15
Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015 209 A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ DE ARUANÃ/GO/BRASIL 1 SILVA, Lorranne Gomes da 2 LIMA, Sélvia Carneiro de Lima 3 SILVA, Lorena Paula 4 COSTA, Josiane de Azevedo 5 COSTA, Yan Carlos Medeiros 6 RESUMO O presente artigo discute as relações entre o turismo e o povo Indígena Karajá que vive na cidade de Aruanã localizada no estado de Goiás no Brasil. A intenção é refletir o que as atividades turísticas representam para os Karajá, como a comunidade insere-se nelas e quais os impactos dessas atividades na vida desse povo, sobretudo, na cultura e suas ressignificações. A cidade de Aruanã está inserida na Região Turística Vale do Araguaia, conjunto complexo de dinâmica do capital e diferentes interesses econômicos, levando os segmentos públicos e privados a investirem cada vez mais na divulgação de atrativos e lugares turísticos. Mas, ao considerar as apropriações dos territórios, especialmente, no que se refere às atividades turísticas, é preciso repensar sobre os distintos usos e consequências que estas práticas são instituídas, sobretudo, quando se trata de territórios indígenas. A pesquisa apontou que o contato interétnico e a inserção dos Karajá nas demandas mercadológicas do turismo, culminou com várias modificações na cultura. Esta pesquisa de caráter qualitativo foi desenvolvida a partir de levantamento bibliográfico, trabalho e diário de campo, entrevistas e observação participante. Autores como Lima (2010 a e b), Nogueira (2008), Santos (2013), Rocha (1998), dentre outros, foram fundamentais para subsidiar a análise. Palavras-chave: Turismo; Povo Indígena Karajá de Aruanã; Cultura. INDIGENOUS LIFE AND TOURISM: THE KARAJÁ ARUANÃ/GO/BRAZIL PEOPLE ABSTRACT The present paper tackles the relationships between tourism and the Karajá indigenous people, living in the city of Aruanã nestled in the State of Goiás, in Brazil. Our purpose is to reflect 1 Este artigo é produto da pesquisa intitulada: Reconfigurações culturais no modo de vida indígena: o povo Karajá do Cerrado Goiano, realizada pela Universidade Estadual de Goiás, unidade de Quirinópolis, com vigência de 2014 a 2016. 2 Professora de Geografia da Universidade Estadual de Quirinópolis/Goiás/Brasil. Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Socioambientais. Bolsista pela FAPEG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás) e coordenadora da pesquisa referida. [email protected]. (64) 81610108 3 Professora de Geografia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Campus Inhumas/Goiás/Brasil. Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Socioambientais. Bolsista pela Capes. Colaboradora da pesquisa. [email protected]. (62) 81597019 4 Graduanda em Geografia pela Universidade Estadual de Quirinópolis/Goiás/Brasil e bolsista da pesquisa referida. [email protected]. (64) 84431602 5 Graduanda em Geografia da Universidade Estadual de Quirinópolis/Goiás/Brasil e bolsista da pesquisa referida. [email protected]. (64)84446233 6 Graduando em Geografia da Universidade Estadual de Quirinópolis/Goiás/Brasil e bolsista da pesquisa referida. [email protected]. (64) 92887043

A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP

Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015

209

A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ DE ARUANÃ/GO/BRASIL1

SILVA, Lorranne Gomes da2

LIMA, Sélvia Carneiro de Lima3

SILVA, Lorena Paula4

COSTA, Josiane de Azevedo5

COSTA, Yan Carlos Medeiros6

RESUMO

O presente artigo discute as relações entre o turismo e o povo Indígena Karajá que vive na

cidade de Aruanã localizada no estado de Goiás no Brasil. A intenção é refletir o que as

atividades turísticas representam para os Karajá, como a comunidade insere-se nelas e quais

os impactos dessas atividades na vida desse povo, sobretudo, na cultura e suas

ressignificações. A cidade de Aruanã está inserida na Região Turística Vale do Araguaia,

conjunto complexo de dinâmica do capital e diferentes interesses econômicos, levando os

segmentos públicos e privados a investirem cada vez mais na divulgação de atrativos e

lugares turísticos. Mas, ao considerar as apropriações dos territórios, especialmente, no que se

refere às atividades turísticas, é preciso repensar sobre os distintos usos e consequências que

estas práticas são instituídas, sobretudo, quando se trata de territórios indígenas. A pesquisa

apontou que o contato interétnico e a inserção dos Karajá nas demandas mercadológicas do

turismo, culminou com várias modificações na cultura. Esta pesquisa de caráter qualitativo foi

desenvolvida a partir de levantamento bibliográfico, trabalho e diário de campo, entrevistas e

observação participante. Autores como Lima (2010 a e b), Nogueira (2008), Santos (2013),

Rocha (1998), dentre outros, foram fundamentais para subsidiar a análise.

Palavras-chave: Turismo; Povo Indígena Karajá de Aruanã; Cultura.

INDIGENOUS LIFE AND TOURISM: THE KARAJÁ ARUANÃ/GO/BRAZIL PEOPLE

ABSTRACT

The present paper tackles the relationships between tourism and the Karajá indigenous people,

living in the city of Aruanã nestled in the State of Goiás, in Brazil. Our purpose is to reflect

1Este artigo é produto da pesquisa intitulada: Reconfigurações culturais no modo de vida indígena: o povo

Karajá do Cerrado Goiano, realizada pela Universidade Estadual de Goiás, unidade de Quirinópolis, com

vigência de 2014 a 2016. 2 Professora de Geografia da Universidade Estadual de Quirinópolis/Goiás/Brasil. Doutoranda em Geografia pela

Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos Socioambientais. Bolsista pela FAPEG (Fundação de

Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás) e coordenadora da pesquisa referida. [email protected]. (64)

81610108 3 Professora de Geografia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia – Campus

Inhumas/Goiás/Brasil. Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal de Goiás, Instituto de Estudos

Socioambientais. Bolsista pela Capes. Colaboradora da pesquisa. [email protected]. (62) 81597019 4 Graduanda em Geografia pela Universidade Estadual de Quirinópolis/Goiás/Brasil e bolsista da pesquisa

referida. [email protected]. (64) 84431602 5 Graduanda em Geografia da Universidade Estadual de Quirinópolis/Goiás/Brasil e bolsista da pesquisa

referida. [email protected]. (64)84446233 6 Graduando em Geografia da Universidade Estadual de Quirinópolis/Goiás/Brasil e bolsista da pesquisa

referida. [email protected]. (64) 92887043

Page 2: A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP

Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015

210

on what the tourist activities mean to the Karajá, how the community is merged with them

and how they impact on the life of these subjects, especially regarding culture and re-

significations. The city of Aruanã is located in the tourist region known as Araguaia Valley, a

complex area involving financial resources and varied economic interests, leading public and

private sectors to increasingly invest in publicizing tourist landmarks and places. However,

taking into account the appropriation of territory, especially, in terms of tourist activities, it is

valid to ponder the distinct uses and consequences that such practices entail, especially, when

it comes to indigenous territories. Our research has indicated that the interethnic contact and

the insertion of the Karajá people in the tourism market demands led to several modifications

in their culture. This qualitative investigation has been developed from bibliographic research,

work and field reports, interviews and participant observation. Authors such as Lima (2010 a

and b), Nogueira (2008), Santos (2013), Rocha (1998), among others, have been fundamental

to support the analysis.

Keywords: Tourism; Karajá Aruanã Indigenous People; Culture.

Introdução

Neste artigo, o foco é discutir as relações entre o povo indígena Karajá de Aruanã-GO/BR e o

turismo7. A intenção é refletir o que as atividades turísticas representam para esse povo, como

a comunidade insere-se nela e quais os impactos dessas atividades na vida indígena,

sobretudo, na cultura.

De acordo com Baruzzi e Pagliaro (2002: 01), “os índios Karajá habitam extensa região do

vale do rio Araguaia, nos estados de Goiás, Tocantins e Mato Grosso, com maior número de

aldeias localizadas na Ilha do Bananal, considerada a maior ilha fluvial do mundo”.

A composição dos dados aqui apresentados pautou-se no procedimento metodológico da

observação participante que, de acordo com Goldenberg (1997: 63), “é uma metodologia de

pesquisa que aparece como possibilidade na tentativa de descrição, explicação e compreensão

do objeto de estudo”. Não é apenas uma observação contemplativa, mas como ressalta

Oliveira (2000) o “ouvir” e “olhar” complementam-se na investigação. O autor afirma ainda

que na observação participante:

O pesquisador assume um papel perfeitamente digerível pela sociedade observada, a

ponto de viabilizar uma aceitação senão ótima pelos membros daquela sociedade,

pelo menos afável, de modo a não impedir a necessária interação (OLIVEIRA,

2000: 24).

Para Ludke e André (1986), a vivência e a observação no lugar são consideradas

fundamentais na pesquisa qualitativa e caracterizam-se pelo contato direto do pesquisador

com os sujeitos. O trabalho de campo como permanência, estada, ainda que temporária e

datada, bem como a presença e a busca pela profundidade podem inserir-se nesse movimento

de pesquisa, viabilizando a observação.

Para efetivar a pesquisa foram realizados três trabalhos de campo na aldeia Karajá de Aruanã

com estadia de aproximadamente cinco dias cada. Na oportunidade, foram feitas entrevistas e

depoimentos registrados em gravador, rodas de conversas, questionários e analisados

documentos (do Centro de Apoio ao Turista - CAT) sobre os Karajá, informações essenciais

para compor os dados da pesquisa. Como este trabalho ainda encontra-se em andamento,

7 A sigla GO é usada para Goiás, um dos estados da federação do Brasil (BR).

Page 3: A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP

Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015

211

estão agendadas mais três visitas ao campo, com previsão para setembro e novembro de 2015

e janeiro de 2016.

Segundo Santos (2013), a cidade de Aruanã está inserida na “Região Turística Vale do

Araguaia”, conjunto complexo de dinâmica do capital que envolve relações de poder

econômico e político de base local e regional, levando os segmentos públicos e privados a

investirem cada vez mais na divulgação de atrativos e lugares turísticos, como é o caso de

Aruanã.

Para Nogueira (2008), o que torna um lugar turístico cada vez mais apreciado pelo turista é a

sua singularidade. Aruanã, portanto, constitui-se um desses lugares singulares por apresentar

uma paisagem esculpida pelos meandros do rio Araguaia – que apresenta no período de

temporada das praias, de junho a setembro8, inúmeras praias e bancos de areia que se formam

em suas margens e no leito. Há ainda neste município o turismo de pesca e a presença étnica

de um dos povos indígenas de Goiás, os Karajá.

Esse povo também reconhecido como Povo das águas, tem no Araguaia a base material da

vida. De acordo com seu mito de origem, é das profundezas das águas do rio Araguaia que

toda a vida Karajá teve sua origem e saíram para habitar a parte seca da terra. Por isso, mais

que sustento, o rio Araguaia representa para eles, a origem do povo e a extensão da própria

vida e o mito de origem Karajá, balizador essencial da cultura, aponta um vínculo forte entre

território e cultura, território e produção da vida, segundo Lima (2010 a).

Este vínculo pode ser melhor compreendido pela localização das aldeias Karajá. Não se

conhece na historiografia referente à ocupação do atual território brasileiro, nenhuma aldeia

Karajá estabelecida fora da sinuosidade estabelecida pelo curso do rio Araguaia e de seus

afluentes.

De acordo com o Instituto Socioambiental (2015), as aldeias desse povo estão todas

localizadas nas proximidades dos afluentes do Araguaia, nas margens do rio Javaés (um dos

braços do rio Araguaia que forma a ilha do Bananal no estado do Tocantins), ou próximo a

lagos e no interior da ilha citada.

Porém, é nesse mesmo território, de vital significado para a construção da vida indígena, que

se configuram as atividades turísticas mais significativas de Goiás em relação ao “Turismo de

sol e praia” e também de “pesca” – características de um dos principais usos do Araguaia.

A partir desta contextualização, propor-se-ão como baliza para as reflexões os seguintes

questionamentos: o que representa a atividade turística para o povo Karajá? Como a

comunidade insere-se nela? Quais os impactos dessas atividades na cultura e na vida desse

povo?

A fim de estabelecer uma discussão para elucidar esses questionamentos, partir-se-á,

inicialmente, da compreensão de algumas das dinâmicas socioeconômicas estabelecidas no

município de Aruanã e na região turística a qual pertence.

1.1 – O povo Indígena Karajá de Aruanã-GO/BR

O povo indígena Karajá se autodenomina Iny, cujo significado é “nós”, “nós mesmos”. O

nome Karajá é de origem Tupi, cujo significado aproxima-se de “macaco grande”. (ISA,

2015).

Neste artigo, não utilizaremos a autodenominação, mas o termo Karajá por ser o nome mais

difundido no Brasil de identificação deste povo.

8 O período da estação seca em Goiás corresponde aos meses de abril a setembro, mas o turismo considerado de

alta temporada no rio Araguaia é mais evidente no mês de julho, que corresponde às férias escolares.

Page 4: A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP

Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015

212

Além dos Karajá, o povo indígena Iny abrange os Javaé e os Xambioá, que no geral falam a

mesma língua, embora apresentem algumas variações entre si. A língua pertence à família

linguística Karajá, denominada por eles de Inyrybe, que significa a “fala dos Iny”, e pertence

ao tronco-linguístico Macro-Jê.

No Brasil, as aldeias Karajá somam 29 no total com população de 3.198 pessoas (FUNASA,

2010). Essas aldeias, tradicionalmente, são compostas por uma ou mais fileiras de casas ao

longo das margens do rio Araguaia.

De acordo com a tradição indígena, normalmente, as portas de entrada das moradias são

posicionadas de frente para o rio, conforme mostra a figura 01:

FIGURA 01 – CROQUI DA ALDEIA BURIDINA – ARUANÃ-GO

Fonte: Desenho de Wadjurema Karajá, 2001. Lima, S.C. (2010a)

De acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010),

a população Karajá de Aruanã soma aproximadamente 216 pessoas, distribuídas em duas

aldeias denominadas Buridina e BdéBure.

A aldeia Buridina constitui-se a principal aldeia do ponto de vista da história de ocupação e

por constituir-se a moradia do maior número de indígenas. Localiza-se no centro da cidade de

Aruanã.

A aldeia Buridina está localizada na Terra Indígena9 Karajá I e a aldeia BdéBure na Terra

Indígena Karajá III. Além dessas duas TIs, há ainda a TI Karajá II, localizada no estado de

Mato Grosso (MT), município de Cocalinho, na margem oposta da TI I onde se localizada a

aldeia Buridina. O mapa 01 mostra a localização das TIs Karajá e a parte do percurso do rio

Araguaia no território goiano.

9 Doravante, Terra Indígena aparecerá com a sigla TI.

Page 5: A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP

Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015

213

MAPA 01: LOCALIZAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS KARAJÁ DE ARUANÃ-GO/BR

Fonte: LIMA, Sélvia Carneiro de Lima (2010a). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de

Goiás

A figura 02 mostra a vista parcial das três TIs Karajá:

FIGURA 02: TERRA INDÍGENA KARAJÁ

Fonte: LIMA, Sélvia Carneiro de Lima (2010a). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Goiás

(IESA).

Terra Indígena Karajá I –

aldeia Buridina

Terra Indígena Karajá II

– Praia da Farofa - MT

Terra Indígena Karajá

III - BdéBure

Page 6: A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP

Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015

214

O quadro 01, é uma síntese da situação atual das TIs Karajá de Aruanã-GO. Podem-se

observar a localização, a dimensão, a situação jurídica e o uso do solo.

QUADRO 01: TERRAS INDÍGENAS KARAJÁ DE ARUANÃ-GO

Terra Indígena Unidade da

Federação Município

Total da

superfície

(ha)

Fase do

procedimento Modalidade de uso

Karajá de

Aruanã I GO Aruanã 14,2569 Regularizada

Tradicionalmente

ocupada

Karajá de

Aruanã II MT Cocalinho 893,2687 Regularizada

Tradicionalmente

ocupada

Karajá de

Aruanã III GO Aruanã 705,1748 Regularizada

Tradicionalmente

ocupada Elaboração: Lima, Sélvia Carneiro de.

Fonte: FUNAI. http://www.funai.gov.br. Terras Indígenas no Brasil. Acesso: 25 de março de 2015.

A TI I constitui-se a menor área onde se localiza a aldeia Buridina, predominantemente, com

a função de moradia. A TI II, é usada para caça, pesca e coleta e nela se forma a praia mais

próxima do centro da cidade, conhecida como praia da Farofa, ou praia Feliz. A TI III é

utilizada como local de moradia, para cultivos prolongados, criação de gado leiteiro, coleta e

caça.

Vale ressaltar que a demarcação de terras dos Karajá foi uma conquista importante para

assegurar a base de sustento da produção da vida, embora, em diversas entrevistas, apareçam

as dificuldades de sobrevivência pela perda dos territórios tradicionais, que eram, segundo

relatos, “até onde a vista alcança”, ou seja, um território muito maior do que o que foi

legitimado pelo Estado Brasileiro.

No caso da aldeia Buridina, mencionada anteriormente, estudos apontam que é a que mais

apresentou modificações culturais, por situar-se na zona urbana inserida em um nicho do

“turismo de sol e praia”. Portanto, os longos anos de contato interétnico trouxe para os Karajá

diversos elementos da cultura não indígena como por exemplo o uso da língua portuguesa, de

roupas, modificação na dieta alimentar com a inserção de sal, açúcar e produtos

industrializados, uso de medicamentos da alopatia, casamento interétnico com não indígenas.

No entanto, a despeito de todas as modificações na cultura, a pesquisa revelou que houve

também a resistência no sentido da autoafirmação étnica em que diversos elementos

diacrônicos que marcam a cultura Karajá foram ressignificados, apontando para uma hibridez

entre tradição e modernidade como já afirmaram Lima e Chaveiro (2009).

Os Karajá ressignificaram diversos artefatos de sua cultura material como a confecção de

peças em cerâmica e objetos de plumárias readequando-os a partir das demandas do mercado

turístico e do acesso às matérias-primas básicas para a sua elaboração.

Em seguida, discutir-se-á a relação da aldeia com a cidade e da cidade com a aldeia

percebendo a importância do rio Araguaia para a vitalidade econômica de Aruanã, a fim de,

contextualizá-lo no cotidiano da vida indígena Karajá.

1.2 A cidade de Aruanã e o rio Araguaia

Aruanã localiza-se no encontro dos rios Vermelho e Araguaia. A origem do povoamento que

deu origem ao atual município se deu pela constituição de um presídio militar, construído em

março de 1850, com o principal objetivo de reocupação, por parte de não indígenas, do

interior do território e zelar pela segurança dos viajantes que utilizavam o rio para se

Page 7: A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP

Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015

215

deslocarem pelo interior das terras do Brasil rumo ao norte, contra ataques dos indígenas

(ROCHA, 1998).

Essa região era habitada nessa época por vários povos indígenas, destacando-se os Karajá que

tinham suas aldeias às margens do Araguaia. O local onde se construiu o presídio denominou-

se “Leopoldina”, em homenagem à esposa do Imperador. Mais tarde, o nome foi modificado,

temporariamente para “Santa Leopoldina”, em virtude da chegada dos religiosos.

De acordo com depoimento de um artesão Karajá, o nome Buridina dado a aldeia originou-se

do esforço de seus antepassados em pronunciar a palavra “Leopoldina”. Em 1868,

inaugurava-se a navegação a vapor no rio Araguaia que deu grande impulso à povoação do

entorno do presídio, alcançando a categoria de Vila, com a denominação de Leopoldina. Esse

nome foi alterado mais tarde para Aruanã, em 1939, em virtude da existência de outros

topônimos iguais. A Vila de Aruanã passou à condição de distrito, por volta de 1939,

integrando o município da cidade de Goiás.

O novo nome fez menção a presença marcante dos indígenas Karajá na região e refere-se

tanto a um ritual tradicional desse povo quanto a um peixe existente no rio Araguaia,

considerado sagrado. Crescendo rapidamente ao ter a ligação com a capital, Goiânia, por

rodovia asfaltada e, principalmente, com impulso econômico gerado pelo “Turismo das águas

do Araguaia”, de repercussão nacional, tornou-se município autônomo, através da Lei

Estadual nº. 2.427, de 18 de dezembro de 1958, instalado oficialmente em 1º de janeiro de

1959.

Aruanã, atualmente, com 7.496 habitantes (IBGE, 2010), é procurada por turistas de diversas

partes do Brasil e do mundo, e sua proximidade com Goiânia, 315 km, facilita o acesso dos

turistas, atraídos pelas belezas naturais do rio Araguaia e de suas praias. Compreende-se,

assim, que o potencial turístico advém principalmente da presença do rio Araguaia que corta o

município, como mostra a figura 03.

FIGURA 03: VISTA PARCIAL DO CALÇADÃO ÀS MARGENS

DO RIO ARAGUAIA, NO MUNICÍPIO DE ARUANÃ-GO

Fonte: SILVA, Lorranne Gomes da. Trabalho de campo em Aruanã-GO, 2014

A economia local, de acordo com Gérardi e Margi (2007) está baseada no turismo, na

agricultura, na pecuária de corte, e na pesca. Aruanã é ainda o principal centro receptor e

dispersor de turismo, dispondo de uma boa infraestrutura hoteleira.

Conforme informações do ano de 2014 divulgadas pelo Centro de Atendimento ao Turismo

de Aruanã (CAT), a cidade recebe em torno de 150.000 mil visitantes em julho na alta

Page 8: A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP

Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015

216

temporada e cerca de 600 mil ao longo do ano. De acordo com o guia turístico da cidade,

confeccionado pelo CAT (2014), dentre os atrativos turísticos principais do município estão:

FIGURA 04: GUIA TURÍSTICO DA CIDADE DE ARUANÃ-GO

Fonte: Centro de Atendimento ao Turismo (CAT) de Aruanã-GO, 2014.

Os itens divulgados na imagem da figura 04 mostram que o povo Indígena Karajá e os

elementos de sua cultura são apontados como atrativos turísticos oferecidos pelo município.

Dessa forma, resta compreender como os Karajá inseriram-se nas atividades turísticas e quais

consequências esta dinâmica reverberou para a vida indígena.

1.3 A vida indígena e o turismo

O turismo em TIs tem crescido de forma significativa no Brasil. De acordo com Leal (2007:

07), “nas terras indígenas brasileiras, a atividade turística tem sido incorporada,

paulatinamente, despertando o interesse de algumas comunidades”. Com o povo Karajá, aos

poucos, as atividades relacionadas ao turismo foram se tornando centrais para o sustento de

diversas famílias indígenas, à medida que constituídas como mais um dos atrativos turísticos

de Aruanã.

Dessa forma, compreende-se que o povo Karajá, por se localizar em um município que

pertence à região turística Vale do Araguaia, não teve muitas escolhas em relação à inserção

da comunidade na dinâmica do turismo local.

A partir de meados da década de 1980, houve uma intensificação do turismo em Aruanã, o

que a tornou, atualmente, uma das principais fontes da economia do município. Neste período

de intensificação das atividades turísticas, de acordo com Rocha (2008, p.126), “diversos

relatos indicam a grave degradação socioeconômica da comunidade Karajá naquele momento,

marcada por situações de alcoolismo e prostituição”.

O crescimento da cidade se deu sobre o território tradicional indígena, impondo nova

organização social, política e cultural aos Karajá.

Sem muito planejamento, os investimentos foram sendo estabelecidos em Aruanã. Pousadas

foram construídas, hotéis, casas, chalés, restaurantes, trazendo transformações visíveis na

paisagem do município, desmatando as margens do rio e construindo edificações ao longo

dela.

Neste sentido, a cultura indígena pelo intenso contato interétnico (já registrado na

historiografia desde o século XVII) encontrou o caminho da ressignificação cultural

Page 9: A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP

Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015

217

mesclando elementos da modernidade trazidos pelos não indígenas, com elemento de sua

tradição.

Na busca pela revitalização da cultura Karajá em Aruanã, desde 1994, a associação indígena

da aldeia Buridina vem desenvolvendo, com o apoio da Universidade Federal de Goiás, o

Projeto de Educação e Cultura Indígena Maurehi, que objetiva revitalizar e manter a

identidade cultural, com foco no ensino da Língua Karajá e das tradições que caracterizam os

Iny. Uma das metodologias desse Projeto é o intercâmbio com participação de artesãos Karajá

oriundos das aldeias da Ilha do Bananal, onde se localiza a maioria da população Karajá no

Brasil.

Durante o período de alta temporada, sobretudo, no mês de julho, percebem-se nas ruas e

praias diversos turistas de origens variadas, alterando o cotidiano da comunidade local. Em

diversas entrevistas com os Karajá, foi apontado que os turistas se interessam pela presença

indígena e visitam tanto a aldeia Buridina, que se localiza no centro de Aruanã, como o

Museu Maurehi, localizado nela, com o intuito de conhecer e adquirir os objetos

confeccionados pelos Karajá que são expostos e comercializados no referido museu.

À medida que foi aumentando o fluxo de turistas na região, a partir da década de 1980, de

acordo com o atual cacique Karajá, a perambulação das pessoas dentro da aldeia incomodava

bastante. Porém, com o tempo e pelo interesse dos turistas pelo artesanato, a mercantilização

da produção indígena foi se firmando uma importante fonte de sustento econômico para as

famílias. Os turistas passaram de figuras “intrusas” na aldeia para a de “convidados”, uma vez

que asseguraram fonte de renda no comércio local das peças de artesanato.

Nessas visitações, o artesanato das cerâmicas, cestarias, objetos de madeira e adornos pessoais

como colares, pulseiras, anéis, dentre outros, passaram a ser procurados pelos turistas. Os

indígenas perceberam, então, uma possibilidade de transformar os elementos que caracterizam

sua cultura material em atividade geradora de renda para as famílias, como dito anteriormente.

Assim, os objetos esculpidos em barro, madeira ou confeccionados com palhas, sementes,

dentre outros, passaram a ser elementos importantes de subsistência para os indígenas e hoje

contribuem, segundo o atual cacique, com o sustento direto de aproximadamente 20 famílias e

indireto de todo o povo.

O museu é o espaço principal para exposição e venda dessa produção elaborada pelos Karajá

e pela Associação Família Tehaluna Wassuri, criada por uma das famílias que compõem a

liderança Karajá em Aruanã. O objetivo dessa Assosciação é contribuir para a revitalização

da cultura, sobretudo, fortalecer o uso da língua Karajá no cotidiano da aldeia. A figura 05

mostra algumas peças confeccionadas pelos artesãos Karajá.

FIGURA 05: ARTESANATOS CONFECCIONADOS PELOS ARTESÃOS INDÍGENAS

Page 10: A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP

Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015

218

Fonte: SILVA, Lorranne Gomes da. Trabalho de campo na aldeia Buridina, Aruanã-GO, 2015.

Por isso, o foco do trabalho da Associação é revitalizar a confecção de algumas peças antigas

de cerâmica, palha e madeira que os Karajá usavam e já não utilizam mais; ensinar o plantio

de roça tradicional aos mais jovens; ensinar a pescar peixes e tartaruga; ensinar a fazer beiju;

incentivar a criação de abelhas e coleta de mel; dentre outras ações.

A figura 06 mostra a fachada da sede da Associação Família Tehaluna Wassuri na aldeia

Buridina.

FIGURA 06: ASSOCIAÇÃO FAMÍLIA

TEHALUNA WASSURI-Aldeia Buridina

Fonte: SILVA, Lorranne Gomes da. Trabalho de campo, julho, 2014.

Dentre as peças mais procuradas pelos turistas estão as bonecas Karajá denominadas

na língua indígena de Ritxoko, como mostra a figura 07.

FIGURA 07: BONECAS RITXOKO

Fonte: COSTA, Yan Carlos Medeiros. Trabalho de campo em Aruanã, 2014.

Essas bonecas foram tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

(IPHAN), em 2012, como patrimônio cultural brasileiro. Os estudos para o prêmio

Page 11: A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP

Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015

219

consideraram que o modo de fazer a boneca é peculiar do povo Karajá, sendo o único povo

indígena que se conhece no Brasil, a produzirem bonecas como brinquedos para crianças.

Além deste traço singular, a produção envolve técnicas tradicionais transmitidas de geração à

geração. A atividade, exclusiva das mulheres é desenvolvida com o uso de três matérias-

primas básicas: a argila ou o barro, a cinza, que funciona como antiplástico e a água, que

umedece a mistura do barro com a cinza.

Na produção das bonecas, encontra-se um elemento fundamental da educação indígena na

cultura Karajá. De acordo com entrevistas realizadas pela equipe do projeto referenciado, esse

brinquedo é produzido e utilizado pelas mães para ensinar a cultura para as crianças.

Tradicionalmente, são feitas sem membros superiores e inferiores, porém, como mostrado na

fotografia 04 e de acordo com entrevistas, para atender à demanda do mercado, as bonecas

ganharam braços e pernas e tornaram-se maiores, pelo fato dos indígenas perceberem que os

turistas não tinham simpatia pelas bonecas sem membros. Segundo uma das artesãs

entrevistadas, depois das modificações feitas nas bonecas, as vendas se tornaram mais

significativas. (LIMA, 2010a).

Este fato é ilustrador da ressignificação cultural que foi atribuída a um elemento que marca a

cultura Karajá, neste caso, as bonecas, em função de sua inserção no mercado turístico. O

símbolo da tradição indígena é engendrado pela modernidade que traz a demanda de uma

atividade econômica que incide sobre a vida indígena e a transforma.

Além da mercantilização dos objetos da cultura, alguns indígenas também sobrevivem do

comércio de peixes, que tem bastante demanda. E outras atividades como barqueiro; guia para

trilhas na TI II; preparo da comida tradicional para venda; pintura corporal; dentre outras,

também são fontes de renda e revelam o esforço e adequação da comunidade à realidade do

município.

Assim, em alta temporada, muitos indígenas se envolvem nessas atividades, mas, após a alta

temporada a visitação de turistas é mínima, reduzindo muito a renda das famílias. Segundo

relato de um dos ex-chefes da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em Goiás, o período de

chuva constitui-se como uma época de muitas privações e leva várias famílias a verem seus

orçamentos comprometidos até mesmo para itens básicos de alimentação.

É importante destacar que as terras demarcadas, apresentadas no mapa 01 e quadro 01, são

diminutas, não assegurando a garantia do desenvolvimento de atividades tradicionais do povo

como a caça, pesca e coleta em quantidade suficiente para o sustento das famílias. Vale

ressaltar ainda dois problemas que incidem sobre as TI Karajá. Na TI II, há uma vegetação

nativa exuberante, que permanece alagada por longos meses durante o período de chuva,

normalmente, de outubro a março – comprometendo o uso dessa Terra para plantios. Na TI

III, desde o período de retomada deste território das mãos dos não indígenas, o desmatamento

já era uma característica da área, que apresenta predomínio de pastagens, além de ter uma

porção que também permanece alagada na estação chuvosa. (LIMA, 2010a, 2010b).

Dessa forma, existem inúmeras dificuldades enfrentadas pelos Karajá para manterem as

atividades tradicionais de caça, pesca, coleta e plantio, a saber: o cerceamento do entorno das

TI por fazendas de gado; o crescimento da cidade de Aruanã sobre os territórios que

tradicionalmente ocupavam; o intenso desmatamento da região (em torno de 80% da

vegetação nativa já foi devastada); a alternativa de mercantilização da cultura por meio do

comércio do artesanato constitui-se uma das maneiras encontradas pelos Karajá de não só

sustentarem suas famílias, como também de revitalizarem a cultura, uma vez que necessitam

ensinar as gerações mais jovens a produção destes objetos. (LIMA, 2010a, 2010b).

Neste sentido, o crescimento de Aruanã e do turismo contribuiram, segundo relatos de

moradores da aldeia Buridina, para que os Karajá tivessem acesso a serviços, tais como

eletricidade e água potável; assistência pelo CAT; acompanhamento da saúde indígena, entre

Page 12: A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP

Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015

220

outros. Porém, desde o início das atividades turísticas em Aruanã, os Karajá foram inserindo-

se nelas sem nenhum planejamento, treinamento e/ou orientações de órgãos governamentais.

Dessa forma, se por um lado, o turismo trouxe e traz para o povo Karajá de Aruanã rendas a

partir do comércio de artefatos e do artesanato, da venda de peixes e demais atividades

mencionadas, colaborando com a sobrevivência das famílias; por outro, as atividades

turísticas têm comprometido o Cerrado e a biodiversidade local, o que prejudicam diretamente

a vida indígena – como mostra o relato do atual cacique:

Acho que a natureza é a que mais tá sofrendo com as mudanças. O pessoal vai

acabando com a natureza. Meu avô falava muito na localidade e tipos de brejo,

vereda, que muita gente olha assim sem preocupação. Chegam a achar que esses

lugares não servem pra nada. Assim, vem o progresso e joga cascalho e some com

tudo, mas sem perceber que ali tá o equilíbrio da natureza. O progresso, o turismo

acontece assim também em cima da destruição da natureza.

Sobre as questões que envolvem a natureza, o coordenador da Associação Família Tehaluna

Wassuri afirmou que:

Nossa educação quem dá é a natureza. Somos educados por ela. Somos tocados pela

natureza e por isso é preciso respeitar ela. Não se pode brincar nem duvidar das

forças da natureza. E deveria ser respeitado por todos nós não só nos Iny, mas os

governantes assinam, liberam para acabar com a natureza, somos ricos mais a

maioria é contaminado com o desrespeito.

Esses impactos podem ser visualizados cotidianamente nas práticas dos Karajá. Devido à

dificuldade de encontrar matéria-prima, alguns elementos que compõem os artesanatos têm

sido substituídos por produtos industrializados, como por exemplo, o pati (madeira) e o

taquari (bambu) utilizados na confecção de arco e flecha estão sendo substituídos por outros

tipos de madeiras e linhas de algodão; sementes típicas do cerrado utilizadas na elaboração de

adornos corporais foram sendo mescladas ou substituídas completamente em algumas peças

por miçangas10

; colorações das penas estão se tornando artificiais, entre outros. (LIMA,

2010a, 2010b).

Sobre a pesca, deve-se esclarecer que a dieta alimentar Karajá é bastante significativa com

uso de peixes11

e de tartaruga. A cada ano, de acordo com entrevistas, a redução dos peixes no

Araguaia é notada pelos indígenas e também pelos pescadores não indígenas. De acordo com

um dos pescadores Karajá:

Tem meses de seca que o peixe some, antigamente pescava muito mais que hoje,

peixe tem pouco no Araguaia, peixe grande é difícil porque diminuiu quantidade e

tamanho dos peixe. Tem dia que não pega nenhum peixe, é muito ruim, índio fica

triste.

Outra redução significativa na dieta alimentar dos Karajá em Aruanã é o uso da tartaruga. Os

lagos da região constituem-se locus excelente para reprodução deste animal. No entanto, em

função do intenso desmatamento, mais de 50% destes ambientes estão secos, diminuindo

drasticamente a qualidade necessária para sua reprodução. (LIMA, 2010a, 2010b).

Além da contribuição para as ressignificações culturais do povo Karajá, o turismo também

acentuou problemas como drogadição; alcoolismo; violência, prostituição, precarização da

saúde indígena e o aumento do volume de resíduos sólidos. (LIMA, 2010a, 2010b). Em

relação a análise dos impactos do turismo na vida indígena, o atual cacique considera que:

10

Conta de vidro ou plástico pequena com cores variadas. Fonte: Dicionário Houaiss. Acesso: agosto, 2015. 11

Dentre os peixes mais consumidos estão o tucunaré; jaraqui; matrinchã; curinga; pintado.

Page 13: A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP

Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015

221

O turismo trouxe coisas boas para os índios e coisas ruins. A maioria das famílias

hoje vive do artesanato e isso tem fortalecido nossa cultura, além de outras

atividades que os índios podem realizar para sustentar suas famílias. Mas, como é

muita gente estranha na cidade, e coisa de todos os tipos, alguns índios são

dominados pelas coisas dos brancos como as drogas, as bebidas, a prostituição. Mas

índio que é índio, não se deixa levar, porque pensa em todo povo e não só nele.

Dessa forma, as dificuldades encontradas para manter as tradições indígenas e o tempo cada

vez mais “capturado” pelas atividades econômicas, sobretudo, pelo turismo12

são indicadores

da dinâmica das transformações culturais que incidem sobre a aldeia Karajá de Aruanã.

Muitas modificações culturais e a supressão de práticas que caracterizam a cultura Karajá são

específicas da aldeia de Aruanã. Em muitas aldeias do Tocantins e Mato Grosso, o contato

com o não indígena é menos intenso e são preservados diversos elementos singulares da

cultura: língua, pinturas, adornos corporais, práticas rituais, festas, etc. Além disso, possuem

territórios mais extensos, o que facilita a preservação de suas economias tradicionais: caça,

pesca, coleta e plantio.

Assim, entre os elementos reivindicados pelos Karajá estão: incentivo ao manejo comunitário

dos recursos naturais, levando em consideração os conhecimentos tradicionais; apoio e

assessoria as ações de educação indígena; realização de eventos e oficinas de promoção da

cultura indígena; criação de espaços de referência que valorizem, fortaleçam e divulguem a

cultura indígena; valorização dos conhecimentos tradicionais indígenas, como a pesquisa e

controle de processos e usos da biodiversidade; contribuição para a formação técnica e

organizacional das lideranças e membros das comunidades indígenas; apoio para a

preservação do conhecimento e das técnicas desenvolvidas na arte e nas manifestações

culturais dos povos indígenas; desenvolvimento de ações para a preservação das espécies

silvestres, peixes e tartarugas; apoio e assessoria a criação e o fortalecimento das organizações

indígenas de base local e principalmente uma fiscalização ambiental mais ativa.

Considerações Finais

Os Karajá de Aruanã inserem-se em um contexto de interesse maciço do capital. Pela via do

turismo e da pecuária, as relações econômicas e políticas incidem com força – transformando

a paisagem do vale do Araguaia, bem como a rotina da vida indígena.

Imagem explorada como atrativo exótico para promover o turismo em Aruanã, os Karajá

revelam no século XXI uma força que se aproxima do conceito de resiliência, mesmo com

territórios solapados, vidas estigmatizadas pelo fantasma da drogadição, do alcoolismo, da

prostituição, dos conflitos familiares, da falta de esperança quanto ao ensino e uso da língua

indígena e da aprendizagem de diversos elementos da cultura como as pinturas, a arte

plumária, a cerâmica, os adornos corporais, o significado de elementos da natureza, como o

peixe Aruanã.

Enfim, a aprendizagem das cosmologias que fundam a crença do povo mistura-se em Aruanã,

imergindo a vida indígena na qual tradição e modernidade se juntam e se fundem.

A presença dos não indígenas em Aruanã, tanto moradores, como turistas, parece apresentar-

se como um paradoxo. A mercantilização da cultura surge, neste contexto, como sentença de

vida para as famílias que produzem artesanato para o comércio, bem como a troca de qualquer

outro símbolo Karajá como a pintura corporal, por exemplo.

12

Ver o trabalho de Lima (2010b).

Page 14: A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP

Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015

222

Os turistas aguçados pelo desejo do consumo do diferente, do Outro, atuam na aldeia tanto

provocando transformações na cultura, a exemplo, das modificações feitas nas bonecas Karajá

para atender a demanda dos não indígenas, como impulsionando a produção da arte indígena,

colocando diversos elementos da cultura para serem revitalizados – como a língua indígena,

por exemplo, uma vez que no contexto de produção dos artefatos, pode surgir a necessidade

de diversas palavras indígenas durante a produção do objeto, tanto para confeccioná-lo como

nominá-lo.

Contudo, a importância vital das trocas comerciais entre indígenas e não indígenas revelam

outra faceta do impacto do turismo para os Karajá de Aruanã: a reorganização interna para o

fortalecimento da produção artesanal voltada para a mercantilização da produção indígena.

Uma dependência cada vez mais acentuada do mercado parece ser a base de sustento de

diversas famílias Karajá, a exemplo do que ocorre com vários povos indígenas no contexto de

interesse do turismo.

Referências

BARUZZI, Roberto G; PAGLIARO, Heloisa (2002). Os Índios Karajá das Aldeias de Santa

Isabel do Morro e Fontoura, Ilha do Bananal: dados populacionais dos anos de 1969 e 2002.

XIII Encontro da Associação Brasileira de estudos Populacionais. Ouro Preto, Minas Gerais.

CAT. Centro de Atendimento ao Turista. <www.aruana.tur.br> [23 de março de 2015].

FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO. Terras Indígenas no Brasil.

<http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/terras-indigenas> [25 de março de

2015].

FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE (FUNASA). <http://www.funasa.gov.br> [10 de

março de 2015].

GÉRARDI; MOSS, Margi (2007). Projeto Brasil das Águas: sete rios. Brasília.

GOLDENBERG Mirian (1997). A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em

ciências sociais. Rio de Janeiro: Recorde.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Senso

Demográfico, 2010. <http://www.ibge.gov.br/home> [04 de abril de 2015].

INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). <http://www.socioambiental.org> [15 de março de

2015].

LEAL, Rosana Eduardo da Silva (2007). O turismo desenvolvido em territórios indígenas sob

o ponto de vista antropológico. Caderno Virtual de Turismo. Vol. 7, N° 3, pp. 17-25.

LIMA, Sélvia Carneiro de (2010a). Os Karajá de Aruanã-GO e os Tori: O Cerrado goiano

em disputa. Dissertação de mestrado. 174 f. Universidade Federal de Goiás.

LIMA, Sélvia Carneiro de (2010b). Os Karajá de Aruanã-GO e seus territórios restritos:

biodiversidade reduzida, integridade abalada. Ateliê Geográfico. Goiânia, EDIÇÃO

ESPECIAL, Vol. 4, Nº. 1, pp. 84-115.

LIMA, Sélvia Carneiro de; CHAVEIRO, Eguimar Felício. (2009) A Aldeia, a Cidade, o

Espaço Híbrido: a Resistência Karajá de Aruanã-GO.

<http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx> [04 de agosto de 2015].

LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A (1986). Abordagens qualitativas de pesquisa: a pesquisa

etnográfica e o estudo de caso. In: Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São

Paulo: EPU.

NOGUEIRA, M.F.M (2008). Turismo e cultura em Goiás: comunicação e informação.

Goiânia, Vol. 11, Nº 1, pp. 138-144.

OLIVEIRA, R. Cardoso de (2000). O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. São

Paulo: Editora UNESP, pp.17-35.

Page 15: A VIDA INDÍGENA E O TURISMO: O POVO KARAJÁ …148.228.173.140/topofiliaNew/assets/silva-et-al.pdf · Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios Instituto de Ciencias

Topofilia, Revista de Arquitectura, Urbanismo y Territorios

Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades "Alfonso Vélez Pliego" BUAP

Segunda Época. Vol. V. Núm. 1. Agosto-Diciembre 2015

223

ROCHA, Leandro Mendes (2008). Aruanã-GO: identidades e fronteiras étnicas no Rio

Araguaia. Revista Mosaico, Vol. 1, Nº 2, pp. 123-132.

ROCHA, Leandro (1998). O Estado e os índios: Goiás. 1850-1889. Goiânia: Editora da UFG.

SANTOS, Jean Carlos Vieira (2013). Região e destino turístico: sujeitos sensibilizados na

geografia dos lugares. São Paulo: Allprint.