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RDS VIII (2016), 2, 451-478 A vontade unânime dos sócios: o caso especial dos acordos parassociais “omnilaterais” * DR. AFONSO SCARPA ** Sumário: 1. Introdução e identificação do problema. 2. Breve caracterização dos acordos parassociais. 3. Breve caracterização dos acordos parassociais “omnilaterais”: 3.1. O cerne da questão e as linhas matrizes de Carneiro da Frada: 3.1.1. A proposta de redução teleológica do artigo 17.º do Código das Sociedades Comerciais; 3.1.2. A eficácia interna e externa dos acordos parassociais “omnilaterais”. 4. Quando o acordo parassocial “omnilateral” contraria o normativo jussocietário: 4.1. Concurso com o interesse social; 4.2. Concurso com a Lei; 4.3. Concurso com os estatutos da sociedade. 5. O incumprimento dos acordos parassociais “omnilaterais” e a desconsideração da personalidade colectiva. 6. Conclusão. 1. Introdução e identificação do problema Poder-se-á sustentar que o acordo parassocial tem a sua origem e vai sendo sucessivamente adaptado à necessidade económica da sua existência: obede- cendo a comparticipação dos Sócios na vida societária, antes de mais, à auto- nomia privada e à sua livre iniciativa 1 , é compreensível que os Sócios de uma Sociedade Comercial queiram complementar, adaptar e, não raras vezes, restringir e afastar normas jussocietárias (de cariz legal ou convencional) em benefício de interesses tendencialmente individuais. O acordo parassocial é, por isso, um instrumento que determina reflexos no exercício dos direitos dos * Designação dada, com boa recepção pela doutrina, aos acordos parassociais subscritos por todos os Sócios de uma Sociedade Comercial, por Manuel Carneiro da Frada em Acordos Parassociais «Omnilaterais» – Um novo caso de «desconsideração» da personalidade jurídica? in Direito das Sociedades em Revista (“DSR”), Almedina (2009) vol. 2, 97-134. ** Advogado-estagiário na Sofia Galvão, Hugo Nunes & Associados. 1 António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I (Parte Geral), Almedina (2011), 3.ª ed., 687. Book Revista de Direito das Sociedades 2 (2016).indb 451 Book Revista de Direito das Sociedades 2 (2016).indb 451 18/10/16 11:29 18/10/16 11:29

A vontade unânime dos sócios: o caso especial dos acordos ... 2016-02 (451-478... · 9 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit.,106. 10 Manuel Carneiro

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  • RDS VIII (2016), 2, 451-478

    A vontade unânime dos sócios: o caso especial dos acordos parassociais “omnilaterais” *

    DR. AFONSO SCARPA**

    Sumário: 1. Introdução e identifi cação do problema. 2. Breve caracterização dos acordos parassociais. 3. Breve caracterização dos acordos parassociais “omnilaterais”: 3.1. O cerne da questão e as linhas matrizes de Carneiro da Frada: 3.1.1. A proposta de redução teleológica do artigo 17.º do Código das Sociedades Comerciais; 3.1.2. A efi cácia interna e externa dos acordos parassociais “omnilaterais”. 4. Quando o acordo parassocial “omnilateral” contraria o normativo jussocietário: 4.1. Concurso com o interesse social; 4.2. Concurso com a Lei; 4.3. Concurso com os estatutos da sociedade. 5. O incumprimento dos acordos parassociais “omnilaterais” e a desconsideração da personalidade colectiva. 6. Conclusão.

    1. Introdução e identifi cação do problema

    Poder-se-á sustentar que o acordo parassocial tem a sua origem e vai sendo sucessivamente adaptado à necessidade económica da sua existência: obede-cendo a comparticipação dos Sócios na vida societária, antes de mais, à auto-nomia privada e à sua livre iniciativa1, é compreensível que os Sócios de uma Sociedade Comercial queiram complementar, adaptar e, não raras vezes, restringir e afastar normas jussocietárias (de cariz legal ou convencional) em benefício de interesses tendencialmente individuais. O acordo parassocial é, por isso, um “instrumento que determina refl exos no exercício dos direitos dos

    * Designação dada, com boa recepção pela doutrina, aos acordos parassociais subscritos por todos os Sócios de uma Sociedade Comercial, por Manuel Carneiro da Frada em Acordos Parassociais «Omnilaterais» – Um novo caso de «desconsideração» da personalidade jurídica? in Direito das Sociedades em Revista (“DSR”), Almedina (2009) vol. 2, 97-134. ** Advogado-estagiário na Sofi a Galvão, Hugo Nunes & Associados.1 António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I (Parte Geral), Almedina (2011), 3.ª ed., 687.

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    Sócios e na condução dos destinos das Sociedades”2, encontrando consagração legal no artigo 17.º do Código das Sociedades Comerciais3.

    Não obstante graus diferentes de convergência e alguns pontos de diver-gência, a parassocialidade é hoje uma realidade com aceitação genérica4 na Lei, na Jurisprudência e na doutrina, sendo um tema de prolifera análise teórica.

    Há, contudo, um aspecto respeitante aos acordos parassociais que desperta bastante interesse e sobre o qual poucos autores se têm versado. Em termos genéricos trata-se de saber que efeitos tem um acordo parassocial quando seja celebrado por todos os seus Sócios e, concretamente, de perceber se este merece um tratamento diferente – designadamente em termos de efi cácia externa – daqueloutro que apenas tenha colhido a subscrição de alguns dos Sócios de uma Sociedade Comercial.

    É um tema a que Maria da Graça Trigo5 faz referência e que foi posterior-mente aprofundado por Manuel Carneiro da Frada.

    Importa focar, como ponto de partida, os principais pontos de discussão em torno da particularidade desta modalidade contratual.

    Assim:

    i) Pode um acordo parassocial subscrito por todos os Sócios de uma Socie-dade sobrepor-se a regras jussocietárias – mesmo quando imperativas? E até que ponto?6

    ii) É legítimo afastar ou infringir regras jussocietárias em nome do acordo parassocial que todos os Sócios subscreveram?7

    iii) Não será ilegítimo que um Sócio se justifi que no cumprimento das regras jussocietárias (legais ou estatutárias) para incumprir impunemente um acordo parassocial que tenha subscrito?8

    2 Ana Filipa Leal, Algumas notas sobre a parassocialidade no Direito Português in Revista de Direito das Sociedades (“RDS”) Almedina (2009), Vol. 1, 139.3 Os preceitos referidos sem menção do respectivo diploma pertencem, em princípio, ao Código das Sociedades Comerciais. 4 Não sem antes ter sido veementemente questionada a sua validade, em Portugal e noutras juris-dições. Uma vez mais, não sendo este o propósito do estudo a que nos propomos, cumpre refe-rir, inter alia, a análise comparatística e o tratamento histórico de António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I cit., 689 ss., Maria da Graça Trigo, Os Acordos Parassociais sobre o exercício do direito de voto, Universidade Católica (1998), 1.ª ed., 43-134; Ana Filipa Leal, Algumas notas sobre a parassocialidade cit., 136 e 137.5 Maria da Graça Trigo, Acordos Parassociais – Síntese das questões jurídicas mais relevantes in Pro-blemas do Direito das Sociedades, IDET, Coimbra, Almedina (2002), 178. 6 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit. , 98.7 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 98.8 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 98.

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    iv) Face ao disposto no artigo 17.º: i) Continua a não ser impugnável um acto da Sociedade ou dos Sócios

    perante a Sociedade quando a vontade de todos os Sócios (plasmada no acordo parassocial “omnilateral”) tenha sido contrariada?9

    ii) Quando subscritos por todos os Sócios, não podem os acordos paras-sociais referir-se à conduta de pessoas com funções de administração ou fi scalização?10

    Propomo-nos assim a analisar de forma breve as soluções propostas por Manuel Carneiro da Frada, que se fundeiam numa premissa chave: segundo o autor, “deve reconhecer-se a possibilidade de uma prevalência do acordo paras-social «omnilateral» sobre as regras jussocietárias”11.

    2. Breve caracterização dos acordos parassociais

    Originalmente defi nidos como “acordos celebrados pelos Sócios12 [...] exteriores ao acto constitutivo e aos estatutos [...], para regular inter se ou ainda nas relações com a Sociedade, com órgãos ou com terceiros, um certo interesse ou uma certa conduta social”13, são hoje os acordos parassociais defi nidos de forma mais sintética como “contratos celebrados por Sócios de uma Sociedade nessa qualidade de Sócios, através dos quais se regulam relações societárias”14. Importa atentar à norma que os acolhe e delimita:

    9 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit.,106.10 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit.,106.11 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 100.12 É ainda hoje uma discussão aberta a de saber se o é (e quais os seus efeitos) – ou, não sendo, o que é – um Acordo Parassocial celebrado também com terceiros. Não sendo esta a temática que se pretende abordar, remete-se aqui para a abordagem de autores como, inter alia, Jorge Couti-nho de Abreu, Curso de Direito Comercial (Das Sociedades), Almedina (2011), 4.ª ed., 156; Diogo Costa Gonçalves, Notas breves sobre a socialidade e a parassocialidade in RDS, Almedina (2013), 4, 781; Paulo Câmara, Acordos parassociais: estrutura e delimitação in Estudos em memoria do Prof. Dou-tor J. L. Saldanha Sanches, Coimbra Editora (2011), vol. II, 813 ss.; Mário Leite Santos, Contra-tos parassociais e acordos de voto nas Sociedades anónimas, Edições Cosmos (1996), 1.ª ed., 7; Helena Silva Morais, Acordos Parassociais, Restrições em Matéria de Administração das Sociedades, Faculdade de Direito da Universidade do Porto (2014), 1.ª ed., 16 e Paulo Olavo Cunha, Direito das Socie-dades Comerciais, Almedina (2012), 5.ª ed. 171 e 172, para quem não são acordos parassociais (nem por aplicação analógica do artigo 17.º) os contratos celebrados com terceiros, mesmo que incidam sobre a conduta desses terceiros na Sociedade.13 Giorgio Oppo, Contratti parasocial, F. Vallardi (1942), p. 1.14 António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I cit., 688.

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    Artigo 17.º(Acordos Parassociais)

    1. Os acordos parassociais celebrados entre todos ou entre alguns sócios pelos quais estes, nessa qualidade, se obriguem a uma conduta não proibida por lei têm efeitos entre os intervenientes, mas com base neles não podem ser impugnados actos da sociedade ou dos sócios para com a sociedade.

    2. Os acordos referidos no número anterior podem respeitar ao exercício do direito de voto, mas não à conduta dos intervenientes ou de outras pessoas no exercício de funções de administração ou de fi scalização.

    3. São nulos os acordos pelos quais um sócio se obriga a votar: a) Seguindo sempre as instruções da sociedade ou de um dos seus órgãos"; b) Aprovando sempre as propostas feitas por estes; c) Exercendo o direito de voto ou abstendo-se de o exercer em contrapartida

    de vantagens especiais.

    Os acordos parassociais são, antes de mais, negócios jurídicos celebrados por sujeitos que, em comum, têm o facto de serem Sócios de uma Sociedade Comercial15, e de quererem regular determinados aspectos que digam respeito à actividade dessa Sociedade. A qualidade de Sócio e a intenção de regular matérias atinentes à sua Sociedade defi nem a estrutura da parassocialidade: o seu objecto é a socialidade16. Assim se começa concluindo que os acordos paras-sociais existem pela necessidade de compatibilizar o interesse dos Sócios com o interesse de uma entidade juridicamente autónoma onde os recursos humanos e fi nanceiros são organizados de forma a que a sua actividade seja conduzida efi cientemente.

    É forte o apelo à caracterização do acordo parassocial por referência e com-paração com o contrato de sociedade17. Fá-la-emos, para já, com recurso à seguinte sistemática: natureza, regime jurídico, forma, autonomia, acessoriedade, efi -cácia e funções.

    15 Vide supra (nota 12) sobre a possibilidade de subscrição dos Acordos Parassociais por terceiros. 16 Diogo Costa Gonçalves, Notas breves cit., 781. 17 Indistintamente se utilizam aqui as menções “Contrato de Sociedade”, “Estatutos” e “Pacto Social”. Temos presente que o Contrato de Sociedade em sentido próprio será a “causa de cons-tituição da Sociedade” (por vezes com substracto unipessoal), e que os estatutos são o conteúdo regulatório da Sociedade que, a mais das vezes, seria complementar da escritura (formalidade que deixou de ser obrigatória com a reforma de 2006). Não obstante a utilidade da distinção para efeitos interpretativos, referimo-nos ao “conjunto de regras que asseguram a realização dos seus objectivos, a sua existência, os seus aspectos estruturais e funcionais”. (Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais cit., 125 ss.).

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    O acordo parassocial é um contrato de natureza civil, nominado e típico, sujeito à disciplina comum (civil) dos contratos, celebrado ao abrigo da auto-nomia privada dos seus outorgantes (artigos 405.º e 406.º do Código Civil), podendo, inclusivamente, advir da celebração de contratos mistos onde se incluam elementos parassociais, elementos típicos de outros contratos ou ele-mentos totalmente originais18. Comummente se diz que são contratos de natu-reza colaborativa (a obtenção de lucros distribuíveis pelos Sócios) e organizativa19, regulados simultaneamente pela lei civil (artigo 980.º do Código Civil) e pela lei comercial (artigo 7.º e ss.).

    Em consonância: se inválido, o acordo parassocial sujeita-se às normas gerais de invalidade dos negócios jurídicos. Ao invés disso, não coincidindo o regime dos contratos de Sociedade com o regime comum dos contratos, a sua invalidade está sujeita a regras especiais (artigo 41.º e ss.)20.

    O acordo parassocial não tem de obedecer a imperativos de forma (artigo 219.º do Código Civil) sendo, em regra, celebrado por escrito21: não se exige, para a sua celebração ou efi cácia, registo ou publicação22. Por sua vez, o con-trato de Sociedade é um contrato formal que, sendo sujeito a forma especial (artigo 7.º, n.º 1), carece de ser registado defi nitivamente e subsequentemente publicado.

    Os acordos parassociais são contratos autónomos23: quer sejam celebrados antes, simultaneamente ou depois do Contrato de Sociedade, e mesmo tendo em vista a realidade institucional desta, “os acordos parassociais vivem à mar-gem do estatuto interno da Sociedade, são-lhe extrínsecos”24. Como descreve Pinto Furtado, “pressupondo embora a existência de um contrato de Sociedade [aproximando-se aqui da subsidiariedade do acordo parassocial face ao contrato de Sociedade], o contrato parassocial não faz parte dele, não é um seu comple-

    18 Ana Filipa Leal, Algumas notas sobre a parassocialidade cit., 154. 19 Neste sentido Jorge Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial cit., 94, e António Mene-zes Cordeiro, Direito das Sociedades I cit., 488.20 António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I cit., 488 e Ana Filipa Leal, Algumas notas sobre a parassocialidade cit., 146.21 António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I cit., 481.22 Ressalvam-se aqui as situações especiais dos Acordos Parassociais celebrados no âmbito de Sociedades de capital aberto (artigo 19.º do Código dos Valores Mobiliários) e de Instituições de Crédito ou de Sociedades Financeiras (artigo 111.º do Regime Geral das Instituições de Crédito).23 Formal e/ou materialmente autónomo, sendo para alguns autores confi gurável a coexistência de elementos de contrato de Sociedade e de acordo parassocial no mesmo documento, vide Mário Leite Santos, Contratos parassociais cit., 31-39, Fernando Galvão Telles, União de contratos e contratos para-sociais in ROA, Ordem dos Advogados (1951), 11, 1 e 2, 37-103 e Ana Filipa Leal, Algumas notas sobre a parassocialidade cit., 147.24 Miguel Pupo Correia, Direito Comercial – Direito da Empresa, Ediforum (2011), 12.ª ed., 188.

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    mento ou anexo, mas uma convenção autónoma, para todos os efeitos distinta do contrato social”25. É mister fi rmar este ponto: a autonomia do acordo paras-social face ao contrato de Sociedade advém (ou pode advir) de uma compo-nente subjectiva distinta – sendo que, nos acordos parassociais “omnilaterais” esta característica se desvanece por incluir todos os Sócios –, de um regime jurídico diferente e das obrigações deles resultantes, que são também diferentes.

    Outra das características que habitualmente se aponta aos acordos parasso-ciais – e que desempenha um papel fundamental no tema deste estudo, pelo que a ela voltaremos adiante – é a sua acessoriedade face ao contrato de Sociedade (e às demais regras jussocietárias). Nesta matéria a doutrina diverge, com diversas sugestões, como se verá. Importa agora realçar que a ideia tradicional segundo a qual os acordos parassociais são funcionais e acessórios das regras jussocietárias pode estar ultrapassada, por via de um posicionamento recíproco móvel do acordo parassocial face ao contrato de Sociedade e vice-versa26. Desenvolveremos este ponto adiante.

    Talvez a questão mais controversa se coloque em relação à efi cácia dos acor-dos parassociais. É também esta uma questão nuclear na análise que se fará dos acordos parassociais «omnilaterais»; contudo, e para efeitos de caracterização, retém-se o essencial: por determinação legal e vasta concretização doutrinária nos últimos dos anos, os acordos parassociais têm apenas efi cácia inter partes (efi cácia relativa, própria dos vínculos obrigacionais estabelecidos nos contra-tos comuns), enquanto que os contratos de Sociedade gozam de efi cácia erga omnes27. Assim, os acordos parassociais não são, por princípio, oponíveis aos demais Sócios – os que não subscreve o acordo – ou à Sociedade (artigo 17.º, n.º 1 in fi ne). Firmou-se, portanto, a convicção, sustentada na lei, de que “nem do incumprimento de um acordo parassocial válido, nem do cumprimento de um acordo parassocial inválido se podem retirar consequências que atinjam o plano societário”28.

    Podem ser elencadas inúmeras funções desempenhadas pelos acordos paras-sociais – o que fortalece a ideia da sua importância no tráfego jurídico –, e sumariamente se dirá que estes contratos visam permitir29:

    25 Jorge Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, Almedina (2000), 3.ª ed., 164.26 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 119 ss. 27 Diogo Costa Gonçalves, Notas breves cit., 790.28 Carolina Cunha, Código das Sociedades Comerciais em Comentário (coord. J. M. Coutinho de Abreu), Almedina, vol. I, artigo 17.º, 299.29 Por tudo, Diogo Costa Gonçalves, Notas breves cit., 188 e 189.

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    i) Personalizar a vida da Sociedade de acordo com os particulares interesses sociais e com a concreta participação no capital social dos Sócios (os estatutos são um molde que muitas vezes o acordo parassocial preenche);

    ii) Estabelecer mecanismos de controlo da Sociedade; iii) Proteger as minorias através de mecanismos que visem evitar compor-

    tamentos abusivos (v.g. através de cláusulas drag along e tag along); iv) Financiar a Sociedade através da negociação e inserção de planos de

    investimento; v) Especifi car meios de tutela através da defi nição das sanções associadas

    à violação de determinadas obrigações assumidas no plano negocial, e bem assim dos foros onde os outorgantes desejam ver os seus litígios sociais dirimidos.

    Recentemente tem a doutrina sistematizado os acordos parassociais em função das matérias sobre os quais incidem30, agrupando-os em três tipos ou classes31 (sendo que não são categorias estanques ou exclusivas: nada impede que se confi gurem modalidades diferentes; nada impede que o mesmo acordo tenha cláusulas de mais do que um tipo):

    i) Acordos relativos ao regime das participações sociais, tais como:

    a) Proibições absolutas, temporárias ou de alienação a determinadas pessoas;

    b) Direitos de preferência e/ou de opção na compra ou na venda; c) Obrigações de subscrição de determinados aumentos de capital.

    ii) Acordos relativos ao exercício do direito de voto, onde são típicas:

    a) Cláusulas de pré-determinação do sentido de voto, em termos con-cretos (v.g. os demais Sócios obrigam-se a votar no sentido do voto adoptado pelo Sócio X, em matérias que careçam de aprovação por maioria qualifi cada, incluindo unanimidade, nomeadamente em processos de fusão, dissolução, alteração dos estatutos, destituição de administradores, etc.)32;

    30 Carolina Cunha, Código das Sociedades Comerciais em Comentário cit., 296.31 Adaptámos aqui a terminologia e adaptámos alguns dos exemplos elencados por António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I cit., 704 e ss., no mesmo sentido Ana Filipa Leal, Algumas notas sobre a parassocialidade cit., 142. Outras terminologias podiam ser utilizadas, tais como i) convenções de vinculação do direito de voto, ii) convenções de restrição à transmissibilidade das participações sociais e iii) acordos em que as partes regulam entre si aspectos da actividade da empresa, com o sem interferên-cia na vida interna da Sociedade, vide Maria da Graça Trigo, Acordos Parassociais – Síntese cit., 171. 32 Segundo Miguel Pupo Correia, Direito Comercial cit., 190 e Carolina Cunha, Código das Sociedades Comerciais em Comentário cit., 310 e 311, as alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 17.º visam

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    b) Cláusulas de concertação prévia em relação a determinados assuntos a deliberar futuramente, tais como remunerações, distribuição de dividendos, Relatórios de Gestão e Orçamentos, e outros;

    c) Cláusulas onde se estabeleça a necessidade de reunir em separado antes de qualquer assembleia geral, de modo a concertar o sentido de voto.

    iii) e acordos relativos à organização da Sociedade (que no fundo são um misto das duas categorias anteriores33), onde se costumam encontrar:

    a) Cláusulas de composição e de “repartição” dos órgãos sociais (v.g. o conselho de administração será composto por 6 membros, sendo que o Sócio A indica 1 membro, o Sócio B indica 2 membros, o Sócio C indica 3 membros (...) o Presidente da mesa será indicado pelo Sócio Y, etc.);

    b) Obrigações de aprovação de aumentos de capital; c) Obrigações de aprovar a realização de determinada autoria interna

    ou externa; d) Estratégias de controlo da concorrência por outros Sócios, não lhe

    alienando acções, ou monitorizando a sua actividade.

    Concluindo a caracterização dos acordos parassociais não podíamos deixar de destacar três notas essenciais da estrutura da parassocialidade, numa formu-lação bastante simples e incisiva de Diogo Costa Gonçalves34, que caracteriza a parassocialidade como sendo:

    – derivada, porque pressupõe a qualidade de Sócio; – referencial, uma vez que tem por objecto as situações jurídicas de socialidade; – e integrada, na medida em que, sendo estruturalmente diversa da sociali-

    dade, forma com ela uma mesma unidade de sentido jurídico-normativo.

    “salvaguardar a autonomia do exercício do direito de voto, pelos Sócios, em relação à Sociedade e aos seus órgãos”, de forma a impedir que o órgão de administração possa simultaneamente for-mar a vontade social e executá-la. Nesse sentido, parece não existir nenhuma limitação legal à estipulação de uma cláusula pela qual um ou mais Sócios, em algumas ou todas as deliberações sobre algum ou todos os assuntos, se vinculam à vontade de um Sócio, uma vez que formalmente se mantém a separação das esferas de competência orgânica.33 António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I cit., 705.34 Diogo Costa Gonçalves, Notas breves cit., 782.

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    3. Breve caracterização dos acordos parassociais “omnilaterais”

    Realizada a caracterização do acordo parassocial torna-se mais fácil de com-preender que este será “omnilateral” quando englobe todos os sócios de uma sociedade comercial. Assim, não apenas alguns, mas todos os sócios subscreve-ram e se vincularam ao acordo, fazendo uso da liberdade de estipulação e de celebração que caracteriza a autonomia privada.

    Desde cedo35 que a nossa lei lhes faz leviana referência – sem, contudo, os defi nir: “Os acordos parassociais celebrados entre todos ou alguns Sócios...” (artigo 17.º, n.º 1).

    Sem entrar para já na questão de saber se esta referência implica (ou não) a aplicação de todo o regime dos acordos parassociais – patente no n.º 1 e no n.º 2 – aos acordos parassociais “omnilaterais”36, certo é que a nossa lei não reserva qualquer efeito especial à unilateralidade.

    Há, contudo, Países que o fazem. Podemos encontrá-lo, por exemplo, na Lei das Sociedades Comerciais do Canadá37, à qual foi inovadoramente intro-duzida38, em 1975, a noção e os efeitos dos unanimous shareholders’ agreements:

    146. An otherwise lawful written agree-ment among all the shareholders of a corpora-tion, or among all the shareholders and one or more persons who are not shareholders, that restricts, in whole or in part, the powers of the directors to manage, or supervise the manage-ment of the business and aff airs of the corpora-tion is valid.

    146. É válida a celebração de um acor-do celebrado por todos os accionistas de uma empresa, ou por accionistas e uma ou mais pessoas que não o sejam, que limite, total ou parcialmente, as competências de gestão da administração, ou supervisione a condução dos negócios e dos assuntos da empresa.

    35 A redacção do artigo 17.º, n.º 1 mantém-se inalterada desde a redacção conferida pelo Decre-to-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro.36 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 106. Veremos adiante a sua proposta de redução teleológica do artigo 17.º.37 O Canada Business Corporation Act foi publicado a 24/03/1975 (versão original em http://goo.gl/d5cJ51, versão em vigor na redacção de 30/09/2015 consultável em http://laws-lois.justice.gc.ca/eng/acts/C-44/).38 Margaret Smith, Canada Business Corporations Act: Unanimous Shareholder Agreements, Law and Government Division, 20/01/2000, fonte: http://goo.gl/y1J1vC.

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    O escopo da norma é em parte distinto da norma Portuguesa (parece limi-tar os efeitos possíveis do acordo a matérias de administração das empresas), embora seja aceite uma aproximação a uma visão mais abrangente de acordo parassocial “omnilateral”, que verse sobre outras matérias, tais como direitos e responsabilidades dos accionistas e dos outorgantes do acordo, designação de administradores ou competências de administração da empresa.39

    A lei Canadiana concretiza um dever de cumprimento dos acordos parasso-ciais “omnilaterais” pelos membros da Administração, trabalhadores e terceiros em geral. Vai inclusivamente mais longe, incluindo-os na própria hierarquia dos dispositivos normativos jussocietários, o que parece resolver, por via legal, a problemática da efi cácia dos acordos parassociais “omnilaterais”, como se vê no conteúdo das normas que se transcrevem40:

    6. Articles of Incorporation(2) Special Majorities(...) if the articles or a unanimous

    shareholder agreement require a great-er number of votes of directors or share holders than that required by this Act to eff ect any action, the provisions of the ar-ticles or of the unanimous shareholder agreement prevail.

    122. Duty of care of directors and of-fi cer

    (2) Duty to complyEvery director and offi cer of a corpora-

    tion shall comply with this Act, the regu-lations, articles, by-laws and any unani-mous shareholder agreement.

    6. Contrato de Sociedade(2) Maiorias especiais(...) se, para determinado acto, o Con-

    trato de Sociedade ou um acordo paras-social unânime obrigarem a uma maioria de votos dos Administradores superior à maioria defi nida por esta lei, prevalecem as disposições dos Estatutos ou do Acordo Parassocial Unânime.

    122. Obrigação de cuidado dos Admi-nistradores e responsáveis

    (2) Dever de cumprimentoQualquer administrador ou responsável

    de uma empresa deve actuar de acordo com esta Lei, os regulamentos, artigos, estatutos ou quaisquer acordos parassociais unâni-mes.

    39 Margaret Smith, Canada Business Corporations Act: Unanimous Shareholder Agreements, Law and Government Division, 20/01/2000, fonte: http://goo.gl/y1J1vC., remetendo para o Alberta’s Business Corporations Act como forma possível de interpretação do artigo 146 do Canada Business Corporations Act. 40 Canada Business Corporation Act consultável em http://laws-lois.justice.gc.ca/eng/acts/C-44/.

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    247. Restraining or compliance orderIf a corporation or any director, offi cer,

    employee, agent or proxy, auditor, trustee, (...) of a corporation does not comply with this Act, the regulations, articles or by-laws, or a unanimous shareholder agreement, a complainant or a creditor of the corpora-tion may, in addition to any other right they have, apply to a court for an order directing any such person to comply with, or restraining any such person from act-ing in breach of, any provisions of this Act, the regulations, articles or by-laws, or a unanimous shareholder agreement, and on such application the court may so order and make any further order it thinks fi t.

    247. Providência restritiva ou para Cumprimento

    Se uma Sociedade ou algum dos Ad-ministradores, Responsáveis, Agentes ou Mandatários, Auditores, Depositários (...) de uma Sociedade incumprirem as dispo-sições da presente Lei, dos regulamentos, do Contrato de Sociedade, dos Estatutos ou de um acordo parassocial unânime, pode um lesado ou um credor, para além de qualquer outro direito de que benefi ciem, intentar em tribunal uma providência que obrigue ao seu cumprimento ou que res-trinja a actuação dessa pessoa, de forma a impedir actos que violem as disposições referidas, podendo o tribunal decidir con-forme julgue necessário.

    A doutrina canadiana consagra também este princípio de ingerência da massa accionista na estrutura da Administração, designadamente através de um acordo parassocial “omnilateral”:

    There seems no reason in principle or policy why shareholders should not be free to agree to a diff erent structure of management, either by a provision in the articles, in the by-laws, or in a unanimous shareholder agreement.41

    Não pretendemos aqui levar a cabo uma análise comparatística do assunto que nos ocupa, pelo a referência às normas deste sistema jurídico de bases Francófona e Anglo-saxónica serve tão somente para demonstrar que existem abordagens com posições concretas sobre o papel que desempenham os acordos parassociais “omnilaterais” no governo das Sociedades, por oposição ao nosso ordenamento jurídico.

    3.1. O cerne da questão e as linhas matrizes de Manuel Carneiro da Frada

    Em resposta aos pontos elencados na introdução, o Professor Manuel Car-neiro da Frada apresenta soluções concretas, partindo de uma posição mestra

    41 Robert Dickerson e outros, Proposals for a New Business Corporations Law for Canada, Com-mentary, Crown Publications (1971) vol. I, 1.ª ed., 70.

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    (aliás já identifi cada): o estipulado pelos Sócios em acordos parassociais “omni-laterais” deve prevalecer sobre as regras jussocietárias”42. Esta posição parece assentar em duas premissas de base que, da análise da posição do Professor Manuel Carneiro da Frada, considerámos fundamentais: a primeira é de a de que, em direito privado (como o é o direito societário), a regra é a da liberdade, pelo que não se afi gura razoável restringir o princípio do cumprimento das obriga-ções livremente assumidas quando não existam (e se sobreponham) interesses que o justifi quem43. A segunda é a de que, no plano das relações entre os subscritores de um acordo parassocial “omnilateral”, não pode um deles recusar-se a cumprir o que está estabelecido, a pretexto de cumprir regras jussocietárias “que todos quiseram que não se aplicassem por via desse acordo, ainda que tais regras sejam imperativas no Direito Societário”44.

    Esta posição apoia-se aliás numa outra que, no âmbito dos acordos paras-sociais subscritos apenas por alguns Sócios, a doutrina tem delineado e que aqui merece referência: mediante a contratualização dos acordos parassociais, “as partes podem defraudar todas as regras societárias e os próprios estatutos”45, criando uma realidade paralela à socialidade que potencialmente a contradiga.

    Ora, impõe o artigo 17.º que os acordos parassociais:

    i) Não podem versar sobre matérias proibidas por lei; ii) Têm meramente efeitos entre os intervenientes; iii) Não podem fundamentar a impugnação: a) Dos actos da Sociedade (essencialmente, os actos do órgão execu-

    tivo e do órgão de fi scalização); b) Dos actos dos Sócios perante a Sociedade; iv) E não podem respeitar à conduta de intervenientes ou de outras pes-

    soas no exercício de funções de administração e fi scalização.

    A doutrina é fi rme quanto à nulidade do acordo parassocial que respeite a condutas da administração, que determine competências entre os órgãos sociais imperativamente fi xadas na lei46, que vise permitir dar instruções aos membros dos órgãos de administração47 ou que os condicione, em prejuízo da Socie-

    42 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 100.43 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 113.44 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 100.45 Ana Filipa Leal, Algumas notas cit., 158.46 João Calvão da Silva, Estudos Jurídicos (Pareceres), Almedina (2001), 1.ª ed., 246 e ss.47 Jorge Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial cit., 158 e 159

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    dade48. Por necessidade de i) acautelar interesses dos Sócios, de terceiros e de toda a comunidade, de ii) evitar uma organização diferente da constante no contrato social e de iii) evitar o esvaziamento de sentido do princípio da tipicidade incutido nos princípios relativos ao pacto social e às suas alterações, as matérias de administração e de fi scalização devem fi car excluídas do objecto possível dos acordos parassociais, como afi rma António Menezes Cordeiro49.

    Porém, Manuel Carneiro da Frada não contesta estes princípios-base. Ao invés, reforça-os, ao afi rmar que, de facto, a faculdade de celebrar acordos paras-sociais não envolve, por regra, a possibilidade de “contornar regras injuntivas de organização e funcionamento da Sociedade”, não sendo ademais aceitável que esses acordos “conduzam a uma violação da distribuição legal das competências entre os respectivos órgãos”50. Apenas defende que tal não é assim quando o acordo parassocial seja “omnilateral”. Segundo o autor, as limitações impostas pelo artigo 17.º (que justifi cam as posições genéricas elencadas acima), devem ser restringidas quando o acordo parassocial é subscrito por todos os Sócios da Sociedade, de modo a salvaguardar a maior efi cácia possível desses acordos.51

    3.1.1. A proposta de redução teleológica do artigo 17.º do Código das Sociedades Comerciais

    Recordemos que o artigo 17.º aborda a omnilateralidade quando, na previ-são do n.º 1, especifi ca os acordos celebrados por todos os Sócios, pelo que é incontestável que o legislador os tenha ponderado. O problema que aqui abor-damos pareceria, assim, resolvido com recurso à interpretação literal do artigo: a estatuição prevista nos n.ºs 2 e 3 subsume-se no âmbito do n.º 1 e, assim, as limitações impostas são-no também aos acordos parassociais celebrados por todos os Sócios.

    O professor Manuel Carneiro da Frada contradiz esta leitura52, alvitrando que o legislador, apesar de os prever, não terá querido sujeitar os acordos paras-sociais “omnilaterais” ao regime limitativo dos n.ºs 1 e 2. Sustenta contrapondo a necessidade de recorrer ao pensamento do legislador como técnica interpre-tativa, e reforça esta ideia lembrando que Raúl Ventura, tendo sido o autor do

    48 Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, cit., 17149 António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I cit., 655 e 656.50 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 105.51 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 104.52 No essencial, a argumentação encontra-se patente em Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 105 a 108.

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    anteprojecto do Código em matéria de acordos parassociais, não reservou, no comentário à lei por si realizado, qualquer linha aos acordos “omnilaterais” (o que indicia que estes acordos não foram pensados na especialidade). Acrescenta ainda que o texto da lei terá apenas sido pensado para os casos-regra, que são os acordos parassociais celebrados apenas por alguns dos Sócios de uma Socie-dade, atendendo à sua maior frequência em relação aos acordos omnilaterais. Em consequência propõe o Professor Carneiro da Frada que sejam impermea-bilizados os acordos parassociais “omnilaterais” face às limitações impostas pelo artigo 17.º à generalidade dos acordos parassociais, através da redução teleoló-gica desse preceito. Assim, o conteúdo restritivo da norma (designadamente as limitações à efi cácia externa) será circunscrito ao acordo parassocial subscrito apenas por alguns Sócios.

    3.1.2. A efi cácia interna e externa dos acordos parassociais “omnilaterais”

    Em linha com o que se tem referido, constata-se que é predominante, na delimitação dos efeitos dos acordos parassociais, uma orientação conforme com a Lei, i.e., que consagra a efi cácia (exclusivamente) relativa deste tipo de acor-dos53, sendo esta uma decorrência lógica do princípio de que os contratos ape-nas vinculam quem os celebra54. Conforme também com a lei societária, este princípio é notório no n.º 1 do artigo 17.º: “os acordos parassociais (...) têm efeito entre os intervenientes, mas com base neles não podem ser impugnados (...)”. Assim, e em termos genéricos, esta “limitação” opera em duas frentes, conforme se pode ver no seguinte esquema:

    53 Maria da Graça Trigo, Acordos Parassociais – Síntese cit., 172.54 Carolina Cunha, Código das Sociedades Comerciais em Comentário cit., 298.

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    É ponto assente que os acordos parassociais gozam de efi cácia inter partes de matriz e carácter obrigacional55: é esta a sua efi cácia interna. É também con-sistente a regra supra enunciada, de que o conteúdo de um acordo parassocial não se repercute na esfera de terceiros, pelo menos quando lhes cause consequências negativas56.

    Porém, cedo se confi guraram excepções a este princípio, designadamente quando os acordos parassociais sejam celebrados por todos os Sócios de uma Sociedade. Em linha mais moderada, Maria da Graça Trigo sugere que, em casos muito particulares, possa ser defensável que o acordo parassocial produza efeitos em relação à Sociedade, por via da desconsideração da personalidade colec-tiva, quando estejam em causa vinculações de voto assumidas por todos os Sócios da Sociedade57. Mas repare-se: a título excepcional, somente no âmbito da Sociedade, e quando estejam em causa vinculações de voto (portanto, a con-trario, não produzindo efeitos as estipulações relativas ao regime das participa-ções sociais ou da organização da Sociedade). Está, contudo, longe de ser uma posição unânime: e, neste âmbito, citamos Paulo Olavo Cunha58 (itálico nosso): “A inobservância do disposto num acordo parassocial – ainda que este vinculasse a totalidade dos Sócios – não é motivo para interposição de acção de anulação de deliberação social”.

    Adiante da posição de Graça Trigo e no pólo oposto à posição de Paulo Olavo Cunha se coloca, no que concerne à efi cácia externa dos acordos paras-sociais quando omnilaterais, Manuel Carneiro da Frada. Segundo a posição que defende, este princípio de mera efi cácia inter partes do conteúdo do acordo parassocial omnilateral não deve ser entendido de forma rígida ou absoluta, no sentido em que apenas se justifi ca a prevalência das limitações impostas pelo artigo 17.º – em caso de confronto destas com o conteúdo do acordo parasso-cial – se em causa estiverem interesses alheios a esses acordos que sejam merecedores de tutela59.

    Em síntese: Os acordos parassociais são, por via de regra, efi cazes inter partes subscrito-

    ras, não sendo efi cazes perante terceiros [i.e.: i) Sociedade e os demais órgãos; ii) não subscritores do acordo; iii) stakeholders].

    55 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais», 109 e 110. 56 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais», 109 e 110.57 Maria da Graça Trigo, Acordos Parassociais – Síntese cit., 178.58 Maria da Graça Trigo, Acordos Parassociais – Síntese cit., 172. 59 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 111.

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    Com base nos acordos parassociais não podem ser impugnados i) actos da Sociedade (designadamente deliberações do Conselho de Administração e do órgão de fi scalização) e ii) actos dos Sócios perante a Sociedade.

    Porém, segundo Manuel Carneiro da Frada, os acordos parassociais “omni-laterais” podem vincular a administração e o órgão de fi scalização, podendo respeitar à sua conduta60, como iremos ver adiante.

    4. Quando o acordo parassocial “omnilateral” contraria o normativo jussocietário

    4.1. Concurso com o interesse social

    O acordo parassocial “omnilateral” confi gura uma situação de unanimidade, pelo menos nos pontos abrangidos pelo acordo: os Sócios subscritores vincula-ram-se de livre vontade a um conteúdo normativo que foi por eles defi nido.

    Esta vinculação em torno de um contrato unânime com incidência social – como se disse, versa sobre assuntos da socialidade – conduz à inevitável questão de saber como dialoga o seu conteúdo com o interesse da Sociedade. Assim, o interesse social é mais um dos pontos com os quais se cruza a problemática da parassocialidade e, em particular, dos acordos parassociais “omnilaterais”.

    Previamente surge a questão de saber quem defi ne o interesse social e qual o papel a desempenhar pelos Sócios nessa defi nição. O interesse social é um conceito jurídico que fundou uma querela doutrinária ainda hoje por dirimir, mas à qual não se pretende aqui dedicar muito espaço de análise, sob pena de não se tratar de nenhuma outra matéria. Não obstante, e para o que aqui nos ocupa, temos de identifi car as directrizes principais.

    São os Sócios que defi nem o interesse social, na medida em que este é, na verdade, o denominador comum dos interesses dos Sócios, a prosseguir através da Sociedade. Sustentam assim os defensores da tese contratualista do interesse social61. Segundo esta corrente, “o interesse social está ligado à própria natu-reza do contrato de Sociedade enquanto contrato de fi m comum, pelo qual os Sócios se associam para o exercício de uma actividade económica lícita, que visa o lucro”, mas não apenas o lucro62.

    60 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 112.61 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 115.62 João Regêncio, Do interesse social in RDS, Almedina, (2013), 4, 805 e 806.

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    Já os defensores da corrente designada institucionalista sustentam que o “inte-resse social é sinónimo de “interesse da empresa” ou dos próprios stakeholders63, assim entendidos como “todos os indivíduos ou grupos que podem afectar, ou ser afectados, pelos actos, comportamentos ou estratégias da Sociedade institucional e individualmente considerada (inter alia, credores, clientes, trabalhadores, Estado).

    Somos mais sensíveis aos argumentos de uma concepção contratualista do interesse social, concreta e sinteticamente aos seguintes64:

    i) Os Sócios podem unilateralmente determinar a modifi cação dos estatu-tos e a dissolução e liquidação da Sociedade, dissipando assim qualquer componente de interesse social contrário aos interesses que a todos os Sócios sejam comuns65;

    ii) Na maioria das situações, o que motiva a constituição do instituto jurí-dico da Sociedade são os interesses dos Sócios;

    iii) Embora os stakeholders desempenhem um papel essencial no desenvol-vimento do corpus empresarial da Sociedade, esta não pode ser gerida com base nos seus interesses, que são muito diversos e difusos, podendo até ser contrários e incompatíveis;

    iv) Aceitar que o interesse social seja prioritariamente defi nido pelos inte-resses de terceiros pode conduzir a uma quase total irresponsabilidade dos administradores, na medida em que estes, confrontados com qual-quer uma das suas decisões, sempre poderiam alegar a existência de interesses de terceiros que, compondo o interesse da Sociedade, justifi -cam essa sua decisão;

    v) O artigo 64.º [concretamente o seu n.º 1, alínea b)] refere em primeiro lugar o dever de administrar a Sociedade atendendo aos interesses dos Sócios (referindo apenas de seguida um quasi-dever com cariz recomen-datório de atender aos interesses dos outros sujeitos relevantes). Não impõe aos Administradores que desconsiderem os interesses sociais dos Sócios em detrimento dos interesses dos trabalhadores, dos credores ou

    63 João Regêncio, Do interesse social cit., 805 e 80664 Para evitar sucessivas repetições de referências: as fontes dos argumentos elencados nas alíneas são Jorge Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial cit., 290 a 300 e João Regêncio, Do interesse social cit., 815 a 818. 65 Interesse social como uma “categoria particular dos interesses dos Sócios, designados como interesses sociais comuns”, Elisabete Ramos, Responsabilidade Civil dos administradores e directores de Sociedades anónimas perante os credores sociais, Coimbra Editora (2002), 1.ª ed., 111. No mesmo sentido, afi rmando que o interesse social é feito da comunidade de interesses dos Sócios quando se ligue à causa comum do acto constituinte da Sociedade (pelo menos no que respeita à sua actuação enquanto Sócios) – admitindo embora a existência de vários interesses sociais –, Jorge Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial cit., 296 a 298.

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    dos clientes, pelo que o conteúdo desta norma serve apenas para “lem-brar que os stakeholders são importantes para o sucesso das empresas”. E mesmo que esse dever fosse imposto aos Administradores, sempre se constataria que:

    a) Os trabalhadores e as suas estruturas representativas não têm meca-nismos de obrigar os Administradores a fazer o que quer que seja em matéria de gestão da Sociedade;

    b) O cumprimento das obrigações assumidas pela Sociedade, que tenha dado origem aos direitos de crédito dos Credores, é imposto pelas regras gerais do direito das obrigações e não decorre do artigo 64.º, nem sequer do próprio conceito de interesse social;

    c) Ao ponderarem os interesses dos clientes os administradores estão, em última ratio, a tutelar a subsistência e o desenvolvimento da Sociedade e, em consequência, a zelar pelo interesse dos Sócios;

    d) O artigo 64.º, que patenteia a concepção institucionalista do inte-resse social como orientação da actuação dos membros da Adminis-tração, fá-lo, pelo que se disse, moderada e inconsequentemente.

    Recentrando a análise nos acordos parassociais “omnilaterais”, o ponto é o seguinte: os Sócios visam constituir uma Sociedade ou, em certo momento da vida da sua Sociedade, pretendem ver os seus interesses regulados de uma determinada forma. Celebram, para esse efeito, um acordo parassocial. Esse acordo parassocial vai permitir que seja constituída a Sociedade ou que os seus interesses sejam salvaguardados, nos moldes que prefi guraram como pressupos-tos da sua iniciativa. Ora, segundo Manuel Carneiro da Frada66, esse acordo de todos os Sócios deve, em princípio, legitimar o afastamento de determinadas regras que regem a Sociedade, pelo menos quando não existam outros interes-ses (normalmente de terceiros), que devam ser considerados.

    Pode dar-se o caso de um Sócio procurar justifi car o incumprimento de um acordo parassocial que tenha subscrito com o cumprimento de imposições do interesse social, tentando assim “escapar” às sanções do incumprimento desse acordo.

    Para Manuel Carneiro da Frada este Sócio incumpridor não só não pode fazê-lo (justifi car o incumprimento com o interesse social), como não escapará às sanções estabelecidas para o incumprimento do acordo. A aplicação dessas consequências é, para o Senhor Professor, autónoma da concepção de interesse social que se adopte: saber porque vectores é determinado o interesse social não

    66 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 114.

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    releva para saber se os acordos parassociais “omnilaterais” podem ou não afastar e prevalecer sobre regras jussocietárias. Pelo seguinte:

    Por um lado, se o interesse social for integralmente delimitado por vontade dos Sócios – tese contratualista –, então há uma coincidência directa entre aquilo que é fi xado no acordo “omnilateral” e o interesse da Sociedade, pelo que não “sobra” interesse social – “não há espaço para uma relevância própria do interesse social”67 – que permita ao Sócio dizer “eu não cumpri o acordo porque se o fi zesse atentaria contra o interesse da Sociedade” ou “não posso ser sancionado por ter violado o acordo parassocial porque agi em conformidade com o interesse da Sociedade”.

    Se, por outro lado, o interesse social antes corresponde primordialmente ao “interesse da instituição”, para lá do interesse dos Sócios – tese institucionalista –, tal também não signifi ca que este prevaleça sempre68 e insensivelmente sobre o interesse daqueles, ainda para mais quando “aqueles” representam a totalidade do grémio social, que lucra – e suporta o risco!69 – da actividade da Sociedade. Para os defensores da tese institucionalista, as regras jussocietárias e o contrato de Sociedade prevalecem necessariamente sobre os acordos parassociais; con-tudo, tal não implica que devam prevalecer irrestritamente sobre estes, defende o autor.70 Corolário disso é o facto de poderem os Sócios determinar o fi m do interesse social, dissolvendo-a. Se os Sócios podem erradicar o interesse social, então aquilo que defi nem unanimemente num acordo parassocial coloca-se hierarquicamente acima (devendo prevalecer), sobre o contrato de Sociedade, salvaguardando que não se criem prejuízos a terceiros.

    Vistos todos os argumentos, tentemos recorrer a um exemplo:

    Imagine-se que a Sociedade “X, S.A.” é a única entidade em Portugal que produz, comercializa, distribuí e realiza a manutenção de dispositivos médicos essenciais à realização de hemodiálise. Por todos os accionistas foi celebrado um acordo parassocial “omnilateral”, onde os accionistas A, B e C se vinculam a votar no sentido de voto que o accionista D vier a adoptar perante uma deliberação de dissolver e liquidar a Sociedade. O incumprimento desta cláusula determina o pagamento de uma sanção pecuniária de valores bastante elevados. Posta a deliberação a dissolução e liquidação da Sociedade, o accionista D vota no sentido de

    67 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 115.68 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 11669 O facto de os Sócios comungarem os lucros e as perdas é um argumento que fortalece a posição contratualista, se considerarmos que é de elementar justiça que o interesse da Sociedade deve ser (pelo menos) orientado por aqueles que realizam o investimento e que potencialmente sofrerão as perdas do exercício.70 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais – Um novo caso de «desconsidera-ção» da personalidade jurídica? in DSR, Almedina (2009), 2, 116

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    dissolver e liquidar a Sociedade. O accionista A vota em sentido oposto, arguindo que essa decisão é contrária ao fi m social por atentar contra a sobrevivência de centenas dos milhares de clientes que dependem dos seus produtos e serviços.

    Em condições normais, o accionista A sofreria as sanções do incumprimento, tendo de pagar as quantias estabelecidas no acordo. Contudo, neste caso concreto (e seguindo a linha doutrinada por Manuel Carneiro da Frada) poder-se-á concluir que o encerramento da actividade da Sociedade coloca em risco a vida dos seus clientes em termos imediatos, podendo não existir uma alternativa de fornecimento viável ou economicamente sustentável. A considerar-se, mediante uma análise casuística, que a deliberação afecta terceiros, poderá essa variável legitimar o accionista A a incumprir o acordo, furtando-se às consequências do incumprimento, mediante justifi cação com base no interesse da Sociedade.

    Em síntese, um Sócio subscritor de um acordo parassocial “omnilateral” em regra não pode, para justifi car o seu incumprimento e ser absolvido das respectivas consequências, i) invocar o interesse social da Sociedade ou ii) invo-car o cumprimento de normas que disciplinem a prossecução desse interesse.71 Pode, contudo, fazê-lo, quando o cumprimento do acordo parassocial e/ou a violação das normas jussocietárias ponha em perigo outros interesses que importe considerar.

    4.2. Concurso com a Lei

    Como negócios jurídicos que são, e por mais que possam ser dotados de cláusulas de confi dencialidade ou de recurso a mecanismos de solução extraju-dicial dos litígios deles emergentes72, os acordos parassociais estão naturalmente submetidos às exigências gerais previstas na lei civil (nomeadamente nos artigos 280.º, 281.º e 294.º do Código Civil). Assim, é vedado aos Sócios que, através de acordos parassociais (independentemente de serem pluri ou omnilaterais), contornem os princípios da não contrariedade à lei (imperativa, entenda-se), da boa fé na contratação e do respeito pela ordem pública e os bons costumes73. Essa obrigação de conformação resulta dos princípios gerais do direito – sendo, talvez desnecessariamente, replicada pelo artigo 17.º, n.º 174 –, e um acordo

    71 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 11672 Ana Filipa Leal, Algumas notas sobre a parassocialidade cit., 139. 73 Maria da Graça Trigo, Acordos Parassociais – Síntese cit., 176, Carolina Cunha, Código das Sociedades Comerciais em Comentário cit., 306 e 307, Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais cit., 171.74 Carolina Cunha, Código das Sociedades Comerciais em Comentário cit., 306 e 307.

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    parassocial que não a respeite é tendencialmente nulo. A esse propósito tem a doutrina elencado, entre outros, exemplos-tipo de acordos que são nulos por75:

    i) violarem a proibição do pacto leonino (artigo 22.º, n.º 3 e artigo 994.º Código Civil);

    ii) obrigarem Sócio(s) a votar no sentido determinado por um outro impedido de votar (artigos 251.º, 384.º, n.º 6);

    iii) conduzirem à tomada de deliberações nulas ou anuláveis; iv) privarem irrevogavelmente o accionista do seu direito de voto; v) vincularem ao reconhecimento da administração por um determinado

    accionista; vi) impedirem a transmissão de participações sociais de modo a “aprisio-

    nar” um Sócio à Sociedade; vii) eliminarem ou dissiparem de conteúdo o direito dos Sócios à infor-

    mação; viii) violarem o princípio fundamental da igualdade de tratamento dos

    Sócios.

    Ora, assente no princípio já enunciado da autonomia privada (consagrado no artigo 405.º Código Civil), em conexão directa com a propriedade privada e a livre iniciativa económica76, a regra em direito privado é a de liberdade de celebração e de estipulação, pelo que os Sócios, em matéria de acordos paras-sociais, tudo podem, desde que não violem disposições normativas injuntivas. E são normas injuntivas aquelas que se aplicam independentemente de existir vontade dos sujeitos nesse sentido77, devendo ser cumpridas obrigatoriamente pelos sujeitos que de livre vontade celebrem os contratos a que essa norma se aplica, por estarem em causa “interesses que o ordenamento [...] considera infringíveis [...]”78.

    O Professor Manuel Carneiro da Frada vem, a este propósito, sustentar que, quando não há Sócios fora do acordo parassocial nem interesses de ter-ceiros em jogo (os tais interesses que o ordenamento considera infringíveis...), as imposições de normas imperativas, contra a sua vontade, aos Sócios que

    75 Com diversas referências para outros autores, todos os exemplos elencados por Carolina Cunha, Código das Sociedades Comerciais em Comentário cit., 307.76 Ana Filipa Leal, Algumas notas sobre a parassocialidade cit., 154 e 155.77 José de Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral, Almedina (1993), 7.ª ed., 543.78 Joaquim de Sousa Ribeiro, O problema do contrato – As cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual, Almedina (1999), reimpressão, 156.

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    subscrevam o acordo parassocial, deixa de fazer sentido79. Assim, deve ser dada prioridade ao cumprimento das obrigações livremente assumidas pelos Sócios.

    Estamos em crer que a argumentação do Professor Manuel Carneiro da Frada se limita à imperatividade do próprio artigo 17.º, pelo que não nos parece que vise sustentar que a vontade dos Sócios, uma vez unanimemente vertida num acordo parassocial, permite afastar todas e quaisquer normas injuntivas.

    Considerando este enquadramento, podemos epitomar: Manuel Carneiro da Frada explica que a imperatividade das normas jussocietárias se destina a proteger interesses externos ao acordo parassocial (i.e., os interesses dos Sócios subscritores que, contudo, não tenham sido previstos no pacto; os interesses de terceiros, mormente Sócios não subscritores; e os interesses de terceiros – as pessoas no tráfego jurídico).

    Nesta senda, se não existem Sócios fora do acordo parassocial “omnila-teral”, então não existem interesses de outros Sócios a tutelar. Para mais, não existindo interesses de terceiros que careçam de tutela, não subsistem, segundo o autor, razões que justifi quem restringir as obrigações livremente assumidas por todos os Sócios.

    Sugerimos mais um exemplo:

    Os Estatutos da Sociedade “M, S.A.” estipulam que o Conselho de Administração é composto por 4 administradores, nada estabelecendo, contudo, quanto à maioria necessária para a tomada de deliberações por este órgão. Com recurso ao artigo 410.º, n.º 7, as delibe-rações seriam validamente tomadas por maioria simples.

    Porém, os 4 accionistas da “M, S.A.” celebraram um acordo parassocial “omnilateral” que contende as seguintes cláusulas:

    1. Cada um dos accionistas designará um administrador; 2. Os administradores apenas podem deliberar por unanimidade;3. Se, desrespeitando o ponto 2, uma decisão do Conselho de Administração for tomada

    com o voto contrário de um Administrador, o Accionista que o indicou deverá pagar €500 a cada um dos demais.

    Problemas:

    I) A 2.ª cláusula do exemplo “impõe” uma conduta restritiva aos interve-nientes no exercício de funções de administração – não podem deliberar em total liberdade, uma vez que só podem deliberar observando pleno consenso80 –, contrariando o que é imperativamente estabelecido pelo

    79 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 113.80 Sobre a invalidade de uma cláusula que imponha a unanimidade injuntiva como forma de funcionamento do Conselho de Administração, por violação do princípio da colegialidade, ver

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    artigo 17.º, n.º 2. Em circunstâncias normais, o disposto pelo acordo parassocial seria nulo por contrariar esta disposição injuntiva. Porém, aplicando a tese do Professor Manuel Carneiro da Frada esta limitação de imperatividade seria afastada, e a cláusula seria admissível.

    II) Imagine-se então que os administradores contrariaram o acordo paras-social “omnilateral” – por hipótese, por não estarem ao corrente da sua existência – e tomaram uma deliberação por maioria simples, no exercí-cio das suas competências, cientes e convictos da legalidade da sua con-duta. E agora? Podem os accionistas impor o conteúdo do seu acordo aos administradores? Pode o acordo parassocial “omnilateral” inviabili-zar a decisão do órgão de gestão? Nesse sentido questiona Manuel Car-neiro da Frada: podem todos os Sócios estipular (no acordo parassocial) requisitos de funcionamento e linhas de actuação da administração da Sociedade? O que acontece então se os administradores designados por uma das partes se desvia do estipulado – mesmo que a sua conduta se apresente conforme com as regras jussocietárias81 (como é o caso)? Pode a sua deliberação ser impugnável?

    O artigo 17.º, n.º 1 é claro em dizer que, com base nos acordos parasso-ciais, não podem ser impugnados actos da Sociedade. Mas Manuel Carneiro da Frada parece ponderar que o acordo parassocial “omnilateral”, ao materializar a vontade unânime dos Sócios, não só pode ter efi cácia jussocietária, como pode invalidar as deliberações que o contrariem. Por esta via, Manuel Carneiro da Frada admite que:

    I) possa existir uma efi cácia corporativa, directa ou indirecta, dos acordos paras-sociais82;

    II) Por não ser possível distinguir um interesse social autónomo do interesse de todos os Sócios, a Sociedade se apresenta como “meramente instrumen-tal da prossecução dos interesses” dos Sócios83;

    III) Um acordo parassocial “omnilateral” pode vincular os sujeitos nas rela-ções respeitantes à Sociedade e “obrigá-los à adopção de certas condu-

    Pedro Maia, Função e funcionamento do conselho de administração da Sociedade anónima, Coimbra Editora (2002), 1.ª ed., 213 ss. 81 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 102 e 103. 82 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit.,128.83 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 119.

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    tas”, desde que não sejam contrariados interesses de terceiros, nomea-damente quando protegidos por regras jussocietárias imperativas84.

    Parece então aproximar-se da possibilidade de ser impugnada a deliberação da administração que contrarie um acordo parassocial “omnilateral”. E adianta um exemplo concreto85 (itálico nosso): “um acordo parassocial omnilateral que imponha a uma Sociedade certa política comercial – directa ou indirectamente (por exemplo, mediante a sujeição dos administradores respectivos a instruções por parte dos subscritores) – torna-se vinculativo para esses administradores, pois a Sociedade está então obrigada a prosseguir essa politica nas suas relações com terceiros”86.

    Esta é uma posição mais radical87 que nos coloca diversas dúvidas, uma vez que pode conduzir ao esvaziamento da autonomia de gestão dos Administra-dores (em especial, e como no caso concreto, em sede de Sociedade Anónima, visto que, quanto à Sociedade por Quotas, a lei permite que os Sócios orientem a vida da Sociedade – cfr. artigo 259.º). Mesmo que se sustente que, em certas ocasiões, o acordo parassocial “omnilateral” não seja acessório ou secundário do contrato de Sociedade e que os Administradores estão vinculados a esse acordo da mesma forma que o estão ao contrato social, e que se deve privile-giar o sentido do pacto social que melhor realiza o acordo parassocial “omnilateral”88, facto é que, na generalidade dos casos, o acordo parassocial é funcionalmente dependente do contrato que cria a Sociedade: se este se extinguir, o acordo parassocial deixa de ter objecto, mas se for o acordo parassocial a extinguir-se, o pacto social mantém-se inalterado89.

    Se as situações de efi cácia erga ornes das obrigações já são excepcionais por si, então permitir que sejam impugnadas decisões de um órgão a quem a lei confere vasta autonomia90, seria uma excepção excepcionalíssima. O próprio Pro-fessor Manuel Carneiro da Frada reconhece que a “possibilidade de celebrar

    84 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 119.85 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 111.86 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 111.87 Carolina Cunha, Código das Sociedades Comerciais em Comentário cit., 298.88 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 121.89 Pedro Pais de Vasconcelos, A participação social nas Sociedades comerciais, Almedina (2006), 2.ª ed., 63.90 “O conselho de administração tem exclusivos e plenos poderes de representação da Sociedade, devendo gerir as actividades da Sociedade e subordinar-se às deliberações dos accionistas apenas quando a lei ou o contrato de Sociedade o determinarem”; “A proibição da segunda parte do n.º 2 do artigo 17.º visa, essencialmente, (...) evitar que os Sócios interfi ram ou exerçam infl uência na actuação dos membros do órgão de administração.”, Helena Silva Morais, Acordos Parassociais cit., respectivamente p. 78 e 91.

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    acordos parassociais não envolve, por regra, a faculdade de contornar regras injuntivas de organização e funcionamento, nem é aceitável, por princípio, que esses acordos conduzam a uma violação da distribuição legal de competências entre os respec-tivos órgãos”91 (itálico nosso). Ora, se o Professor sustenta que a “fi rmeza” das limitações decorrentes do artigo 17.º, n.º 1 e n.º 2 apenas se justifi ca quando há interesses de terceiros a salvaguardar92 e 93 (podendo, a contrario, ser derrogadas quando não existam esses interesses), questionamo-nos sobre se não serão resi-duais as situações em que as decisões da administração não interagem, digam respeito ou afectem, directa ou indirectamente, interesses de terceiros. Além do mais, fazer depender a possibilidade de impugnação de uma decisão da exis-tência ou inexistência de terceiros afectados obriga a um esforço de prognose que cria, além do mais, bastante insegurança no tráfego jurídico: um terceiro que contrate com a Sociedade, em face de saber que existe a possibilidade de as deliberações do Conselho de Administração poderem ser inviabilizadas por todos os Sócios, poderá recear e decidir não correr esse risco.

    4.3. Concurso com os estatutos da sociedade

    Os estatutos da sociedade constituem um instrumento regulatório da vida da Sociedade onde tipicamente se delineiam diversos aspectos, tais como a denominação social, o local da sede, o objecto, o quantum e a realização do capital social, a estrutura orgânica (mediante escolha de um modelo de gover-nação legalmente previsto), as competências dos órgãos e o seu funcionamento, entre outros tópicos de crucial importância para o modus operandi da Sociedade. O seu conteúdo é, em parte, determinado pelo tipo societário, sendo o seu conteúdo mínimo defi nido por lei (cfr. conforme o tipo, os artigos 9.º, 199.º e 272.º).

    Não iremos prosseguir com uma caracterização tipológica do contrato de Sociedade. Ao invés, iremos centrar a análise na questão de saber o que acon-tece quando os estatutos de uma sociedade prevêem algo que todos os Sócios dessa Sociedade, por via de um acordo parassocial, estipulam de forma diferente.

    91 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 105.92 Em diversos momentos, mas veja-se concretamente na p. 110.93 Manuel Caneiro da Frada refere apenas como interesses de terceiros “capazes” de obsta-culizar esta vinculação dos administradores ao conteúdo do Acordo Parassocial “omnilateral” aqueles que decorrem de direitos a contratar com a Sociedade em certos termos ou direitos sobre a determinação de qual as politicas a seguir pela Sociedade, direitos esses que habitualmente não cabem a terceiros.

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    A título prévio – e essencial para tentar compreender o resultado do con-curso entre os estatutos e os acordos parassociais “omnilaterais” – importar ana-lisar a articulação material dos estatutos da Sociedade com os acordos parassociais.

    Como se disse supra aquando da caracterização dos acordos parassociais, uma das características que habitualmente se aponta aos acordos parassociais é a sua acessoriedade face ao contrato de Sociedade (e às demais regras jussocietárias). E aqui existem concepções divergentes. Há Autores que consideram que os acordos parassociais são estipulações acessórias, mas independentes do acordo que cria a Sociedade94; outros Autores consideram que são acessórios e funcio-nalmente dependentes do Contrato de Sociedade95; há também quem defenda que o Contrato de Sociedade é a base negocial dos acordos parassociais96, ou que estes contratos são convenções infraestatutárias97. Mesmo com as divergên-cias que se possam elencar, é geralmente apontada uma intrínseca acessoriedade dos acordos parassociais face ao Contrato de Sociedade.

    O Professor Manuel Carneiro da Frada aborda esta temática justifi cando que o posicionamento dos acordos parassociais face aos Contratos de Socie-dade – ou, de forma mais abrangente, a Parassocialidade face à Socialidade – é, no mínimo, relativo. Ou seja, segundo o autor, “o posicionamento recíproco das regras societárias e dos acordos parassociais é móvel”98, e prevalecerá o acordo parassocial sobre os estatutos quando haja uma vontade empresarial conjunta que se serve da Sociedade como meio de realização dos interesses dos Sócios. Assim, suben-tende-se que, na contrariedade entre um acordo parassocial “omnilateral” e os estatutos, estes cedem face ao acordo. Noutras circunstâncias, porém, o acordo parassocial estará “funcionalmente ordenado ao contrato de Sociedade”, e a tradicional acessoriedade mantém-se99.

    Parece-nos que a posição do Professor Manuel Carneiro da Frada visa, antes de mais, fortalecer a prevalência dos acordos parassociais “omnilaterais” face às regras jussocietárias, impedindo que a tese de que os acordos parassociais são sempre acessórios e submissos no panorama social impossibilite por completo essa prevalência. Ao consentir-se esta “relatividade hierárquica” cria-se espaço para permitir que o acordo parassocial “omnilateral”, desrespeitando os Esta-tutos, não deixe de valer. Além do mais, a contrariedade do acordo parasso-

    94 Fernando Galvão Telles, União de contratos cit., 74 ss.95 Pedro Pais de Vasconcelos, A participação social cit., 63 ss.96 Ana Filipa Leal, Algumas notas sobre a parassocialidade cit., 171. 97 António Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais e valores mobiliários, Coimbra Editora (2008), 1.ª ed, 302. 98 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 121.99 Diogo Costa Gonçalves, Notas breves cit., 798.

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    cial “omnilateral” em relação ao Contrato de Sociedade mais não é do que a contrariedade entre dois contratos, pelo que compete ao contraente escolher se cumpre o acordo parassocial e viola o Contrato de Sociedade ou vice-versa, sujeitando-se às consequências do incumprimento.100

    Assim, e em suma, não pode ser invocada a invalidade de um acordo paras-social “omnilateral”, justifi cando que confl itua com o Contrato de Sociedade, para legitimar o incumprimento desse mesmo acordo101.

    Seguimos aqui a posição do Senhor Professor, uma vez que, em última instância, pode o conteúdo dos Estatutos ser modifi cado pelos Sócios por via de uma alteração estatutária. Em termos práticos, impedir que o que todos os Sócios estabeleceram num acordo parassocial prevaleça sobre os Estatutos mais não é que criar um entrave desnecessário que os Sócios podem facilmente contornar.

    5. O incumprimento dos acordos parassociais “omnilaterais” e a des-consideração da personalidade colectiva

    Quando seja incumprindo um acordo parassocial “omnilateral”, o Sócio inadimplente não pode invocar o cumprimento da Lei ou dos Estatutos para escapar às consequências desse cumprimento. Ou seja: quando é violado um acordo parassocial “omnilateral” e não são de prevalecer interesses de terceiros, existe uma conduta ilícita nessa violação, mesmo que sejam cumpridas as impo-sições legais e jussocietárias.

    As regras jussocietárias tornam-se assim, por via do incumprimento de um acordo parassocial “omnilateral”, “inefi cazes inter partes”, pelo que, conforme conclui Manuel Carneiro da Frada, os Sócios fi éis podem recorrer aos meios de tutela que o contrato ou a lei, casuisticamente lhes confi ram (v.g., activação da cláusula penal, acção de cumprimento, direito de resolução, indemnização, etc.)102.

    Esta “impossibilidade de valorizar” as normas jussocietárias, “chamando” para o seu lugar as regras estabelecidas no acordo parassocial “omnilateral”, foi enunciada pelo Professor Manuel Carneiro da Frada como uma nova forma de desconsideração da personalidade jurídica a operar no plano interno, porquanto a utilização abusiva das regras jussocietárias pelo Sócio – que as usa “como escudo” para se furtar às consequências do incumprimento – assim o justifi ca.

    100 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 127. 101 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 127.102 Manuel Carneiro da Frada, Acordos Parassociais «Omnilaterais» cit., 126.

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    6. Conclusão

    A autonomia privada e a livre iniciativa dos Sócios motiva-os a celebrar acordos parassociais, face à necessidade de compatibilizar os seus interesses com a autonomia jurídica da Sociedade. Por inúmeras circunstâncias, pode o acordo parassocial ser subscrito por todos os Sócios – são os acordos parassociais omni-laterais. Tradicionalmente, os acordos parassociais têm efeitos apenas inter partes, não sendo, em princípio, o seu conteúdo oponível a terceiros. Isto signifi ca que a celebração de acordos parassociais não envolve, em regra, a possibilidade de contornar regras injuntivas de organização e funcionamento da Sociedade. Porém, o Professor Manuel Carneiro da Frada entende que, excepcionalmente (no caso dos acordos celebrados por todos os Sócios), as regras injuntivas que regem a socialidade podem ser desconsideradas, para evitar que um Sócio que viole um acordo parassocial se torne imune a consequências, justifi cando-se com o cumprimento dessas regras (normas legais e estatutárias). Assim se esboça uma nova modalidade de desconsideração da personalidade colectiva. Também segundo o Autor, o Sócio inadimplente não pode justifi car o incumprimento do acordo alegando que esse incumprimento ia ao encontro do interesse da Sociedade.

    Por fi m, o Professor Manuel Carneiro da Frada enuncia que estes instru-mentos podem (desde que não afectem terceiros), ser oponíveis à Sociedade. Em determinadas situações – e através de uma operação de redução teleológica do artigo 17.º –, o conteúdo dos acordos parassociais “omnilaterais” poderá vincular os não subscritores do acordo, de que são exemplo paradigmático os Administradores da Sociedade. Nesse sentido, sugere que possam ser impug-nadas decisões deste órgão quando estas violem o conteúdo de um acordo parassocial celebrado por todos os sócios. Da nossa parte, considerando a excep-cionalidade das situações em que não sejam afectados terceiros, consideramos que a regra que impõe a não impugnabilidade pelos Sócios dos actos da Sociedade deverá imperar. Em todo o caso, esta é uma temática que pode ter contornos muito variáveis, atendendo às circunstâncias de um ou outro caso concreto.

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