ACP - audiência de custódia

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Ação Civil Pública ajuizada por Defensores Públicos Federais no Amazonas, pleiteando audiência de custódia para apresentação de réus presos em flagrante em prazo máximo de 24 horas

Citation preview

2 OFCIO CRIMINAL MANAUS/AM

EXCELENTSSIMO SENHOR JUIZ DA ________ VARA FEDERAL DE MANAUS DA SEO JUDICIRIA DO AMAZONAS

Processo de Assistncia Jurdica PAJ n. 2014/007-01190

A DEFENSORIA PBLICA DA UNIO, no uso de suas atribuies constitucional (art. 134, caput, da CF[footnoteRef:1]), institucional (art. 1, caput, c/ art. 3, VII, c/c art. 4, X, todos da LC 80/94) e legal (art. 5, II, da Lei 7347/85), vem, pelos Defensores Pblicos Federais que esta subscrevem[footnoteRef:2], ajuizar a presente [1: Destaque-se, j de incio, sem prejuzo de posterior ratificao mais clara, que a vocao da Defensoria Pblica para a tutela coletiva passou a ostentar, agora, status constitucional, eis que foi aprovada pelo Congresso Nacional uma PEC (de n. 243 na Cmara, e de n. 04 no Senado), a qual, j devidamente promulgada como a EC de n. 80, alterou o art. 134 do texto constitucional para nele dispor o seguinte: A Defensoria Pblica instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expresso e instrumento do regime democrtico, fundamentalmente, a orientao jurdica, a promoo dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5 da Constituio Federal.] [2: Alm dos Defensores que assinam esta petio ao final, registramos a imprescindvel interlocuo com diversos colegas de outros Estados, a exemplo de Isabel Machado (DPU/SP), Marcelo Bianchini (DPU/Cascavel), Ncolas Bortolon (DPU, Vitria), entre outros.]

AO CIVIL PBLICACOM PEDIDO DE ANTECIPAO DOS EFEITOS DA TUTELA

Em face da UNIO FEDERAL, pessoa jurdica de direito pblico, com representao na Av. Tef, n. 611, Bairro Praa 14 de Janeiro, Ed. Lus Higino de Sousa Netto, Manaus/AM, pelos fatos e fundamentos que se passa a expor.

1. A PRISO: PROTAGONISTA OU COADJUVANTE DA CENA PENAL?

Antes que justifiquemos, de forma objetiva em vista da sua obviedade constitucional/institucional/legal, a legitimidade da Defensoria Pblica para a tutela coletiva, parece-nos que cabe aqui, primeiro, iniciarmos por uma reflexo to importante e propagada quanto solenemente desconsiderada na prtica judicial brasileira: por que insistimos, mesmo diante de diagnsticos de sua insuficincia, de comprovao emprica das suas (drsticas) consequncias, enfim, diante de um arsenal de argumentos que conduzem sua excepcionalidade, por que, repita-se, ainda apostamos na priso? Por que a priso a protagonista, a atriz principal, e no a coadjuvante, da cena penal?

No pretendemos, nessa oportunidade, fazer uma incurso mais profunda sobre esse questionamento nem acreditamos, e que isso fique claro, que teramos alguma condio de viver em harmonia na sociedade atual sem nos socorrermos em determinados e restritos casos ao constrangimento de retirar, por algum tempo, uma pessoa do convvio social. FOUCAULT tem razo quando afirma, portanto, no sem lamentar, que Conhecem-se todos os inconvenientes da priso, e sabe-se que perigosa, quando no intil. E entretanto no vemos o que pr em seu lugar. Ela a detestvel soluo, de que no se pode abrir mo[footnoteRef:3]. [3: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 39 ed. Petrpolis/RJ: Vozes, 2011, p. 218.]

Se por um lado admitimos que estejamos condenados a conviver com a prtica do encarceramento, por outro, inevitvel assim concluir, fizemos e fazemos da priso o epicentro da prtica penal brasileira, o principal instrumento de conduo do jogo processual[footnoteRef:4], atitude esta que traz, certamente, efeitos nefastos no apenas para a integridade (psicolgica e muita das vezes fsica) do acusado, mas tambm para o pleno exerccio do direito de defesa, duramente atingido pela dificuldade natural que o cidado preso enfrenta para planejar o seu comportamento processual, delinear a estratgia probatria etc. [4: Sobre processo penal e teoria dos jogos, cf. ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 157: A partir da teoria dos jogos as medidas cautelares podem se configurar como mecanismos de presso cooperativa e/ou tticas de aniquilamento (simblico e real, dadas as condies em que so executadas). A mais violenta a priso cautelar. A priso do indiciado/acusado modalidade de guerra com ttica de aniquilao, uma vez que os movimentos da defesa estaro vinculados soltura.]

O fim precpuo desta ao civil pblica no eliminar o uso da priso cautelar, mas sim reclamar que se implemente algo para coibir o seu abuso.

Perdemos, no decorrer da histria, o pudor quando falamos de priso. Banalizamos. Chegamos, conforme anota CARNELUTTI, a um crculo vicioso, j que necessrio julgar para castigar, mas tambm castigar para julgar[footnoteRef:5]. O ato de encarcerar se tornou comum, um mero expediente a mais do sistema judicirio, um gesto que, somos levados a pensar, deve (sempre) estar presente no funcionamento do poder punitivo. Enganamo-nos voluntariamente e fingimos no perceber que a priso preventiva, adverte FERRAJOLI, tem se convertido no sinal mais evidente da crise da jurisdicionalidade, da tendncia de administrativizao do processo penal e, sobretudo, da sua degenerao num mecanismo diretamente punitivo[footnoteRef:6]. [5: CARNELUTTI, Francesco. Jurisprudencia Consolidada (o bien de la comodidad del juzgar). In: Cuestiones sobre el Proceso Penal. Traduccin de Santiago Sents Melendo. Buenos Aires: Librera el Foro, 1994, p. 36.] [6: FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razn Teora del Garantismo Penal. Traduccin de Perfecto Andrs Ibez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Boyn Mahino, Juan Terradillos Bosoca e Rocio Cantarero Bondrs. Madrid: Trotta, 2001, p. 770.]

O abuso da priso, isto , o encarceramento em massa e sem limites no Brasil, o que j passa da assombrosa cifra de mais de 500 mil presos[footnoteRef:7], inserindo o pas como o quarto colocado no ranking mundial em se tratando de populao carcerria[footnoteRef:8], contrastado com uma legislao razoavelmente garantista no tocante necessidade de se observar, primeiro, medidas cautelares diversas da priso, nos leva a concluir com ZAFFARONI que [7: Dados do DEPEN Departamento Penitencirio Nacional, do Ministrio da Justia, referncia 12/2012. Disponvel em: http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={D574E9CE-3C7D-437A-A5B6-22166AD2E896}&Team=&params=itemID={2627128E-D69E-45C6-8198-CAE6815E88D0};&UIPartUID={2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26} ] [8: Cf. Brasil tem 4 maior populao carcerria do mundo e deficit de 200 mil vagas: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/05/120529_presos_onu_lk.shtml. Acessado em 25/05/2014.]

O estado de polcia no est morto num estado de direito real, seno encapsulado em seu interior e na medida em que este se debilita o perfura e pode faz-lo estalar. O direito penal, ao conter o poder punitivo, refora o estado de direito. Quanto melhor contenha o estado de direito ao de polcia, mais perto estar do modelo ideal e vice e versa[footnoteRef:9]. [9: ZAFFARONI, Eugenio Raul. Estructura Bsica del Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar, 2009, p. 30-31. No mesmo sentido, KARAM: Embora mantidas as estruturas formais do Estado de direito, vai se reforando o Estado policial sobrevivente em seu interior, no sendo institudos espaos de suspenso de direitos fundamentais e de suas garantias, vai sendo afastada sua universalidade, acabando por fazer com que, no campo do controle social exercido atravs do sistema penal, a diferena entre democracias e Estados totalitrios se torne sempre mais tnue (KARAM, Maria Lcia. O Direito Defesa e a Paridade de Armas. In PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo. Processo Penal e Democracia: Estudos em Homenagem aos 20 anos da Constitucional da Repblica de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 398-399).]

Mas o qu, afinal de contas, nos cega e nos ensurdece diante de tanta clareza, diante de tanta urgncia em se conter o encarceramento em massa, de, em ltima instncia, salvar vidas?

Alm de no ser essa a ocasio oportuna para tamanha incurso por caminhos que talvez passassem pela criminologia, sociologia e at pela psicanlise, no nos sentimos confortveis para oferecer uma resposta correta, definitiva. Todavia, arriscamo-nos pelo menos a ver uma conexo com a ideia de que direitos e garantias fundamentais, quando assegurados na seara penal, so vistos como singelos benefcios individuais, regalias que se distanciam de um sistema penal que deve(ria) promover to somente a observncia irrestrita da lei e da ordem. Contrapem-se, assim, segundo o incentivado e propagado imaginrio coletivo, o cidado acusado, detentor de um direito individual a no ser tratado como objeto no processo, com a sociedade, vtima da criminalidade e portadora, ento, de um direito coletivo segurana, paz.

Tal discurso, que vai encontrar certa correspondncia na doutrina contratualista de ROUSSEAU, acaba por gerar na sociedade um clima constante de guerra contra o crime, no sendo de se espantar, hoje, a costumeira criao de varas judiciais de combate a determinado tipo de criminalidade. Quando o prprio Poder Judicirio, que deveria ser o maior garantidor dos direitos fundamentais, assume a condio de combatente, j no temos, infelizmente, para onde correr. Resta-nos insistir e, mais ainda, resistir, lutar contra tudo isso que a est. A lio da criminloga VERA ANDRADE pode auxiliar na compreenso deste fenmeno:

O paradigma punitivo da segurana da ordem (e contra a criminalidade) em detrimento da segurana dos direitos culminou, desta forma, por polarizar a sociedade entre potenciais infratores e potenciais vtimas, replicando nesta polarizao a desigualdade, a luta de classes e as assimetrias de gnero, raa e outras. Esse modelo, que pode com razo ser denominado por paradigma blico, tem a sustent-lo uma estrutura social, uma engenharia e uma cultura punitivas. Trata-se esta ltima instncia do plano simblico da reproduo punitiva, na qual se inserem discursos e prticas legais, doutrinas, poltico-criminais, gestionais etc[footnoteRef:10]. [10: ANDRADE, Vera Regina P. de. Pelas mos da criminologia: O controle penal para alm da (des)iluso. Florianpolis: Revan, 2012, p. 364 grifei.]

Sobre essa perigosa tendncia de polarizar e situar, de um lado, a sociedade, e de outro, o acusado, que culmina por sedimentar a ideia de um Direito Penal e de um Processo Penal do inimigo (algum a ser combatido, eliminado), WEBER MARTINS BATISTA j afirmava que No to-s por amor ao indivduo que se protege sua liberdade, mas porque esta garantia interessa sobretudo coletividade, um dos alicerces, e dos mais importantes, sobre que est organizada a sociedade no Estado liberal[footnoteRef:11]. [11: BATISTA, Weber Martins. Liberdade Provisria. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 71. No mesmo sentido, KARAM: As garantias que protegem a liberdade diante do violento, danoso e doloroso poder punitivo no so apenas garantias do indivduo que, em um determinado momento, est sendo acusado de um crime. No so garantias destinadas a proteger apenas a sua liberdade. So garantias de todos os indivduos. So garantias que visam proteger o direito fundamental de todos os indivduos liberdade (KARAM, Maria Lcia. O Direito Defesa e a Paridade de Armas. In PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo. Processo Penal e Democracia: Estudos em Homenagem aos 20 anos da Constitucional da Repblica de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 400).]

Parece ser um lugar comum, mas no custa repetir que viver num Estado Democrtico e de Direito tem o seu preo. Cedemos, inevitavelmente, parcela de nossa liberdade para no vivermos num regime ditatorial, de exceo. Isso no significa, porm, que a segurana seja um bem menor, mas apenas que ela no deve se sobrepor ao ideal de liberdade. HUNGRIA resume bem esse cenrio ao afirmar que se no possvel a felicidade dos homens num regime de excessiva liberdade, muito menos seria num regime de escravido, e conclui dizendo, com o que estamos de acordo, que Pior do que a lei da jungle a lei da senzala; pior que a livre ecloso dos instintos o entrave sistemtico expanso das tendncias e vocaes[footnoteRef:12]. [12: HUNGRIA, Nelson. Comentrios ao Cdigo Penal, volume I, tomo I. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 34, nota de rodap n. 7.]

Em cada palavra, pargrafo e linha deste pleito estar, como pano de fundo, o desejo de contribuir para um sistema penal mais humanizado, mais livre de preconceitos, de estigmas e, tambm, da burocracia[footnoteRef:13], que, silenciosamente, coisifica seres humanos e robotiza o funcionamento da Justia Criminal. [13: Interessante registrar, aqui, que ramos mais felizes quando supnhamos que um sistema de justia criminal injusto e arbitrrio era privilgio de regimes autoritrios. Pior que um sistema de justia criminal manipulado pelo arbtrio de um tirano aquele que j no injusto por vontade ou capricho de um nico homem, mas injusto por iniquidade sistemtica, annima, autista, de um sistema que insiste em girar em torno de si mesmo, mais preocupado com o caos burocrtico em que est mergulhado do que com os dramas dos homens e mulheres envolvidos nas demandas, compondo um terrvel quadro de metalinguagem institucional (Editorial O esforo de Ssfo e a audincia de custdia. IBCCrim Boletim n. 252, novembro/2013).]

2. DEFENSORIA PBLICA, LEGITIMIDADE PARA A TUTELA COLETIVA E PAPEL DA INSTITUIO NA PROMOO DOS DIREITOS HUMANOS NA ERA DO GRANDE ENCARCERAMENTO

A Defensoria Pblica no apenas (mais) uma instituio legitimada para a tutela coletiva, mas, sim, o refgio para a grande maioria dos grupos marginalizados, criminalizados e excludos do processo de emancipao social no pas, o ltimo suspiro de esperana para quem, na feliz expresso do Min. CELSO DE MELLO, tem direito a ter direitos, uma prerrogativa bsica, prossegue ele, que se qualifica como fator de viabilizao dos demais direitos e liberdades Direito essencial que assiste a qualquer pessoa, especialmente quelas que nada tm e de que tudo necessitam[footnoteRef:14]. [14: Voto na condio de Relator na ADI 2903, Plenrio, DJe 19/09/2008.]

No ser exagero, portanto, afirmar que, antes de legitimada, a Defensoria tambm , sobretudo, vocacionada para a tutela coletiva.

A tutela coletiva, de to importante que para a Defensoria Pblica, assume no seu regramento jurdico diversas acepes, sendo uma (i) incumbncia da instituio art. 1, caput, (i) uma funo institucional art. 4, VII, VIII, X e XI, e tambm, (iii) uma caracterstica da sua estrutura organizacional art. 15-A, caput; todos da Lei Complementar n. 80/94. No tocante previso normativa na principal legislao de regncia do microssistema de tutela coletiva brasileira, a omisso foi sanada com o advento da Lei 11448/2007, que fez incluir no art. 5, II, da Lei 7347/85, a Defensoria Pblica como legitimada para propor a ao principal e a ao cautelar. Sobre o tema, eis a lio de CMARA:

H, porm, um outro pblico-alvo para a Defensoria Pblica: as coletividades. que estas nem sempre esto organizadas (em associaes de classe ou sindicatos, por exemplo) e, com isso, tornam-se hipossuficientes na busca da tutela jurisdicional referente a interesses ou direitos transindividuais. Era preciso, ento, reconhecer a legitimidade ativa da Defensoria Pblica para a defesa de tais interesses. Negar tal legitimidade implicaria contrariar a ideia de que incumbe ao Estado (e a Defensoria Pblica , evidentemente, rgo do Estado) assegurar ampla e efetiva tutela jurisdicional a todos. Decorre, pois, essa legitimidade diretamente do disposto no art. 5, XXV, da Constituio da Repblica[footnoteRef:15]. [15: CMARA, Alexandre Freitas. Legitimidade da Defensoria Pblica para Ajuizar Ao Civil Pblica: um possvel primeiro pequeno passo em direo a uma grande reforma. In. A Defensoria Pblica e os Processos Coletivos Comemorando a Lei Federal 11.448/2007. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 46-47.]

A legitimidade da Defensoria para a tutela coletiva alou recentemente, ainda, como j anunciado na primeira nota de rodap, o status de norma constitucional, eis que foi aprovada pelo Congresso Nacional uma PEC (de n. 243 na Cmara, e de n. 04 no Senado), agora j devidamente cimentada na EC de n. 80, promulgada na data de ontem (04/06/2014), que altera o art. 134 do texto constitucional para nele dispor o seguinte: A Defensoria Pblica instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expresso e instrumento do regime democrtico, fundamentalmente, a orientao jurdica, a promoo dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5 da Constituio Federal.

J passa da hora, portanto, de se enterrar o debate corporativista[footnoteRef:16], de se adquirir, finalmente, maturidade para compreender que o (pleno) acesso justia requer mais parceria e menos desgaste entre as instituies, que as coletividades demandam uma rede de atores articulados em sua defesa, e no uma disputa de espao, de ateno. Infelizmente, a violao dos direitos transindividuais to frequente que se tem trabalho de sobra para todos. [16: Promulgada a EC 80, entendemos que perdeu o objeto a ADI 3943, ajuizada pelo CONAMP Associao Nacional dos membros do Ministrio Pblico, que discute justamente a constitucionalidade da atuao da Defensoria Pblica no mbito da tutela coletiva.]

Surge neste cenrio, portanto, de violao constante de direitos de grupos vulnerveis, a necessidade, segundo o magistrio de BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS, de a Defensoria Pblica, cada vez mais, desprender-se de um modelo marcadamente individualista de atuao[footnoteRef:17], e isso, acrescentamos, no em proveito do prestgio da prpria instituio, mas sim em benefcio daqueles que justificam a existncia da Defensoria: os hipossuficientes seja econmica, jurdica ou organizacionalmente. [17: SANTOS, Boaventura de Souza. Introduo sociologia da administrao da justia, Revista de Processo, So Paulo, n. 37, jan-mar. 1985, p. 150.]

Prosseguindo, no tocante identificao do grupo vulnervel/hipossuficiente que legitima a atuao da Defensoria na presente tutela coletiva, sequer preciso dizer muito, e isso por duas razes: primeiro, porque a acentuada maioria dos presos, no Brasil e no mundo, vm das camadas mais pobres da sociedade; e, segundo, ainda que assim no fosse, que eventualmente o sucesso desta pretenso beneficiasse algum cidado que foge do padro da Defensoria (como, de fato, beneficiar), dever-se-ia lembrar que, no processo penal, vige tambm a denominada hipossuficincia jurdica, a exigir o oferecimento do acesso justia, portanto, (tambm) quele com condies financeiras de contratar advogado, desde que permanea inerte[footnoteRef:18]. Em sentido semelhante, a lio de GRINOVER: [18: Nesse caso, advirta-se, haveria de se incidir, ao final do processo, a condenao ao pagamento de honorrios advocatcios em proveito do Fundo de Aparelhamento da Defensoria Pblica e destinado capacitao profissional de seus membros e servidores (art. 4, XXI, da LC 80/94).]

Assim, mesmo que se queira enquadrar as funes da Defensoria Pblica no campo da defesa dos necessitados e dos que comprovarem insuficincia de recursos, os conceitos indeterminados da Constituio autorizam o entendimento aderente ideia generosa do amplo acesso justia de que compete instituio a defesa dos necessitados do ponto de vista organizacional, abrangendo portanto os componentes de grupos, categorias ou classes de pessoas na tutela de seus interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogneos[footnoteRef:19]. [19: GRINOVER, Ada Pellegrini. Parecer solicitado pela ANADEP Associao Nacional dos Defensores Pblicos, para subsidiar defesa na ADI 3942, p. 14. Disponvel em: http://www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/4820/Documento10.pdf. ]

Sendo assim, a Defensoria, pertencendo ao denominado por RAMOS de arco pblico do sistema de justia[footnoteRef:20] criado pela Constituio de 1988, isto , Magistratura, Ministrio Pblico, Advocacia Pblica e Defensoria Pblica, desponta como instituio claramente legitimada para questionar judicialmente o que, conforme se ver adiante, classificamos como uma gravssima violao a uma norma prevista pelo Pacto de So Jos da Costa Rica (e tambm no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos), a qual, se observada, poderia contribuir diretamente para a reduo do encarceramento em massa no Brasil. [20: RAMOS, Andr de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. So Paulo: Saraiva, 2014, p. 450.]

Pois bem. Esclarecida a legitimidade da Defensoria, avanamos para abordar, brevemente, o papel da instituio na promoo (e tambm na efetivao) dos direitos humanos, expresso que aparece, na LC 80/94, (i) ora como incumbncia art. 1, caput, (ii) ora como objetivo art. 3-A, III, e (iii) ora como funo institucional art. 4, III e VI, o que demonstra, tambm aqui, a vocao da Defensoria e, por que no dizer, a ideologia da instituio voltada para, historicamente, atuar no front da batalha pelo respeito aos direitos humanos.

Tal reconhecimento, destacamos, foi objeto, recentemente, de duas Resolues editadas pela Organizao dos Estados Americanos (OEA), quais sejam, (i) a de n. 2656/2011, intitulada Garantias de acesso justia: o papel dos defensores pblicos oficiais, por meio da qual se enfatizou a importncia da Defensoria na defesa dos direitos fundamentais dos indivduos, assim como se recomendou aos pases-membros que considerem a possibilidade de criar a Defensoria Pblica Oficial (o denominado modelo brasileiro) em seus ordenamentos jurdicos; e tambm (ii) a de n. 2714/2012, que ressaltou a necessidade dos Estados americanos em assegurar o acesso justia e garantirem independncia e autonomia funcional Defensoria Pblica.

Ainda sobre esse ponto, e encontrando um link para efetivamente tratarmos do problema que ensejou a propositura desta ao civil pblica (a priso), destacamos que a ONU Organizao das Naes Unidas j apontou a falta de Defensores Pblicos entre as principais causas da superpopulao carcerria no Brasil, conforme noticiado a partir de concluso preliminar do Grupo de Trabalho sobre Deteno Arbitrria das Naes Unidas, quando de sua vinda ao nosso pas em maro/2013[footnoteRef:21]. [21: Cf. ONU aponta a falta de defensores pblicos entre as causas da superpopulao carcerria no Brasil: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/27389-onu-aponta-a-falta-de-defensores-publicos-entre-as-causas-da-superpopulacao-carceraria-no-brasil. ]

Intuitivo concluir, portanto, que a Defensoria Pblica talvez seja a instituio que mais de perto acompanha o problema prisional no Brasil, seja por estar sempre na trincheira (visitando presdios, atendendo a assistidos presos etc.), seja, tambm, por ter no seu DNA o gene da liberdade, que lhe d vida o bastante para no transitar indiferente ao que acontece intramuros.

Da mesma forma que existem vtimas deste grande encarceramento colocado em marcha, talvez, a partir da dcada de 90 do sculo passado (notadamente pela instaurao de uma nova poltica-criminal advinda com a Lei dos Crimes Hediondos), h, tambm, certamente os culpados. Vale citar, aqui, a contundente advertncia de CARVALHO:

A responsabilidade pela densificao do punitivismo e pela criao do imenso contingente de pessoas presas dos atores que do vida diariamente ao sistema punitivo. A responsabilidade da imposio gtica de sofrimento em nosso sistema carcerrio da prpria estrutura punitiva e dos seus discursos relegitimantes, que promovem e fomentam sua utilidade como mecanismo imprescindvel de controle social. A composio desses ingredientes possibilita aos sistemas de punio alta capacidade de reinveno, fazendo com que a imposio superlativa de sofrimento seja constante, independente da criao de espaos de liberdade[footnoteRef:22]. [22: CARVALHO, Salo de. Substitutivos Penais na era do Grande Encarceramento. In: Criminologia e Sistemas Jurdico-Penais Contemporneos II, p. 166. Acessvel em: http://www.academia.edu/2758949/Substitutivos_Penais_na_Era_do_Grande_Encarceramento ]

A partir de agora, ento, se adentra efetivamente no objeto desta tutela coletiva, cobrando do Poder Judicirio apenas a concretizao de um direito previsto em Tratados Internacionais de Direitos Humanos que o Brasil voluntariamente aderiu.

3. AUDINCIA DE CUSTDIA: PREVISO NORMATIVA, CONCEITO, VANTAGENS E IMPLEMENTAO NO BRASIL

Relutamos ao novo como se o velho sempre nos bastasse, mas nos consideramos ps-modernos, atuais. Perdemos, frequentemente, a oportunidade de nos anteciparmos a eventos desastrosos, a consequncias que futuramente nos envergonharo diante de ns mesmos, mas nos consideramos uma sociedade precavida, segura em determinada medida. A verdade, porm, que s aprendemos com o trauma, que optamos por juntar pedaos de vida ao invs de simplesmente preserv-las (infelizmente, acontecimentos recentes em Pedrinhas/Maranho impedem que tal figura seja apenas uma metfora).

Para ficarmos com apenas um exemplo, que ilustra bem esse cenrio de dependermos, sempre, de uma alterao legislativa para perceber o tom constitucional de determinada garantia, basta lembrarmos que foi preciso, em 2003, especificar no CPP, atravs da Lei 10792, que o interrogatrio judicial deve ser feito com a presena da defesa tcnica. Ou seja, a Constituio, que garante o contraditrio, a ampla defesa e o devido processo legal, no bastava; precisvamos desenhar no CPP.

Tal expediente se repete com a audincia de custdia, uma ilustre desconhecida no apenas da prtica judicial brasileira, mas tambm, lamentavelmente, de grande parcela da doutrina.

Falemos, inicialmente, de sua previso normativa. Dispe o art. 7, 5, da Conveno Americana de Direitos Humanos (tambm denominado de Pacto de So Jos da Costa Rica), que Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, presena de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funes judiciais (...). No mesmo sentido, assegura o art. 9, 3, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos, que Qualquer pessoa presa ou encerrada em virtude de infrao penal dever ser conduzida, sem demora, presena do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funes (...).

O Brasil aderiu Conveno Americana em 1992, tendo-a promulgada, aqui, pelo Decreto n. 678, em 6 de novembro daquele ano. Igualmente, nosso pas, aps ter aderido aos termos do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos (PIDCP) naquele mesmo ano, o promulgou pelo Decreto n. 592. Passados, ento, mais de vinte anos da incorporao ao ordenamento jurdico interno do teor dos citados diplomas internacionais de direitos humanos, por que a relutncia em cumpri-los?

No h nenhuma dificuldade em se identificar o que significa e quais so os propsitos da audincia de custdia. Trata-se simplesmente de assegurar uma aproximao entre julgador e investigado, mediada pelo contraditrio que garantido com a presena do Ministrio Pblico e da defesa, fazendo-se da ocasio o ambiente propcio para, primeiro, evitar e eventualmente fazer cessar atos de tortura ou maus tratos provocados no investigado, e, segundo, promover-se um espao democrtico de discusso acerca da legalidade e da necessidade da priso.

V-se, portanto, que o expediente, conforme anota WEIS, aumenta o poder e a responsabilidade dos juzes, promotores e defensores de exigir que os demais elos do sistema de justia criminal passem a trabalhar em padres de legalidade e eficincia[footnoteRef:23]. O que se verifica, hoje, que um encontro entre o investigado com os demais atores da cena penal (juiz, MP e defesa) acaba sendo realizado, notadamente aps a Lei 11719/2008, que transferiu o interrogatrio para o ltimo ato da instruo (art. 400, caput, do CPP), somente ao final do processo, em muitos casos, ento, aps meses ou qui anos da sua priso. nesse sentido que LOPES JR. afirma que o juiz no tem contato com o cidado preso e, se decretar a priso preventiva, somente ir ouvi-lo no interrogatrio muitos meses (s vezes anos) depois, pois agora o interrogatrio o ltimo ato do procedimento[footnoteRef:24]. [23: WEIS, Carlos. Trazendo a realidade para o mundo do direito. Informativo Rede Justia Criminal. Edio 05, ano 03/2013. Acessvel em: http://www.iddd.org.br/Boletim_AudienciaCustodia_RedeJusticaCriminal.pdf] [24: LOPES JR., Aury. Imediata apresentao do preso em flagrante ao juiz: uma necessidade imposta pela evoluo civilizatria do Processo Penal. Informativo Rede Justia Criminal. Edo 05, ano 03/2013. Acessvel em: http://www.iddd.org.br/Boletim_AudienciaCustodia_RedeJusticaCriminal.pdf]

As vantagens da audincia de custdia so vrias, a comear pela mais bsica e de natureza formal: adaptar o processo penal brasileiro Conveno Americana de Direitos Humanos[footnoteRef:25]. Dela prosseguimos, j, para a mais efetiva e de natureza material: promover um controle imediato da legalidade, necessidade e adequao da priso, sem prejuzo, claro, como j dissemos, de se apurar ou fazer cessar a prtica de tortura ou maus tratos no investigado[footnoteRef:26]. Tal controle, afirmam BOTELHO e FINGERMANN, com os quais estamos de pleno acordo, representaria, sem dvida, uma fora eficiente de combater a superlotao carcerria que assola o pas, sem perder de vista que a odiosa poltica de encarceramento em massa atinge com muito mais fora a camada mais pobre e marginalizada da populao brasileira[footnoteRef:27]. [25: Cf., sobre esse ponto, CHOUKR, Fauzi Hassan. PL 554/2011 e a necessria (e lenta) adaptao do processo penal brasileiro conveno americana de direitos do homem. In: IBCCrim, Boletim n. 254 Janeiro/2014.] [26: Nesse sentido, j decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos que a audincia de custdia representa um meio de controle idneo para evitar as capturas arbitrrias e ilegais. O controle judicial imediato uma medida tendente a evitar a arbitrariedade ou ilegalidade das detenes, tomando em conta que num Estado de Direito corresponde ao julgador garantir os direitos do detido, autorizar a adoo de medidas cautelares ou de coero quando seja estritamente necessrio e procurar, em geral, que se trate o no culpado de maneira coerente com a presuno de inocncia (Corte IDH. Caso Acosta Caldern Vs. Equador. Sentena de 24/06/2005 traduo livre).] [27: BOTELHO, Augusto de Arruda; FINGERMANN, Isadora. Audincia de Custdia: uma necessria e premente inovao legislativa. Disponvel em: http://www.iddd.org.br/Noticias.aspx?Id=578 ]

Valemo-nos aqui, ainda, para melhor ilustrar o quanto a audincia de custdia poderia revolucionar a prtica penal brasileira, das dez razes enumeradas no Informativo Rede Justia Criminal, produzido por organizaes de notvel atuao na defesa de direitos humanos: Associao pela Reforma Prisional (ARP), Conectas Direitos Humanos, Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), Instituto Sou da Paz, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), Justia Global e Pastoral Carcerria Nacional. Vejamo-las:

1. A Conveno Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), ratificada pelo Brasil em 1992, dispe que toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, presena de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funes judiciais (art. 7);2. A apresentao da pessoa presa em juzo no prazo de 24 horas a maneira mais clere de garantir que a priso ilegal ser imediatamente relaxada e que ningum ser levado priso ou nela mantido se a lei admitir a liberdade (garantias constitucionais previstas no art. 5, LXV e LXVI, respectivamente);3. A audincia de custdia servir para que o juiz i) analise a legalidade e necessidade da priso e ii) verifique eventuais maus tratos ao preso havidos at ali, podendo determinar a imediata apurao de qualquer abuso que venha a tomar conhecimento. No que diz respeito ao controle da legalidade da priso, poder o juiz no momento da audincia de custdia: i) relaxar a priso em flagrante ilegal; ii) decretar a priso preventiva ou outra medida cautelar alternativa priso; iii) manter solta a pessoa suspeita da prtica de determinado delito, se verificar ausentes os pressupostos de cautelaridade previstos no artigo 312 do CPP;4. A previso da ordem dos atos nesta audincia (Ministrio Pblico requer a medida cautelar que entender adequada e necessria, a Defesa contra-argumenta e o Juiz decide) a expresso do princpio constitucional do contraditrio (art. 5, LV, CF), com a garantia inerente de que a defesa deve sempre manifestar-se depois da acusao;5. O depoimento prestado nessa audincia deve ser autuado em apartado para que no seja manuseado no curso da instruo criminal e com isso no contamine a prova a ser produzida e discutida no futuro, garantindo, portanto, que seu contedo no seja utilizado em prejuzo do acusado em futura ao penal;6. A autuao em apartado do depoimento e a proibio de que se inquira o preso sobre pontos atinentes ao mrito da imputao evitam que os avanos da Lei n 11.719/2008 que alterou a ordem dos atos no processo penal, garantindo que o interrogatrio do acusado seja o ltimo ato da instruo criminal, em conformidade com o princpio do contraditrio (art. 5, LV, CF) , se esvaiam com a adoo da audincia de custdia;7. A obrigatoriedade para que dessa audincia participe o representante do Ministrio Pblico e o advogado/defensor pblico a garantia de que a lei no contrarie a garantia constitucional de assistncia de um advogado (art. 5, LXIII),bem como o contraditrio e a ampla defesa (art. 5, LV);8. A audincia de custdia representa para o Estado um instrumento eficiente e gil para a obteno e verificao de informaes precisas sobre os procedimentos policiais, evitando que maus tratos e prticas de extorses continuem a ocorrer impunemente;9. O controle imediato da legalidade, necessidade e adequao de medida extrema que a priso cautelar ser uma forma eficiente de combater a superlotao carcerria, sempre tendo em conta que a excessiva poltica de encarceramento em massa atinge com muito mais fora a camada mais pobre e marginalizada da populao brasileira;10. A apresentao imediata da pessoa presa ao juiz o meio de garantir que um cidado passe o menor tempo possvel preso desnecessariamente, ainda que no possua advogado constitudo, circunstncia que caracteriza a maior parcela da populao prisional[footnoteRef:28]. [28: INFORMATIVO REDE JUSTIA CRIMINAL, Edio 05, ano 03, 2013. Disponvel em: http://redejusticacriminal.files.wordpress.com/2013/07/rjc-boletim05-aud-custodia-2013.pdf ]

Identificada a previso normativa, apresentado um conceito e esmiuadas as muitas vantagens da audincia de custdia, resta abordarmos a sua implementao no processo penal brasileiro, preocupao que j chegou, advirta-se, ao Supremo Tribunal Federal, tendo o Min. GILMAR MENDES, em caso emblemtico de abuso da priso cautelar, provocado o colegiado a refletir se no deveriam comear a exigir, talvez, aquilo que est j na Conveno Interamericana de Direitos Humanos: a observncia da apresentao do preso ao juiz[footnoteRef:29]. [29: Voto no HC 119095, 2 Turma, DJe 08/04/2014. No mesmo sentido, manifestou-se o Min. quando entrevistado pelo CONJUR, defendendo a necessidade de que haja, pelo menos onde isso for possvel, a apresentao imediata do preso ao juiz, como forma de evitar o abuso das prises provisrias. Isso est na Conveno Interamericana de Direitos Humanos e uma prtica comum em vrios modelos constitucionais. Acessvel em: http://www.conjur.com.br/2013-jul-07/entrevista-gilmar-mendes-ministro-supremo-tribunal-federal ]

Pois bem. A obviedade da implementao da audincia de custdia na nossa prtica judicial dispensa que avancemos em demasia para explic-la, porquanto o referido direito decorre de expressa previso contida em diplomas internacionais de direitos humanos, os quais o Brasil voluntariamente aderiu (referimo-nos, como j detalhado, ao PIDCP e CADH). Assim, ademais, quando o art. 5, 1, da CF, estabelece que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tm aplicao imediata, tal comando certamente abriga, conforme a lio de RAMOS, os direitos previstos nos tratados de direitos humanos[footnoteRef:30], e isso porque foi a prpria CF, no mesmo artigo, porm, no 2, que se adiantou para prever que Os direitos e garantias expressos nesta Constituio no excluem outros decorrentes do regime por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a Repblica Federativa do Brasil seja parte. [30: RAMOS, Andr de Carvalho. Curso de Direitos Humanos, p. 398.]

De qualquer forma, a fim de se evitar futuras interpretaes que dificultem a efetivao da audincia de custdia no Brasil, rebatemos, nos tpicos seguintes, dois supostos problemas que adiariam a implementao daquela, e, depois, conclumos pela anlise da insuficincia normativa do art. 306, 1, do CPP, assim como avanamos, ao final, para precisar o que se deve entender pela expresso sem demora.

3.1. A IMPLEMENTAO DA AUDINCIA DE CUSTDIA NO DEPENDE DE REGULAMENTAO NORMATIVA INTERNA

A afirmativa lanada no ttulo deste tpico somente pode estar correta, pois, do contrrio, a adeso dos pases a Tratados Internacionais de Direitos Humanos seria um expediente meramente protocolar, poltico no sentido negativo da palavra.

Os Estados-membros (seja do Sistema Interamericano, de onde provm o PSJCR, seja do Sistema Global, que abriga o PIDCP ambos prevendo o direito audincia de custdia) tm o dever de promover o ajuste do Direito interno para garantir a efetividade de direitos humanos previstos nos Tratados, prevendo o PSJCR, nesse sentido, que Se o exerccio dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda no estiver garantido por disposies legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposies desta Conveno, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessrias para tornar efetivos tais direitos e liberdades (art. 2).

Fazemos o oportuno registro, nessa ocasio, de que tramita no Senado o importante Projeto de Lei n. 554/2011[footnoteRef:31], de autoria do Senador Antnio Carlos Valadares, Projeto que recebeu, depois, um texto substitutivo do Senador Joo Capiberibe, o qual j foi aprovado por unanimidade pelas Comisses de Direitos Humanos e Assuntos Econmicos do Senado Federal, aguardando, agora, desde 29/01/2014, relatrio do Senador Humberto Costa, relator na matria na Comisso de Constituio e Justia do SF. Dispe esse PL o seguinte: [31: Para anlise da tramitao, cf. http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=102115 ]

Art. 306. 1 No prazo mximo de vinte e quatro horas aps a priso em flagrante, o preso ser conduzido presena do juiz para ser ouvido, com vistas s medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se esto sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade policial tomar as medidas cabveis para preserv-los e para apurar eventual violao. 2 Na audincia de custdia de que trata o pargrafo 1, o Juiz ouvir o Ministrio Pblico, que poder, caso entenda necessria, requerer a priso preventiva ou outra medida cautelar alternativa priso, em seguida ouvir o preso e, aps manifestao da defesa tcnica, decidir fundamentadamente, nos termos do art. 310. 3 A oitiva a que se refere pargrafo anterior ser registrada em autos apartados, no poder ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versar, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da priso; a preveno da ocorrncia de tortura ou de maus tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado. 4 A apresentao do preso em juzo dever ser acompanhada do auto de priso em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da priso, o nome do condutor e os nomes das testemunhas. 5 A oitiva do preso em juzo sempre se dar na presena de seu advogado, ou, se no o tiver ou no o indicar, na de Defensor Pblico, e na do membro do Ministrio Pblico, que podero inquirir o preso sobre os temas previstos no pargrafo 3, bem como se manifestar previamente deciso judicial de que trata o art. 310 deste Cdigo.

Trata-se, indiscutivelmente, de um PL com potencial para revolucionar o sistema de justia criminal brasileiro, que regula, de forma tcnica e precisa, a audincia de custdia no ordenamento jurdico interno. Todavia, enquanto permanecer a omisso legislativa, a Conveno Americana de Direitos Humanos e tambm o PIDCP devem ser cumpridos, ainda que o Poder Judicirio deva exercer certa criatividade na consolidao prtica do instituto, o que, diga-se de passagem, no representa nenhuma novidade para a jurisdio constitucional no Brasil, acostumada, notadamente nos ltimos anos, a suprir e complementar as lacunas deixadas pelo legislador.

3.2. RAZES DE NATUREZA ESTRUTURAL E LIMITAES DE RECURSOS NO PODEM INVIABILIZAR A AUDINCIA DE CUSTDIA NO BRASIL

Permitindo-nos novamente sermos breves, o Estado que se mobiliza para prender, para arquitetar mega operaes, enfim, para exercer o poder punitivo e manobrar a persecuo penal, deve, tambm, se mobilizar para garantir direitos humanos, a exemplo da audincia de custdia. No h que se falar, aqui, numa suposta reserva do possvel, que o Estado no conseguiria apresentar o preso sem demora presena do juiz etc., e isso por uma razo singela: os Tratados de Direitos Humanos que preveem a audincia de custdia no fazem concesses, mas simplesmente estabelecem essa obrigao.

3.3. A INSUFICINCIA DO ART. 306, 1, do CPP, E O QUE SE DEVE ENTENDER POR SEM DEMORA

O art. 306, 1, do CPP, dispe que Em at 24 (vinte e quatro) horas aps a realizao da priso, ser encaminhado ao juiz competente o auto de priso em flagrante e, caso o autuado no informe o nome do seu advogado, cpia integral para a Defensoria Pblica. Perceba-se, ento, que o ordenamento jurdico interno determina o traslado do papel (APF) ao juiz, violando gravemente a CADH e o PIDCP, que asseguram a conduo da pessoa presa. Um mero recurso interpretao evolutiva dos direitos humanos e tambm ao princpio pro homine j evidenciaria o quanto o CPP (na sua redao atual) foi superado pela CADH[footnoteRef:32]. [32: Destacamos, aqui, o entendimento firmado pelo STF a respeito da natureza supralegal da CADH/PSJCR, conforme decidido no julgamento do RE 466343/SP, o que deve implicar na sua prevalncia quando em conflito com o CPP, a ensejar, portanto, na concluso de que estamos diante de clara interpretao evolutiva das garantias processuais do flagrante. ]

Assimilando perfeitamente essa insuficincia normativa, a Corte Interamericana de Direitos Humanos assim j se manifestou:

Em primeiro lugar, os termos da garantia estabelecida no artigo 7.5 da Conveno so claros quanto a que a pessoa detida deve ser levada sem demora ante um juiz ou autoridade judicial competente, conforme os princpios de controle judicial e imediao processual. Isso essencial para a proteo do direito liberdade pessoal e para outorgar proteo a outros direitos, como vida e integridade pessoal. O simples conhecimento por parte do juiz de que uma pessoa est detida no satisfaz essa garantia, j que o detido deve comparecer pessoalmente e apresentar sua declarao ante o juiz ou autoridade competente[footnoteRef:33]. [33: Corte IDH. Caso Acosta Caldern Vs. Equador. Sentena de 24/06/2005 traduo livre e destaque no constante no original.]

Logo, conclui-se que o CPP est em desconformidade com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, no resistindo, portanto, a um controle de convencionalidade, de modo que a sua insuficincia normativa, ainda espera da aprovao do PLS 554/2011, no pode impedir nem inviabilizar o gozo do direito audincia de custdia.

Por fim, no tocante expresso sem demora prevista tanto na CADH quanto no PIDCP, prope-se que seja ela compreendida em no mximo vinte e quatro horas aps a priso, sempre partindo-se do termo inicial da priso em flagrante. No se trata de critrio arbitrariamente ou aleatoriamente escolhido, mas sim, primeiro, de interpretao lgica e proporcional do tempo j previsto no art. 306, 1, do CPP, e tambm no PLS 554/2011, e, segundo, de concluso obtida a partir de precedentes da Corte IDH, que, por exemplo, j responsabilizou o Mxico por ter conduzido um cidado preso presena do juiz somente cinco dias aps a priso, assentando, na oportunidade, que a expresso sem demora prevista na CADH foi claramente violada[footnoteRef:34], e tambm de orientao da Comisso IDH, que j qualificou como excessivamente dilatado o prazo de sete dias para a apresentao do preso ante o juiz[footnoteRef:35]. [34: Cf. Corte IDH. Caso Cabrera y Montiel Flores Vs. Mxico, sentena de 26/11/2010.] [35: Cf. Informe sobre Cuba, 1983, citado por NORES, Jos I. Cafferata Nores. Proceso Penal y derechos humanos. Buenos Aires: Del Puerto, 2000, p. 196.]

4. O EFEITO NACIONAL DO PROVIMENTO

O art. 16 da Lei 7347/85, com redao dada pela Lei 9494/97, limitou a competncia do juiz de primeira instncia para julgamento das aes civis pblicas, estabelecendo que "a sentena civil far coisa julgada erga omnes, nos limites da competncia territorial do rgo prolator (...)". O art. 2-A da ltima Lei citada prescreve que A sentena civil prolatada em ao de carter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abranger apenas os substitudos que tenham, na data da propositura da ao, domiclio no mbito da competncia territorial do rgo prolator.

No entanto, a limitao territorial aos limites subjetivos da coisa julgada no pode ser aplicada s aes coletivas. Ao restringir a abrangncia dos efeitos da sentena de procedncia proferida em ao civil pblica aos limites da competncia territorial do rgo prolator, a Lei 9494/97 confundiu os limites subjetivos da coisa julgada erga omnes com os da jurisdio e da competncia, que nada tem a ver com o tema.

A interpretao literal e equivocada do dispositivo aludido significa que, se diversos atos iguais ou semelhantes, que produzem idnticos efeitos, so praticados em vrios Estados ou Municpios, a competncia deve ser dos vrios juzes, cada um competente em relao aos atos praticados e danos sofridos na sua comarca (Justia Estadual) ou subseo judiciria (Justia Federal). Assim, no poderia ser admitido que ocorra a extenso da competncia de qualquer juiz, para que a sua sentena proferida erga omnes alcance os rus em todo o territrio nacional.

Dessa forma, a deciso do juiz na ao civil coletiva ficaria restrita aos limites territoriais de sua competncia, no podendo abranger todo o territrio nacional/estadual ou outro, no integrante de sua jurisdio. Todavia, a norma aludida no pode assim ser interpretada.

Neste sentido cabe transcrever as elucidaes de Leonel Ricardo Barros:

A necessidade de reconhecimento de maior extenso aos efeitos da sentena coletiva consequncia da indivisibilidade dos interesses tutelados (material ou processual [no caso especfico dos direito individuais]), tornando impossvel cindir os efeitos da deciso judicial, pois a leso a um interessado implica leso a todo, e o proveito a um a todos beneficia. a indivisibilidade do objeto que determina a extenso dos efeitos do julgado a quem no foi parte no sentido processual, mas figura como titular dos interesses em conflito[footnoteRef:36]. [36: LEONEL, Ricardo Barros. Manual do processo coletivo. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 259.]

Neste sentido, j decidiram o TRF da 4 Regio[footnoteRef:37] e tambm o Superior Tribunal de Justia[footnoteRef:38]. Entendimento contrrio desvirtuaria o principal fim da tutela coletiva, qual seja, o de beneficiar grupos, que no precisam, necessariamente, estarem todos em determinado local do territrio do pas. Alm disso, a no concesso do efeito nacional do provimento implicaria, ainda, em gravssima ofensa ao princpio da igualdade, pois teramos, nessa hiptese, duas classes de cidados: aqueles que residem no local onde a demanda foi ajuizada e, portanto, beneficiados com eventual xito do pedido, e aqueles de outras localidades, sem acesso ao provimento judicial. [37: Cf. AG 2006.04.00.026331-1/SC, Rel. Min. Ricardo Teixeira do Valle Pereira, DJU 01/11/2006.] [38: Cf. REsp 1243887, Corte Especial, rel. min. Luis Felipe Salomo, DJe 12/12/2011.]

Ademais, a Unio, que aqui ocupa o polo passivo da demanda, a mesma Unio presente nos demais Estados da federao.

A Justia Federal do Estado do Amazonas tem, aqui, uma chance singular de nacionalizar um provimento que far cessar mais de vinte anos de descumprimento da CADH e do PIDCP, uma oportunidade, talvez, para mostrar que a regio Norte no abriga somente um dos piores IDHs do pas ou a cifra mais elevada de presos provisrios, mas que um celeiro, tambm, de profissionais dispostos a promover e efetivar direitos humanos.

5. PEDIDO DE ANTECIPAO DOS EFEITOS DA TUTELA

Os requisitos exigidos pelo art. 273 do CPC permeiam toda a exposio feita. A prova , sem dvida, inequvoca: uma grave violao de direitos humanos e um desrespeito a Tratados Internacionais que o Brasil aderiu. A alegao, idem, no todo verossimilhante. O fundado receio de dano irreparvel ou de difcil reparao se afigura como inerente circunstncia de estarmos falando, aqui, de priso, liberdade e direitos humanos. Em sendo assim, preenchidos os requisitos, espera-se seja concedida a antecipao da tutela.

6. PEDIDOS:

Diante do exposto, requer-se:

I O recebimento desta inicial, reconhecendo-se desde j a abrangncia nacional do provimento;

II A intimao pessoal da Defensoria Pblica da Unio, de todos os atos processuais e prazos processuais em dobro, nos termos do art. 44, I, da LC 80/94;

III A antecipao dos efeitos da tutela, com fulcro no art. 273 do CPC, para que se determine o imediato cumprimento da CADH (art. 7, 5) e do PIDC (9, 3), obrigando-se a Unio a viabilizar a realizao da audincia de custdia para todos os presos em flagrante, com a conduo, no prazo mximo de 24 (vinte e quatro) horas, do preso presena do juiz, com prvia intimao para o Ministrio Pblico e para a defesa;

IV A aplicao de multa diria para o caso de descumprimento do item anterior, em valor a ser fixado por Vossa Excelncia, considerando-se, na dosagem, um quantum que desestimule a violao;

V A citao da Unio para, querendo, apresentar contestao no prazo legal, sob pena de revelia;

VI A intimao do Ministrio Pblico Federal, nos termos do art. 5, 1, da LACP);

VII A procedncia, ao final, do pedido, a fim de que se determine o imediato cumprimento da CADH (art. 7, 5) e do PIDC (9, 3), obrigando-se a Unio a viabilizar a realizao da audincia de custdia para todos os presos em flagrante, com a conduo, no prazo mximo de 24 (vinte e quatro) horas, do preso presena do juiz, com prvia intimao para o Ministrio Pblico e para a defesa;

VIII Que seja apreciado o pleito em conformidade com as normas legais e constitucionais, mas tambm internacionais de direitos humanos, assegurando-se, desta forma, prequestionamento para eventual acesso aos Tribunais Superiores ou Internacionais de Direitos Humanos;

IX A juntada de precedente do TRF da 2 Regio, que, recentemente, em 20/05/2014, determinou a realizao da audincia de custdia.

D-se causa o valor simblico de R$ 1.000,00.

Manaus, 5 de junho de 2014.

Caio Cezar de Figueiredo PaivaDefensor Pblico Federal

Augusto Queiroz de PaulaDefensor Pblico Federal

Edilson Santana Gonalves FilhoDefensor Pblico FederalManaus/AM, Av. Airo, n 671, Centro - CEP 69.025-005 Telefone: (92) 3133-1600Pgina 2 de 27