10
JEAN-MOHAMMED ABD-EL-JALIL: testemunho de hospitalidade Maria Suzana F. A. Macedo 1 Introdução Dentre os grandes intelectuais que se empenharam em tornar o Islã mais e melhor conhecido dos Ocidentais, encontramos a figura do franciscano Jean-Mohammed Abd-el-Jalil, religioso ainda pouco conhecido no Brasil. De origem marroquina, este muçulmano converteu-se ao catolicismo e foi batizado em 1928, tendo como padrinho o grande orientalista Louis Massignon de quem recebeu grande influência. Também em sua “quase” autobiografia intitulada Testimonianza de un membro giunto tarde alla Chiesa, assinala o influxo de Jacques Maritain sobre a sua vida espiritual 2 . A passagem para o catolicismo lhe trouxe alguns problemas, pois, [...] a sociedade marroquina, como inúmeras sociedades islâmicas, por várias razões de direito e de fato, não lhe perdoava sua “passagem” ao cristianismo: isso lhe interditava a volta ao país que o considerava “como morto”. Somente em 1961 (de 27 de abril a 15 de maio) lhe foi possível rever seu país e aí encontrar alguns dos seus, após seguranças e garantias de seu irmão Omar 3 . Maurice Borrmans assinala que Abd-el-Jalil buscou, de certa forma, unir duas pátrias, a marroquina e a francesa, e duas espiritualidades, a muçulmana e a cristã 4 . O superior dos Franciscanos do Marrocos na época da morte de Abd-el-Jalil, em 1979, Padre Joël Colombel, 1 Mestre e Especialista em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, MG (UFJF). Doutoranda em Ciência da Religião na mesma Universidade. Graduada em Teologia pelo Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, RJ (ITF). Bolsista da CAPES e membro discente do Grupo de Pesquisa Religiões e Diálogo do Programa de Pós-Graduação da UFJF nos seguintes projetos de pesquisa: Estudos de Mística Cristã e Islâmica; Buscadores do Diálogo. Orientador: Prof. Dr. Faustino Teixeira. E-mail: [email protected]. 2 Jacques Maritain (1882-1973). Converteu-se ao catolicismo em 1905. Tornou-se um filósofo católico de reconhecido valor no neotomismo pelas suas interpretações inovadoras da filosofia de Santo Tomás de Aquino. Cf. AUDI, Robert (Dir.). Dicionário de filosofia de Cambridge. São Paulo: Paulus, 2011, 2. Ed. O livro de Abd- el-Jalil foi concebido como uma réplica ao livro de Maritain, Il contadino dela Garonna, e como “uma recensão ao mesmo tempo severa e crítica”, apesar da amizade entre os dois. BORRMANS, Maurice. In: ABD-EL- JALIL, Jean-Mohammed. Testimone del Corano e del Vangelo, p. 13. Milano: Jaca Book, 2006. 3 Maurice BORRMANS. Prophètes du dialogue islamo-chrétien : Louis Massignon, Jean-Mohammed Abd-el- Jalil, Louis Gardet, Georges C. Anawati, p. 56. Paris : Du Cerf, 2009. Seu irmão Omar compreendera a sua escolha, permanecendo seu grande amigo. Contudo, seu pai fez com que fosse celebrada uma cerimônia fúnebre, como se Abd-el-Jalil estivesse morto. ABD-EL-JALIL, Jean-Mohammed. Testimone del Corano e del Vangelo, p. 53. 4 BORRMANS, Maurice. In: ABD-EL-JALIL, Jean-Mohammed. Testimone del Corano e del Vangelo, p. 15. Milano: Jaca Book, 2006.

Abd El Jalil

Embed Size (px)

DESCRIPTION

A experiência de Frei Alb El-Jalil no diálogo islamo-cristão.

Citation preview

Page 1: Abd El Jalil

JEAN-MOHAMMED ABD-EL-JALIL: testemunho de hospitalidade

Maria Suzana F. A. Macedo1

Introdução

Dentre os grandes intelectuais que se empenharam em tornar o Islã mais e melhor

conhecido dos Ocidentais, encontramos a figura do franciscano Jean-Mohammed Abd-el-Jalil,

religioso ainda pouco conhecido no Brasil. De origem marroquina, este muçulmano

converteu-se ao catolicismo e foi batizado em 1928, tendo como padrinho o grande

orientalista Louis Massignon de quem recebeu grande influência. Também em sua “quase”

autobiografia intitulada Testimonianza de un membro giunto tarde alla Chiesa, assinala o

influxo de Jacques Maritain sobre a sua vida espiritual2.

A passagem para o catolicismo lhe trouxe alguns problemas, pois,

[...] a sociedade marroquina, como inúmeras sociedades islâmicas, por várias razões de direito e de fato, não lhe perdoava sua “passagem” ao cristianismo: isso lhe interditava a volta ao país que o considerava “como morto”. Somente em 1961 (de 27 de abril a 15 de maio) lhe foi possível rever seu país e aí encontrar alguns dos seus, após seguranças e garantias de seu irmão Omar3.

Maurice Borrmans assinala que Abd-el-Jalil buscou, de certa forma, unir duas pátrias,

a marroquina e a francesa, e duas espiritualidades, a muçulmana e a cristã4. O superior dos

Franciscanos do Marrocos na época da morte de Abd-el-Jalil, em 1979, Padre Joël Colombel,

1 Mestre e Especialista em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora, MG (UFJF). Doutoranda em Ciência da Religião na mesma Universidade. Graduada em Teologia pelo Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, RJ (ITF). Bolsista da CAPES e membro discente do Grupo de Pesquisa Religiões e Diálogo do Programa de Pós-Graduação da UFJF nos seguintes projetos de pesquisa: Estudos de Mística Cristã e Islâmica; Buscadores do Diálogo. Orientador: Prof. Dr. Faustino Teixeira. E-mail: [email protected]. 2 Jacques Maritain (1882-1973). Converteu-se ao catolicismo em 1905. Tornou-se um filósofo católico de reconhecido valor no neotomismo pelas suas interpretações inovadoras da filosofia de Santo Tomás de Aquino. Cf. AUDI, Robert (Dir.). Dicionário de filosofia de Cambridge. São Paulo: Paulus, 2011, 2. Ed. O livro de Abd-el-Jalil foi concebido como uma réplica ao livro de Maritain, Il contadino dela Garonna, e como “uma recensão ao mesmo tempo severa e crítica”, apesar da amizade entre os dois. BORRMANS, Maurice. In: ABD-EL-JALIL, Jean-Mohammed. Testimone del Corano e del Vangelo, p. 13. Milano: Jaca Book, 2006. 3 Maurice BORRMANS. Prophètes du dialogue islamo-chrétien : Louis Massignon, Jean-Mohammed Abd-el-Jalil, Louis Gardet, Georges C. Anawati, p. 56. Paris : Du Cerf, 2009. Seu irmão Omar compreendera a sua escolha, permanecendo seu grande amigo. Contudo, seu pai fez com que fosse celebrada uma cerimônia fúnebre, como se Abd-el-Jalil estivesse morto. ABD-EL-JALIL, Jean-Mohammed. Testimone del Corano e del Vangelo, p. 53. 4 BORRMANS, Maurice. In: ABD-EL-JALIL, Jean-Mohammed. Testimone del Corano e del Vangelo, p. 15. Milano: Jaca Book, 2006.

Page 2: Abd El Jalil

2

na homilia de 29 de novembro do mesmo ano, afirmava quase o mesmo, dizendo que Padre

Jean-Mohammed sentia-se livre tanto na tradição muçulmana quanto na tradição cristã. Que

ele não havia escolhido uma em detrimento da outra. Ao contrário, esforçava-se por buscar

Deus no Islã e no cristianismo. Padre Joël acrescentou também que Abd-el-Jalil foi leal a

Deus em seu pensamento e em suas pesquisas e a cada um de seus confrades e livre em sua

escuta dos “mestres” das duas tradições5.

Neste artigo buscaremos apresentar um pouco da trajetória espiritual e de diálogo entre

Islã e Cristianismo do Padre Frei Jean-Mohammed Abd-el-Jalil, que deixou para cada um que

queira “aventurar-se” no diálogo inter-religioso o sopro suave, mas firme, de uma busca de

Deus que ultrapassa as barreiras entre as diversas tradições.

1. Breve relato biográfico

O franciscano Jean-Mohammed Abd-el-Jalil nasceu em Fez, no Marrocos, no ano de

1904. Ele mesmo se apresenta: “Sou marroquino, venho da cidade de Fez, de uma família

pobre e honesta, religiosa e observante no que concerne à fé e à moral” 6. Seus antepassados,

de origem andaluza, haviam se estabelecido em Fez há quatro séculos e muitos de seus

parentes ocuparam e alguns ainda ocupavam cargos importantes na administração7. Realiza a

peregrinação a Meca com sua família em 1913-1914.

Seu pai o matricula no Liceu mantido pelos franceses em Fez, depois em Rabat, de

1922 a 1925, no Liceu Gouraud onde termina os estudos secundários, como aluno interno na

escola de Foucauld, dirigida pelos Padres Franciscanos. Em 1925 é escolhido entre os

melhores alunos para prosseguir o aprendizado em nível superior em Paris e ganha uma Bolsa

de Estudos8.

Passados alguns anos, Abd-el-Jalil converte-se ao catolicismo e é batizado em 1928,

tendo como padrinho Louis Massignon. Desde esse dia se desenvolve entre os dois amigos

um esforço conjunto para reconciliar muçulmanos e cristãos9. Sobre sua conversão à fé

católica, o marroquino relata:

5 Apud in : Maurice BORRMANS. Prophètes du dialogue islamo-chrétien : ..., p. 46-47. 6 ABD-EL-JALIL, Jean-Mohammed. Testimone del Corano e del Vangelo, p. 18. 7 Um dos seus tios era procurador do rei em Fez e seu irmão, Omar, era um dos líderes do partido nacionalista do Marrocos, Istiqlâl. 8 MASSIGNON – ABD-EL-JALIL : Parrain et filleul – 1926-1962, p. 14. 9 Ibid., p. 15.

Page 3: Abd El Jalil

3

Aos vinte e três anos, quando estudava na Sorbonne e após pesquisas religiosas durante quase três anos, me decidi a pedir o batismo da Igreja Católica, depois a oferecer-me como servo de Jesus Cristo na sua Igreja, sob o exemplo de São Francisco de Assis. Batismo em 1928, ingresso na Ordem Franciscana em 1929; ordenação sacerdotal em 193510.

Quando de seu processo de conversão, Abd-el-Jalil confidencia, em uma carta dirigida

a Mulla-Zadé11, em 1º de outubro de 1927 que:

Antes de 30 de janeiro desse ano, eu pensava que todo muçulmano, qualquer que fosse ele, não poderia ter nenhuma razão para mudar de religião. Desde essa data, eu percorri inúmeras etapas: eu me coloquei ao estudo da religião católica e à leitura dos textos sagrados, por primeiro, eu cheguei agora a perder minhas convicções muçulmanas e a dar toda minha simpatia à causa católica12.

De 1928 a 1929 fez o noviciado no seminário carmelita em Amiens, Paris e os estudos

de teologia no studium dos Franciscanos em Mons-en-Baroeul, próximo a Lille, de 1929 a

1935. Um ano após a sua ordenação, em 1936, Abd-el-Jalil foi chamado pelo cardeal

Baudrillart13 para lecionar no Institut Catholique de Paris cursos de língua e literatura árabe e,

pela faculdade de história das religiões, um curso de estudos islâmicos14.

Em 1937 realiza sua primeira viagem ao Oriente Próximo onde fica até outubro de

1938, o que lhe permite “descobrir os múltiplos aspectos e os difíceis problemas”. Retorna ao

Oriente Próximo permanecendo de janeiro a setembro de 1948, o que lhe proporciona

recolher muitas informações e encontrar inúmeras pessoas importantes. Isto lhe deu condições

de pronunciar a conferência de abertura do ano letivo no Institut Catholique de Paris, em 24

10 ABD-EL-JALIL, Jean-Mohammed. Testimone del Corano e del Vangelo, p. 18. 11 Paul-Mehmet Mulla-Zadé (1881-1959), nascido muçulmano e turco na Creta otomana. Foi enviado por seu pai à França para dar continuidade aos seus estudos. Tornou-se discípulo de Maurice Blondel. Converteu-se ao catolicismo e foi ordenado padre em 1911. Foi professor de islamologia no Pontifício Instituto Oriental, em Roma, a pedido do papa Pio XI. Mulla-Zadé foi um grande orientador espiritual de Abd-el-Jalil, principalmente no processo de conhecimento de Jesus Cristo e na indicação de monsenhor Thellier de Poncheville que foi um dos pioneiros do catolicismo social no espírito do papa Leão XIII. Ver mais em MULLA-ZADÉ et ABD-EL-JALIL : Deux frères en conversion du Coran à Jésus. correspondance 1927-1957, p. 7, 57. Rassemblée, introduit et annotée par Maurice Borrmans. Paris : Du Cerf, 2009. 12 Ibid., p. 15. 13 Monsenhor Baudrillart era arcebispo de Metiléne, membro da Academia Francesa e reitor do Institut Catholique de Paris. Mais detalhes biográficos disponível em: < http://memoria.bn.br/docreader/hotpage/hotpageBN.aspx?bib=178691_06&pagfis=5336&pesq=&esrc=s&url=http://memoria.bn.br/docreader#>. Acesso em: 23/07/13. Jornal O Paiz, Rio de Janeiro, 18 de outubro de 1934, p. 1-2. Acervo digital da Fundação Biblioteca Nacional. 14 MASSIGNON – ABD-EL-JALIL : Parrain et filleul – 1926-1962, p. 15.

Page 4: Abd El Jalil

4

de novembro do mesmo ano, intitulada Retour d’Orient: quelques aspects des pays d’islam.

Abd-el-Jalil procurava mostrar a nova situação com a criação do Estado de Israel15.

Em 1964 o Franciscano publica a conferência que havia proferida aos Padres

Conciliares franceses: L’Islam à l’époque du Concile. São de sua autoria também as obras:

Brève histoire de la littérature arabe (1943); L’Islam et nous (1947); Aspects intérieurs de

l’Islam (1949); Marie et l’Islam (1950). Esta última é considerada um referencial em

mariologia corânica16. Borrmans acredita que aqueles que estão empenhados nas atividades

sociais e políticas ou, simplesmente no encontro espiritual com os muçulmanos,

principalmente na França e na África Setentrional, devem reconhecer nas três últimas obras

citadas a possibilidade de melhor “compreensão do Islã e da sua estima pelos muçulmanos

cristãmente esclarecidas e positivamente renovadas”17.

Jean-Mohammed Abd-el-Jalil, ao final de sua exposição sobre o Islã, na obra L’Islam

et nous, observa que nós cristãos:

Em lugar de empurrá-lo [o Islã] a endurecer ainda mais sua atitude e em continuar a negligenciar as sementes de autêntica riqueza religiosa que ele sepulta sob uma rígida carapaça de legalismo oficial, nosso dever consiste, antes, em “valorizar” todas as suas aspirações reais, sadias e construtivas: aspirações a uma vida espiritual mais profunda, a um sentido de unidade menos simplista, e na vida amigável, em comum, com os “outros”18.

Maurice Borrmans, amigo e discípulo de Abd-el-Jalil, afirma que o padre franciscano

consagrou toda sua vida a um “autêntico conhecimento” dos cristãos e dos muçulmanos “em

vista de uma melhor estima recíproca e de possíveis colaborações amigáveis”19. Como guia

do diálogo islamo-cristão, Abd-el-Jalil conclui que “engajados doravante, firmemente e

irreversivelmente no caminho da compreensão das outras religiões, incluindo o Islã, a partir

de dentro e com amor e respeito, os cristãos deverão ainda, por muito tempo sem dúvida,

perseverar neste caminho, mesmo se a reciprocidade demora a se manifestar”20.

Por causa de um tumor na língua, sofrido durante quinze anos, Abd-el-Jalil passa a ter

uma vida de “quase-reclusão” e seus últimos anos de vida ele os passou no convento da Rue

15 MASSIGNON – ABD-EL-JALIL : Parrain et filleul – 1926-1962, p. 15-16. 16 MULLA-ZADÉ et ABD-EL-JALIL : Deux frères en conversion du Coran à Jésus. correspondance 1927-1957, p. 324. 17 ABD-EL-JALIL, Jean-Mohammed .Testimone del Corano e del Vangelo, p. 39. 18 ABD EL-JALIL, Jean-Mohammed. L’Islam et nous, p. 66-67. Paris: Cerf, 1981. 19 Maurice BORRMANS. Prophètes du dialogue islamo-chrétien : ..., p. 61. 20 Ibid., p. 63.

Page 5: Abd El Jalil

5

Marie-Rose de Paris, mas mantinha a sua relação de amizade com os mais queridos: o grande

amigo Jacques Maritain, que ingressara na Fraternidade dos Irmãozinhos de Jesus21 e com o

cardeal Journet, a quem fora apresentado por Maritain e a quem o próprio Franciscano diz que

amava como a um pai que gerava nele “um tão grande bem espiritual” e a quem considerava

um “Padre da Igreja de nossos dias”22.

2. Influxos de Maritain e Massignon

A Bolsa de Estudos recebida por Abd-el-Jalil impunha-lhe um limite: conseguir a

licenciatura em Letras, voltada exclusivamente ao ensino da língua árabe. Contudo, o jovem

estudante queria licenciar-se em Filosofia. Tentou obter do Ministério da Educação a

permissão para apresentar duas conclusões de curso: uma em Letras e outra em Filosofia. Não

obteve êxito em seu propósito. Não se contentando apenas com seus estudos na Sorbonne e

conhecendo superficialmente o cristianismo, conseguira autorização especial para seguir os

cursos do Instituto Católico de Paris, sendo o primeiro muçulmano a querer estudar em uma

faculdade canônica23.

Dentre os seus professores, Jacques Maritain era quem mais o desconcertava: o modo

como falava de Immanuel Kant e de René Descartes em seus cursos revelava uma figura de

valor inegável, na opinião de Abd-el-Jalil. Mesmo assim, o marroquino fez uma crítica à obra

Antimoderno de Maritain, pois, não concordava com os termos “anti” ou “contra” que não

faziam parte do vocabulário de Jean-Mohammed24.

Uma das dificuldades encontradas por Abd-el-Jalil era conseguir conciliar o

ensinamento do professor com a obra do escritor. Também entre os tomistas este pensamento

estava presente e, considerando as duas coisas “inconciliáveis” seria preciso “aprender a

habitar duas casas diferentes e a passar de uma a outra”25.

Quando soube da vocação religiosa do marroquino, por ele mesmo, Maritain, na

opinião de Abd-el-Jalil, sentiu-se no dever de intervir junto ao padre Pressoir, quanto à

orientação vocacional do jovem convertido, o que ele, mais tarde, considerou uma grande

honra feita a ele pelo filósofo.

21 MASSIGNON – ABD-EL-JALIL : Parrain et filleul – 1926-1962, p. 17. 22 ABD-EL-JALIL, Jean-Mohammed .Testimone del Corano e del Vangelo, p. 27. 23 Ibid., p. 21. 24 Ibid., p. 22. 25 Ibid., p. 25. As críticas eram feitas a Jacques Maritain como filósofo tomista, mantendo-se a amizade entre os dois.

Page 6: Abd El Jalil

6

Jacques Maritain presenteara Abd-el-Jalil com o Tratado da Verdadeira Devoção, de

São Luís Maria Grignion de Montfort, e também com duas obras suas: Humanismo Integral e

Distinguer pour unir. Nesta última, Maritain cita o Franciscano ao lado de seu padrinho,

Louis Massignon, em uma nota de rodapé, o que significou, nas palavras de Jean-Mohhamed,

uma grande honra26.

Abd-el-Jalil jamais esqueceria o amigo Jacques Maritain, oferecendo em suas orações

o que dele recebera e por meio dele: a influência na vida espiritual. Considera mesmo que fora

o maior e inesquecível influxo de uma presença “quase celestial” não obstante as divergências

que apresentavam em suas reflexões27. Ele mesmo afirmara amar e venerar Jacques Maritain a

quem agradaria assemelhar-se, nem que fosse de longe. Considerava o amigo “o mais notável,

senão o único filósofo católico e tomista vivo”. Para Abd-el-Jalil, o discípulo não pode

renegar a obra do mestre e, mesmo ao dizer que ela era palha, distinguia nela o que ele

denominava “fios de ouro”28.

De Massignon, o Franciscano retoma sempre a uma expressão que jamais esquecera:

“Para compreender o outro, não é preciso incorporá-lo a si, é preciso fazer-se seu hóspede”.

Pensa, Abd-el-Jalil, que assim fez o próprio Jesus Cristo ao assumir a nossa condição de

escravo até tomar sobre si os nossos pecados, ele que não cometera pecado algum. Para abrir

os olhos daqueles que não acreditavam em sua missão ou não a compreendiam o Senhor:

aceitou até ser hóspede dos discípulos de Emaús, que retornavam no ‘mundo’ sem ter visto aquela luz que Ele desejava ver em seu ‘coração’, nem sentido o fogo que Ele reacendia em todo o seu ser. E de repente, fazendo-os ir além da sua hospitalidade, transformou-os em seus hóspedes, fazendo-os partir o seu próprio pão29.

Qualquer tipo de diálogo pressupõe, de acordo com Abd-el-Jalil, a hospitalidade que

não mede esforços para se conhecer verdadeiramente o outro, através do que ele faz, diz,

escreve e pela maneira como reza. Através dos estudos do Franciscano, muitos descobrem

“estupefatos ou admirados” que diversas formas de oração muçulmana assemelham-se com a

Bíblia ou com a Liturgia cristã30.

26 A nota de rodapé é a de n. 1 da página 542 in: MARITAIN, Jacques. Distinguer pour unir ou Les degrés du savoir. 5 Ed. Paris : Desclée de Brouwer, 1948. 27 ABD-EL-JALIL, Jean-Mohammed .Testimone del Corano e del Vangelo, p. 24. 28 Ibid., p. 33. 29 Ibid., p. 32. 30 Ibid., p. 64.

Page 7: Abd El Jalil

7

Maurice Borrmans assinala que a vida espiritual de Jean-Mohammed era marcada pela

espiritualidade da Cruz “fiel aos estigmas de São Francisco” e pela mística da “substituição”

fiel “à Badalyya de Louis Massignon”31.

Antes mesmo do batismo, a figura de São Francisco de Assis havia conquistado a

simpatia do Marroquino. O episódio de Francisco que, contrário às Cruzadas dirige-se até

mesmo ao Oriente e ali empreende um diálogo que, para Abd-el-Jalil, é um “modelo diferente

de comportamento inter-religioso” o marcou profundamente e lhe serviu de referência

espiritual32.

3. Hospitalidade dialogal

Quando inicia seus estudos em Paris, Abd-el-Jalil é hóspede de uma família cristã, os

Faguer. Ali ele “se vê recebido por parentes e amigos do diretor da escola Charles de

Foucauld, de Rabat, o padre Clément, com quem ele mantém uma fiel e abundante

correspondência”33.

Buscou conhecer a fé cristã de maneira mais profunda o que o levou a “revisar seu

‘olhar’ sobre o cristianismo”, procurando ler obras que tratassem do Deus cristão. O jovem

marroquino julga que deve levar a sério a palavra de Jesus Cristo que veio, não para condenar,

mas para salvar. Abd-el-Jalil acreditava, mesmo antes do Concílio Vaticano II que esta frase:

se aplicava também aos esforços dos espíritos que buscam a verdade mesmo através de caminhos que parecem afastá-los, no momento no qual eles mantêm a firme vontade de ser plenamente sinceros, isto é de ter, o que adoro explicar aos alemães com as palavras “eine aufgeschlossene Aufrichtigkeit”, ou seja, uma sinceridade aberta, sempre pronta a acolher cada partícula singular de verdade, também quando esta vem mostrada e demonstrada pelos adversários para tudo o mais em erro34.

31 Em 1934 Massignon cria, juntamente com Mary Kahil, a Badalyya em Damieta, no Egito. Esta associação visava à reconciliação entre cristãos e muçulmanos e foi reconhecida canonicamente em 1947 pelo Monsenhor Médawar do Cairo. BORRMANS, Maurice. Prophètes du dialogue islamo-chrétien : ..., p. 43. No coração de sua espiritualidade Massignon tem por base a “substituição mística” em que Jesus é o maior exemplo. Por amor a todos os homens, toma sobre ele os pecados do mundo, mas, o ser humano também pode participar desse ato de Jesus, assim como fez Simão de Cirene, ao ajudá-lo a carregar a cruz. D’ESCRIVAN, Étienne. Un monastère cistercien en terre d’Islam ?: Notre-Dame de l’Atlas au Maroc, p. 153. 32 BASETTI-SANI, Giulio ; VERDERIO, Matteo. Musulmano e cristiano: la storia del francescano Giovanni-Maometto, p. 97. Milano: Ancora, 1998. Ler mais sobre esta fase de Francisco nas páginas 98-102. 33 MASSIGNON – ABD-EL-JALIL : Parrain et filleul – 1926-1962, p. 14. 34 ABD-EL-JALIL, Jean-Mohammed .Testimone del Corano e del Vangelo, p. 23.

Page 8: Abd El Jalil

8

Abd-el-Jalil diz que aprendera também com monsenhor Mulla-Zadé e encontrara em

Maurice Blondel a mesma afirmação de que “o cristão não é contra os outros, ainda que ele

seja totalmente diferente”. O Franciscano considera muito fácil “exacerbar a posição do

adversário ou reduzi-la a uma noção simplista para poder refutá-la ‘vitoriosamente’ ou

verdadeiramente ridicularizá-la”. Ele alerta para que não se tome isoladamente os textos de

um autor a fim de fundamentar posições ou argumentos favoráveis ao leitor, em detrimento de

uma análise mais ampla do referido autor35.

Em suas reflexões Jean-Mohammed percebia que na obra de Deus, “criada em e pelo

Cristo”, havia em cada lugar “uma grande diversidade dentro de uma suntuosa unidade”. Para

ele, isto não significava nem sincretismo, nem ecletismo36. Ao tornar-se cristão ele não via

motivos para abandonar os valores religiosos de seus mestres muçulmanos e que, de acordo

com ele mesmo, “estão bem longe de repugnar o cristianismo”. Assinala que “um destes

valores consiste em não tolerar, em pensamento e em obras, o tornar-se escravo de uma outra

criatura, qualquer que seja”. Isto não significa, que como cristãos, devemos deixar de

proclamar-nos servos de Cristo, mas, “sempre com espírito de ‘filhos’ instilado nos nossos

corações pelo Espírito de Deus”37.

Quando o Concílio Vaticano II chega ao auge, Abd-el-Jalil fornece para alguns

membros “uma informação mais precisa, objetiva e, ao mesmo tempo breve, acompanhada de

uma reflexão espiritual que pudesse inspirar uma ‘pastoral do diálogo’”. Borrmans assinala

que os esforços do Franciscano unidos ao empenho de outros estudiosos permitiram a

elaboração da Declaração conciliar Nostra Aetate. Em seguida às suas intervenções ele é

recebido pelo Papa Paulo VI que o chama de “irmão”38.

Jean-Mohammed Abd-el-Jalil manteve a sua nacionalidade marroquina e orgulhava-se

disto. Maurice Borrmans afirma que o Padre franciscano raramente escreveu sobre

espiritualidade sem incluir a sua visão mística, sem repetir incansavelmente que os

muçulmanos esperam o ‘testemunho dos verdadeiros cristãos, o testemunho de quem dá a

vida, porque essa é transformada pela presença íntima da Transcendência tornada, mediante a

graça, desejável, comunicável e deleitável”39.

Abd-el-Jalil tinha a firme convicção de que os países muçulmanos mereciam mais que

“avaliações aproximativas fundadas sobre olhares velozes, simplistas e por vezes 35 ABD-EL-JALIL, Jean-Mohammed .Testimone del Corano e del Vangelo, p. 23. 36 Id. 37 Ibid., p. 24. 38 Ibid., p. 38. 39 Ibid., p. 43-44.

Page 9: Abd El Jalil

9

interessados”. Para ele, o Ocidente cristão tem uma grande responsabilidade no que se refere à

“orientação espiritual construtiva e universal” que pode ser dada aos “jovens talentos e aos

seus novos esforços” e cabe, especialmente, aos católicos a tarefa de conciliar, aceitar e

estimular a “emulação no espírito”40.

O Franciscano se perguntava quanto tempo os cristãos levariam para fazer um

caminho da compreensão sincera e amorosa em direção ao diálogo com o Islã. Para ele, só

Deus saberia a resposta, mas, o que ele acreditava é que este caminho deveria ser feito ainda

que a outra parte não se movimentasse. Acrescenta que se o cristão tem consciência da

Verdade a qual ele é “servidor, mensageiro e beneficiário” ele não deve temer este caminho

“humilde e amoroso em direção ao outro” 41.

Considerações finais

Poderíamos perguntar qual o legado, o testamento que Frei Jean-Mohammed Abd-el-

Jalil deixa quanto ao diálogo islamo-cristão. A reposta é articulada em três eixos basilares:

Primeiro, trata-se de praticar uma “hospitalidade compreensiva” que é constituída através do

“aprender do outro qual é o seu patrimônio espiritual (fé, culto, moral, mística) a fim de

apreciar nisto a experiência religiosa em seu justo valor”. Um segundo eixo é procurar

manter-se nesta aprendizagem com uma “objetividade realista” cuja exigência é situar “a

experiência religiosa dos outros em seu contexto histórico e sociológico, submetidos a mil

fatores culturais, econômicos e políticos”, ou seja, “todas as coisas que podem frear o ‘élan’

ou relativizar a pureza”. Finalmente, há que se praticar aí uma “solidariedade crística”,

porque todo aquele que se diz cristão “é chamado a se sentir implicado, como Jesus Cristo

mesmo, em toda busca leal do mistério de Deus, aí onde os crentes sinceros pretendem

corresponder a todas as dúvidas do homem religioso que se interroga, em si, sobre o ‘sentido’

de sua vida e sobre os ‘valores’ que levam à perfeição”42. É sentir-se solidário, por um lado,

com os “buscadores de Deus” e por outro com o Verbo Encarnado, “através do duplo mistério

da Cruz e da Ressurreição” 43.

40 ABD-EL-JALIL, Jean-Mohammed .Testimone del Corano e del Vangelo, p. 44. 41 Ibid., p. 69. 42 MASSIGNON – ABD-EL-JALIL : Parrain et filleul – 1926-1962, p. 18. 43 ABD-EL-JALIL, Jean-Mohammed .Testimone del Corano e del Vangelo, p. 63.

Page 10: Abd El Jalil

10

Maurice Borrmans acrescenta que Abd-el-Jalil, no campo do “encontro generoso e

lúcido entre cristãos e muçulmanos”, escreveu e disse muito e sua vida foi dedicada a

melhorar o conhecimento entre as duas tradições e a estima de uns pelos outros. Nesta direção

projetou toda a sua reflexão dando o máximo contingente de seus esforços44.

Referências:

ABD EL-JALIL, Jean-Mohammed. L’Islam et nous. Paris: Cerf, 1981. ______. Testimone del Corano e del Vangelo. Milano: Jaca Book, 2006. AUDI, Robert (Dir.). Dicionário de filosofia de Cambridge. São Paulo: Paulus, 2011, 2. Ed. BASETTI-SANI, Giulio; VERDERIO, Matteo. Musulmano e cristiano: la storia del francescano Giovanni-Maometto. Milano: Ancora, 1998. BORRMANS, Maurice. Prophètes du dialogue islamo-chrétien: Louis Massignon, Jean-Mohammed Abd-el-Jalil, Louis Gardet, Georges C. Anawati. Paris : Du Cerf, 2009. D’ESCRIVAN, Étienne. Un monastère cistercien en terre d’Islam ?: Notre-Dame de l’Atlas au Maroc. Paris : Du Cerf, 2010. MARITAIN, Jacques. Distinguer pour unir ou Les degrés du savoir. 5 Ed. Paris : Desclée de Brouwer, 1948. MASSIGNON – ABD-EL-JALIL : Parrain et filleul – 1926-1962. Correspondance rassemblée et annotée par Françoise Jacquin – Préface par Maurice Borrmans. Paris : Cerf, 2007. MULLA-ZADÉ et ABD-EL-JALIL : Deux frères en conversion du Coran à Jésus. correspondance 1927-1957. Rassemblée, introduit et annotée par Maurice Borrmans. Paris : Du Cerf, 2009.

44 ABD-EL-JALIL, Jean-Mohammed .Testimone del Corano e del Vangelo, p. 44.