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7/23/2019 Abaixo Os Quilos http://slidepdf.com/reader/full/abaixo-os-quilos 1/2 Abaixo os quilos! Dos mercados de quatro províncias do norte, explode uma revolta popular contra as reformas modernizantes do Brasil imperial Luciano Mendonça de Lima No dia de outubro de "#$, no distrito de %a&undes, no interior da província da 'araíba, (omens emulheres aproveitaram a feira local para se manifestar) Alvo inicial da ira popular, o arrematador de impostos %rancisco Antonio de *ales foi cercado +por &rande nmero de indivíduos armados de facas e cacetes+, liderados por um popular de nome -o.o Nunes) Ap/s colocar o coletor pra correr, começaram a &ritar +Abaixo os impostos!+) Ato contínuo, se diri&iram para a lo0a de -o.o 1aldevino da 2osta Leite, um not/rio comerciante e membro da Maçonaria local, berrando +1iva a reli&i.o cat/lica! Morra maçom!+)3m outro &rupo, desta vez liderado por um su0eito c(amado Marcolino de tal, entrou em aç.o anunciando que +N.o se pa&ava o tributo do c(.o+, arrancando das m.os dos comerciantes os novos pesos e medidas do sistema m4trico5decimal para destruí5los, aos &ritos de +6uebra os quilos!+, a palavra de ordem mais adequada para a ocasi.o) 7m poucos dias, o movimento c(e&ou 8 sede do município, 2ampina 9rande, na 'araíba) Ao tomar con(ecimento de que a rebeli.o estava a camin(o, o capit.o -o.o 'eixoto de Barros, dele&ado de polícia, se diri&iu para o mercado novo, local onde se realizava concorrida feira semanal) 6ual n.o foi sua surpresa quando populares, liderados por -o.o 1ieira da *ilva, vul&o -o.o 2ar&a D:;&ua, partiram para o confronto com as forças policiais) Do embate resultou, de um lado, o ferimento de al&uns participantes e, do outro, uma baixa &eral entre a força policial, a começar pelo pr/prio dele&ado, que ficou prostrado no c(.o, com a cabeça toda ensan&<entada, resultado de uma certeira pedra arremessada do meio do povo em sua direç.o) Diante dessa primeira vit/ria, a multid.o se animou e passou a a&ir livremente nos dias se&uintes= os pesos e medidas foram, mais uma vez, inutilizados> a papelada dos cart/rios, das coletorias e da c?mara municipal foi apreendida e queimada em plena praça pblica> a cadeia foi arrombada, os presos liberados e as autoridades frontalmente ameaçadas) 'ara complicar ainda mais a situaç.o, novos persona&ens resolveram entrar em cena) Mais ou menos um m@s ap/s o início da rebeli.o, os escravos se levantaram, tirando partido da situaç.o de descontrole social e, o mais importante, interpretando o momento a partir de sua pr/pria vis.o) 7les se reuniram em pequenos &rupos 5 cada um deles liderado pelos irm.os cativos de nomes %irmino e Manuel do 2armo, e pelo liberto Benedito 5, prenderam al&uns sen(ores e entraram triunfalmente em 2ampina 9rande, 8 procura das autoridades para tratar, na lei ou na marra, da liberdade deles e de seus fil(os) Dessa vez, a palavra de ordem que ecoou nos quatro cantos da cidade foi a de +1iva a liberdade!+) A essa altura, a revolta se espal(ava por mais de setenta localidades em quatro províncias do norte= 'araíba, 'ernambuco, io 9rande do Norte e Ala&oas) 2om a fu&a de autoridades e propriet;rios, al&umas vilas e cidades ficaram ac4falas) No lu&ar desse vazio de poder, os revoltosos estabeleceram a sua pr/pria ordem e um verdadeiro +mundo de ponta5cabeça+ se instituiu= embalados por barul(enta msica e cac(aça, populares +forçavam todos a comprar e vender pelas medidas e pesos do sistema anti&o+, e se recusavam a pa&ar o imposto do c(.o 5 uma taxa que o feirante deveria pa&ar toda vez que colocasse sua mercadoria no piso da feira 5, 0; que +o c(.o era do povo e por ele n.o se deveria pa&ar impostos+> e escravos invertiam a secular (ierarquia social, tornando5se sen(ores n.o s/ de suas vidas, como tamb4m da dos outros) Nos meses que antecederam a revolta, os a&entes do 7stado imperial (aviam intensificado as açes para implantar o novo sistema m4trico5decimal em todo o territ/rio nacional, em nome do pro&resso e da racionalidade) 'ara a maioria da populaç.o, poderia si&nificar tudo menos isso, pois sabia que, enquanto n.o con(ecesse bem o sistema, corria o risco de ser ludibriada por comerciantes espertos) 7 sempre que inutilizavam as balanças e os pesos, os amotinados voltavam a comprar e vender pelos vel(os padres do anti&o sistema de ori&em ib4rica C'ortu&al e 7span(a, baseado na cuia, na vara e na braça Canti&a unidade de medida de comprimento equivalente a dez palmos ou E,E metros, usado desde a 4poca colonial) 7ste con0unto de açes, depois con(ecido pelo nome de evolta do 6uebra56uilos, con&re&ou num primeiro momento uma rede difusa de insatisfaçes) Mas os poucos elementos das elites locais que incitaram ou participaram das primeiras manifestaçes, tais como reli&iosos, políticos e propriet;rios, foram recuando e passaram a conter o movimento de todas as formas) Fs acontecimentos, por4m, adquiriram a feiç.o de revolta &eneralizada com a ades.o crescente de uma le&i.o de +deserdados+, formada por a&ricultores pobres, artes.os, feirantes, moradores, desocupados etc) F 6uebra56uilos coincidiu tamb4m com um momento de transformaçes nas relaçes de trabal(o, intensificadas depois do fim do tr;fico ne&reiro em "GH, em que as elites buscavam implantar uma le&islaç.o para impor formas compuls/rias de trabal(o aos (omens pobres da re&i.o)3ma das mais odiosas era a c(amada +tutela e soldada+) 'or ela, os pais suspeitos de +maus costumes+ Cpr;tica de vadia&em, alcoolismo e prostituiç.o eram obri&ados a entre&ar seus fil(os ao 0uiz de /rf.os local, que por sua vez cedia esses menores a terceiros, em troca de certas

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Abaixo os quilos!

Dos mercados de quatro províncias do norte, explode uma revolta popular contra asreformas modernizantes do Brasil imperial

Luciano Mendonça de Lima

No dia de outubro de "#$, no distrito de %a&undes, no interior da província da 'araíba, (omens emulheresaproveitaram a feira local para se manifestar) Alvo inicial da ira popular, o arrematador de impostos %ranciscoAntonio de *ales foi cercado +por &rande nmero de indivíduos armados de facas e cacetes+, liderados por umpopular de nome -o.o Nunes) Ap/s colocar o coletor pra correr, começaram a &ritar +Abaixo os impostos!+) Atocontínuo, se diri&iram para a lo0a de -o.o 1aldevino da 2osta Leite, um not/rio comerciante e membro da Maçonarialocal, berrando +1iva a reli&i.o cat/lica! Morra maçom!+)3m outro &rupo, desta vez liderado por um su0eito c(amadoMarcolino de tal, entrou em aç.o anunciando que +N.o se pa&ava o tributo do c(.o+, arrancando das m.os doscomerciantes os novos pesos e medidas do sistema m4trico5decimal para destruí5los, aos &ritos de +6uebra osquilos!+, a palavra de ordem mais adequada para a ocasi.o)

7m poucos dias, o movimento c(e&ou 8 sede do município, 2ampina 9rande, na 'araíba) Ao tomar con(ecimento deque a rebeli.o estava a camin(o, o capit.o -o.o 'eixoto de Barros, dele&ado de polícia, se diri&iu para o mercadonovo, local onde se realizava concorrida feira semanal) 6ual n.o foi sua surpresa quando populares, liderados por

-o.o 1ieira da *ilva, vul&o -o.o 2ar&a D:;&ua, partiram para o confronto com as forças policiais) Do embateresultou, de um lado, o ferimento de al&uns participantes e, do outro, uma baixa &eral entre a força policial, acomeçar pelo pr/prio dele&ado, que ficou prostrado no c(.o, com a cabeça toda ensan&<entada, resultado de umacerteira pedra arremessada do meio do povo em sua direç.o)

Diante dessa primeira vit/ria, a multid.o se animou e passou a a&ir livremente nos dias se&uintes= os pesos emedidas foram, mais uma vez, inutilizados> a papelada dos cart/rios, das coletorias e da c?mara municipal foiapreendida e queimada em plena praça pblica> a cadeia foi arrombada, os presos liberados e as autoridadesfrontalmente ameaçadas) 'ara complicar ainda mais a situaç.o, novos persona&ens resolveram entrar em cena) Maisou menos um m@s ap/s o início da rebeli.o, os escravos se levantaram, tirando partido da situaç.o de descontrolesocial e, o mais importante, interpretando o momento a partir de sua pr/pria vis.o) 7les se reuniram em pequenos&rupos 5 cada um deles liderado pelos irm.os cativos de nomes %irmino e Manuel do 2armo, e pelo liberto Benedito5, prenderam al&uns sen(ores e entraram triunfalmente em 2ampina 9rande, 8 procura das autoridades para tratar,na lei ou na marra, da liberdade deles e de seus fil(os) Dessa vez, a palavra de ordem que ecoou nos quatro cantosda cidade foi a de +1iva a liberdade!+)

A essa altura, a revolta se espal(ava por mais de setenta localidades em quatro províncias do norte= 'araíba,

'ernambuco, io 9rande do Norte e Ala&oas) 2om a fu&a de autoridades e propriet;rios, al&umas vilas e cidadesficaram ac4falas) No lu&ar desse vazio de poder, os revoltosos estabeleceram a sua pr/pria ordem e um verdadeiro+mundo de ponta5cabeça+ se instituiu= embalados por barul(enta msica e cac(aça, populares +forçavam todos acomprar e vender pelas medidas e pesos do sistema anti&o+, e se recusavam a pa&ar o imposto do c(.o 5 uma taxaque o feirante deveria pa&ar toda vez que colocasse sua mercadoria no piso da feira 5, 0; que +o c(.o era do povo epor ele n.o se deveria pa&ar impostos+> e escravos invertiam a secular (ierarquia social, tornando5se sen(ores n.os/ de suas vidas, como tamb4m da dos outros)

Nos meses que antecederam a revolta, os a&entes do 7stado imperial (aviam intensificado as açes para implantaro novo sistema m4trico5decimal em todo o territ/rio nacional, em nome do pro&resso e da racionalidade) 'ara amaioria da populaç.o, poderia si&nificar tudo menos isso, pois sabia que, enquanto n.o con(ecesse bem o sistema,corria o risco de ser ludibriada por comerciantes espertos) 7 sempre que inutilizavam as balanças e os pesos, osamotinados voltavam a comprar e vender pelos vel(os padres do anti&o sistema de ori&em ib4rica C'ortu&al e7span(a, baseado na cuia, na vara e na braça Canti&a unidade de medida de comprimento equivalente a dezpalmos ou E,E metros, usado desde a 4poca colonial)

7ste con0unto de açes, depois con(ecido pelo nome de evolta do 6uebra56uilos, con&re&ou num primeiromomento uma rede difusa de insatisfaçes) Mas os poucos elementos das elites locais que incitaram ou participaramdas primeiras manifestaçes, tais como reli&iosos, políticos e propriet;rios, foram recuando e passaram a conter omovimento de todas as formas) Fs acontecimentos, por4m, adquiriram a feiç.o de revolta &eneralizada com aades.o crescente de uma le&i.o de +deserdados+, formada por a&ricultores pobres, artes.os, feirantes, moradores,desocupados etc)

F 6uebra56uilos coincidiu tamb4m com um momento de transformaçes nas relaçes de trabal(o, intensificadasdepois do fim do tr;fico ne&reiro em "GH, em que as elites buscavam implantar uma le&islaç.o para impor formascompuls/rias de trabal(o aos (omens pobres da re&i.o)3ma das mais odiosas era a c(amada +tutela e soldada+) 'orela, os pais suspeitos de +maus costumes+ Cpr;tica de vadia&em, alcoolismo e prostituiç.o eram obri&ados aentre&ar seus fil(os ao 0uiz de /rf.os local, que por sua vez cedia esses menores a terceiros, em troca de certas

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obri&açes, at4 que eles atin&issem a maioridade)3ma c/pia desses contratos ficava re&istrada em cart/rio) Napr;tica, essas crianças e esses 0ovens se transformavam em m.o5de5obra barata nas m.os dos beneficiados, ereclamaçes de maus5tratos e exploraç.o sofridos por esses menores eram uma constante) Daí a a&itaç.o dospopulares contra 0uízes e a queima de pap4is)

3m detal(e revelador da l/&ica do movimento foi o ataque a indivíduos que pertenciam 8s lo0as maçInicas locais)7ssas pessoas eram ne&ociantes que muitas vezes monopolizavam os produtos de primeira necessidade em

momentos de crise, como o que cercou o 6uebra56uilos) Al4m do mais, v;rios maçons eram funcion;rios do 7stadoem ?mbito local, políticos, deputados, vereadores, donos de cart/rios, e muitas das medidas implantadas passarampelas c?maras municipais e assembl4ias provinciais, como as leis sobre os novos impostos)

7mbora ten(a sido, em parte, uma luta para alcançar ob0etivos imediatos, a aç.o dos revoltosos combinouespontaneidade e or&anizaç.o, estando lon&e de ter sido um movimento irracional) *urpreende, por exemplo, o fatode que, mesmo armados, os populares n.o fizeram nen(uma vítima fatal) J exceç.o de al&uns confrontos físicos demaior &ravidade, o que prevaleceu foi a força num4rica da multid.o, com sua presença e palavras de ordemameaçadoras, o que implicava seleç.o racional de certos atos em detrimento de outros)

'or fim, no centro dos acontecimentos esteve sempre presente o medo que o movimento 6uebra56uilos &erou) 7mum ambiente de crise, aquela sociedade se viu, de repente, atravessada por um sentimento de inse&urança queatin&iu at4 as elites) A ampla correspond@ncia trocada entre essas pessoas, sem a censura dos ol(ares pblicos,evidencia esse temor, como muito bem resumiu um deles= +K; um m@s ten(o estado em completo susto esobressalto) 7scapei das &arras desses perversos por um mila&re)+ 7ssa situaç.o c(e&ou a tal ponto que a repress.on.o se fez esperar) 2omo as forças policiais locais n.o deram conta da +desordem reinante+, contin&entes militares

do io de -aneiro, sob o comando do coronel *everiano da %onseca, começaram a c(e&ar 8s províncias em rebeli.olo&o em dezembro de "#$) 7scravos foram punidos com diversos tipos de casti&o) Komens livres pobres sofreram otormento do +colete de couro+= instrumento de tortura fixado ao t/rax que, ao secar, levava 8 morte por asfixia oudeixava seq<elas irrepar;veis) As cadeias ficaram abarrotadas de suspeitos, muitos sem nen(uma culpa formada)Nesse ritmo infernal, no começo do ano se&uinte, a c(amada +tranq<ilidade pblica+ foi restaurada na re&i.o)

Apesar das puniçes exemplares, a luta do 6uebra56uilos n.o foi em v.o) Al&umas das medidas decretadas pelo7stado imperial ficaram seriamente comprometidas devido 8 aç.o popular, a começar pela efetivaç.o do novosistema m4trico5decimal, que em muitas re&ies do Brasil teve que conviver, at4 (; bem pouco tempo, com ospadres do sistema anterior) F mais importante, por4m, 4 que essa tradiç.o de resist@ncia continuou por outrosmeios, contribuindo para o desmoronamento da ordem escravista e mon;rquica)

Luciano Mendonça de Lima 4 professor de Kist/ria doBrasil na 3niversidade %ederal de 2ampina 9rande e autor da dissertaç.oDerramando susto: os escravos e o Quebra-Quilos emCampina Grande, na 3niversidade de 2ampinas,

em EHH)