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ESPECIAL 34 A Lanjerie * Síria : Vida Secreta SÍRIA SENSUAL Q uando a jornalista britânica de origem jordana-filipina Malu Halasa e a desig- ner gráfica libanesa Rana Salam visita- ram os souks (mercados tradicionais) e lojas de Damasco e de Aleppo durante uma viagem à Síria, foram surpreendidas pela aparente con- tradição entre a Lingerie que ali era vendida e a sociedade conservadora onde o uso do hijab está amplamente difundido. Halasa e Salam decidiram logo o título do livro: “A vida secreta da lingerie Síria: Intimidade e Design”, que foi publicado recentemente pela editora Chroni- cle Books. “ The Secret Life of Syrian Lingerie” é provavelmente uma das publicações mais originais acerca do erotismo do mundo árabe. (venda online no site www.chroniclebooks.com) * ‘‘Lanjerie’’, nome adaptado pelo Sírios A mais exuberante lingerie do mundo encontra-se num lugar que você prova- velmente nunca esperaria: na Síria.”, ini- ciam assim o livro Malu Halasa e Rana Salam. Entre o kitsch, pop e o burlesco, os estilos zigzagueiam de arranjos florais virginais; de hilariantes penas de galinha coloridas; ador- nos que transitam do ingénuo ao tecnológico com telemóveis incrustados na tanga, ima- gens ocidentais como Tweety e Pai Natal; há também versões fetichistas com cadeados, correntes, cortes que mostram o que a Lin- gerie deveria cobrir. E não podiam faltar os temas ligados ao imaginário erótico colectivo do Médio Oriente que extraem dos provérbios e expressões vernaculares as diversas deno- minações do sexo feminino ou dos órgãos se- xuais (gata, ninho de pássaro), se fantasiam as mil e uma noites, ou recorrem a símbo- los do Hizbullah como a rosa dos mártires. Alguns modelos incorporam luzes, e outros têm pequenos gadgets que quando pressio- nados tocam músicas como “Old Mac-Donald had a Farm”, e até a Lambada. E para quem mesmo assim tem dificuldade em ficar acor- dado, existem modelos comestíveis com sa- bor a Nescafé! Esta Lingerie é fabricada em pequenas indus- trias de Damasco pertencentes a famílias con- servadoras, na sua grande maioria sunitas, sen- do que os materiais e acessórios necessários para as compor chegam da China. É exportada a outros países árabes ou muçulmanos, fazendo na realidade parte da economia alternativa do Médio Oriente.

A vida secreta da Lingerie Síria

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Entrevista a Malu Halasa sobre o livro "A vida secreta da Lingerie Síria"

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Page 1: A vida secreta da Lingerie Síria

ESPECIAL34

A Lanjerie* Síria:

Vida SecretaSÍRIA SENSUALQuando a jornalista britânica de origem

jordana-filipina Malu Halasa e a desig-ner gráfica libanesa Rana Salam visita-

ram os souks (mercados tradicionais) e lojas de Damasco e de Aleppo durante uma viagem à Síria, foram surpreendidas pela aparente con-tradição entre a Lingerie que ali era vendida e a sociedade conservadora onde o uso do hijab está amplamente difundido. Halasa e Salam decidiram logo o título do livro: “A vida secreta da lingerie Síria: Intimidade e Design”, que foi publicado recentemente pela editora Chroni-cle Books. “ The Secret Life of Syrian Lingerie” é provavelmente uma das publicações mais originais acerca do erotismo do mundo árabe. (venda online no site www.chroniclebooks.com)

* ‘‘Lanjerie’’, nome adaptado pelo Sírios

“A mais exuberante lingerie do mundo encontra-se num lugar que você prova-velmente nunca esperaria: na Síria.”, ini-

ciam assim o livro Malu Halasa e Rana Salam.

Entre o kitsch, pop e o burlesco, os estilos zigzagueiam de arranjos florais virginais; de hilariantes penas de galinha coloridas; ador-nos que transitam do ingénuo ao tecnológico com telemóveis incrustados na tanga, ima-gens ocidentais como Tweety e Pai Natal; há também versões fetichistas com cadeados, correntes, cortes que mostram o que a Lin-gerie deveria cobrir. E não podiam faltar os temas ligados ao imaginário erótico colectivo do Médio Oriente que extraem dos provérbios e expressões vernaculares as diversas deno-minações do sexo feminino ou dos órgãos se-xuais (gata, ninho de pássaro), se fantasiam as mil e uma noites, ou recorrem a símbo-los do Hizbullah como a rosa dos mártires. Alguns modelos incorporam luzes, e outros têm pequenos gadgets que quando pressio-nados tocam músicas como “Old Mac-Donald had a Farm”, e até a Lambada. E para quem mesmo assim tem dificuldade em ficar acor-dado, existem modelos comestíveis com sa-bor a Nescafé!

Esta Lingerie é fabricada em pequenas indus-trias de Damasco pertencentes a famílias con-servadoras, na sua grande maioria sunitas, sen-do que os materiais e acessórios necessários para as compor chegam da China. É exportada a outros países árabes ou muçulmanos, fazendo na realidade parte da economia alternativa do Médio Oriente.

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Mas esta “globalização” da lingerie Síria não se desenvolveu num vácuo. Foi moldada por um conjunto de convenções sociais. No Oci-dente, diz Malu Halasa, o sexo vende Lingerie e muitas mais coisas. Já a Síria é uma socie-dade profundamente religiosa e conservadora emergindo lentamente de 30 anos de ditadura socialista Pan-arábica. A Lingerie, um artigo de luxo, desenvolveu-se após o boom económico que se seguiu à guerra Yom Kippur com Israel, em 1973.

Para muitas mulheres em todos os Estados do Golfo e do Norte de África, a compra de Linge-rie representa as aspirações do amor românti-co e modernidade, sendo no fundo um acto de resistência contra o conservadorismo e a tra-dição. Simboliza também um rito de passagem da virgindade para o respeitável estatuto de mulher casada. “Se um noivo não comprar lin-gerie para a sua futura mulher, a própria noiva ou a sua mãe o fazem, recolhendo por vezes até trinta conjuntos para a sua noite de núpcias”, lê-se no livro.

Para Muhammad Emad Haliby, dono de uma loja em Damasco, tem de haver humor na cama. “Se o homem não fizer a mulher rir, o sexo está morto. Quanto mais ela ri, melhor o sexo. Se não existisse a lingerie síria, o sexo seria chato!”. Conta que a sua esposa não é a única que veste-se a rigor para a noite de amor, pois ele veste boxers de cetim e usa colónia!

No entanto, esta lingerie é também encarada como acessório para estimular a vida sexual no casamento afastando o risco que a mulher por vezes tem de perder o seu atractivo perante o homem.

Em última análise, este é um livro que mostra mais uma faceta surpreendente da Lingerie como um fenómeno de costume. Os autores e seus entrevistados sublinham a complexidade e a miríade de contradições no seio da socie-dade Síria que, como qualquer outra, mostra o seu lado heterogéneo e complexo, onde ho-mens e mulheres procuram constantemente o seu equilíbrio sexual. Se não bastassem moti-vações para folhear “The Secret Life of Syrian Lingerie”, uma impecável edição e grafismo fazem do próprio livro um pequeno objecto de desejo.

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CHICK: Malu, o que a motivou a fazer esta reco-lha e qual foi o impacto do seu livro?MH: É talvez demasiado cedo para falar sobre impacto. A imprensa deu-nos espaço, mos-trou muito interesse. Senti que este era um tema desconhecido no Ocidente, e pensei que através da Lingerie poderia explicar também muitos outros temas ligados à moda sob di-tadura, à intimidade e ao design. Esta cultura da Lingerie está enraizada nas ruas árabes e porque raramente conseguimos ver as ruas árabes (porque são sempre vistas através da lente da guerra) decidi fazer uma compilação de tudo a que tive acesso. Também a Rana Sa-lam, co-autora da obra, é uma designer com muita experiência e as suas ideias de design fizeram-nos reflectir sobre o tema, e lermos a lingerie em muitos diferentes níveis. Para uma jornalista e uma designer foi um projecto mui-to tentador!

CK: Que diferença pensa haver entre a Linge-rie Sexy que vemos na Europa e E.U.A. (vendida em catálogos e em lojas que também vendem produtos eróticos) e este fenómeno da Lingerie Síria? Até que ponto existe uma diatribe entre o lado “inocente e não perverso” desta Lingerie, com a imagem de severidade moral que ema-nam os países da região em termos de sexuali-dade que provoca? MH: Penso que existe uma diferença no design da lingerie que é fabricada num país religio-so, por oposição à lingerie fabricada num país laico. No Ocidente, tudo é “sexualizado”, tudo, desde os vídeos de música que vemos na TV, aos outdoors que vendem Coca-Cola. O Sexo vende no Ocidente! Na Síria, onde a sexuali-dade na publicidade não é permitida, parece haver mais um lado lúdico quando se trata da sexualidade no contexto do design da Lingerie. Eles não estão acostumados com tantas ima-gens de sexo como estamos no Ocidente e a sua inocência revela-se através da Lingerie.

CK: Que separação faz entre “sensualidade “ e “sexualidade”?MH: Sensualidade: dedicado ao prazer dos sentidos; Sexualidade: a qualidade ou o estado de ser sexual.

Malu Halasa

Entrevista com Malu Halasa

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CK: Paradoxalmente a maior parte das peças fantasiam o Ocidente e a modernidade (dizeres em inglês, telemóveis, conjuntos que emitem música como a lambada, etc.), e encontramos pouco da tradição oriental de sensualidade da mulher oriental (as Mil e uma Noites, a dança do ventre!). A mulher exerce como compradora directa ou influi no mercado através dos seus gostos (mesmo que indirectamente), ou a fun-ção desta lingerie é de prenda para manter viva a relação marital sendo no fundo a figura do homem que concebe, produz e funciona como comprador destas peças?MH: Penso que tem razão, quando diz que o te-lefone móvel, lambada, etc. representam algu-ma concepção da modernidade - mas recorde que estes símbolos da modernidade vêm da China e que os bens plásticos chineses estão a ser vendidos no ‘souk’, assim que se o tele-fone móvel e o pássaro de Tweety representam a modernidade, a modernidade é vendida aos sírios. Estão a trabalhar com algo que lhes é dado. Os conjuntos de dança do ventre parecem antiquados porque têm a imagem dos conjuntos de dança do ventre dos filmes de Hollywood dos anos 50. Uma mulher pode optar por escolher para si mesma ou procura o conselho das mu-

lheres no seio da sua família, ou estes modelos podem ser oferecidos pelos seus maridos, tudo num contexto de casamento e união. Estas mu-lheres têm uma escolha, como todas as mulheres de todo o mundo!

CK: Gostaríamos saber algo mais sobre o am-biente mais ou menos tolerante em que se vive nuns países em relação a outros, considerando que o que mais surpreende não é a Lingerie em si mas o contexto onde se insere!MH: Uma das experiências mais interessantes que tive foi quando estive em Beirute após a guer-ra civil, e apercebi-me de que as pessoas com quem contactei foram formadas pelas mesmas influências culturais que me formaram: música popular, política liberal, o gosto pelas artes, etc. Todos os países do Médio Oriente, assim como os países do resto do mundo foram globalizados em termos de cultura. Por isso, quando falo com as pessoas, existe um espelho das nossas vidas em termos de influências culturais. Bem ou mal, todos conhecem os Beatles! Quem não tem nenhuma experiência sobre o Médio Oriente, vê a Lingerie (o tipo de lingerie que é objecto do livro n.r.) e faz suposições so-bre as mulheres que a usam e os homens que a compram. A Lingerie tem, aqui e lá, exactamen-te o mesmo uso. Um Ocidental surpreende-se com este tipo de Lingerie? Provavelmente não, mas porque razão pensam que a Lingerie possa dizer mais sobre as mulheres muçulmanas do que a diz das mulheres ocidentais! Penso que é porque essas mulheres são religiosas, con-servadoras e as vemos vestidas com o hijab (o véu islâmico). Penso que o livro mostra que os povos são povos, não importa onde vivem, e que há sobre esta cultura em particular suposições que são alimentadas por aspectos como a re-ligião ou a nossa visão da pós-modernidade, enquanto a Síria atravessa uma rápida trans-formação social. O que posso dizer é que o significado desta Lingerie é diferente daquele dado para um tipo similar nos países ocidentais. Há uma ingenuidade, diversão e humor. No Ocidente a nossa Lingerie é menos lúdica e pensada somente para o acto sexual.

CK: Malu Halasa vive em Londres e notamos que a evolução social da mulher muçulmana forma parte das suas preocupações. As mu-lheres que vivem em países muçulmanos, en-frentam o desafio acrescido de viverem entre

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sociedades regidas pela “tradição religiosa” e ao mesmo tempo que num mundo dominado pela “secularização”. Qual sente que é (ou será) o papel das mulheres muçulmanas mais jovens e preparadas, muitas das quais vivem fora dos seus países de origem, como referência para as novas gerações?MH: Se lerem livros como Muhajababes (de Allegra Stratton) ou Playing Cards in Cairo (do jornalista Hugh Miles), terão uma ideia clara de que apesar dos problemas da famí-lia, religião conservadora ou cultura familiar, as mulheres muçulmanas estão a criar um mundo novo para elas que se baseia na tra-dição, religião e modernidade. Coisas que eu sinto não serem tão pretas ou brancas, boas ou más; as situações das mulheres em todo o mundo são complexas, não só no mundo islâ-mico. Não se pode fazer generalizações.

CK: Aponta uma “terceira via” (o mundo novo) alternativo ao religioso e paternalista, mas também ao modelo Ocidental. Para concluir, pode ampliar algo mais sobre este tema?MH: Há um movimento muçulmano feminista que está bem documentado na Arábia Saudita e Irão. No meu outro livro “Transit Tehran”, a

jornalista Asiah Amini escreve sobre o movi-mento White Scarves, um grupo de mulheres activistas que querem ver jogos de futebol, mas não é permitido pelos cleros religiosos do seu país. Os sauditas têm produzido nove-las notáveis por mulheres novas sobre as suas próprias vidas. Vejam também este site http://www.sistersinislam.org das Sisters in Islam, um movimento que pertence à jurista iraniana Ziba Mir Hosseini. Mir Hosseini, com Kim Lon-ginotto, foram as primeiras mulheres irania-nas a filmar uma família iraniana onde as mu-lheres lutavam pelo divórcio, no notável docu-mentário “O estilo do divórcio Iraniano”. Estas mulheres acreditam nos direitos das mulhe-res e estão a lutar pelo lado alternativo dentro e fora do Islão. Algumas mulheres sentem que a sua religião não é um obstáculo à sua pro-cura por melhores vidas. Algumas mulheres fazem. É errado pensar que todas as mulheres muçulmanas são todas mal tratadas.

CK: Uma última nota de humor: todos ficamos sem compreender qual é o lado frontal das pe-ças da foto 1 e foto 2 . Um enigma para nós!MH: Ambos, o ovo e a saqueta de chá, contêm tangas. ¬

Foto 1

Foto 2