Assim, mesmo com independência dasobrigações familiares, proverão seubem-estar mediante sistema deserviços sociais que atenderá seusproblemas específicos de saúde, vida,cultura e ócio17.

A Constituição Italiana, deforma menos específica, reconhece odireito a uma velhice digna,ressaltando no seu art. 38, que cadacidadão impossibilitado de trabalhare desprovido dos meios necessáriospara viver tem direito ao sustento e àassistência social. Ademais, registraque os trabalhadores têm direito de quesejam consignados e asseguradosmeios adequados às suas exigênciasde vida em caso de (...) velhice18.

A Constituição Suiça, um pou-co mais antiga que as demais Consti-tuições européias que abordam o di-reito a uma velhice digna, manifestaespecial preocupação com a distribui-ção de renda, especialmente entre os ve-lhos, ao mesmo tempo em que apon-ta os mecanismos necessários para queos recursos sejam arrecadados. Eis oconteúdo do seu art. 34: A Confede-ração toma as medidas apropriadaspara promover uma previdência sufi-ciente para os casos de velhice. Esta

previdência social resulta de um se-guro federal, da previdência profissi-onal e da previdência individual. AConfederação institui, por vialegislativa, um seguro contra a velhi-ce obrigatório para o conjunto da po-pulação. Este seguro entrega presta-ções em dinheiro e em espécie. As ren-das devem cobrir as necessidades vi-tais numa medida apropriada. A ren-da máxima não deve ser superior aodobro da renda mínima. As rendas de-vem estar adaptadas pelo menos à evo-lução dos preços. O seguro é realiza-do com a participação de associaçõesprofissionais e de outras organizaçõesprivadas ou públicas. O seguro é fi-nanciado por uma contribuição daConfederação, que não excederá ametade das despesas e que será cober-ta, em primeiro lugar, pelas receitas lí-quidas do imposto e direitos alfande-gários sobre o tabaco, assim como doimposto fiscal sobre bebidas destila-das, na medida fixada em lei.19

3.2.2 A velhice nas Constituiçõesdo Bloco Socialista

A Constituição Chinesa refere-se à velhice nos seus artigos 45 e 49,abordando a temática da seguinteforma: os cidadãos da RepúblicaPopular da China têm direito àassistência material do Estado e dasociedade na velhice e em caso deenfermidade ou de perda de suacapacidade laboral. Para garantir o

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gozo desses direitos, o Estadopromoverá os serviços de seguridadesocial, assistência médica e saúdepública. Da mesma forma que os paistêm o dever de sustentar e educar aseus filhos menores, estes, quandoadultos têm o dever de sustentar eajudar seus pais.

Infere-se da leitura dessesartigos, que a Constituição Chinesaimpõe atribuições à família, àsociedade e ao Estado no que dizrespeito ao amparo à velhice,protegendo, com destaque, aintegridade física desse segmento dapopulação, no seu art. 49, onde se lêque é proibido maltratar os anciãos20.A Constituição Cubana trata davelhice no seu art. 47, atribuindo aoEstado, através da seguridade social,aproteção dos anciãos sem recursos21.

3.3.3 A velhice nas Constituições la-

A Constituição do Peru protegeformalmente a velhice nos seus arts.8o e 13. Neles se encontra registradoque os anciãos serão protegidos peloEstado ante o abandono econômico,corporal e moral e que a seguridadesocial tem como objeto cobrir, dentreoutras situações, a velhice23.

A Constituição do Uruguai noart. 67, dispõe que a pensão na velhiceconstitui um direito para quem chegueao limite da idade produtiva depois delarga permanência no país e careça derecursos para sobreviver.24 AConstituição da Venezuela trata davelhice no seu art. 94, reconhecendoàs pessoas que chegam a essa fase davida o direito a um sistema de seguroe previdência social.25

3.3.4 A velhice na Constituição de

tino-americanas

Não se abordará neste tópico aConstituição brasileira atual, uma vezque ela será objeto de análise em ca-pítulo específico. Quanto às demaisConstituições dessa parte do continen-te americano, é correto dizer que asnormas inscritas em quase todas elasnão foram implementadas, constituin-do-se em letra morta.Dessa forma, a Constituição mexica-na trata da velhice no seu art. 123 (b),XI (a), onde se lê que a seguridadesocial cobrirá a velhice22.

Guiné-Bissau

A única constituição que trata dodireito a uma velhice digna nocontinente africano é a Constituição deGuiné-Bissau, o que não quer dizerque nesse país a velhice sejaefetivamen-te amparada.

Assim dispõe o seu art. 37: oEstado criará gradualmente umsistema capaz de garantir aotrabalhador segurança social navelhice26.

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3.2 A velhice nas antigas habitação, etc, sempre esteve entre osúltimos colocados nas avaliações daOrganização das Nações Unidas, quemedem o grau de desenvolvimentohumano dos países, como faz prova,não somente a realidade que salta aosolhos, mas o último relatório dessaorganização, que classifica o Brasil na79a posição em qualidade de vida anível mundial, sendo este uma das dezmaiores economias do globo27.

Assim, diante de um quadro emque os direitos humanos nunca foramlevados a sério, as Constituiçõesbrasileiras, anteriores a de 1988, nãoprivilegiaram, nem formalmente,como era de se esperar, o direito a umavelhice digna a todos os cidadãos.Trataram, quando muito, da velhiceapenas na parte da Ordem Econômicae Social, e somente a partir de 1934.Pois bem. Não se preocupando osgovernantes brasileiros com os direitoshumanos fundamentais – quando estadeveria ter sido sua principalpreocupação - durante a vigência dasprimeiras Constituições, a maior parteda população sequer chegou à velhice,pois as condições de vida no país eramas piores possíveis. Nem sequer atecnologia médica, que ajudou aenvelhecer artificialmente grandeparte da população na segunda metadedeste século, teve espaço no país nesseperíodo.

Dessa forma, a ConstituiçãoPolítica do Império do Brasil,outorgada em 25 de março de 1824,não fez qualquer alusão à velhice.

Constituições brasileiras

A velhice, enquanto problemá-tica social relevante e direito humanofundamental, só recentementedespertou a atenção das autoridades eda sociedade brasileira. Esse fatodemonstra o atraso do país em relaçãoàqueles que apresentam respeitáveisindicadores de desenvolvimentohumano, a refletir as adequadaspolíticas desenca- deadas e efetivadaspor eles com vista a assegurardignidade a todas as fases da vida deseus cidadãos.

O fato de o Brasil sórecentemente vir presen- ciando avelhice enquanto problema evisualizando-a, diante disso, comodireito, significa que, na realidade, nãolevou, no decorrer de sua história, asério os direitos humanos, porquantonão foram tomadas, nos momentosoportunos, as medidas apropriadas agarantir à população como um todouma vida mais longeva e de qualidade,tudo como forma de assegurar o direitomais essencial de todos: vida comdignidade.

Em não tendo o Brasilprivilegiado, ao longo de sua história,ações voltadas à erradicação dapobreza, da margina- lização, dadesigualdade social, da violência,através de políticas públicasconsistentes e permanentes, como desaneamento básico, educação dequalidade, saúde preventiva,

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Nenhum dos seus 179 artigos dedicouuma palavra à proteção dessa faseda vida, mesmo usando terminologiaalternativa: idoso, ancião, etc.

O mesmo, praticamente,aconteceu com a Constituição daRepública dos Estados Unidos doBrasil, promulgada em 24 de fevereirode 1891. Essa Constituição, no seu art.75, apesar de ter feito referência apossibilidade de aposentadoria doservidor público, fê-lo apenas tendoem vista a invalidez, e não a idade28.Ainda nessa mesma Constituição, naparte das Disposições Transitórias, oart. 6o tratou da possibilidade deaposentadoria por tempo de serviço,mas, ainda assim, somente paramagistrados que tivessem mais de 30anos de serviço público.29

Se houve alguma preocupaçãocom a velhice nessa Constituição, essapreocupação esteve voltada apenaspara garantir os interesses de uma parteda burocracia e não os de toda umapopulação, até mesmo porque quemtinha chance de chegar a essa fase davida eram apenas os integrantes daelite, especialmente a burocrática.A Constituição dos Estados Unidos doBrasil, promulgada em 16 de julho de1934, diferentemente dasConstituições anteriores, abriu umtítulo dedicado a Ordem Econômica eSocial, no qual dispôs, no art. 121, §1o, que a legislação do trabalho deveriagarantir assistência previdenciária,mediante contribuição igual da união,do empregador e do empregado, a fa-vor, inclusive da velhice30.

Mesmo com esse dispositivo, avelhice com dignidade - e o própriochegar à velhice -, continuou nãosendo reconhecida como direito detodos, mas tratada apenas como direitode segmentos sociais que atuavam emsetores determinados (indústria,comércio, por exemplo). Sabe-se,todavia, que à época, a maior parte dapopulação brasileira vivia no campo,e não contava com qualquer proteçãodo Estado.

A Constituição dos EstadosUnidos do Brasil, decretada em 10 denovembro de 1937 não alterou essasituação, dispondo, no seu art. 137,praticamente da mesma forma que aConstituição anterior.31

As Constituições dos EstadosUnidos do Brasil, promulgada em 18setembro de 1946 e do Brasil, de 24de janeiro de 67, depois emendada em1969, não alteraram a abordagem damatéria sobre a velhice, ou seja, não aencararam como problemática socialrelevante e nem como direito humanofundamental, dispondo, então, em seusartigos 157; 158, XVI e 165, XVI,respectivamente, que a legislação dotrabalho deveria voltar-se à melhoriadas condições do trabalhador, dentreelas, contribuição da União, doempregador e do empregado a favorda velhice.32

3.3 A velhice na atual ConstituiçãoBrasileira

Como decorrência do seuespírito inovador, a Constituição da

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República Federativa do Brasil,promulgada em 05 de outubro de1988, trouxe em seu corpo inúmerasnormas sobre a velhice. A quantidadesignificativa de normas tratando dessafase da vida decorreu não só doenvelhecimento populacional - queprovocou uma revolução demográficano Brasil nas últimas décadas -, mas,principalmente, da sensibilidade doConstituinte para o fato de a velhicetratar-se de um direito humano funda-mental.

Como prova disso, oConstituinte de 1988 registrou no art.3 o, III da Constituição Federal, queconstitui objetivo fundamental daRepública Federativa do Brasilpromover o bem de todos, sempreconceitos de origem, raça, sexo,cor, idade e quaisquer outras formasde discriminação. E para ratificar essaperspectiva, inscreveu no caput do art.5o, que todos são iguais perante a lei,sem distinção de qualquer natureza,garantido-se aos brasileiros e aosestrangeiros residentes no país ainviolabilidade do direito à vida, àliberdade, à igualdade, à segurança eà propriedade. Dentro da nova ordemjurídica construída, a presença dessesdispositivos representou um grandeavanço no discurso constitucionalsobre a velhice, especialmente porqueno art. 3o foi explicitamente gravadoque a República deve promover o bemde todos, sem preconceitos dequalquer natureza. Dispositivosemelhante não esteve presente em

nenhuma das constituições anteriores.Ademais, reservou o Capítulo

VII (Da família, da criança, doadolescente e do idoso), do Título VIII(Da Ordem Social) para tratar, commaiores detalhes, da proteção aosvelhos. Nesse Capítulo, além de oConstituinte ter atribuído à família, àsociedade e ao Estado o dever deamparar os velhos, assistindo-lhespreferencialmente em seus próprioslares, assegurando-lhes participaçãona comunidade, integridade física,dignidade e bem-estar, direito à vida,reconheceu às pessoas maiores desessenta e cinco anos a gratuidade nostransportes coletivos urbanos.

Por outro lado, com o objetivode tornar o direito à velhice digna umfato, o Constituinte inscreveu tambémna Constituição que a assistência so-cial é um direito do cidadão e um deverdo Estado, devendo ser prestada aquem dela necessitar, independen-temente de contribuição. Para tanto,registrou em norma constitucional umbenefício de prestação continuada, novalor de um salário mínimo, ao velhoque não disponha de recursos próriosou da família para sua manutenção.Quanto a esse dispositivo, a Lei Fed-eral n° 8.742/93, através do § 3o do art.20, acrescentou um empecilho à suaefetividade, porquanto além de oidoso, consoante a referida Lei, ter decomprovar insuficiência de recursospara sua sobrevivência, terá de provarnão possuir sua família renda percapita superior a 1/4 do salário mínimo.

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Tal dispositivo, questionado por via deuma ação declaratória deinconstitucionalidade, proposta peloProcurador Geral da República, foireconhecido, quando do julgamento demérito no Supremo Tribunal Federal,constitucional, decisão essa queesvaziou a intenção do Constituinte,que foi assegurar aos idosos uma vidaminimanente digna.

Diante de toda essa perspectivafundamentalista apontada pelaConstituição de 1988, não se justificauma decisão como a tomada peloSupremo Tribunal Federal, que, aoinvés de assegurar dignidade aosvelhos, dando eficácia à Constituição,preferiu reconhecer comoconstitucional o § 3o do art. 20 da Lei7.842/93, flagrantemente em choquecom os princípios da RepúblicaFederativa do Brasil e com o próprioinciso V do Art. 203 da Constituição.Vê-se, então, que a Constituição, porsi só, não é suficiente para asseguraraos velhos, idosos, anciãos – comoqueira se chamar os integrantes dessesegmento - os seus direitos. É preciso,antes de tudo, para que a Constituiçãotenha força normativa, que os agentesresponsáveis pelo seu cumprimentoefetivamente a levem a sério,orientando suas ações e decisões pelosprincípios e objetivos constitucionais,todos incumbidos de fazer com quetodos os seres humanos tenhamdireitos iguais a uma vida digna.

Conclusões

1. A idéia de velhice decorre dos va-lores e das representações sociais acer-ca desse fato, razão pela qual não exis-te uma substancialidade absoluta noseu ser.2. Quando a velhice se constituiu emobjeto de saber, passou a ocupar, en-quanto fenômeno social alvo de dis-curso, um lugar marginalizado, poistraduzida como decadência, etapa fi-nal da existência, da conclusão dospotenciais evolutivos.3. Vistos como inservíveis para a pro-dução e reprodução do capital, cons-truiu-se uma perspectiva negativa davelhice, o que acarretou a exclusão dosvelhos da vida social.4. A velhice é uma problemática glo-bal, pois conforme as projeções daONU, a população mundial com mais de60 anos será de 2 bilhões de pesso-as em 2050, a exigir, desde já, políti-cas públicas adequadas, tendo em vistaespecialmente as demandas específi-cas desse segmento populacional.5. O envelhecimento da população bra-sileira foi um tanto que artificial, umavez que não decorreu de políticas pú-blicas voltadas para melhorar a quali-dade de vida da população, mas de in-tervenções da tecnologia médica.6. A velhice é um direito humano fun-damental porque chegar à velhice sig-nifica ter direito à vida, significa darcontinuidade a todo um fluxo vital,que deve ser vivido por completo comdignidade.

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7. A vida do homem não pode ser com-parada a uma chama, que com o tem-po se apaga. Essa visão pode trazerconsigo a idéia segundo a qual quantomais se vive, menos se tem direitos.8. A Declaração Universal dos Direi-tos Humanos reconhece o direito a umavelhice digna no seu art. XXV.9. Doze constituições modernas tratamda velhice em seus textos. Nem todasabordam a velhice como direito huma-no fundamental.10. A única Constituição Brasileiraque tratou da velhice como direito fun-damental foi a de 1988.

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1 BRIMAN, Joel. Futuro de todos nós:

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psicanálise. In: VERAS, Renato (org). Terceira

Idade: um envelhecimento digno para o

cidadão do futuro. Rio de Janeiro: Relume

Dumará, 1995. p. 30.

2 Id.Ibid.

3 Id. Ibid. p. 31.

4 Id. Ibid.p.33.

5 BOBBIO, Norberto. Tempo de memória: de

senectute e outros escritos autobiográficos;

tradução de Daniela Versiani. Rio de Janeiro:

Campus, 1997. p. 29.

6 BRIMAN, Joel. Op. Cit. p. 30.

7 BÉRQUO, Elza. Algumas considerações

demográficas sobre o envelhecimento da

população no Brasil. In: Anais do I Seminário

Internacional - Envelhecimento Populacional:

uma agenda para o final do século. Brasília:

MPAS,SAS, 1996. p. 32.

8 KALACKE, Alexandre. Envelhecimento no

contexto internacional: a perspectiva da

Organização Mundial de saúde. In: Anais do

I Seminário Internacional – Envelhecimento

Populacional: uma agenda para o final do

século. Brasília: MPAS, SAS, 1996. p. 14.

9Jornal Folha de São Paulo. Especial ano 2000,

Trabalho ... o idoso adiará saída, edição de

30/04/99.

10 KALACKE, Alexandre. Op. Cit. p. 14.

11 Plano Integrado de Ação Governamental

para o Desenvolvimento da Política

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Nacional do Idoso. p. 07.

12 Em 1950, o Brasil ocupava a 16a colocação,

com 2 milhões de velhos. Em 2015, terá 14

milhões e em 2025, ocupará a 6a posição

mundial, com 32 milhões de pessoas com mais

de 60 anos (ARAGÃO, Selma & VARGAS,

Angelo. O Idoso – geração continuada – um

olhar no mundo. In: SÉGUIN, Élida (org.). O

direito do idoso. Rio de Janeiro, 1999. p. 51).

13 KANT, Immanuel. Sritti pilitici e di filosofia

delia storia e dei diritto. Tradotti da Giole Solari

e Givanni Vidari. Unione Tipografico-Editrice

Torinese, 1956. p. 213-234.

14 Id. Ibid.

15 MÜLLER, Friedrich. Interpretação e con-

cepções atuais dos direitos do homem. In:

Anais da XV Conferência Nacional da OAB,

s/d, p. 537-538.

16 Constituições do Brasil e Constituições Es-

-trangeiras. Brasília: Senado Federal, Secreta-

-ria de Edições Técnicas, 1987. p. 779,781,783.

17 Id. Ibid. p. 370.

18 Id.Ibid. p.525.

19 Id. Ibid. p. 872 e 874.

20 Id. Ibid. p. 298 e 299.

21 Id. Ibid. p. 335.

22 Id. Ibid. p. 643.

23 Id. Ibid. p. 702.

24 Id. Ibid. p. 970.

25 Id. Ibid. p. 1056.

26 Id. Ibid. P. 497.

27 Jornal Folha de São Paulo. Qualidade de

Vida. IDH, edição de 11/07/99.

28 Constituições do Brasil. Compilação e

atualização dos textos, notas, revisão e

índices, Adriano Campanhole, Hiltom Lobo

Campanhole. 11a ed. São Paulo: Atlas, 1994.

p.715.

29 Id. Ibid. p. 719.

30 Id. Ibid. p. 663 e 664.

31 Id. Ibid. p. 567.

32 Id. Ibid. p. 459,379,380,265 e 266.