8
XXI Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música - Uberlândia - 2011 Abertura para o silêncio Janete El Haouli Universidade Estadual de Londrina – CECA – [email protected] José Augusto Mannis Universidade Estadual de Campinas – Inst. de Artes – [email protected] Resumo: É um desafio compartilhar uma impressão produzida por algo que pode ser percebido diferentemente de um individuo a outro. Sendo o silêncio um elemento de linguagem com múltiplos sentidos torna-se complexo falar sobre ele. Buscamos neste artigo reconstituir impressões descobertas num itinerário interno e intimo de investigação. Enquanto sensações, som e silêncio seriam iguais, porém com intensidades diferentes. O silêncio corresponde a um estado de percepção. A articulação entre som e silêncio é importante para a inteligibilidade nos processos de comunicação. É no silêncio que se reflete sobre o que se percebeu. Nas mídias contemporâneas, rádio e TV, o silêncio continua sendo elemento raro. O ambiente urbano acabou se tornando um caos sonoro habitado por seres com escutas deformadas. Palavras-Chave: sonologia, silêncio, escuta, rádio, ruído ambiental Opening to silence Abstract: It is a challenge to share an impression about something that can be perceived differently from one individual to another. Being the silent a language element with multiple meanings is complex to talk about it. We seek in this article to reconstruct sensations discovered in a introspective and intimate way of research. Sensations, sound and silence would be the same, but with different intensities. Silence is a state of perception. The relationship between sound and silence is important for intelligibility in communication processes. Is just during silence that we can think about what they just heard. In contemporary media, radio and TV, the silence remains a rare element. The urban environment became a sonic chaos inhabited by creatures with deformed listening. Keywords: sonology, silence, listening, radio, environmental noise 1. Introdução É complexo tratar de algo aparentemente evidente para uns e dificilmente apreensível para outros. É complexo, também, assimilar e compartilhar conteúdos polissêmicos: sons, gestos, palavras e expressões com múltiplos sentidos. O silêncio é um desses elementos de linguagem possuindo diversos significados. Pode ser portador de pudor, respeito, dor, conivência, cumplicidade, denúncia, confissão, aquiescência, negação, omissão, repreensão, condenação (DINOUART, 1771) e, às vezes, pode até mesmo se tornar um grito. Entende-se porque Georges Clemanceau (estadista, jornalista e médico, 1841-1929) afirmou que “manejar o silêncio é mais difícil que manejar as palavras”. Tanto o silêncio quanto o vazio possuem a capacidade de absorver significados projetados por quem o recebe. São muitas as possibilidades, fantasias e dúvidas provocadas por uma pergunta expressamente não respondida, deixada no ar pelo interlocutor. O silêncio não somente varia seu significado conforme as situações, como pode acumular vários sentidos simultâneos. É algo cuja existência prima pela ausência de matéria sonora, conseqüência de uma omissão, uma

Abertura Para o Silencio Janete Haouli

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Sobre rádio

Citation preview

  • XXI Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica - Uberlndia - 2011

    Abertura para o silncio

    Janete El Haouli Universidade Estadual de Londrina CECA [email protected]

    Jos Augusto Mannis

    Universidade Estadual de Campinas Inst. de Artes [email protected]

    Resumo: um desafio compartilhar uma impresso produzida por algo que pode ser percebido diferentemente de um individuo a outro. Sendo o silncio um elemento de linguagem com mltiplos sentidos torna-se complexo falar sobre ele. Buscamos neste artigo reconstituir impresses descobertas num itinerrio interno e intimo de investigao. Enquanto sensaes, som e silncio seriam iguais, porm com intensidades diferentes. O silncio corresponde a um estado de percepo. A articulao entre som e silncio importante para a inteligibilidade nos processos de comunicao. no silncio que se reflete sobre o que se percebeu. Nas mdias contemporneas, rdio e TV, o silncio continua sendo elemento raro. O ambiente urbano acabou se tornando um caos sonoro habitado por seres com escutas deformadas.

    Palavras-Chave: sonologia, silncio, escuta, rdio, rudo ambiental

    Opening to silence

    Abstract: It is a challenge to share an impression about something that can be perceived differently from one individual to another. Being the silent a language element with multiple meanings is complex to talk about it. We seek in this article to reconstruct sensations discovered in a introspective and intimate way of research. Sensations, sound and silence would be the same, but with different intensities. Silence is a state of perception. The relationship between sound and silence is important for intelligibility in communication processes. Is just during silence that we can think about what they just heard. In contemporary media, radio and TV, the silence remains a rare element. The urban environment became a sonic chaos inhabited by creatures with deformed listening.

    Keywords: sonology, silence, listening, radio, environmental noise

    1. Introduo

    complexo tratar de algo aparentemente evidente para uns e dificilmente

    apreensvel para outros. complexo, tambm, assimilar e compartilhar contedos

    polissmicos: sons, gestos, palavras e expresses com mltiplos sentidos. O silncio um

    desses elementos de linguagem possuindo diversos significados. Pode ser portador de pudor,

    respeito, dor, conivncia, cumplicidade, denncia, confisso, aquiescncia, negao, omisso,

    repreenso, condenao (DINOUART, 1771) e, s vezes, pode at mesmo se tornar um grito.

    Entende-se porque Georges Clemanceau (estadista, jornalista e mdico, 1841-1929) afirmou

    que manejar o silncio mais difcil que manejar as palavras. Tanto o silncio quanto o

    vazio possuem a capacidade de absorver significados projetados por quem o recebe. So

    muitas as possibilidades, fantasias e dvidas provocadas por uma pergunta expressamente no

    respondida, deixada no ar pelo interlocutor. O silncio no somente varia seu significado

    conforme as situaes, como pode acumular vrios sentidos simultneos. algo cuja

    existncia prima pela ausncia de matria sonora, conseqncia de uma omisso, uma

  • XXI Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica - Uberlndia - 2011

    interrupo, uma articulao para o nada, para um vazio cheio de sentidos, de links, de

    associaes, de caminhos abertos. Falar daquilo que nos parece indescritvel, de forma

    racional, precisa e objetiva, pode, por vezes, tanger o impossvel, pela prpria limitao das

    palavras, dos sentidos, da sintaxe, do conjunto de recursos de representao da linguagem

    verbal.

    Quando o homem, em sua histria , percebeu o silncio como significao, criou a linguagem para ret-lo. (ORLANDI, 1995, p.29)

    Muitas vezes recorremos a imagens, impresses, artifcios, representaes,

    sugestes, para exteriorizar sensaes e sentimentos incomuns. A poesia, a msica, as artes,

    so maneiras de exteriorizar essas expresses. Falando poeticamente nos colocamos prximos

    ao ouvinte, ao leitor, com mais intimidade do que articulando nosso pensamento de forma

    precisa, com lgica e racionalidade.

    Quando o percurso de idias (o itinerrio do pensamento) est fora do individuo,

    no mundo conhecido, compartilhado socialmente, tendo recursos a referncias objetivas e

    estabelecidas, ento possvel representar esse pensamento por associaes lgicas e

    sustentadas por estruturas seguras e slidas. Porm, quando o percurso das idias est dentro

    de ns (l dentro mesmo), temos duas alternativas: (1) ou recorremos a noes e conceitos

    existentes no mundo externo (que bem dominamos) e os colocamos dentro de ns, como uma

    sonda de explorao, e buscamos oper-los com aes equivalentes, transponveis de fora

    para dentro (e vice-versa); (2) ou ento provocamos associaes poticas recriando o contexto

    e dessas impresses vividas dentro de ns para que nosso interlocutor possa senti-las.

    Podemos, por vezes, nos encontrar diante de situaes que somente sejam comunicveis em

    contexto potico. No campo da arte este processo o que domina as aes criativas.

    Estas linhas introdutrias buscam justificar ao leitor a razo pela qual estes

    autores optaram por uma linguagem por vezes informal, intimista. Temos uma percepo do

    silncio e gostaramos de compartilh-la. Portanto, a conduo do pensamento de forma mais

    potica do que lgica e racional poderia ser considerada uma tentativa experimental de dois

    artistas que anseiam comunicar suas impresses. Afinal, a metodologia para o estudo da arte

    no poderia ser tambm de natureza potica?

    2. As sensaes

    O som sempre o plo complementar daquele elemento fundamental da msica, sem o qual, a vivncia artstica no possvel: o silncio. (KOELLREUTTER, 1984, p.17)

  • XXI Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica - Uberlndia - 2011

    Essa afirmao nos convidou a refletir sobre as possveis relaes entre som e

    silncio no contexto artstico e em nosso cotidiano. Os autores-ouvintes deste texto, imersos

    em incessante murmrio urbano, propem que se pense sobre a real importncia e a

    necessidade do silncio diante da complexidade, multiplicidade e diversidade sonora e

    musical que vivemos na atualidade. Segundo Koellreutter sons e silncios foram, na msica

    tradicional, dois conceitos fundamentais sobre os quais se baseia a esttica clssica. Hoje, no

    entanto, a nova esttica traz tona uma reviso radical dessa conceituao, levando no

    apenas a uma noo nova do que seja o som, mas tambm transformando profundamente o

    conceito tradicional de silncio. Na nova esttica, som silncio e silncio som.

    Silncio meio de expresso e recurso que tende a causar tenso em conseqncia da expectativa. No se restringe exclusivamente ausncia de som. A esttica contempornea abandona a distino tradicional entre som e silncio e o som no pode ser separado do espao vazio em que ocorre. Silncio tambm a sensao causada por monotonia, ndice alto de redundncia, reverberao, simplicidade, austeridade, delineamento, por exemplo. O silncio valoriza o som. Devemos us-lo para conscientizar o tempo e no apenas como elemento de articulao, como ocorreu a partir do classicismo. Msica deve ser silncio, em primeiro lugar. (KOELLREUTTER apud BRITO, 2001)

    Conforme Taborda, Fonterrada e El Haouli (1999), silncio, mais do que uma

    propriedade fsica, um estado da percepo, uma sensao psicoacstica de quietude,

    acionada por fatores externos e internos. O baixo nvel de intensidade sonora, prximo ao

    limiar de audio, pode induzir a percepo de silncio. Tambm podemos considerar

    silncio, sons que deixamos de ouvir por serem permanentes e redundantes como, no

    cotidiano, rudos de aparelhos, de circulao de pessoas, reao paradoxal da escuta diante do

    excesso de informaes sonoras. Em outras palavras, a incapacidade de extrair sentido de uma

    grande quantidade de informaes concentradas no tempo acaba provocando o mesmo

    desligamento da conscincia que a repetio ou a baixa intensidade provocam. O estado de

    silncio pode tambm surgir a partir de contextos musicais contnuos e repetitivos como

    mantras e msicas que provocam transe, levando o ouvinte a uma sensao de quietude.

    Baseados em Murray Schafer, Taborda et al. ainda colocam que o som transforma-se em

    silncio quando, por algum desses fatores, abstrado de nossa percepo e transportado do

    plano da conscincia para um fundo inconsciente. Nesse caso, nesse movimento da

    conscincia para a inconscincia, o som emerge e submerge na percepo, como uma pedra

    que a superfcie do mar oculta ou revela de acordo com o fluxo da mar.

    O silncio no ausncia de palavras. Impor o silncio no calar o interlocutor mas impedi-lo de sustentar outro discurso. Em condies dadas, fala-se para no

  • XXI Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica - Uberlndia - 2011

    dizer (ou no permitir que se digam) coisas que podem causar rupturas significativas em relao aos sentidos. [Nesse caso] As palavras vem carregadas de silncios. (ORLANDI, 1995, p.105)

    3. Os sentidos

    Assim como a sombra, que o silncio da luz, potencializa a definio, o relevo e

    o delineamento das formas, o silncio e o vazio influenciam na inteligibilidade do que est

    sendo comunicado.

    O silncio e o vazio so elementos no somente atuantes e determinantes da inteligibilidade, mas abrangem, ainda, em diversos nveis, os domnios semntico e estrutural, desde a constituio de uma linguagem, at a elaborao de um discurso. So elementos de expresso e linguagem que mais possuem funes e significados e so se suma importncia na articulao dos discursos em qualquer meio e suporte. [...] A inteligibilidade e a clareza dos discursos em qualquer meio ou suporte, depende do bom gerenciamento do silncio e do vazio... (MANNIS, 2009)

    Determinantes de clareza e definio, silncio e vazio esto na origem das

    articulaes, pois seus desdobramentos pausa, interrupo, separao, erupo ou extino

    abrupta ou suave aparecem j na base da estrutura da linguagem falada e escrita, induzindo

    a pontuao. Orlandi (1995, p.39) afirma que o silncio, mediando as relaes entre

    linguagem, mundo e pensamento, resiste presso de controle exercida pela urgncia da

    linguagem. O silncio significa e re-significa de outras formas, pois o silncio no

    transparente e ele atua na passagem (des-vo) entre pensamento-palavra-e-coisa.

    no vazio, ou na suspenso, que refletimos sobre o que j foi percebido.

    Enquanto os sons se empilham uns sobre os outros, o ouvinte permanece atento, em viglia,

    menos disponvel para refletir sobre o que acabou de ouvir.

    4. As mdias

    A programao nas mdias udio-visuais contemporneas quase nunca nos deixa

    um instante sequer de pausa. um fluxo permanente de imagens e sons, processados para

    superar diariamente a selva de informao ao redor das pessoas, em casa, no trabalho, nas

    ruas, nos meios de transporte, nos terminais de transporte pblico, ambientes coletivos

    (clinicas mdicas, shoppings centers, bares e restaurantes).

    Para romper o crculo vicioso preciso abandonar conceitos e padres viciados

    que acabaram reduzindo as mdias a uma sistemtica aprisionada em hbitos conformados a

    moldes automatizados e tecnicistas (El HAOULI, 2006). A tal ponto que a programao de

    uma rdio tecnicamente denominada de grade de programao. Triste priso! A presena

    do silncio na programao proporcionaria um espelho refletindo as impresses subjetivas de

  • XXI Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica - Uberlndia - 2011

    cada ouvinte sobre o contedo em via de assimilao. Questionar conceitos e hbitos, induzir

    reflexes e fazer os ouvintes experimentarem novas impresses esses parecem ser pontos de

    escape para essa mdia sonora. S com questionamentos dessa ordem que poderemos fazer

    um outro rdio um rdio que, como quer a compositora e radioartista canadense Hildegard

    Westerkamp:

    ao invs de nos entorpecer a capacidade de ouvir sons, nos fortalecesse a imaginao e a criatividade; ao invs de nos manipular para aceitar um trabalho mais rpido e um consumo maior, nos inspirasse a inventar; ao invs de nos sobrecarregar com informao irrelevante que nos fatiga, nos revigorasse a sensibilidade acstica; ao invs de nos conduzir a ignorar pensamentos e o que nos rodeia, nos estimulasse a ouvir; ao invs de transmitir sempre as mesmas coisas, no se repetisse; ao invs de nos silenciar, nos encorajasse a cantar e a falar, para fazer do rdio um pouco de ns mesmos; ao invs de meramente transmitir para ns, ouvssemos atravs dele. (WESTERKAMP, 1997)

    Enfim, um rdio que nos levasse a praticar as diferenas, o mundo que nos rodeia.

    Um ato que poderia abrir espaos sensveis e respirveis em nossa subjetividade.

    O silncio no fala, ele significa. pois intil traduzir o silncio em palavras; possvel no entanto compreender o sentido do silncio por mtodos de observao discursivos. (ORLANDI, 1995, p.105)

    Sob diversos aspectos, fazer rdio semelhante a compor msica.

    (WESTERKAMP, 1997) Essa afirmao aponta um caminho para repensarmos a

    programao de rdio enquanto um meio de expresso artstica. Como desenhar as

    programaes sonoras, musicais e jornalsticas no rdio? Como articular a programao? Qual

    o sentido de tempo, de ritmo? Como podem ser as vozes do rdio? Como reter as dimenses

    do silncio sob um fluxo de sons, de msicas e de palavras?

    ...voc no consegue deixar de procurar um sentido que talvez se oculte, no nos rudos isolados, mas no meio, nas pausas que os separam... (CALVINO, 1995 )

    5. A respirao

    O trnsito urbano no pra. Rudo de fundo e sons em primeiro plano esto

    equiparados em nvel sonoro. Os habitantes das cidades praticamente no percebem

    profundidade sonora, porque muitas vezes os sons ao seu redor cobrem o relevo das delicadas

    sonoridades distantes submetidas suave e natural filtragem do ar.

    A natureza sonora de ambientes urbanos se aproxima daquela prpria aos meios

    de comunicao: compresso sonora exacerbada esmagando tudo o que poderia existir num

    plano sonoro mais sutil ou distante. Todos esses sons compactados, empilhados, sobrepostos

  • XXI Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica - Uberlndia - 2011

    acabam diludos e integrados a uma massa sonora quase constante e uniforme, com pouco

    relevo. Tanto que quando nos encontramos mergulhados no sublime silncio de um jardim

    de mosteiro cisterciense podemos ficar extasiados como se estivssemos diante de uma

    epifania. Percebemos, ento, de forma mgica que esse silncio no um vcuo de sons, uma

    ausncia, mas, ao contrrio, nos abre uma projeo infinita.

    Eu no confundo a solido com a lira do deserto. A nuvem que nesta noite envolve sua orelha no neve adormecida, mas brumas tiradas da primavera. (CHAR, 1962).

    do vazio que vem aquilo que, no instante em que descoberto, nos parece j

    conhecido h muito tempo. diante do nada que se revela o que imprescindvel. em

    silncio que nossa mente se prepara para decidirmos sobre ns mesmos. A durao do silncio

    a exata distncia do recuo com o qual observamos o retorno de nossa prpria voz. pelo

    silncio que nos separamos de algo que habitualmente est sempre conosco. , antes de mais

    nada, pelo silncio que nos responde um orculo.

    O rudo permanente, persistente, ostensivo, provoca inibio da critica, do

    julgamento com distanciamento sobre o que est sendo decidido. Sob a agresso permanente

    de rudos as pessoas se limitam a seus hbitos automatizados, escolhendo apenas as opes

    para as quais foram condicionadas, e com as quais esto permanentemente em convvio.

    assustador pensar que raramente h lugares para estar em silncio, ou espaos

    vazios, aberturas para o nada. Rudos, motores, sinais de alerta, toques de aviso, dilogos

    entre interlocutores omissos, conversas metade, chamados incompreendidos, msicas

    passantes em blidos estrondosos, locues entusiasmadas, anncios se proclamando

    extraordinrios esto em todos lugares, calando o silncio. A pulso de comunicao no

    pode parar. O silncio banido e, com ele, a possibilidade de confronto das pessoas consigo

    mesmas, condenadas priso em seu prprio vazio, um vazio cheio de tudo.

    6. As perguntas

    Pouco se questiona sobre o ambiente sonoro e a escuta cotidiana. O que que de

    fato ouvimos, como ouvimos, para que ouvimos, por que ouvimos, at quando ouvimos, de

    que forma ouvimos. No pensamos na escuta do silncio, estar em silncio, entrar no silncio

    para re-ouvir o que foi escutado.

    Se nosso conhecimento estuda e aborda minuciosamente o som em todos seus

    mltiplos aspectos, o silncio por estranho que possa parecer, ainda permanece considerado

  • XXI Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica - Uberlndia - 2011

    como um anti-som. Quantos trabalhos acadmicos tem sido dedicados ao silncio e seus

    desdobramentos? Quantas disciplinas e linhas de pesquisa dedicam ateno ao silncio?

    Investigaes em histria da msica, tcnicas musicais, cincia e tecnologia aplicadas

    msica, psicoacstica, musicologia, educao musical, percepo musical, processos

    criativos, praticas interpretativas, abordam o silncio? H respeito pelo silncio?

    Sendo assim, com a exceo de tecnologias de silncio induzido, a questo prvia

    que se apresenta : por que, no espao cotidiano, nos mobilizamos to pouco para produzir

    silncios e acabamos nos dedicando mais a aes ruidosas?

    7. Au del

    O som tem por funo produzir, enfatizar, intensificar e conscientizar o silncio. No o silncio no sentido da no-existncia do som, mas no sentido de seijaku (), calma interior e equilbrio, como fundo originrio da vivncia espiritual, condio de ordenao e critrio de contedo e valor. (KOELLREUTTER, 1984)

    A utilizao irrestrita, equivocada e desenfreada de emissores sonoros leva ao

    desequilbrio do sistema ambiental. Na voraz disputa pela ateno de transeuntes,

    concorrentes bombardeiam estmulos se multiplicando e reverberando nos espaos coletivos:

    massa disforme de caoticidade sonora, num universo j saturado de emaranhados

    indiscernveis. Acabamos por experimentar novas espcies de surdez - fsicas, fisiolgicas,

    psicolgicas - pela falta de inteligibilidade acstica ou por escutas automatizadas, mecnicas,

    ansiosas, exasperadas, distradas, incompletas, desfocadas. Escutas que no respiram, que no

    pensam, que fogem do silncio. Escutas acrticas.

    Nos deslocamos, consumimos, comunicamos, por fim, vivemos em alta

    velocidade. Escutamos por amostragem tendo o comando de zapping como extenso do

    ouvido. Kronos e Kayros se confundem no fwd skip ch up down back rew. Imerso quase nula

    na escuta superficial. A forma percebida acaba como pudim moldado numa xcara. Perdemos

    outros mundos, perdemos a chance de um passeio colando nossos ouvidos ao ouvido de um

    compositor fazendo um tour pelo seu mundo sonoro. Nos ciceroneamos com nosso prprio

    controle remoto multi-botes. Os rumores e os espaos sonoros perdidos s poderiam ser

    percebidos de fato aps algumas dezenas de segundos a mais do que nosso timing permitiu.

    As vibraes do acontecido, no momento em que foi gravado, agora na audio nem tem

    chance de se soltarem dos sons propagados nossa volta. Estranhamos um espetculo real,

    sem skip nem back, tanto quanto uma escrita sem undo ou ctrl-z. Os sons no so mais que

    cascas, ou so essencialmente cascas, de cigarras transformadas?

  • XXI Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica - Uberlndia - 2011

    Msica arte somente quando nos faz esquecer o som e nos induz a um estado de equilbrio interior, se tornando silncio ativo (KOELLREUTTER, 1984)

    8. Referncias

    BRITO, Teca Alencar de. Koellreutter educador: O humano como objetivo da educao musical. So Paulo, Peirpolis, 2001.

    CALVINO, Italo. Um rei escuta. In: Sob o sol-jaguar. Trad. Nilson Moulin. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.

    CHAR, Ren. Lettera amorosa. In: La parole em archipel. Geneva: Edwin Engelberts, 1963

    DINOUART, Abb. Lart de se taire. (1771) Jrme Millon : Paris, 2000. (Petite collection atopia)

    EL HAOULI, Janete. El silencio como espacio de proyeccin. In: IV ENCUENTRO IBEROAMERICANO DE PAISAJES SONOROS, 2010, Mxico. El silencio como espacio de proyeccin. CONACULTA, Fonoteca Nacional de Mxico, 2010.

    _________. Ao redor de nossos ouvidos. In: Leitura e Viso de Mundo: Peas de um Quebra-Cabea. Org.: Lucinea Aparecida de Rezende Londrina: Atrito Art Editorial, p. 105 - 112, 2005.

    _________. O Rdio pensa ou s fala ? In: RUMOS MSICA: pensamentos & reflexes. Coordenao-geral: Ncleo de Msica. So Paulo: Ita Cultural, 2006.

    KOELLREUTTER, Hans Joachin. procura de um mundo sem vis--vis : reflexes estticas em torno das artes oriental e ocidental. So Paulo: Ed. Novas Metas, 1984

    MANNIS, J. A. Silencio e vazio. In: POLM!CA, Caderno Imagem (UERJ) Rio de Janeiro, Volume 8 (2) 2009.

    ORLANDI, E. P. As formas do silncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Ed. Unicamp, 1995.

    TABORDA, Tato; EL HAOULI, J.; FONTERRADA, Marisa. Escuta! A Paisagem sonora da cidade. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal do Meio Ambiente, 1999.

    WESTERKAMP, Hildegard. O Ambiente Sonoro no Rdio. In: Rdio Nova Constelaes da Radiofonia Contempornea, n. 2. Org. ZAREMBA, L.; BENTES, I. Rio de Janeiro: UFRJ, ECO, Publique, 1997.