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A VOZ DA LIBERDADE: IMAGEM E COLONIALISMO NO IRAQUE EM JANEIRO DE 2005 Ayoub Hanna Ayoub (UEL) Fernanda Rodrigues de Souza O presente trabalho se propõe a fazer uma análise sobre o discurso usado pela Folha de S. Paulo nas eleições do Iraque, em janeiro de 2005. Com base na análise do discurso, procura-se identificar como os textos significam, levando em consideração a influência imagética a partir das fotografias presentes nas edições. A análise irá, portanto, identificar como esse ―efeito positivo‖ da invasão do Iraque, no caso a democracia, surgiu sob a forma do discurso colonial e do imperialismo, justificando a dominação do país. Procura-se também verificar se, dentro desse mesmo discurso, o iraquiano é visto pelo que é, ou seja, um oriental, com sua religião e cultura, ou pelo que não é, no caso, ocidental. Busca-se assim especificar demarcações e diferenças culturais, políticas e ideológicas que se estabelecem por meio da representação no todo discursivo tendo por base os estudos de Edward Said. Os objetivos da análise incluem estudar de que maneira a representação do ―outro‖ no discurso indica o colonizado e, quando há a representação de um colonizador, questionar se o discurso colonial pode influenciar na percepção do leitor. III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 1231

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A VOZ DA LIBERDADE: IMAGEM E COLONIALISMO NO IRAQUE EM JANEIRO DE 2005

Ayoub Hanna Ayoub (UEL)

Fernanda Rodrigues de Souza

O presente trabalho se propõe a fazer uma análise sobre o discurso usado pela

Folha de S. Paulo nas eleições do Iraque, em janeiro de 2005. Com base na análise

do discurso, procura-se identificar como os textos significam, levando em

consideração a influência imagética a partir das fotografias presentes nas edições. A

análise irá, portanto, identificar como esse ―efeito positivo‖ da invasão do Iraque, no

caso a democracia, surgiu sob a forma do discurso colonial e do imperialismo,

justificando a dominação do país. Procura-se também verificar se, dentro desse

mesmo discurso, o iraquiano é visto pelo que é, ou seja, um oriental, com sua

religião e cultura, ou pelo que não é, no caso, ocidental. Busca-se

assim especificar demarcações e diferenças culturais, políticas e ideológicas que

se estabelecem por meio da representação no todo discursivo — tendo por base

os estudos de Edward Said. Os objetivos da análise incluem estudar de que maneira

a representação do ―outro‖ no discurso indica o colonizado e, quando há a

representação de um colonizador, questionar se o discurso colonial pode influenciar

na percepção do leitor.

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A questão do imperialismo na atualidade tem, como grande ator, os Estados

Unidos. A globalização, resultado da Segunda Guerra Mundial, colocou o país em

posição de domínio e ―missão‖, questões que se inserem na configuração do

―destino manifesto‖, pensamento que acompanha a história dos EUA. O pensamento

expressa a crença de que os EUA são o povo escolhido por Deus para levar a

liberdade e democracia ao mundo, uma justificativa ao expansionismo. O país

assumiu assim a responsabilidade de controlar e levar as lições de democracia ao

mundo.

Na nova era da conquista, a colonização também se faz presente, agora com

novos atores. Antigamente, os Estados se engajavam nas lutas pelos territórios e

hoje o que ocorre são grandes empresas e conglomerados que não visam somente

a conquista expressamente física, mas principalmente a de mercado. ―Cada uma

das cem principais empresas globais vende mais do que cada um dos 120 países

mais pobres exporta. Essas firmas gigantes e globais controlam 70% do comércio

mundial‖ (RAMONET, 2003, p.16).

Edward Said aponta uma diferença da dominação imperial clássica e naquele

que chama de século do imperialismo americano (século XX). Antes, o poder

encontrava-se instaurado nas colônias a partir da presença do homem branco, o que

era capaz inclusive de gerar alguma resistência à dominação. Este tipo de poder,

ligado também à cultura da época, era o que garantia a legitimidade do domínio.

Hoje, o que existe para exercer o poder é a presença internacional dos meios de

comunicação, que garantem uma dominação no nível subliminar. Neste caso, a

autoridade cultural passa a ser obtida graças à difusão e o controle das informações.

Segundo o autor, o fato não indica, de forma alguma, que a resistência não exista,

mas a comunicação auxilia no domínio. O propósito da unidade cultural e do tipo de

discurso, tanto antigo como atual, seria o mesmo, que é manter o império instituído.

A missão dos EUA de assumir o controle do Oriente Médio se justifica pelos

recursos naturais, principalmente o petróleo, o ―ouro negro‖, demonstrando o

interesse econômico, uma vez que empresas petrolíferas ocidentais atuam na

região. No entanto, o petróleo é divulgado como motivo secundário para o domínio

ou para as guerras, com um destaque para as missões de levar e difundir os ideais

de democracia, civilização e novo mundo. No caso do Iraque, a missão aconteceu

sob a forma de invasão, ocupação e aquela que chamou-se de ―Guerra do Iraque‖,

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com início em 2003, apesar da atuação armamentista desigual dos países

envolvidos.

O conflito, que era uma ambição do ex-presidente estadunidense George W.

Bush, resultou em 2003 na deposição do ex-presidente iraquiano, Saddam Hussein,

conhecido por sua ditadura. A consequência em âmbito político foi um governo

interino, apoiado pelos Estados Unidos. Finalmente, em 2005, o resultado foi a

esperada democracia, que levava a ―liberdade‖ ao país. A eleição, como um aspecto

positivo, foi inevitavelmente difundida sob essa visão por agências de notícias, uma

vez que há um poder maior, que também as controla, ainda que de forma sutil e

abstrata.

A análise busca identificar como esse efeito positivo da guerra, no caso a

democracia, surgiu sob a forma do discurso colonial e do imperialismo, justificando a

dominação ao Iraque. A partir das imagens presentes na edição, é possível

constatar o tipo de discurso que se manteve na mídia.

A GUERRA PELA DEMOCRACIA

O Iraque, país com aproximadamente 28 milhões de habitantes, possui uma

história rica de luta contra impérios e enfrenta também uma situação de dominação

atual. Mesmo que as tropas americanas tenham deixado em agosto de 2010 o país,

a presença dos militares no território deixou e ainda deixa marcas a cada dia,

fazendo relembrar os tempos de dominação colonial. Tariq Ali (2003) apresenta a

situação com base em uma profunda contextualização histórica. O autor faz uma

análise reflexiva sobre a história do Iraque, a partir de questões culturais e fatos

históricos, que vão desde a época da dominação dos impérios até o papel assumido

pelos Estados Unidos no país, na ocasião da invasão em 2003.

Os atentados de 11 de setembro de 2001 foram também motivadores da

Guerra ao Iraque. Houve espaço para que o Conselho de Segurança Nacional dos

Estados Unidos decidisse sobre as atitudes a serem tomadas contra os

responsáveis pela violência. Com o conflito militar no Afeganistão, em busca de

Osama Bin Laden, a quem foi conferida a responsabilidade pelos atentados, George

W. Bush ganhou o apoio popular dos americanos para a chamada ―guerra contra o

terror‖, o que fortaleceu sua reeleição em 2004. O conflito no Iraque, portanto, se

insere no mesmo contexto de busca de ameaças e inimigos mundiais. Sob o

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pretexto de que o Iraque estava desenvolvendo armas de destruição em massa, os

Estados Unidos e a Grã-Bretanha invadiram o país. A guerra no Iraque teve seu

fundamento em conflitos históricos, reforçados após os atentados.

Para Tariq Ali (2003), os ataques do 11 de setembro foram ―um presente dos

céus para o governo‖. Porém, para invadir o Iraque, os Estados Unidos teriam de

encontrar outra justificativa, porque o pretexto oficial, de encontrar as armas de

destruição em massa iriam se tornar frágeis ao longo do tempo. Segundo Ali,

A justificativa da invasão do Iraque passara agora para a necessidade premente de introduzir a democracia no país, vestindo a agressão com a fantasia da libertação. Poucos no Oriente Médio, amigos ou inimigos do governo, foram enganados. Os povos do mundo árabe viram a Operação Liberdade do Iraque como uma pantomima horripilante, um disfarce para a ocupação colonial à moda antiga, de estilo europeu, construída, como suas antecessoras, sobre os alicerces mais instáveis – incontáveis falsidades, cupidez e fantasias imperiais (ALI, 2003, p.167).

Após iniciada a invasão ao Iraque e com a queda do regime de Saddam

Hussein em abril de 2003, o grupo de inspeção no país admite não ter encontrado

as armas de destruição em massa. Saddam foi capturado em outubro do mesmo

ano, mas o país já sofria com a consequência da invasão, principalmente com

milhares de mortes de civis. Após a queda de Saddam, institui-se no Iraque um

governo provisório, sob a tutela dos Estados Unidos. A opinião sobre os EUA na

França, Alemanha e também Grã-Bretanha passava a ser cada vez mais negativa.

As eleições no Iraque, em janeiro de 2005, iam ao encontro dos objetivos do

presidente George W. Bush, de estabelecer a democracia. Aos xiitas, a realização

do pleito convinha, já que eram maioria no país e queriam se ver livres de décadas

de predominância sunita. As eleições tinham também traços da história, da política e

da religiosidade dos grupos.

Ao todo, foram 14,2 milhões de eleitores inscritos, dos quais votaram cerca de

8 milhões, representando uma abstenção de 40% do eleitorado (BANDEIRA, 2005).

O voto não é obrigatório no Iraque. As eleições foram consideradas marco histórico

para o país, sendo as primeiras eleições multipartidárias depois de 50 anos, mas em

outro contexto social, político e cultural. A eleição foi realizada mesmo com a

instabilidade da situação iraquiana, em meio à guerra e a ataques da oposição ao

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sistema que estava sendo implantado, com o apoio dos Estados Unidos. Segundo

Bandeira, o presidente Bush comemorou as eleições ―como vitória de seu projeto de

exportar a democracia pelas armas‖ (BANDEIRA, 2005, p.744), e manteve a

intenção de legitimar a guerra e a ocupação do país por meio do pleito.

Após as eleições em 2005 e mesmo após a aprovação da Constituição do

Iraque em dezembro do mesmo ano, haveria ainda consequências imprevisíveis. Em

uma sociedade polarizada e dividida, ―a perspectiva era de que os resultados das

eleições agravassem ainda mais a turbulência do Oriente Médio [...]. Uma

democracia secular, como os Estados Unidos pretendiam impor, afigurava-se

bastante difícil‖ (BANDEIRA, 2005, p.244).

O ORIENTE AOS OLHOS DO MUNDO

O modo como é difundido o universo do Oriente Médio é importante para

compreender os mecanismos e discursos presentes em nosso tempo sobre a região.

O tipo de discurso adquire, como linha constante de apresentação, o tom colonial,

no sentido de criar uma relação de dependência dentro do próprio discurso. Essa

relação, baseada em estereótipos, coloca dois lados polarizados, sendo um deles o

do colonizador e o outro de povo a ser colonizado.

O discurso colonial, presente nos veículos de comunicação e nas notícias

divulgadas ao mundo todo sobre o Oriente, é debatido justamente por sua

atualidade, por ainda estar presente em imagens, palavras, termos e mecanismos

de manutenção de uma determinada ordem social e do estabelecimento do poder. A

identificação do colonizador e do colonizado se faz presente no discurso, quando o

mesmo assume o tom colonial/imperialista. Como sugere Bhabha, em sua leitura do

discurso colonial,

A fixidez, como signo da diferença cultural/histórica/ racial no discurso do colonialismo, é um modo de representação paradoxal: conota rigidez e ordem imutável como também desordem, degeneração e repetição demoníaca. Do mesmo modo, o estereótipo, que é sua principal estratégia discursiva, é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está ―no lugar‖, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido (BHABHA, 1998, p.105)

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O discurso colonial serve portanto para ligar uma série de diferenças e

discriminações que são base para as práticas discursivas e políticas da

hierarquização racial e cultural. Para Bhabha, muitas vezes fala-se do outro quando

ele defende o nacionalismo, mas não é somente essa a questão a ser levantada. É

preciso também identificar o modo de representação da alteridade.

O objetivo do discurso colonial seria apresentar o colonizado em condição

inferior para depois, com base na origem racial, justificar a conquista. Edward Said

traz para a discussão o chamado Orientalismo, termo que teve expressão maior nos

séculos XIX e XX, com autores considerados intelectuais. Por meio de seus estudos

e experiências, estes autores formaram bibliotecas, contendo inúmeros títulos com

suas considerações sobre uma região do mundo que precisava ser estudada.

Said faz um minucioso estudo que se resumiria em um conhecimento não

verdadeiro, difundido por intelectuais, sobre os países do Oriente Médio e seus

povos, culturas e realidades. Segundo ele, o termo foi muito usado pelos

especialistas ―tanto por ser vago e geral demais quanto por ser conotativo da

arrogante atitude executiva do colonialismo europeu do século XIX e início do século

XX‖. Ainda justificando a análise do orientalismo, Said destaca que o que ocorre é

uma negociação com o Oriente, ―fazendo declarações a seu respeito, autorizando

opiniões sobre ele, descrevendo-o, colonizando-o, governando-o‖.

A forma de análise mantida por Said também leva a defender a importância

dos discursos sobre o Oriente na configuração atual para o público brasileiro. Com

exceção de veículos alternativos de comunicação e canais da internet, a maior parte

dos meios de comunicação de massa transmite as mesmas informações, a maioria

advinda de agências de notícias internacionais sobre os conflitos e formas de vida

naquela região. Os estudos de Said acontecem em torno do que ele chama de

colonialismo formal, indicando que os estudiosos interpretavam que o Oriente

precisava da presença do Ocidente ―mais ou menos para sempre‖.

Dessa forma, constata-se que ao falar dos orientais, o discurso não os

apresenta pela sua cultura, valores ou até mesmo pelas próprias riquezas de

diferenças, inclusive religiosas. O discurso é apresentado sob a ótica ocidental, pelo

que o Ocidente acredita ou quer acreditar que esses fatores sejam. Os fatores não-

ocidentais são o que caracterizam e justificam a forma de tratamento dada ao

Oriente.

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Os orientais raramente eram vistos ou olhados; a visão passava através deles, e eram analisados não como cidadãos nem como povo, mas como problemas a serem resolvidos, ou confinados, ou – posto que as potências ocidentais cobiçavam abertamente o território deles – conquistados. (SAID, 1996, p.213)

Said também faz uma distinção importante sobre os termos imperialismo e

colonialismo. O imperialismo é usado para designar a prática, a teoria e as atitudes

de um centro metropolitano dominante, governando um território distante. Já o termo

colonialismo é usado pelo autor para definir uma consequência do imperialismo, que

é a implantação das colônias em território distante. Segundo ele, hoje o colonialismo

direto se extinguiu, mas o imperialismo ―sobrevive onde sempre existiu, numa

espécie de esfera cultural global, bem como em determinadas práticas políticas,

ideológicas, econômicas e sociais‖. (SAID, 2005, p.40)

As formas atuais de discurso e debate valorizam, segundo Said, o lado bom

do imperialismo, colocando as superpotências mundiais, principalmente os Estados

Unidos, em uma posição de semeadores da paz e da democracia. Apesar de crer

que ―hoje o número de pessoas politizadas no mundo é grande demais para que

qualquer nação aceite facilmente a finalidade da missão histórica americana de

liderar o mundo‖ (SAID, 2005, p.356), Said reafirma a presença do tipo de discurso

que remete aos tons do imperialismo, e que portanto, demanda atenção.

Em um de seus estudos, Said considera relevante analisar o envolvimento da

cultura com os impérios em expansão. Não se restringe, portanto, a uma análise do

imperialismo baseada no poder econômico e nas decisões políticas, justamente por

estar preocupado com a compreensão do todo, com as manifestações em outro

nível de importância, que é o da cultura. Disseminadas de várias maneiras na

sociedade, as novas formas de discurso sobre o Oriente adquirem os resíduos do

imperialismo, principalmente na questão de como o ―outro‖ é ainda apresentado nos

meios de comunicação ocidentais.

Para Said, a grande relevância em ter o foco no estudo cultural, é justamente

compreender os mecanismos políticos da dominação simbólica. ―E conforme o

estudo da cultura se estende para os meios de comunicação de massa, para a

cultura popular, para a micropolítica e assim por diante, os focos sobre o modo de

poder e hegemonia vai se tornando mais nítido‖. (SAID, 2005, p.98)

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A influência do colonialismo chega aos meios de comunicação de massa e as

multinacionais americanas controlam a produção, distribuição e principalmente a

seleção das notícias que são transmitidas ao mundo. Institui-se aí uma verdade

disseminada de forma massiva, que não é necessariamente a realidade em sua

transparência. Para o autor, o domínio da informação aconteceu primeiro com a

criação de formas de controle cultural, originadas nos Estados Unidos, e que se

expandiram, atingindo não apenas a população estadunidense, mas outras culturas.

O PODER DO DISCURSO

A análise de discurso se aplica a práticas discursivas de diferentes naturezas

(imagens, textos, etc.) e caracteriza-se pela busca da ideologia manifesta na língua

e nos objetos simbólicos, à procura de um sentido real e não de um sentido

considerado único e verdadeiro.

Um leitor de jornal, por exemplo, só teria entendimento da Guerra no Iraque e

suas implicações de acordo com o conhecimento que já tem sobre essa situação. O

trabalho ideológico é, portanto, realizado pela memória e pelo esquecimento, pela

noção vaga que se apagou com o tempo ou pelo conhecimento profundo que se tem

sobre determinada realidade.

De acordo com Orlandi, a memória pode então ser tratada como um

interdiscurso, algo que fala antes do discurso e em outro lugar. Por isso considera-

se que o já dito influencia na formulação e recepção do discurso presente. Segundo

a teoria da análise de discurso, o interdiscurso especifica condições para que o

acontecimento histórico faça sentido e se insira em seus locutores.

A ideologia ocidental sobre o oriente médio e seus conflitos, que considera-se

já pré-estabelecida por anos de história de dominação europeia e mais

recentemente americana, e sobretudo presente na comunicação dos veículos de

massa, é marcada pelo que é apresentado em forma substancial de discurso, mas

também por aquilo que é silenciado. Havendo estereótipos, como selvageria e

anarquia, que delimitam o conhecimento com relação à formação política, cultural e

estrutural de um outro povo, o discurso colonial se faz presente e se insere na ótica

e profundidade de nossa análise discursiva, uma vez que atua no sentido de

influenciar a percepção do receptor da informação.

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A representação das imagens do Iraque na análise que se segue é um

exemplo de como o discurso colonial, a identificação de um colonizador e de um

colonizado e a inserção de estereótipos podem acontecer dentro dos veículos de

comunicação. A percepção do leitor, que pode já possuir uma noção estereotipada

da realidade de um outro povo, pode ser influenciada ainda mais pelo impacto

imediato proporcionado pelas fotografias.

Uma das características da análise de discurso, aplicada ao presente

trabalho, é a compreensão das condições de produção da notícia. No caso do

Oriente Médio, mais especificamente em 2005, no período das eleições iraquianas,

a maioria das notícias e fotografias publicadas na Folha de S. Paulo era advinda de

agências internacionais e algumas de correspondentes do jornal.

Orlandi ressalta a importância de que não se deve tomar uma postura neutra

diante do discurso, mas sim relativizada na interpretação, atravessando a

transparência da linguagem, a literalidade do sentido e a onipotência do sujeito.

Justamente por não buscar uma neutralidade, considera-se que o presente trabalho

está vinculado ao pensamento pós-colonial de crítica da modernidade e do discurso

colonial, que ainda se faz presente.

Os fundamentos da análise de discurso podem ser compreendidos em nossos

estudos porque ocorre a mesma preocupação com a historicidade dos fatos e suas

interpretações possíveis. Nosso objetivo não é falar da constituição de uma única

identidade do ―outro‖, no caso o oriental, mas antes do imaginário que se constrói

sobre as nações do oriente, estudadas pelo orientalismo.

A IMAGEM DA DEMOCRACIA

O recorte da análise se estabeleceu em um fato considerado marco histórico

para o Iraque: as eleições de janeiro de 2005. A partir da capa do dia seguinte às

eleições pretende-se identificar como o ―outro‖ é representado em um momento que

remete a anseios de democracia. É importante frisar que a análise tem como base o

fato das primeiras eleições no Iraque em 2005, após 30 anos sem pleito. Com o

distanciamento crítico de mais de cinco anos, reforça-se a importância de analisar a

edição.

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Figura 4 - Edição do dia 31 de janeiro de 2005. No dia seguinte às eleições, fotografias mostram mulheres exercendo o direito de voto e o até então presidente George W. Bush, caminhando na Casa Branca.

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A manchete de capa ―Maioria surpreende e vota no Iraque‖ aponta não

apenas uma surpresa na eleição, com a maioria comparecendo às urnas. Vale

ressaltar aqui que a maioria citada não é a maioria da população, como pode

parecer, mas a maioria dos inscritos para votar (60%) que compareceram. Mas a

manchete também vem complementada por uma imagem incomum quando se trata

do Oriente Médio: mulheres iraquianas, várias e juntas, exercendo um direito.

As três fotografias na capa possuem as seguintes legendas:

1. Mulheres iraquianas na fila;

Legenda: Mulheres iraquianas formam fila para votar na cidade de Najaf,

desafiando ataques terroristas que deixaram 35 mortos

2. Iraquiana mostrando o dedo sujo, após a votação;

Legenda: Mulher mostra dedo manchado por tinta indelével, após votar

3. Presidente dos EUA George W. Bush caminhando na Casa Branca;

Legenda: Presidente americano caminha na Casa Branca pouco antes de

comentar as eleições

As imagens de mulheres na capa representam, portanto, a maioria que

―surpreende‖ e vota. Porém, as mulheres, que são símbolo da fragilidade e também

da ausência dos direitos do ponto de vista ocidental, surpreendem tanto quanto a

maioria que foi votar no Iraque. Pelo contexto do discurso formado neste momento,

identificam-se diferenças entre mulheres do Iraque e dos países ocidentais, a

começar pelas roupas.

O conhecimento histórico exerce nesse instante um papel fundamental para o

leitor do jornal. Ao se deparar com as imagens das mulheres, encobertas pela abaya

(véu muçulmano), o leitor busca em sua memória o conhecimento sobre aquela

tradição, seja ele intenso ou reduzido. O interdiscurso portanto, apresentado por

Oralandi, é acionado pelo leitor. Pode-se dar início então ao processo de busca de

efeitos de sentido, já pelo que é dito ou não nas imagens e pela interpretação

possível.

As mulheres das fotos serão comparadas, quase que inevitavelmente, às

mulheres ocidentais. O costume de cobrir os cabelos e o corpo para a tradição

ocidental pode ser um sinal de opressão do islamismo e um reflexo de normas

morais e valores que restringem a liberdade das mulheres em grande parte do

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Oriente Médio. Observa-se portanto que, nesse momento, as mulheres, que mesmo

tão reprimidas, têm pelo menos o direito ao voto. Mas é importante retomar o

islamismo como religião, que preserva certas leis como a poligamia masculina e o

fato de que os homens podem se casar com mulheres não islâmicas; o uso de véu

por mulheres; homens que podem abandoná-las mediante declaração pública de

repúdio; e a punição com flagelo público à mulher adúltera.

Mas, como apresenta Arbex Junior, ―se o Islã preserva certas leis, é apenas

porque tal fato interessa ao machismo e não à religião como tal‖ (ARBEX JUNIOR,

1997, p.27). E, o que o autor também apresenta é que as mulheres sofrem

repressão em vários países, sob diferentes formas, como no Brasil, campeão em

violência contra as mulheres em 1995.

Não se trata, no entanto, de justificar a repressão às mulheres no Iraque, mas

sim de analisar que imagens de mulheres em votação são um elemento simbólico

que constituem um discurso de liberdade na capa em questão, inclusive pelo sinal

de ―paz e amor‖, ou de ―vitória‖, da iraquiana com o dedo sujo com tinta indelével. A

interpretação é influenciada pelos costumes ocidentais e do cristianismo no Brasil,

uma formação discursiva que remete diretamente à formação cultural dos

espectadores brasileiros.

O poder também se insere nessa formação discursiva. Bush aparece na

imagem da capa caminhando, saindo de uma porta, como o homem que deu ―um

passo à frente‖ e contribuiu para a democracia de um país oprimido por um ditador.

A única bandeira de Estado que aparece na capa é a dos Estados Unidos, a

verdadeira democracia, junto à imagem de Bush.

Mas o poder aí não é apenas aquele que caminha ao lado do ex-presidente

dos Estados Unidos, mas também o que garante a superioridade ocidental, que

aspira pela liberdade do Iraque. O discurso nesse momento pode ser analisado

como justificativa do poder. A ―América‖ teria, sobre esse ―outro universo‖ iraquiano,

certo direito de mostrar sua posição superior e levar a democracia.

O apoio de Bush nas eleições foi intenso e tinha como justificativa a

preocupação, o anseio e a vontade de incentivar a implantação de um governo

democrático no país. Na formação discursiva da referida capa pode-se afirmar que,

mais do que em qualquer outra analisada no período, é possível a identificação de

um Bush ―colonizador‖ e de um Iraque como ―país a ser colonizado‖, principalmente

pelo reforço imagético que compõe esta sequência, perceptível ao olhar.

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CONSIDERAÇÕES

Apesar de a análise ter se focado nas eleições iraquianas de 2005, noticiada

pela Folha de S. Paulo, é importante ter uma percepção mais ampla, que não se

restrinja ao fato, ao período ou ao veículo estudado. Constata-se que a visão do

―outro‖ é estereotipada em vários casos no discurso, tanto pela sutileza ou

imposição das palavras, como pelo impacto imagético, que em certos casos diz mais

que as próprias palavras.

O discurso da democracia e da liberdade, que se apresenta na capa da

edição de 31 de janeiro de 2005, é um indício da presença do discurso colonial, que

colocou o ex-presidente estadunidense em posição favorecida diante do ocorrido.

A religiosidade se faz presente como um demarcador cultural da região, que,

diante do efeito de sentido, se torna característica do ―outro‖ oriental.

A religião no Oriente Médio esteve envolvida com a história de impérios e com

a expansão árabe, tendo historicamente interferências na política. O Islã preserva

leis e costumes que atravessaram os séculos e as guerras e permaneceram até os

dias atuais. Portanto, não cabe ao Ocidente julgar ou estereotipar, mas sim respeitar

o outro e sua religião, mesmo que atrelada ao Estado. Exclui-se na memória

discursiva o fato de que o fundamentalismo religioso foi motivo para que Bush

declarasse guerra ao terrorismo, o que também ocasionou mortes (e mais terror) à

outra parte.

O que os iraquianos acham de um país ocidental que justificou uma invasão

ao seu território com armas químicas e nucleares que jamais foram encontradas? O

que eles acreditam ter sido a guerra que matou milhares de pessoas no Iraque, que

causou destruição e que não levou a resultados concretos? Será que o caminho

para a democracia no país teria que vir realmente a partir de uma guerra? E será

que a democracia que pregou-se ter sido alcançada é a que esperavam?

O discurso usado na capa da edição, reforçado pelas imagens, permite

questionar se o caminho da liberdade do Iraque apresentado pelo jornal era

realmente o único. O que se vê na Folha de S. Paulo é um exemplo do que foi

passado ao mundo, pelos olhos ocidentais, nos veículos de comunicação de massa.

Um discurso que conta uma história sobre as eleições, que não é a história das

eleições, do ponto de vista, por exemplo, dos iraquianos.

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