Acupuntura urbana

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Os coreanos em Nova York

Nem sempre acupuntura urbana se traduz em obras. Em alguns casos, a introducto de um novo costume, um novo hbito, que cria condenes positivas para a transformado. Muitas vezes urna intervenc.o humana, sem planejamento ou sem a realizaco de urna obra material, acaba se tornando urna acupuntura. Costumo dizer que Nova York deveria erguer um monumento ao coreano desconhecido. Os integrantes deste povo prestam um servio extraordinario cidade com suas grocery stores, suas de// stores, abertas 24 horas. Estas lojas garantem nao so o abastecimento, mas tambm levam anima-930 a qualquer canto da cidade. Tem gente, luz, as pessoas se encontram quando vo fazer suas pequeas compras. Isso tudo gera mais seguranza para o local. Alm disso, funcionando ininterruptamente, as lojas estabelecem urna referencia importante na

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cidade. Por sso, esses coreanos desconheddos e seus pequeos comercios ajudam a fazer urna boa acupuntura urbana em Nova York. Melhor do que qualquer programa de animado cultural poderla fazer. Muitos destes pontos hoje presentes em Nova York lembram o que representava para Pars o mercado de Les Halles de madrugada. Durante dcadas ele fo o cora^o da cidade, fazendo pulsar a vida de varias geracoes. Ou lembram os mercados que funcionam a noite inteira em varias cida-des do mundo. Ainda em Pars, na ru de Seine com a ru de Bucci, urna pequea feira urna tra-di?o que o tempo nao apaga. Exemplos orientis tambm nao faltam, como o mercado de peixe de Tquio e sua atividade febril muito antes de o sol nascer. Sao lances acontecen-do na venda de polvos mensos, arralas gigantes, numa reunio de pessoas empolgadas e entregues tarefa de fazer acontecer o dia que se aproxima. Tambm costumo dizer que toda essa gente que trabalha de madrugada forma urna equipe de atendentes de urna cidade que nao pode parar de respirar. Eles constituem a verdadeira Unidade de Terapia Intensiva da cidade.

O Velho Cinema Novo

fundamental que urna boa acupuntura urbana promova a manuten9o ou o resgate da identida-de cultural de um local ou de urna comunidade. Muitas cidades hoje necessitam de urna acupuntura porque deixaram de cuidar de sua identidade cultural. Um triste exemplo disso o desapareci-mento dos cinemas municipais. No passado, os cinemas representaram para as pessoas o espac.0 mgico da fantasa, da msica, da utopia, da realdade, do sonho, da esperanza. E foram tambm um ponto de encontr fundamental para a cidade. Os cinemas influenciaram gera^es inteiras, nao so no aspecto cultural. Eram locis onde as pessoas se encontravam, discutiam, se divertiam e, fre-qentemente, levavam essas discussoes para outros pontos da cdade. O cinema difundu a moda, a literatura, a dan?a, a msica, a historia. Nada supera

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o cinema na possibilidade de registrar pocas importantes de cada nac.ao. Essas salas de cinema contaram e fizeram historia. Mas, em grande parte das cidades do mundo, elas esto desaparecendo. O velho cinema de cada cidade vem sendo adaptado para outras ativida-des, dando lugar a supermercados, templos etc. Em muitos locis, o cinema tradicional fo substituido pelas salas de shopping centers, mas isto outra historia. A memoria da cidade o nosso velho retrato de familia. Assim como nao se rasga um velho retrato de familia, e o velho cinema faz parte deste retrato de familia, nao se pode perder um ponto de referencia to importante para nossa dentidade. No estado do Paran, comecamos a recuperar os velhos cinemas municipais. Procuramos dtalos do que ha de mais moderno em equipamentos para termos condices de criar circuitos do cinema nacional e do cinema de arte, multas vezes relegados pelas redes de cinemas de shoppngs. Na verdade, o Velho Cinema Novo um programa que reforja a nossa dentidade cultural. urna acupuntura urbana que tenta curar-nos da perda da memoria e da nossa dentidade.

A recuperado de um rio

Minha chegada a Sel, embora fosse a primeira vez, pareca nao oferecer surpresas. Mais urna an-tiga cidade asitica, impulsionada por uma mpres-sionante vitalidade, crescendo vertiginosamente na sua modernidade. Tanto que nao pareca retratar seus mais de 800 anos. Mais uma demonstra^o do fazer rpido, em suas mensas avenidas t freeways, chegando a um centro catico onde as pessoas tm que atravessar passagens subterrneas, subindo e descendo, para simplesmente cruzar uma ra. Ja os carros passa-vam por um asfalto perfeito, quase como se desli-zassem por um tapete vermlho. Assim foram construidas e destruidas muitas cidades, dando privilegio aos carros. Cidades belas, histricas, com predios e palacios magnficos em sua arquitetura, cercados pelos automveis, nossos drages.

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A primeira surpresa em Sel foi a de sermos chamados para referendar urna ntenc,o pouco comum na maioria das cidades. A prefeitura pretenda reservar boa parte do espado para o "ni-bus de Curitiba", criando em varias regies da cidade a rede de transporte coletivo ja batizada de BRT (Bus Rapid Transit). A surpresa maior: o governo de Sel quer eliminar um macarrnico sistema de vias elevadas no centro da cidade e recuperar um riacho, o Cheonggyecheon, que recebia as aguas que dege-lam nos morros. O riacho, imaginem, fora enterrado dcadas atrs para que nao se visse a degrada-g.o e a polulc.o deste crrego e sua vizinhanc.a. Em cima dele foram construidas as vias elevadas. A intenco agora fazer o local voltar a ser o que era, com a recuperado do rio e a revitaliza-g.o da rea ao longo dele. O projeto caro (custa muito corrigir urna grande asneira), mas o entusiasmo do prefeito e sua equipe grande. A inten-C.o deles tambm abrir espatos para os pedestres (city friendly for people). No momento em que chegamos, nos mostraram os projetos. Todos tm urna leitura muito clara. O desenho da cidade est claro, os morros, o rio revitalizado. Quer dizer, a cidade est na cabera deles. Nao tenho dvida de que logo todos os projetos sero realizados.

Em Sel tambm tive o privilegio de conversar com urna das pessoas mais conhecidas da cidade, Young-Oak Kim, um filsofo formado em Harvard que depois deixou a universidade para cursar medicina. Ao voltar, o professor Kim ensinou filosofa durante dois anos num programa superpopular na Crela do Sul. um homem muito famoso, que agora resolveu ser reprter de temas importantes. Nossa conversa urna celebrado. Tanta coincidencia nos pensamentos e na slmpllcidade, sntese da filosofa oriental. Ele me faz um desenho da cidade. E o que me impresslona mais: ele le a cidade, o significado de cada reglo, de cada localizado, de cada nome, de maneira multo simples e concisa. Ah, se as cidades tlvessem menos vendedores de complexida-de e mals filsofos!

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A cidade proibida

A historia nos conta que Pequim urna das cida-des mais antigs do mundo. No inicio do sculo XV, foi transformada em duas cidades, separadas por muros. A cidade interior abrigava a antiga Cidade Imperial, cercada por um muro de dez quilmetros. Era a "Cidade Proibida", onde os fossos defmiam os palacios dos imperadores. O ltimo deles, Pu-Yi, foi deposto em 1911 e expulso da cidade em 1924. Mas a Pequim de hoje est descaracterizada. Nao se v mais o mar de bicicletas que fazia parte da paisagem de antes. E em cada bicicleta havia urna pessoa ou mais. Era urna cidade das pessoas. Hoje, Pequim mais um acampamento de predios modernssimos, cercados de estruturas virias enormes, freeways e os conceitos antigos de anis, radiis etc. Na "rosca" formada pelo segundo e o terceiro anis, um CBD (Center Business Dstricf). urna cidade rodoviria.

Junto "Cidade Proibida" e as suas reas mais prximas, aparece a textura de trechos pequeos da velha cidade. Urna cidade que hoje so se reco-nhece nos filmes ou nos livros. Pequim precisa de urna acupuntura para voltar a ocupar o lugar de destaque que merece no mundo. Menos rodovias, mais cidade, mais gente, mais bicicletas. Talvez esta seja a acupuntura necessria. Trazer de volta o nibus e a ra. Marcar a paisa-gem com suas estacoes. Talvez seja outra acupuntura necessria. Que audacia! Querer fazer acupuntura nos chineses!

Cali

Urna brisa com hora marcada. De noite, a praca que voc avista. A cidade segura, tranquila, casis namorando e crianzas correndo pelos pas-seios. Em alguns lugares voc v a alma da cidade. A parte antiga, as cores, as calcadas animadas pelo som distante de urna salsa. Pena que um pouco da identidade da cidade tenha se perdido com as avenidas muito grandes, um exagero de superdimensionamento. Para atra-vess-las, la vai voc subindo e descendo pelas passarelas. De repente, um shopping center antigo, nao fechado, com vegetacao interna, um grande parque, o som vem de algum tocando ao vivo, sem equipamento eletrnico. Nada de som canalizado empurrando as pessoas. Calor muito forte, mas, as quatro e meia, cinco horas da tarde, urna brisa agradvel toma conta da cidade. Seriam os deuses soprando. Afinal.

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Mas a boa arquitetura urna casa que visito. O arquiteto Benjamn Barney projetou urna casa com pouco mais de seis metros de largura e com um patio. Alias, a casa um patio com varias varan-das, aleadas. Talvez nessa cidade a boa acupuntura seja fa-zer mais coisas pequeas. Acentuar o rio, que urna beleza, e deixar a brisa soprar. Voltar-se para esse divino sopro como para um sol de fim de tarde numa praia carioca. Chvere!

Nao fazer nada, com urgencia

Em minha primeira gesto como prefeito de Curi-tiba, numa das primeiras decises que precise! tomar, recebi um abaixo-assinado de urna associa-co de moradores que continha um pedido muito estranho. A solicitaco era para que a prefeitura nao fizesse nada naquela vizinhan9a. Determinei ao Secretario de Obras que verificas-se esta situaco. Descubrimos que o pedido, apesar de inslito, tinha urna origem lgica. A prefeitura estava realizando obras na regio correco de perfis as ras nao-pavimentadas - e o receio dos moradores era de que as mquinas acabassem co-brindo com trra um pequeo olho-d'gua. O meu despacho no processo foi lacnico, mas decisivo: " Secretaria de Obras, nao fazer nada, urgencia". As vezes, na vida de urna cidade ameacada por decises que podem prejudic-la, necessrio nao fazer nada, com urgencia.

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Trinta e dois anos depois, em Lisboa, pego um carro para dar urna volta, e a primeira pessoa que vejo na cidade Alvaro Siza Vieira, arquiteto res-peitadssimo e requisitado no mundo inteiro. Seria a mesma coisa que sair pela primeira vez no Rio de Janeiro e encontrar Osear Niemeyer. E ali estava Siza Vieira, tranquilo, inspecionando urna obra. Genios aparecem, muitas vezes, sem a lmpada mgica. Vejo as colinas, lindas colinas, e o Tejo. Nos jor-nais, noticias sobre novos projetos para Lisboa. Tunis, viadutos, a Expo 98 deixou contribuicoes, mas era urna rea decadente que foi renovada. Na Lisboa da avenida da Liberdade, do Roci, das Colinas, talvez a melhor acupuntura seja nao fazer nada, com urgencia. PS.: Que tal urna pequea ousadia: pintar o elevador Santa Justa com cor de zarco?

Around the dock ou A cidade 24 horas

No Zcalo, centro histrico da Cidade do Mxico, num fim de tarde, comeco a sentir o medo de desaparecer na multido. Urna nundaco de gente. O maior nmero de vendedores ambulantes, que procuram garantir o seu dia-a-dia, numa subsistencia difcil. E a pergunta que se faz nessas me-gacidades como conciliar o setor formal com o informal. As respostas at agora sao nfrutferas e injustas. Entao, por que nao promover a convivencia entre o setor formal do comercio estabelecido com o informal? A idia que me ocorre de se estabele-cer um acord de horarios. Os ambulantes poderiam iniciar suas atividades depois das seis da tarde, trazendo mais vida cidade aps o horario comercial tradicional. E tra-riam tambm mais seguranca ao seu redor. Um setor ajudaria o outro, pois ambos manteriam o comercio local sempre a todo vapor.

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Afinal, o comercio ambulante, em suas varias modalidades, urna nstituicjJo to antiga quanto a cidade. Vejam a feira livre, por exemplo. Durante determinado horario, numa determinada regio, a feira livre se estabelece bem mais cedo que o comercio normal, e mais tarde toda sua estrutura retirada rpidamente. Isso funciona to bem! Urna estrutura mvel que vem cedo e vai embora. Al-gumas cidades, como Xangai, Hong Kong e Curi-tiba, tm feira noturna. Sao pontos de encontr muito agradveis, numa hora mais solta. Aqui a acupuntura acontece no pulso do re-lgio.

Gentileza urbana

Ha alguns anos, um grupo de gente muito legal de Belo Horizonte, entre elas meu velho amigo Vale'* Fabris, conseguiu mpor respeito entre as pesscas com atitudes que estimulavam o amor pela sua d-dade. Cada gesto neste sentido urna gentileza urbana. Desde ento, surgiram peridicamente aces e idias criativas que refletem a conscincia das pes-soas de que a gentileza urbana ndispensve ~; vida da cidade. Ja ficou famosa a historia da vaquinha da Leopoldina, urna escultura no meio do passe'c blico que foi adotada pelos moradores de Bec h:-rizonte. Ha algum tempo ela foi atacada por .^ dalos e quase destruida. Um cidado atravesso a cidade com um balde de areia e cimento e a i*-fez. Volta e meia a vaquinha aparece de cara nc*a com cores novas, contribuyes do povo que oca tanto gosta. ,

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No bairro Sao Geraldo, urna dona-de-casa mon-tou um presepio na sala. Ela nao fecha a porta e recebe com simpata quem quer conhecer seu presepio. Em outro bairro de Belo Horizonte, a equipe de lixeiros trabalha sempre cantando. Assim a capital mineira foi ganhando a tradicjio da gentileza urbana. Existem pessoas que exercem sua atividade com prazer ou que sinalizam para a cidade a sua alegria. Osear Niemeyer, ao colocar suas esculturas as areias da praia do Leme, fez urna grande gentileza urbana. Em Curitiba, um dentista, ao encerrar seu expediente de trabalho, vai janela tocar seu pistom.

partir daquele dia nao viria mais trabalhar porque resolver fazer o que sempre sonhara: ser palha-co de circo. Tinha feito um curso sem contar para ningum. Naquele momento, recebeu os primeiros aplausos. Ha alguns anos, fui ouvir o trio de Hlcio Milito, um craque da bossa nova. Como voces perce-bem, isso faz muito tempo. Mas nao esqueci um gesto de verdadeira gentileza urbana. Depois do show, o dono do bar, ao ver que eu estava tendo dificuldades para conseguir um taxi quela hora, levou-me no seu carro at a porta do hotel. Em Marip, urna pequea cidade no oeste do Paran, a prefeitura plantou orqudeas as ras. A flor to bonita que a populaco devolveu a gentileza do governo com outra gentileza urbana: ningum mexe as orqudeas. Em Roma, ha urna outra bela historia de gentileza urbana, que me foi contada por Domenico de Masi, grande e querido amigo. Todas as sextas-feiras, um grupo de moradores de um edificio da cidade organiza urna exposicao de um quadro de um pintor no elevador do predio. Voc sobe e vai admirando a obra. Mas a gentileza nao para por ai: voc desee pela escada e vai tocando a cam-painha dos apartamentos. Cada morador e sua familia falam do quadro, contam historias do artis-

Em Porto Alegre, urna emissora de radio tem urna vitrine na ra da Praia. As entrevistas sao acompanhadas pelo povo. O convite para voc colocar suas idias na vitrine urna verdadeira gentileza urbana. Guando eu trabalhava no Rio de Janeiro, havia na equipe um bom des/gner. Um dia, que jamis esquecerei, ele veio para o escritorio vestido de palhac.o. Sentou-se diante da prancheta e traba-Ihou o dia inteiro silenciosamente, como sempre fazia. No fim do expediente, ele nos contou que a28

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Biblioteca 1.T.L5ta, oferecem caf. Toda semana muda o quadro, com um artista diferente. Essa gentileza urbana realmente muito bonita. Em Salvador, Carimbos Brown mantm urna escola de msica numa favela. Aos sbados, ele pro-move verdadeiros concertos no local. Urna empresa grava o CD do show e o lucro das vendas vai para os moradores. Meu genro Bas conta-me a historia dos "jar-dins flutuantes dos limpadores de janelas de predios" em Nova York. as plataformas usadas para a limpeza dos vidros, um arquiteto teve a idia de colocar caixas de plantas e flores, que assim fica-riam inesquecvel. Nos idos de 80, a cidade de Curitiba decorava todos os nibus na poca de Natal. A decoracao com rvores de temas natalinos, com suas luzi-nhas, era urna grande gentileza com as pessoas que tinham que trabalhar no da de Natal. Com os nibus percorrendo a cidade, a gentileza tambm estendia a alegra do Natal a toda a populacho. As vezes a gentileza urbana se reflete numa pessoa, como o ja falecido publicitario Sergio Mer-cer. A morte de Sergio Mercer foi um momento "estacionadas", tornando-se jardins flutuantes diante dos apartamentos. Urna gentileza muito triste na vida de Curitiba. Homem de excelente carter, publicitario talentoso, dono de um texto primoroso. Esses comentarios sobre ele eram comuns em Curitiba inteira. Mercer era um curitibano especial. Ele era a cara e o pensamento da cidade. Sabia tudo sobre msica, literatura, era um grande crtico, mas um amigo sempre leal. Alm de tudo, tnha um outro dom extraordinario: era um afinador de conversas. Se o papo na roda camnhava para um assun-to chato, Mercer corriga o rumo, e afnava para um tema melhor e mais agradvel. Ele tinha mana de orquestrar, fazer arranjos em qualquer momento. Adorava tango e tinha um bandonen imaginario. Voc podera v-lo "tocando", at com a faixa de veludo no joelho. A cidade toda no enterro, relembrando a figura querida. Um primo dele me encontra e entrgame um CD, com trechos de um cantor de tango, conseguido a duras penas: "Tnha reservado para dar ao Mercer mas, na falta dele, quera que voc, como um de seus melhores amigos, guardasse." Lembre-me de que tambm tnha comprado urna antologa sobre tango, que reservara para dar ao Mercer. Sao do cemitro com um peso no co-raco.

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Antes de voltar para casa, passo num restaurante para levar alguma coisa, pois n'mgum t'mha vontade de sair. Encontr a Momea Rischbieter com uns amigos, todos tristes, pois tambm tinham ido ao enterro. Ocorreu-me, ento, presentear M6-nica com o livro que pretenda dar ao Mercer. Tambm me veio a idia de lancar o Dia Nacional do Mercer, em que cada pessoa dara um presente a um amigo. O da 6 de marco, data em que Curitiba perdeu este grande amigo. Como nao poderamos mais presentear o Mercer, fica a home-nagem a ele como um da de se presentear amigos. Seria urna grande gentileza urbana, algo que Mercer sempre fez pela cidade. O jogador Vampeta, da seleco brasileira, fez um ato de extrema gentileza com sua cdade, a pequea Nazar das Farinhas, na Baha. Certa vez, ele es-tava na cidade e pediram-lhe urna ajuda de 20 reais porque o telhado do cinema estava caindo. Vampeta foi ver o predio, que estava em estado lasti-mvel. um predio histrico. O Cine Rio Branco era um dos mais antigos do pais, de 1927. Vampeta comprou o cinema e restaurou o predio. Dizem que a inaugurado foi a maior festa da historia de Nazar, at com a presenca de Ronaldinho. O cinema nao da lucro. Vampeta paga os funcionarios do prprio bolso. Alm das sesses de ci-

nema, o local oferece oficinas de teatro e arte para mais de 80 enancas de favelas. Vampeta nem gosta de cinema, mas nao hesitou em fazer esta gentileza urbana aos moradores de sua cidade natal.

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Acupuntura pela msica

Em Antonina, cidade litornea do Paran, existe um prato tpico que cozido numa panela de barro lacrada com piro. urna delicia chamada barreado. Em sua verso mais tradicional, a abertura da panela precedida de fogos de artificio. Mas o que deixa o momento ainda mais bonito o hio de Antonina, cantado na hora de retirar o selo da panela. Cada cidade tem o seu gesto, e a sua msica. Algumas cidades tm mais de urna msica, que mediatamente nos projetam a paisagem local. "Copacabana", "Corcovado", "Garata de Ipanema", "Cidade Maravilhosa". Roma, Chicago, Nova York, Sao Francisco, todas estas cidades tiveram msicas que se tornaram universais porque as celebravam. Ao ouvi-las, voc faz mediatamente a leitura da cidade. Quando se fala em tango ou em Carlos Gar-del, mediatamente nos lembramos de Buenos Aires. Voc at pode assistir a um belo espetculo de tan-

E tambm difcil captar o Brasil sem go em qualquer lugar, pois companhias de muita qualidade fazem turnes pelo mundo, mas nada se compara ao tango em Buenos Aires, pois ali seu berco. Esteja onde estiver, o tango sempre carrega-r o sangue portenho. O samba urna das marcas da cultura do Rio. E temos bons sambistas por todo o pas. Mas, quando chega o Carnaval, o lugar do samba a avenida. E nisso o Rio de Janeiro imbativel, pois produz na avenida a maior pera do mundo, com mais de 80 mil protagonistas. Quando urna msica ou um ritmo assumem a identidade de urna cidade, ou de um pas, podem criar urna boa acupuntura urbana. Ela pode ser constatada no cotidiano, como o barulho da caixa de fsforos no boteco da esquina carioca, a percus-so as calcadas da Bahia, ou o hip-hop nos apa-relhos gigantes carregados pelos african-americans as ras dos Estados Unidos. Ha canqes que sao verdadeiras acupunturas. Algumas dlas passaram a ser tatuagens: Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Dorival Cavmmi e Vinicius deram cor as cidades e nos im-pregnaram para sempre. difcil imaginar a Bahia sem Caymmi, Joo Gilberto, Gil e Caetano; difcil sentir Minas sem a msica de Milton Nascimento.36

Villa-Lobos ou Ary Barroso. Ha cances que, quando falam de urna cidade, zrecem desenhar a cidade para voc. A msica ;: surgir urna fotografa da cidade na sua mente. Mas foi de Antonio Carlos Jobim a melodia que fez a cidade parecer melhor. E parecendo melhor, fica melhor.

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Continuidade vida

Muitos dos grandes problemas urbanos ocorrem por falta de continuidade. O vazio de urna regio sem atividade ou sem moradia pode se somar ao vazio dos terrenos baldos. Preench-los seria boa acupuntura. importante tambm incluir a funco que fala determinada regio. Se so existe a atividade mica e falta gente, essencial incentivar a Dradia. Se o que ocorre a falta de atividade, o iportante incentivar os servicos. Se um terreno vai ficando vazio, importante azer alguma coisa para aquele local. Ha alguns anos, ao sentir o desaparecimento de alguns cafs, que eram verdadeiros pontos de encontr, instalamos na rea de pedestres de Curitiba um caf provisorio. Um terreno, quando vazio, tem que ser preenfcido mediatamente, de preferencia com alguma atividade de animaco. Defendo at a possibilidade

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de se instalarem estruturas provisorias para consolidar algumas atividades at que surjam novos projetos. a acupuntura das novas estruturas atra-vs da instalacao de estruturas portteis, que pos-sam ser colocadas no local at para garantir vida, revitalizar urna regio, gerando a funco urbana que esteja faltando. Se falta atividade, se falta lazer durante a noi-te, traz-se urna estrutura de lazer. Se, por outro lado, estava faltando moradia, deve-se trazer mo-radias. Mas tudo isso rpidamente, quase instantneamente. A mistura de funces importante. E a conti-nuidade do processo fundamental.

Os sons, as cores e os cheiros da ra

O vendedor ambulante muitas vezes cacado pelos fiscais burocrticos. pena, pois ele nao apenas um comerciante, as vezes, reconheco, atuando de forma ilegal. Mas ele deve ser visto com olhos mais generosos, dada a amplitude de sua atuacao. Na verdade, o vendedor de hot dog em Nova York, de gua-de-coco no Nordeste, as vendedoras de acaraj na Baha, o homem que grita "olha o bate" as praias do Rio, as vendedoras de frutas no Caribe, com suas bacias na cabeca, todos tm iim componente de identidade muito forte. Eles acrescentam o som, o cheiro, a cor, e isso faz com que nossa identidade se sustente. Durante anos morei em frente a urna fbrica oolachas no bairro Cabra!, em Curitiba. Cada a da semana era produzido um tipo de bolacha. Cnta-feira, por exemplo, era da de bolacha de reo, e a regio inteira senta aquele cheiro gos-

Continuidade vida.

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Urna boa reciclagemA fbrica ja fechou, mas toda quinta-feira anda sinto o cheiro da bolacha de coco. Ja na parte sul da cidade, todo mundo senta o cheiro do Matte Leo sendo fabricado. Muitos tm historias semelhantes das suas cidades. O afiador de facas, o vendedor de frutas, os servidos anunciados e prestados em domicilio, o grito das manchetes dos jornaleiros, alguns desses sons talvez tenham desaparecido das cidades. Novos sinais surgem. O homem-sanduche de Sao Paulo e outras cidades acabou se transformando num grande site em que oportunidades sao comunicadas. Mas o som, a cor e o cheiro das feiras e dos ambulantes nao podem desaparecer. Terrivel urna cidade que nao cheira nem fede. Cada cidade tem sua historia, seus pontos de referencia. Nao me refiro somente quelas constru-ces que sao classificadas como marcas importantes do patrimonio histrico da naco. Refiro-me, principalmente, aos locis que pertencem me-nria da cidade e que sao pontos fundamentis

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da identidade, do sentimento de pertencer a urna cidade. Seja urna determinada fbrica, um ponto

antigo bonde ou urna daquelas antigs vendas ; tinham tudo ingenuamente exposto. Mas como ja nao mais possvel recuperar es-sas reas e reviver as antigs atividades, temos que encontrar novos usos, novas atividades que tragam ida. Nao ha nada que agrade mais a urna vizi-" ~:'~