Adelia Prado - Bagagem

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Adelia Prado - Bagagem

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  • Bagagem, de Adlia Prado 31. edio SUMRIO

    O MODO POTICO

    Com licena potica 9

    Grande desejo 10

    Sensorial 11

    Orfandade 12

    Resumo 13

    Crculo 14

    No meio da noite 15

    Mdulo de vero 16

    Leitura 17

    Saudao 18

    Poema esquisito 19

    Antes do nome 20

    Azul sobre amarelo, maravilha e roxo 21

    Pistas 22

    Poema sobre absorvncias no totalmente perplexas de Guimares Rosa 23

    O dia da ira 24

    A inveno de um modo 25

    Exausto 26

    Ovos de pscoa 27

    Pscoa 28

    Trgua 29

    Louvao para uma cor 30

    Roxo 31

    Um salmo 32

    Agora, Jos 33

    Clareira 35

    Impressionista 36

    A despropsito 37

    Os acontecimentos e os dizeres 38

    Viglia 39

    O que a musa eterna canta 40

    A hora grafada 41

    Buclica nostlgica 42

    Para comer depois 43

    A catecmena 44

    Atvica 45

    Momento 46

    Metamorfose 47

    Explicao de poesia sem ningum pedir 48

    Solo de clarineta 49

    Endecha 50

    Um homem doente faz a orao da manh 51

    Reza para as quatro almas de Fernando Pessoa 52

    Endechas das trs irms 53

    Tarja 54

    Para tambor e voz 55

    Todos fazem um poema a Carlos Drummond de Andrade 56

  • Disritmia 58

    Toada 59

    Uma forma para mim 60

    Seduo 62

    Guia 63

    Bendito 64

    Refro e assunto de cavaleiro e seu cavalo medroso 65

    Fragmento 67

    Anunciao ao poeta 68

    Anmico 69

    A tristeza cortes me pisca os olhos 70

    Descritivo 71

    Duas maneiras 72

    Cabea 73

    De profundis 74

    Um sonho 75

    Stio 76

    Tabaru 78

    O modo potico 79 UM JEITO E AMOR

    Amor violeta 83

    A serenata 84

    Uma vez visto 85

    O sempre amor 86

    Cano de Joana dArc 87 A meio pau 88

    Os lugares comuns 89

    Psicrdica 90

    Enredo para um tema 91

    Bilhete em papel rosa 92

    Medievo 93

    Um jeito 94

    Confeito 95

    Fatal 96

    Amor feinho 97

    Para cantar com o saltrio 98

    Briga no beco 99

    Cano de amor 100

    Para o Z 101

    A SARA ARDENTE I

    Janela 105

    Epifania 106

    Chorinho doce 107

    O vestido 108

    A cantiga 109

    Dona doida 110

    Verossmil 111

    A menina do olfato delicado 112

    Cartonagem 113

  • A flor do campo 114

    Registro 115

    Mosaico 116

    Rebrinco 117

    Ensinamento 118 A SARA ARDENTE II

    O homem permanecido 121

    Insnia 122

    F 123

    Episdio 124

    O retrato 125

    O reino do cu 126

    Uma forma de falar e de morrer 128

    Modinha 129

    A poesia 130

    Figurativa 131

    O sonho 132

    Para perptua memria 133

    As mortes sucessivas 134

    ALFNDEGA

    Alfndega 137 Bagagem, de Adlia Prado

    O MODO POTICO Chorando, chorando, sairo espalhando as sementes. Cantando, cantando, voltaro trazendo os seus feixes.

    Escrito nos salmos

    Com licena potica 9 COM LICENA POTICA Quando nasci um anjo esbelto, desses que tocam trombeta, anunciou: vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, esta espcie ainda envergonhada. Aceito os subterfgios que me cabem, sem precisar mentir. No to feia que no possa casar, acho o Rio de Janeiro uma beleza e ora sim, ora no, creio em parto sem dor. Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos (dor no amargura). Minha tristeza no tem pedigree, j a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil av.

  • Vai ser coxo na vida, maldio pra homem. Mulher desdobrvel. Eu sou.

    Grande desejo 10 GRANDE DESEJO No sou matrona, me dos Gracos, Cornlia, sou mulher do povo, me de filhos, Adlia. Fao comida e como. Aos domingos bato o osso no prato pra chamar cachorro e atiro os restos. Quando di, grito ai. quando bom, fico bruta, as sensibilidades sem governo. Mas tenho meus prantos, claridades atrs do meu estmago humilde e fortssima voz pra cnticos de festa. Quando escrever o livro com o meu nome e o nome que eu vou pr nele, vou com ele a uma igreja, a uma lpide, a um descampado, para chorar, chorar, e chorar, requintada e esquisita como uma dama.

    Sensorial 11 SENSORIAL Obturao, da amarela que eu ponho. Pimenta e cravo, mastigo boca nua e me regalo. Amor, tem que falar meu bem, me dar caixa de msica de presente, conhecer vrios tons pra uma palavra s. Esprito, se for de Deus, eu adoro, se for de homem, eu testo com meus seis instrumentos. Fico gostando ou perdoo. Procuro sol, porque sou bicho de corpo. Sombra terei depois, a mais fria.

    Orfandade 12 ORFANDADE Meu Deus me d cinco anos Me d um p de fedegoso com formiga preta, me d um Natal e sua vspera, o ressonar das pessoas no quartinho. Me d a negrinha Fia para eu brincar, me d uma noite pra eu dormir com minha me. Me d minha me, alegria s e medo remedivel, me d a mo, me cura de ser grande, meu Deus, meu pai, meu pai.

    Resumo 13

  • RESUMO Gerou os filhos, os netos, deu casa o ar de sua graa e vai morrer de cncer. O modo como pousa a cabea para um retrato o da que, afinal, aceitou ser dispensvel. Espera, sem uivos, a campa, a tampa, a inscrio: 1906-1970 SAUDADE DOS SEUS, LEONORA.

    Crculo 14

    CRCULO Na sala de janta da penso tinha um jogo de taas roxo-claro, duas licoeiras grandes e elas em volta, como duas galinhas com os pintinhos. Tinha poeira, fumaa e a cor lils. Comamos com fome, era 12 de outubro e a Rdio Aperecida conclamava os fiis a louvar a Me de Deus, o que eu fazia na cidade de Perdes, que no era bonita. Plausvel tudo. As horas cabendo o dia, a cristaleira os cristais resduos pra esta memria sem uma palavra jamais foi quando disse e entendi cabe no tacho a colher se um dia puder nem escrevo um livro.

    No meio da noite 15

    NO MEIO DA NOITE Acordei meu bem pra lhe contar um sonho: Sem apoio de mesa ou jarro eram As buganvlias brancas destacadas de um escudo. No fosforescia nem cheirava nem eram alvas. Eram brancas no amo, brancas de leite grosso. No quarto escuro a nica visvel coisa, o prprio ato de ver. Como se sente o gosto da comida eu senti o que falavam: A ressurreio j esta sendo urdida, os tubrculos da alegria esto midos vo brotar sinos doa como um prazer. Vendo que no mentia ele falou: as mulheres so complicadas. Homem to singelo. Eu sou singelo e a singeleza tambm Respondi que queria ser singela e na mesma hora, Singela, singela, comecei repetir singela. A palavra destacava-se novssima Como as buganvlias do sonho. Me atropelou O que foi que ele disse:

  • As buganvlias... Como nenhum casos podiam ir mais alm Solucei alto e fui chorando, chorando, at ficar singela a dormir de novo.

    Mdulo de vero 16 MDULO DE VERO As cigarras comearam de novo, brutas e brutas. Nem um pouco delicadas as cigarras so. Esguicham atarraxadas nos troncos o vidro modo de seus peitos, todo ele chamado canto cinzento-seco, garra de pelo, arame, um spero metal. As cigarras tm cabea de noiva, as asas como vu, translcidas. As cigarras tm o que fazer, tm olhos perdoveis. Quem no quis junto deles uma agulha?? Filhinho meu, vem comer, meu amor, vem dormir. Que noite to clara e quente, vida breve e boa! A cigarra atrela as patas no meu corao. O que ela fica gritando eu no entendo, sei que pura esperana.

    Leitura 17 LEITURA Era um quintal ensombrado, murado alto de pedras, As macieiras tinham mas tempors, a casca vermelha de escurssimo vinho, o gosto caprichado das coisas fora do seu tempo desejadas. Ao longo do muro eram talhas de barro. Eu comia mas, bebia a melhor gua, sabendo que l fora o mundo havia parado de calor. Depois encontrei meu pai, que me fez festa e no estava doente e nem tinha morrido, por isso ria, os lbios de novo e a cara circulados de sangue, caava o que fazer pra gastar sua alegria: onde est meu formo, minha vara de pescar, cad minha pinga, meu vidro de caf? Eu sempre sonho que uma coisa gera, nunca nada est morto. O que no parece vivo, aduba. O que parece esttico, espera.

    Saudao 18 SAUDAO

  • Ave, Maria! Ave, carne florescida em Jesus. Ave, silncio radioso, urdia de pacincia onde Deus fez seu amor inteligvel!

    Poema esquisito 19 POEMA ESQUISITO Di-me a cabea aos trinta e nove anos. No hbito. rarssimamente que ela di. Ningum tem culpa. Meu pai. Minha me descasaram seus fardos, No existe mais modo De eles terem seus olhos sobre mim. Me, me, pai. Onde esto escondidos? dentro de mim que eles esto. No fiz mausolu pra eles, pus os dois no cho Nasceu l, pois quis um p de saudade roxa, Que abunda nos cemitrios. Quem plantou foi o vento, a gua da chuva. Quem vai matar o sol. Passou finados no fui l, aniversrio tambm no, Pra qu, se pra chorar qualquer lugar me cabe? de tanto lembra-los que eu no vou. pai me Dentro de mim respondem Tenazes e duros Porque o zelo do esprito sem meiguices, fia.

    Antes do nome 20 ANTES DO NOME No me importa a palavra, esta corriqueira. Quero o esplndido caos de onde emerge a sintaxe, os stios escuros onde nasce o "do", o "alis", o "o", o "porm" e o "que", esta incompreensvel muleta que me apoia. Quem entender a linguagem entende Deus cujo filho o Verbo. Morre quem entender. A palavra disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graa, infrequentssimos, se poder apanh-la: um peixe vivo com a mo. Puro susto e terror.

    Azul sobre amarelo, maravilha e roxo 21 AZUL SOBRE AMARELO, MARAVILHA E ROXO Desejo, como quem sente fome ou sede, um caminho de areia margeado de boninas,

  • onde s cabem a bicicleta e seu dono. Desejo, como uma funda saudade de homem ficado rfo pequenino, um regao e o acalanto, a amorosa tenaz de uns dedos para um forte carinho em minha nuca. Brotam os matinhos depois da chuva, brotam os desejos do corpo. Na alma, o querer de um mundo to pequeno, como o que tem nas mos o Menino Jesus de Praga.

    Pistas 22 PISTAS No pode ser uma iluso fantstica o que nos faz domingo aps domingo visitar os parentes, insistir que assim melhor, que de fato um bom emprego meio caminho andado. No pode ser verdade que tanto af escave na insolvncia. H voos maravilhosos de ave, avies to belos repousando nos campos e o que piedoso no morto: no seu sexo murcho, mas suas mos empenhadas sobre o peito.

    Poema sobre absorvncias no totalmente perplexas de Guimares Rosa 23 POEMA SOBRE ABSORVNCIAS NO TOTALMENTE PERPLEXAS DE GUIMARES ROSA Ah, pois, no conforme miro e vejo, o por dentro de mim, Segundo o consentir dos desarrazoados meus pensares, o brabo cavalo em as ventas arfando,

    se querendo ir. permanecido apenas no ajuste das leis do bem viver

    comum, por causa de uma total garantia se faltando em quem

    mas d. Adformas que em trguas assisto e assino e o todo exterior desta minha pessoa recomponho. Porm chega o s sinal mais leve de que aquilo ou isso verdadeiro pra a reta eu alimpar com o meu brabo cavalo. Ara! que eu no nasci pra permanncia desta duvidao, mas s pra o ser eu mesmo, o de todo mundo desigual, afirmador e consequente, Riobaldo, o Tatarana. Ixi!

    O dia da ira 24 O DIA DA IRA

  • As coisas tristssimas, o rolomag, o teste de Cooper, a mole carne tremente entre as coxas, vo desaparecer quando soar a trombeta. Levantaremos como deuses, com a beleza das coisas que nunca pecaram, como rvores, como pedras, exatos e dignos de amor. Quando o anjo passar, o furaco ardente do seu voo vai secar as feridas, as secrees desviadas dos seus vasos e as lgrimas. As cidades restaro silenciosas, sem um veculo: apenas os ps de seus habitantes reunidos na praa, espera de seus nomes.

    A inveno de um modo 25

    A INVENO DE UM MODO Entre pacincia e fama quero as duas, pra envelhecer vergada de motivos. Imito o andar das velhas de cadeiras duras e se me surpreendem, explico cheia de verdade: t ensaiando. Ningum acredita e eu ganho uma hora de juventude. Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa, a menina disse: "Ora, isso pras mulheres de So Paulo" Fico entre montanhas, entre guarda e v, entre branco e branco, lentes pra proteger de reverberaes. Explicao para o corpo do morto, de sua alma eu sei. Esttua na Igreja e Praa quero extremada as duas. Por isso que eu prevarico e me apanham chorando, vendo televiso, ou tirando sorte com quem vou casar. Porque que tudo que invento j foi dito nos dois livros que eu li: as escrituras de Deus, as escrituras de Joo. Tudo Bblias. Tudo Grande Serto.

    Exausto 26 EXAUSTO Eu quero uma licena de dormir, perdo pra descansar horas a fio, sem ao menos sonhar a leve palha de um pequeno sonho. Quero o que antes da vida foi o sono profundo das espcies,

  • a graa de um estado. Semente. Muito mais que razes.

    Ovos de pscoa 27 OVOS DE PSCOA O ovo no cabe em si, trgido de promessa, A natureza morta palpitante. Branco to frgil guarda um sol ocluso O que vai viver, espera.

    Pscoa 28 PSCOA Velhice um modo de sentir frio que me assalta e uma certa acidez. O modo de um cachorro enrodilhar-se quando a casa se apaga e as pessoas se deitam. Divido o dia em trs partes: a primeira pra olhar retratos, a segunda pra olhar espelhos, a ltima e maior delas, pra chorar. Eu, que fui loura e lrica, no estou pictural. Peo a Deus, em socorro da minha fraqueza, abrevie esses dias e me conceda um rosto de velha me cansada, de av boa, no me importo. Aspiro mesmo com impacincia e dor. Porque sempre h quem diga no meio da minha alegria: "pe o agasalho" "tens coragem?" "por que no vais de culos?" Mesmo rosa sequssima e seu perfume de p, quero o que desse modo doce, o que de mim diga: assim . Pra eu parar de temer e posar pra um retrato, ganhar uma poesia em pergaminho.

    Trgua 29 TRGUA Hoje estou velha como quero ficar. Sem nenhuma estridncia. Dei os desejos todos por memria e rasa xcara de ch.

    Louvao para uma cor 30

  • LOUVAO PARA UMA COR O amarelo faz decorrer de si os mames e sua polpa, o amarelo furvel. Ao meio-dia as abelhas, o doce ferro e o mel. Os ovos todos e seu ncleo, o vulo. Este dentro, o minsculo. Da negritude das vsceras cegas, amarelo e quente, o minsculo ponto, o gro luminoso. Distende e amacia em btegas a pura luz de seu nome, a cor tropicardiosa. Acende o cio, uma flauta encantada, um obo em Bach. O amarelo engendra.

    Roxo 31 ROXO Roxo aperta. Roxo travoso e estreito. Roxo a cordis, vexatrio, uma doidura pra amanhecer. A paixo de Jesus roxa e branca, pertinho da alegria. Roxo travoso, vai amadurecer. Roxo bonito e eu gosto. Gosta dele o amarelo. O cu roxeia de manh e de tarde, uma rosa vermelha envelhecendo. Cavalgo caando o roxo, lembrana triste, bonina. Campeio amor pra roxeamar paixonada, o roxo por gosto e sina.

    Um salmo 32 UM SALMO Tudo que existe louvar. Quem tocar vai louvar, quem cantar vai louvar, o que pegar a ponta de sua saia e fizer uma pirueta, vai louvar. Os meninos, os cachorros, os gatos desesquivados, os ressuscitados, o que sob o cu mover e andar vai seguir e louvar. O abano de um rabo, um miado, ua mo levantada, louvaro.

  • Esperai a deflagrao da alegria. A nossa alma deseja, o nosso corpo anseia o movimento pleno: cantar e danar TE-DEUM.

    Agora, Jos 33 AGORA, JOS teu destino, Jos, a esta hora da tarde, se encostar na parede, as mos para trs. Teu palet abotoado de outro frio te guarda, enfeita com trs botes tua dura pacincia. A mulher que tens, to histrica,to histrica, desanima. Mas, Jos, o que fazes? Passeias no quarteiro o teu passeio maneiro e olhas assim e pensas, o modo de olhar to plido. Por improvvel no conta o que tu sentes, Jos? O que te salva da vida a vida mesmo, Jos, e o que sobre ela est escrito a rogo de tua f: "No meio do caminho tinha uma pedra", "Tu s pedra e sobre esta pedra", a pedra, Jos, a pedra. Resiste, Jos. Deita, Jos, dorme com tua mulher, gira a aldraba de ferro pesadssima. O reino do cu semelhante a um homem como voc, Jos.

    Clareira 35 CLAREIRA Seria to bom, como j foi, as comadres se visitarem nos domingos. Os compadres fiquem na sala, cordiosos, pitando e rapando a goela. Os meninos, farejando e mijando com os cachorros. Houve esta vida ou inventei? Eu gosto de metafsica, s pra depois pegar meu bastidor e bordar ponto de cruz, falar as falas certas: a de Lurdes casou, a das Dores se forma, a vaca fez, aconteceu, as santas misses vm a, vigiai e orai que a vida breve. Agora que o destino do mundo pende do meu palpite,

  • quero um casal de compadres, molcula de sanidade, pra eu sobreviver.

    Impressionista 36 IMPRESSIONISTA Uma ocasio, meu pai pintou a casa toda de alaranjado brilhante. Por muito tempo moramos numa casa, como ele mesmo dizia, constantemente amanhecendo.

    A despropsito 37 A DESPROPSITO Olhou para o teto, a telha parecia um quadrado de doce. Ah! - falou sem se dar conta que descobria, durando desde a infncia, aquela hora do dia, mais um galo cantando, um corte de trator, as trs camadas de terra, a ocre, a marrom, a arroxeada. Um pasto, no tinha certeza se uma vaca e o sarilho da cisterna desembestado, a lata batendo no fundo com estrondo. Quando insistiram, vem jantar, que esfria, ele foi e disse antes de comer: `Qualidade de telha essas de antigamente`.

    Os acontecimentos e os dizeres 38 OS ACONTECIMENTOS E OS DIZERES Quem est vivo diz: hoje s trs horas padre Librio d a bno na Vila Vicentina. Ou assim: coisa boa um banho. Ou ainda: casamento coisa muito fina. Eu achei tanta graa quando aprendi a dar ns, fiquei cheia de poder. Entendi depois o que queria dizer: "toda convico apostlica", fiquei cheia de espanto. As palavras s contam o que se sabe. Mas, quem disse: Deus um esprito de paz, est repetindo um menino de sete anos que acrescentou: eu tenho medo de dia; de noite, no, porque claro.

    Viglia 39 VIGLIA O terror noturno decepou a minha mo quando ia pegar minha roupa de dormir.

  • Parei no meio do quarto, uma lucidez to grande, que tudo se tornava incompreensvel. O contorno da cama, de tal jeito quadrado e expectante, o cabo de um serrote mal guardado, minha nudez em trnsito entre a porta e a cadeira. Claramente legveis e insolveis, uma campina de sol e ar sem nuvens, a risada dos meninos no campo retalhado de trator, as bodas de prata do homem que fala sempre: Qual o meu erro que minha vontade estar morto? Uma famlia fez sua casa no morro, se eu mover o meu p, a casa despenca. O Esprito de Deus, movendo o que lhe apraz, move a moa que jurei no ser poeta a dizer cheia de graa: coisa mais engraada deve ser o Presidente chupando laranja! o Esprito de Dieu misericordioso, vai desertar de mim pra eu poder descansar, vai me deixar dormir.

    O que a musa eterna canta 40 O QUE A MUSA ETERNA CANTA Cesse de uma vez meu vo desejo de que o poema sirva a todas as fomes. Um jogador de futebol chegou mesmo a declarar: "Tenho birra de que me chamem de intelectual, sou um homem como todos os outros." Ah, que sabedoria, como todos os outros, a quem bastou descobrir: letras eu quero pra pedir emprego, agradecer favores, escrever meu nome completo. O mais so as maltraadas linhas.

    A hora grafada 41 A HORA GRAFADA De noite no mato as rvores semelhavam uma guia acabada de pousar, um anjo saudando, um galo perfeitinho, uma ave grande vista de frente. De noite no mato, as vivas figuras enraizadas, prontas a falar ou bater asas.

    Buclica nostlgica 42 BUCLICA NOSTLGICA Ao entardecer no mato, a casa entre bananeiras, ps de manjerico e cravo-santo, aparece dourada. Dentro dela, agachados, na porta da rua, sentados no fogo, ou a mesmo,

  • rpidos como se fossem ao xodo, comem feijo com arroz, taioba, ora-pro-nobis, muitas vezes abbora. Depois, caf na canequinha e pito. O que um homem precisa pra falar, entre enxada e sono: Louvado seja Deus!

    Para comer depois 43 PARA COMER DEPOIS Na minha cidade, nos domingos de tarde, as pessoas se pem na sombra com faca e laranjas. Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta, A campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas: Eh bobagem! Daqui a muito progresso tecno-ilgico, quando for impossvel detectar o domingo pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas, em meu pas de memria e sentimento, basta fechar os olhos: domingo, domingo, domingo.

    A catecmena 44 A CATECMENA Se o que est prometido a carne incorruptvel, isso mesmo que eu quero, disse e acrescentou: mais o sol numa tarde com tanajuras, o vestido amarelo com desenhos semelhando urubus, um par de asas em maio e imprescindvel, multiplicado ao infinito, o momento em que palavra alguma serviu perturbao do amor. Assim quero venha a ns o vosso reino. Os doutores da Lei, estranhados de f to vida, disseram delicadamente: vamos olhar a possibilidade de uma nova exegese deste texto. Assim fizeram. Ela foi admitida; com reservas.

    Atvica 45 ATVICA Minha me me dava o peito e eu escutava, o ouvido colado fonte dos seus suspiros: " meu Deus, meu Jesus, misericrdia." Comia leite e culpa de estar alegre quando fico. Se ficasse na roa ia ser carpideira, puxadeira de tero, cantadeira, o que na vida beleza sem esfuziamentos, as tristezas maravilhosas. Mas eu vim pra cidade fazer versos to tristes que do gosto, meu Jesus misericrdia. Por prazer da tristeza eu vivo alegre.

  • Momento 46 MOMENTO Enquanto eu fiquei alegre, permaneceram um bule azul com um descascado no bico, uma garrafa de pimenta pelo meio, um latido e um cu limpidssimo com recm-feitas estrelas. Resistiram nos seu lugares, em seus ofcios, constituindo o mundo pra mim, anteparo para o que foi um acometimento: sbito bom ter um corpo pra rir e sacudir a cabea. A vida mais tempo alegre do que triste. Melhor ser.

    Metamorfose 47 METAMORFOSE Foi assim que meu pai me disse uma vez: Voc anda feito cavalo velho, procurando grota As cigarras atrelavam as patas nos troncos e zuniam com deciso os seus chiados. As rvores cantavam no quintal, refolhadas de novssimo verde. Arregacei as narinas e fui pastar com minha cabea minscula. O que mais quente e amarelo pode ser, era o sol, um dia de pura luz. Mugi entre as vacas, antediluviana, sei de moitas, gua que achei e bebi. Na volta sacudi pescoo e rabo. S dois sinais restaram: um mundo guloso de cheirar os verdes; um modo de pisar, s casco e pedras.

    Explicao de poesia sem ningum pedir 48 EXPLICAO DE POESIA SEM NINGUM PEDIR Um trem-de-ferro uma coisa mecnica, mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida, virou s sentimento.

    Solo de clarineta 49 SOLO DE CLARINETA As ptalas da flor-seca, a sempre-viva, do que mais gosto em flor. Do seu grego existir de boniteza, sua certa alegria.

  • preciso ter morrido uma vez e desejado o que sobre as lpides est escrito de repouso e descanso, pra amar seu duro odor de retrato longnquo, seu humano conter-se. As severas.

    Endecha 50 ENDECHA Embora a velha roseira insista neste agosto e confirmem o recomeo estas mulheres grvidas, eu sofro de um cansao, intermitente como certas febres. Me acontece lavar os cabelos e ir sec-los ao sol, desavisada. Ocorre at que eu cante. Mas pousa na cano a negra ave e eu desafino rouca, em descompasso, uma perna mais curta, a ausncia povoando todos os meus cmodos a lembrana endurecida no cristal de uma pedra na uretra.

    Um homem doente faz a orao da manh 51 UM HOMEM DOENTE FAZ A ORAO DA MANH, Pelo sinal da Santa Cruz, chegue at Vs meu ventre dilatado e Vos comova, Senhor, meu mal sem cura. Inauguro o dia, eu que ao meu crdito explico que passei em claro a treva da noite. Escutei e quando s vezes descanso vozes de h mais de trinta anos. Vi no meio da noite nesgas clarssimas de sol. Minha me falou, enxotei gatos lambendo O prato da minha infncia. Livrai-me de lanar contra Vs a tristeza do meu corpo e seu apodrecimento cuidadoso. Mas desabafo dizendo: que irado amor Vs tendes. Tem piedade de mim, tem piedade de mim pelo sinal da Vossa Cruz que fao na testa, na boca, no corao. Da ponta dos ps cabea, de palma palma da mo.

    Reza para as quatro almas de Fernando Pessoa 52 REZA PARA AS QUATRO ALMAS DE FERNANDO PESSOA

    Da belssima Ode noite antiga resulta que eu entendo, limpo de esforo e vaidade se nos fosse possvel: da orao verdadeira nasce a fora.

  • Ningum se cansa de bondade e avencas. Os rebanhos guardados guardam o homem. Todos que estamos vivos morreremos. No pra entender que ns pensamos, para sermos perdoados. Pai nosso, criador da noite, do sonho, do meu poder sobre os bois, eis-me, eis-me.

    Endechas das trs irms 53 ENDECHA DAS TRS IRMS As trs irms conversavam em binrio lentssimo. A mais nova disse: tenho um abafamento aqui, e ps a mo no peito. A do meio disse: sei fazer umas rosquinhas. A mais velha disse: fao quarenta anos, j. A mais nova tem a moda de ir chorar no quintal. A do meio est grvida. A mais cruel se enterneceu por plantas. Nosso pai morreu, diz a primeira, nossa me morreu, diz a segunda, somos trs rfs, diz a terceira. Vou recolher a roupa do quintal, fala a primeira. Ser que chove?, fala a segunda. J viram minhas sempre-vivas?, falou a terceira, a de corao duro, e soluou. Quando a chuva caiu ningum ouviu os trs choros dentro da casa fechada.

    Tarja 54 TARJA A Revista de Santo Antnio tem uma seo que eu no perco:

    Sombra da Cruz

    onde se recomenda orao dos leitores as almas do as assinantes. Vencio Ferreira Bernardes Carmpolis de Minas Mozar Pereira Gentil Lavras Judith Abdala Maia Perdes Arnalda Bressane Costa Jundia Paulo Antnio Fernandes So Sebastio do Oeste Joo Antnio Correia Divinpolis O nome da e os de seus lugares, registrados na pgina encimada por uma cruz de pontas arredondadas, eu acho bonito sempre. necrofilia no, simpatia, dor que aos domingos me adula, aula um galo, o gosto da melancolia. Raimunda Lzara de Jesus Itaguara esta, uma vez, pegando um trem, disse assim: O Mazzaropi d muita graa pra nis, arrio dele demais.

  • Ernestina Alvarenga Reis Pirapora e como um ramo de anglicas dentro de um quarto fechado. No domingo amarelo passa o chapu florido. A poesia, a mais nfima, serva de esperana.

    Para tambor e voz 55 PARA TAMBOR E VOZ Viola violeta violenta violada bvia vertigem caos to claro, claustro. Lpides quentes sobre restos podres um resto de caf na xcara e mosca.

    Todos fazem um poema a Carlos Drummond de Andrade 56 TODOS FAZEM UM POEMA A CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Enquanto punha o vestido azul com margaridas amarelas e esticava o cabelos para trs, a mulher falou alto: isto, eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade apesar de nossas extraordinrias semelhanas. E decifrou o incmodo do seu existir junto com o dele. Vamos ambos enciclopdia, seguiu dizendo, cata de constituio, e paramos em clematite, flor lils de ingnuo desenho que ama desabrochar nas sebes europeias. Temos terrores noturnos, diurnos desesperos e dias seguidos onde nada acontece. Comemos, bebemos e diante do nosso nome impresso temos nenhum orgulho, porque esta lembrana no deixa: uma vez, na avenida Afonso Pena, um bbado gritando: Todo mundo aqui um saco de tripas. Carlos gauche. A mim, vrias vezes, disseram: No sabes ler a placa? CONTRAMO. Um dia fizemos um verso to perfeito que as pessoas comearam a rir. No entanto persiste, a partir de min, a raiva insopitada quando citam seu nome, lhe dedicam poemas. Desta maneira prezo meu caderno de versos, que umas pergunta s nem ao mesmo original: Por que no nasci eu um simples vaga-lume? S ponta de fina faca, o quisto da minha inveja, como aos mames maduros se tiram os olhos podres. Eu sou poeta? Eu sou Qualquer resposta verdadeira e poderei am-lo.

    Disritmia 58 DISRITMIA Os velhos cospem sem nenhuma destreza e os velocpedes atrapalham o trnsito no passeio. O poeta obscuro aguarda a crtica e l seus versos, as trs vezes por dia,

  • feito um monge com seu livro de horas. A escova ficou velha e no penteia. Neste exato momento o que interessa so os cabelos desembaraados. Entre as pernas geramos e sobre isso se falar at o fim sem que muitos entendam: ertico a alma. Se quiser, ponho agora a ria na quarta corda, pra me sentir clemente e apaziguada. O que entendo de Deus sua ira, no tenho outra maneira de dizer. As bolas contra a parede me desgostam, mas os meninos riem satisfeitos. Tarde como a de hoje, vi centenas. No sinto angstia, s uma espera ansiosa. Alguma coisa vai acontecer. No existe o destino. Quem premente Deus.

    Toada 59 TOADA Cantiga triste, pode com ela quem no perdeu a alegria.

    Uma forma para mim 60 UMA FORMA PARA MIM Hoje acordei normal, como antes de fazer treze anos. Fui cedo catar coisas no lixo, cavucar abacaxis apodrecidos, atrs de um veio so, como quem cata ouro. Que tem isso tudo a ver com santidade? Mas se no tiver me morro, porque no entendo outro ar menos grosso que este onde meu nariz se apoia. Os santos me chamam com assobios vertiginosos, se penso que vou porque maior meu olho que a barriga; dou um passo de medroso, outro de temerrio. Com dois passos e meio fico doido e comeo a voltar. Sei que no para mim. O que meu no sei direito ainda. Uma vez quando eu tinha quatro anos, achei um caco de vidro no monturo. Lavei, enxuguei, guardei bem guardado e fui comer com vontade, ficar obediente, emprestar minhas coisas, por causa do caco, porque tinha ele, porque eu podia quando quisesse pr ele contra o sol e aproveitar o seu reflexo. Ele era laranjado chitadinho de branco. Assim eu sei, se assim puder, farei. Cada qual diverso, descobri. Por isso e porque est escrito que o Esprito de Deus nos toma sem matar-nos que eu digo como quem reza: S Antnio Vitor morreu. A tarde do seu enterro foi um largo tranqilo de se dizer: hoje est tudo como antigamente era bom. Os cereais somam seus cheiros oh! que perfume doce

  • com rapadura e querosene oh! que armazns humanos. Os mosquitos como pessoas da casa admitidos. A poeira tambm. Quando eu fico normal o reino do cu no d os sobressaltos, d s gosto e alegria.

    Seduo 62 SEDUO A poesia me pega com sua roda dentada, me fora a escutar imvel o seu discurso esdrxulo. Me abraa detrs do muro, levanta a saia pra eu ver, amorosa e doida. Acontece a m coisa, eu lhe digo, tambm sou filho de Deus, me deixa desesperar. Ela responde passando a lngua quente em meu pescoo, fala pau pra me acalmar, fala pedra, geometria, se descuida e fica meiga, aproveito pra me safar. Eu corro ela corre mais, eu grito ela grita mais, sete demnios mais forte. Me pega a ponta do p e vem at na cabea, fazendo sulcos profundos. de ferro a roda dentada dela.

    Guia 63 GUIA A poesia me salvar. Falo constrangida, porque s Jesus Cristo o Salvador, conforme escreveu um homem sem coao alguma atrs de um crucifixo que trouxe de lembrana de Congonhas do Campo. No entanto, repito, a poesia me salvar. Por ela entendo a paixo que Ele teve por ns, morrendo na cruz. Ela me salvar, porque o roxo das flores debruado na cerca perdoa a moa do seu feio corpo. Nela, a Virgem Maria e os santos consentem no meu caminho apcrifo de entender a palavra pelo seu reverso, captar a mensagem pelo arauto, conforme sejam suas mos e olhos. Ela me salvar. No falo aos quatro ventos, porque temo os doutores, a excomunho e o escndalo dos fracos. A Deus no temo.

  • Que outra coisa ela seno Sua Face atingida da brutalidade das coisas?

    Bendito 64 BENDITO Louvados sejas Deus meu Senhor, porque o meu corao est cortado a lmina, mas sorrio no espelho ao que, revelia de tudo, se promete. Porque sou desgraado como um homem tangido para a forca, mas me lembro de uma noite na roa, o luar nos legumes e um grilo, minha sombra na parede. Louvado sejas, porque eu quero pecar contra o afinal stio aprazvel dos mortos, violar as tumbas com o arranho das unhas, mas vejo Tua cabea pendida e escuto o galo cantar trs vezes em meu socorro. Louvado sejas porque a vida horrvel, porque mais o tempo que eu passo recolhendo despojos, velho ao fim da guerra como uma cabra mas limpo os olhos e o muco do meu nariz, por um canteiro de grama. Louvados sejas porque eu quero morrer, mas tenho medo e insisto em esperar o prometido. Uma vez, quando eu era menino, abri a porta de noite, a horta estava branca de luar e acreditei sem nenhum sofrimento. Louvado sejas!

    Refro e assunto de cavaleiro e seu cavalo medroso 65 REFRO E ASSUNTO DE CAVALEIRO E SEU CAVALO MEDROSO estrela-dalva, lua... Tristeza o luar nos ermos do serto, minas gerais. Eh saudade! De qu, meu Deus? No sei mais. estrela-dalva, lua... O escuro duro ou macio? Meu cavalo perguntou. Eu lhe respondi: galopa, pra Deus que eu vou. estrela-dalva, lua... estrela-dalva, gritei Na cava, pra espantar o breu. Alva alva alva alva Precipcio respondeu.

  • estrela-dalva, lua... No fim da viagem, no fim da noite, Tem uma porteira se abrindo Pra madrugada suspensa. pra l que eu vou, pro cu e pro ar, rosilho, Para os pastos de orvalho. estrela-dalva, lua... Quanto tempo dura a noite? meu cavalo perguntou O tempo de Deus, eu disse. E esporeei. estrela-dalva, lua... alva...

    Fragmento 67 FRAGMENTO Bem-aventurado o que pressentiu quando a manh comeou: no vai ser diferente da noite. Prolongados permanecero o corpo sem pouso, o pensamento dividido entre deitar-se primeiro esquerda ou direita e mesmo assim anunciou o paciente ao meio-dia: algumas horas e j anoitece, o mormao abranda, um vento bom entra nessa janela.

    Anunciao ao poeta 68 ANUNCIAO AO POETA Ave, vido. Ave, fome incansvel e boca enorme, come. Da parte do Altssimo te concedo que no descansars e tudo te ferir de morte: o lixo, a catedral e a forma das mos. Ave, cheio de dor.

    Anmico 69

    ANMICO Nasceu no meu jardim um p de mato que d flor amarela. Toda manh vou l pra escutar a zoeira da insetaria na festa. tem zoada de todo jeito: tem do grosso, do fino, de aprendiz e de mestre. pata, asas, boca, bico, gro de

  • poeira e plen na fogueira do sol. Parece que a arvorinha conversa.

    A tristeza cortes me pisca os olhos 70 A TRISTEZA CORTES ME PISCA OS OLHOS Eu procuro o mais triste, o que encontrado nunca mais perderei, porque vai me seguir mais fiel que um cachorro, o fantasma de um cachorro, a tristeza sem verbo. Eu tenho trs escolhas: na primeira, um homem que ainda est vivo borda de sua cama me acena e fala com seu tom mais baixo: 'reza pra eu dormir, viu?' Na outra, sonho que bato num menino. bato, bato, at apodrecer meu brao e ele ficar roxo. eu bato mais e ele ri sem raiva, ri pra mim que bato nele. Na ltima, eu mesma engendro este horror: a sirene apita chamando um homem j morto e fica de noite e amanhece, ele no volta e ela insiste e sua voz humana. Se no te basta, espia: eu levanto o meu filho pelos rgos sensveis e ele me beija o rosto.

    Descritivo 71 DESCRITIVO As formigas passeiam na parede, perto de um vidro de cola que perdeu a rolha. h mais: um mao de jornais, uma bilha e seu gargalo flico, um copo de plstico e um quiabo seco, guardado ali por causa das sementes. Tudo sobra uma cmoda, num quarto. O vidro de cola est arrolhado com uma bucha de papel. sbado, tarde, trgida minha bexiga feminina e por isso vai ser menos belo que eu me levante e a esvazie. Os analistas diro, segundo Freud: complexo de castrao. Eu no digo nada, pela primeira vez, humildemente. Vou me deitar para dormir, no antes sem rezar, pelos meus e os teus.

    Duas maneiras 72

    DUAS MANEIRAS De dentro da geometria Deus me olha e me causa terror. Faz descer sobra mim o ncubo hemiplgico. Eu chamo por minha me, me escondo atrs da porta, onde meu pai pendura sua camisa suja, bebo gua doce e falo as palavras das rezas. Mas h outro modo: se vejo que Ele me espreita,

  • penso em marca de cigarros, penso num homem siando de madrugada pra adorar o Santssimo, penso em fumo de rolo, em apito, em mulher da roa com balaio de pequi, fruta feita de cheiro e amarelo. Quando Ele d f, j estou no colo dEle, pego sua barba branca, Ele joga pra mim a bola do mundo, eu jogo pra Ele.

    Cabea 73 CABEA Quando eu sofria dos nervos no passava debaixo de fio eltrico, tinha medo de chuva, de relmpago, nojo de certos bichos que eu no falo pra no ter que lavar minha boca com cinza. Qualquer casca de fruta eu apanhava. hoje que sarei tenho uma vida e tanto: j seguro nos fios com a chave desligada e lembrei de arrumar pra mim esta capa de plstico, dia e noite eu no tiro, at durmo com ela. Caso chova, tenho trabalho nenhum. Casca, mesmo sendo de banana ou de manga, eu no intervo, quem quiser que se cuide. Abastam as placas de ATENO! que eu escrevo e ponho perto. Um bispo quando tem zelo apostlico, uma coisa charmosa. No canso de explicar isso pro pastor da minha diocese, mas ele no entende e fica falando, minha filha, minha filha , ele pensa que Womans Lib, pensa que a f t l em cima e c em baixo mau gosto s. ruim, ruim ningum entende. Gritava at parar, quando eu sofria dos nervos.

    De profundis 74 DE PROFUNDIS Quando a noite vier e minhalma ciclotmica afundar nos desvos da gua sem porto, salva-me. Quando a morte vier, salva-me do meu medo, do meu frio, salva-me, dura mo de deus com seu chicote, palavra de tbua me ferindo no rosto.

    Um sonho 75 UM SONHO Eu tive um sonho esta noite que no quero esquecer, por isso o escrevo tal qual se deu:

  • era que me arrumava pra uma festa onde eu ia falar. O meu cabelo limpo refletia vermelhos, o meu vestido era de um tom azul, cheio de panos, lindo, o meu corpo era jovem, as minhas pernas gostavam do contato da seda. Falava-se, ria-se, preparava-se. Todo movimento era de espera e aguardos, sendo que depois de vestida, vesti por cima um casaco e colhi do prprio sonho, pois de parte alguma eu a vira brotar, uma sempre-viva amarela, que me encantou por seu miolo azul, um azul de cu limpo sem as reverberaes, de um azul sem o z, que o z nesta palavra tisna. No digo azul, digo blue, a ideia exata de sua seca maciez. Pus a flor no casaco que s para isto existiu, assim como o sonho inteiro. Eu sonhei uma cor. Agora, sei.

    Stio 76 STIO A igreja o melhor lugar. L o gado de Deus para pra beber gua, rela um no outro os chifres e espevita seus cheiros que eu reconheo e gosto, a modo de um cachorro. minha raa, estou em casa como no meu quarto. igreja a casamata de ns. Tudo l fica seguro e doce, tudo ombro a ombro buscando a porta estreita. L as coisas dilacerantes sentam-se ao lado deste humanssimo fato que fazer flores de papel e nos admiramos como tudo crvel. Est cheia de sinais, palavra, cofre e chave, nave e teto aspergidos contra vento e loucura. L me guardo, l espreito a lmpada que me espreita, adoro o que me subjuga a nunca como a um boi. L sou corajoso e canto com meu lbio rachado: glria no mais alto dos cus a Deus que de fato esprito e no tem corpo, mas tem o olho no meio de um tringulo donde v todas as coisas, at os pensamentos futuros. Lugar sagrado, eletricidade que eu passeio sem medo. se eu pisar, o amor de Deus me mata.

  • Tabaru 78 TABARU Vira e mexe eu penso numa toada s. Fiz curso de filosofia pra escovar o pensamento, no valeu. O mais universal a que chego a recepo de Nossa Senhora de Ftima em Santo Antnio do Monte. Duas mil pessoas com velas louvando Maria num oco de escuro, pedindo bom parto, moo de bom gnio pra casar, boa hora pra nascer e morrer. O cheiro do povo espiritado, isso eu entendo sem desatino. Porque, merc de Deus, o poder que eu tenho de fazer poesia, quando ela insiste feito gua no fundo da mina, levantando morrinho de areia. quando clareia e refresca, abre sol, chove, conforme necessidades. s vezes da at de escurecer de repente com trovoado e raio. No desaponta nunca. feito sol. Feito amor divino.

    O modo potico 79 O MODO POTICO Quando se passam alguns dias e o vento balana as placas numeradas na cabeceira das covas e bate um calor amarelo sobre inscries e lpides, e quando se olha os retratos e se consegue dizer com lmpida voz: ele gostava deste terno branco e quando se entra na fila das vivas, batendo papo e cabo de sombrinha, que a poeira misericordiosa recobriu coisa e dor, deu o retoque final. Pode-se compreender de novo que esteve tudo certo, o tempo todo e dizer sem soberba ou horror: em sexo, morte e Deus que eu penso invariavelmente todo dia. na presena dEle que eu me dispo e muito mais, dEle que no pudico e no se ofende com as posies no amor. Quando tudo se recompe, saltitantes que vamos cuidar de horta e gaiola. A mala, a cuia, o chapu enchem o nosso corao como uns amados brinquedos reencontrados. Muito maior que a morte a vida. Um poeta sem orgulho um homem de dores

  • muito mais de alegrias. A seu cripto modo anuncia, s vezes, quase inaudvel em delicado cdigo: cuidado, entre as gretas do muro est nascendo a erva Que a fonte da vida Deus, h infinitas maneiras de entender.

    UM JEITO E AMOR

    Confortai-me com flores, fortalecei-me com frutos, porque desfaleo de amor.

    Cntico dos Cnticos

    Amor violeta 83 AMOR VIOLETA O amor me fere debaixo do brao, de um vo entre as costelas. Atinge o meu corao por esta via inclinada. Eu ponho o amor no pilo com cinza e gro de roxo e soco. Macero ele, fao dele cataplasma e ponho sobre a ferida.

    A serenata 84 A SERENATA Uma noite de lua plida e gernios ele vir com a boca e mo incrveis tocar flauta no jardin. Estou no comeo do meu desespero e s vejo dois caminhos: ou viro doida ou santa. Eu que rejeito e exprobo o que no for natural como sangue e veias descubro que estou chorando todo dia, os cabelos entristecidos, a pele assaltada de indeciso. Quando ele vier, porque certo que vem, de que modo vou chegar ao balco sem juventude? a lua, os gernios e ele sero os mesmos s a mulher entre as coisas envelhece. De que modo vou abrir a janela, se no for doida? Como a fecharei, se no for santa?

    Uma vez visto 85 UMA VEZ VISTO Para o homem com a flauta, sua boca e mos,

  • eu fico calada. Me viro em dcil, sbia de fazer com veludos uma caixa. O homem com a flauta meu susto pnsil que nunca vou explicar, porque flauta flauta, boca boca, mo mo. Como os ratos da fbula eu sigo roendo o inrovel amor. O homem com a flauta existe?

    O sempre amor 86 O SEMPRE AMOR Amor a coisa mais alegre amor a coisa mais triste amor coisa que mais quero. Por causa dele falo palavras como lanas. amor a coisa mais alegre amor a coisa mais triste Amor coisa que mais quero. Por causa dele podem entalhar-me, sou de pedra sabo. Alegre ou triste, amor coisa que mais quero.

    Cano de Joana dArc 87 CANO DE JOANA D'ARC A chama do meu amor faz arder minhas vestes. uma cano to bonita o crepitar que minha me se consola, meu pai me entende sem perguntas e o rei fica to surpreendido que decide em meu favor uma reviso das leis.

    A meio pau 88 A MEIO PAU Queria mais um amor. Escrevi cartas, remeti pelo correio a copa de uma rvore, pardais comendo no p um mamo maduro coisas que no dou a qualquer pessoa e mais que tudo, taquicardias, um jeito de pensar com a boca fechada, os olhos tramando um gosto. Em vo. meu bem no leu, no escreveu, no disse essa boca minha.

  • Outro dia perguntei a meu corao: o que que h duro, mal de chagas te comeu? No, ele disse: desprezo de amor.

    Os lugares comuns 89 OS LUGARES COMUNS Quando o homem que ia casar comigo chegou a primeira vez na minha casa, eu estava saindo do banheiro, devastada de angelismo e carncia. Mesmo assim, ele me olhou com olhos admirados e segurou minha mo mais que um tempo normal a pessoas acabando de se conhecer. Nunca mencionou o fato. At hoje me ama com amor de vagarezas, sbitos chegares . Quando eu sei que ele vem, eu fecho a porta para a grata surpresa. Vou abri-la como o fazem as noivas e as amantes. Seu nome : Salvador do meu corpo.

    Psicrdica 90 PSICRDICA Vamos dormir juntos, meu bem, sem srias patologias. Meu amor este ar tristonho que eu fao pra te afligir, um par de fronhas antigas onde eu bordei nossos nomes com ponto cheio de suspiros.

    Enredo para um tema 91 ENREDO PARA UM TEMA Ele me amava, mas no tinha dote, s os cabelos pretssimos e um beleza de prncipe de estrias encantadas. No tem importncia, falou a meu pai, se s por isto, espere. Foi-se com uma bandeira e ajuntou ouro pra me comprar trs vezes. Na volta me achou casada com D. Cristvo. Estimo que sejam felizes, disse. O melhor do amor sua memria, disse meu pai. Demoraste tanto, que...disse D. Cristvo. S eu no disse nada, nem antes, nem depois.

    Bilhete em papel rosa 92

  • BILHETE EM PAPEL ROSA

    A meu amado secreto, Castro Alves. Quantas loucuras fiz por teu amor, Antnio. V estas olheiras dramticas, este poema roubado: "o cinamomo floresce em frente ao teu postigo. Cada flor murcha que desce, morro de sonhar contigo". bardo, eu estou to fraca e teu cabelo to negro, eu vivo to perturbada, pensando com tanta fora meu pensamento de amor, que j nem sinto mais fome, o sono fugiu de mim. Me do mingaus, caldos quentes, me do prudentes conselhos, eu quero a ponta sedosa do teu bigode atrevido, a tua boca de brasa, Antnio, as nossas vias ligadas. Antnio lindo, meu bem, meu amor adorado, Antnio, Antnio. Para sempre tua.

    Medievo 93 MEDIEVO Senhor meu amo, escutai-me, a donzela espera por vs, no balco. Cuidai que no acorde os fmulos a paixo que estremece o vosso peito. Os galgos esto inquietos, a alimria pateia. Rogo-vos que vos apresseis.

    Um jeito 94 UM JEITO Meu amor assim, sem nenhum pudor. Quando aperta eu grito da janela ouve quem estiver passando fulano, vem depressa. Tem urgncia, medo de encanto quebrado, duro como osso duro. Ideal eu tenho de amar como quem diz coisas: quero dormir com voc, alisar seu cabelo, espremer de suas costas as montanhas pequenininhas de matria branca. Por hora dou grito e susto. Pouca gente gosta.

    Confeito 95

  • CONFEITO Quero comer bolo de noiva, puro acar, puro amor carnal disfarado de coraes e sininhos: um branco, outro cor-de-rosa, um branco, outro cor-de-rosa.

    Fatal 96 FATAL Os moos to bonitos me doem, impertinentes como limes novos. Eu pareo uma atriz em decadncia, mas, como sei disso, o que sou uma mulher com um radar poderoso. Por isso, quando eles no me vem como se dissessem: acomoda-te no teu galho, eu penso: bonitos como potros. No me servem. Vou esperar que ganhem indeciso. E espero. Quando cuidam que no, esto todos no meu bolso.

    Amor feinho 97 AMOR FEINHO Eu quero amor feinho. Amor feinho no olha um pro outro. Uma vez encontrado, igual f, no teologa mais. Duro de forte, o amor feinho magro, doido por sexo e filhos tem os quantos haja. Tudo que no fala, faz. Planta beijo de trs cores ao redor da casa e saudade roxa e branca, da comum e da dobrada. Amor feinho bom porque no fica velho. Cuida do essencial; o que brilha nos olhos o que : eu sou homem voc mulher. Amor feinho no tem iluso, o que ele tem esperana: eu quero amor feinho.

    Para cantar com o saltrio 98 PARA CANTAR COM O SALTRIO

    Te espero desde o acre mel de marimbondos da minha juventude. Desde quando falei, vou ser cruzado, acompanhar bandeiras, ser Maria Bonita no bando de Lampio, Anita ou Joana, desde as brutalidades da minha f sem dvidas. Te espero e no me canso, desde, at agora e para sempre, amado que vir para pr sua mo na minha testa

  • e inventar com sua boca de verdade o meu nome para mim.

    Briga no beco 99

    BRIGA NO BECO

    Encontrei meu marido s trs horas da tarde com uma loura oxidada. Tomavam um guaran e riam, os desavergonhados. Ataquei-os por trs com mo e palavras que nunca suspeitei conhecer. Voaram trs dentes e gritei, esmurrei-os e gritei, gritei meu urro, a torrente de improprios. Ajuntou gente, escureceu o sol, a poeira adensou como cortina. Ele me pegava nos braos, nas pernas, na cintura, sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fmea ofendida, uivava. Gritei, gritei, gritei at a cratera exaurir-se. Quando no pude mais, fiquei rgida, as mos na garganta dele, ns dois petrificados, eu sem tocar o cho. Quando abri os olhos, as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graas. Desde ento fao milagres.

    Cano de amor 100 CANO DE AMOR Veio o cncer no fgado, veio o homem pulando da cama no cho e andando de gatinhas, gritando: me deixa, gente, me deixa, tanta era sua dor sem remdio. Veio a morte e nesta hora H, a camisa sem boto. Eu supliquei: eu prego, gente, eu prego, mas, espera, deixa eu chorar primeiro. Ah, disseram Marta e Maria, se estivsseis aqui, nosso irmo no teria morrido. Espera disse Jesus, deixa eu chorar primeiro. Ento se pode chorar? Eu posso ento? Se me perguntassem agora da alegria da vida, eu s tinha a lembrana de uma flor miudinha. Pode no ser s isso, hoje estou muito triste, o que digo, desdigo. Mas a palavra de Deus a verdade. Por isso esta cano tem o nome que tem.

    Para o Z 101 PARA O Z Eu te amo, homem, hoje como toda vida quis e no sabia, eu que j amava de extremoso amor o peixe, a mala velha, o papel de seda e os riscos

  • de bordado, onde tem o desenho cmico de um peixe os lbios carnudos como os de uma negra. Divago, quando o que quero s dizer te amo. Teo as curvas, as mistas e as quebradas, industriosa como abelha, alegrinha como florinha amarela, desejando as finuras, violoncelo, violino, menestrel e fazendo o que sei, o ouvido no teu peito pra escutar o que bate. Eu te amo, homem, amo o teu corao, o que , a carne de que feito, amo sua matria, fauna e flora, seu poder de perecer, as aparas de tuas unhas perdidas nas casas que habitamos, os fios de tua barba. Esmero. Pego tua mo, me afasto, viajo pra ter saudade, me calo, falo em latim pra requintar meu gosto: Dize-me, amado da minha alma, onde apascentas o teu gado, onde repousas ao meio-dia, para que eu no ande vagueando atrs dos rebanhos de teus companheiros. Aprendo. Te aprendo, homem. O que a memria ama fica eterno. Te amo com a memria, imperecvel. Te alinho junto das coisas que falam uma coisa s: Deus amor. Voc me espicaa como o desenho do peixe da guarnio de cozinha, voc me guarnece, tira de mim o ar desnudo, me faz bonita de olhar-me, me d uma tarefa, me emprega, me d um filho, comida, enche minhas mos. Eu te amo, homem, exatamente como amo o que acontece quando escuto obo. Meu corao vai desdobrando os panos, se alargando aquecido, dando a volta ao mundo, estalando os dedos pra pessoa e bicho. Amo at a barata, quando descubro que assim te amo, o que no queria dizer amo tambm, o piolho. Assim, te amo do modo mais natural, vero-romntico, homem meu, particular homem universal. Tudo que no mulher est em ti, maravilha. Como grande senhora vou te amar, os alvos linhos, a luz na cabeceira, o abajur de prata; como criada ama, vou te amar, o delicioso amor: com gua tpida, toalha seca e sabonete cheiroso, me abaixo e lavo teus ps, o dorso e a planta deles eu beijo.

    A SARA ARDENTE I

    Uma chama de fogo saa do meio de uma sara que ardia sem se consumir.

    Escrito no xodo

    Janela 105 JANELA Janela, palavra linda. Janela o bater das asas da borboleta amarela. Abre pra fora as duas folhas de madeira -toa pintada,

  • janela jeca, de azul. Eu pulo voc pra dentro e pra fora, monto a cavalo em voc, meu p esbarra no cho. Janela sobre o mundo aberta, por onde vi o casamento da Anita esperando nenm, a me do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai: minhas intenes com sua filha so as melhores possveis. janela com tramela, brincadeira de ladro, claraboia na minha alma, olho no meu corao.

    Epifania 106 EPIFANIA Voc conversa com uma tia, num quarto. Ela frisa a saia com a unha do polegar e exclama: assim tambm, deus me livre. De repente acontece o tempo se mostrando, espesso como antes se podia fend-lo aos oito anos. Uma destas coisas vai acontecer: um cachorro late, um menino chora ou grita, ou algum chama do interior da casa: O caf est pronto. A, ento, o gerndio se recolhe e voc recomea a existir.

    Chorinho doce 107 CHORINHO DOCE Eu j tive e perdi uma casa, um jardim, uma soleira, uma porta, um caixo de janela com um perfil. Eu sabia uma modinha e no sei mais. Quando a vida d folga, pego a querer a soleira, o portal, o jardim mais a casa, o caixo de janela e aquele rosto de banda. Tudo impossvel, tudo de outro dono, tudo de tempo e vento. Ento me d choro, horas e horas, o corao amolecido como um figo na calda.

    O vestido 108 O VESTIDO

  • No armrio do meu quarto escondo de tempo e traa meu vestido estampado em fundo preto. de seda macia desenhada em campnulas vermelhas ponta de longas hastes delicadas. Eu o quis com paixo e o vesti como um rito, meu vestido de amante. Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido. s toc-lo, volatiza-se a memria guardada: eu estou no cinema e deixo que segurem a minha mo. De tempo e traa meu vestido me guarda.

    A cantiga 109 A CANTIGA Ai cigana, ciganinha, ciganinha, meu amor. Quando escutei essa cantiga era hora do almoo, h muitos anos. A voz da mulher cantando vinha de uma cozinha, ai ciganinha, a voz de bambu rachado continua tinindo, esganiada, linda, viaja pra dentro de mim, o meu ouvido cada vez melhor. Canta, canta, mulher, vai polindo o cristal, canta mais, canta que eu acho minha me, meu vestido estampado, meu pai tirando bia da panela, canta que eu acho minha vida.

    Dona doida 110 DONA DOIDA Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso com trovoadas e clares, exatamente como chove agora. Quando se pde abrir as janelas, as poas tremiam com os ltimos pingos. Minha me, como quem sabe que vai escrever um poema, decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos. Fui buscar os chuchus e estou voltando agora, trinta anos depois. No encontrei minha me. A mulher que me abriu a porta riu de dona to velha, com sombrinha infantil e coxas mostra. Meus filhos me repudiaram envergonhados, meu marido ficou triste at a morte, eu fiquei doida no encalo. S melhoro quando chove.

    Verossmil 111 VEROSSMIL Antigamente, em maio, eu virava anjo. A me me punha o vestido, as asas, me encalcava a coroa na cabea e encomendava: 'Canta alto, espevita as palavras bem'. Eu levantava voo rua acima.

  • A menina do olfato delicado 112 A MENINA DO OLFATO DELICADO Quero comer no, me (no canto do fogo o caldeiro esmaltado) quero comer no, me (arroz com feijo, macarro grosso) quero comer no, me (sem massa de tomate) quero comer no, me (com gosto de serragem) quero comer no, me (com cheiro de carbureto) quero comer no, (vi um gato no caminho, fervendo de bicho) quero comer no, me (quando inaugurar a luz eltrica e o pai consumir com o gasmetro, eu como). Vamos ficar no escuro, me. Pe lamparina, pe gasmetro no, o azul dele tem cheiro, o cheiro entra na pele, na comida, no pensamento, toma a forma das coisas. Quando a senhora tem raiva sem xingar igual a ruindade do gasmetro, a azuleza dele. Vomito me. Vou comer agora no. Vou esperar a luz eltrica.

    Cartonagem 113 CARTONAGEM A prima hbil , com tesoura e papel, pariu a mgica: emendadas, brincando de roda, as neguinhas da Guin. Minha alma, do sortilgio do brinquedo, garimpou: Eu podia viver sem nenhum susto. A vida se confirmava em seu mistrio.

    A flor do campo 114 A Flor do Campo Mais que a amargosa ptala mastigada, seu aspro odor e seiva azeda, a lembrana antiga das camadas do sono: h muito tempo, foi depois da missa, eu e mais duas tias num caminho, as pernas delas na frente, com meia grossa e saias. No ar os cheiros do mato, as palavras cordiais, o cu pra onde amos, azul, conforme as palavras de nosso Senhor, os lrios do campo, olhai-os, a flor do mato, a infncia.

    Registro 115

  • REGISTRO Visveis no facho de ouro jorrado porta adentro, mosquitinhos, gros maiores de p. A me no fogo atia as brasas e acende na menina o nunca mais apagado da memria: uma vez banqueteando-se, comeu feijo com arroz mais um facho de luz. Com toda fome.

    Mosaico 116 MOSAICO Joaquim Joo era artista de teatro. Dava as mos a Julietinha Marra e cantava adeus-amor. Fiquei picada de inquieto mel. s onze Joaquim subia do servio com o palet jogado num ombro s. Escondida eu cantava adeus-amor, com direta inteno e longo flego. Joaquim virava a cabea ao esganiado cdigo e eu cantava mais alto. Um dia, o melhor, se virou duas vezes. Eu descia da rvore, macaca sentimental, e ia fazer xixi na calcinha, s para experimentar, desenhar cinco salamo, rezar o anjo do Senhor anunciou a Maria e ela concebeu, o que era igual Letcia vindo brincar, o hlito saborosssimo de concebolas.

    Rebrinco 117 REBRINCO As primas vinham ensaboar as de missa. Enchiam a bacia de espuma, Tialzi cuspia dentro, ai que nojo. Mesmo assim, to bonito! As calcinhas de Tialzi amarelavam no fundo, dois, trs dias na grama, marronzavam. Eu andava em crculos, escutava conversa, interrogava com apertada ateno. Quando de to calada me notavam, eram as pragas. To boas, to como devem ser que eu desinteressava, ia chamar Letcia pra brincar. Medo que eu tinha era no ter mistrio.

    Ensinamento 118 ENSINAMENTO Minha me achava estudo a coisa mais fina do mundo. No . A coisa mais fina do mundo o sentimento. Aquele dia de noite, o pai fazendo sero, ela falou comigo: "Coitado, at essa hora no servio pesado". Arrumou po e caf, deixou tacho no fogo com gua quente.

  • No me falou em amor. Essa palavra de luxo.

    A SARA ARDENTE II Tira as sandlias de teus ps, porque a terra em que ests uma terra sagrada.

    Escrito no xodo

    O homem permanecido 121 O HOMEM PERMANECIDO Era uma vez uma venta fremente e um duro queixo. Era uma vez um pisado de levantar pedra e poeira. O que chamam de morte devastou com as narinas, o maxilar, o dorso dos ps e sua planta. Sobrou um gesto reto no espao, a fremncia, um modo de passos e voz. Eu lembro coisas que acontecero: era uma vez um homem que est rijo e cantante, sem o esprito e a lei da gravidade, alegre de nenhuma ameaa.

    Insnia 122 INSNIA O homem vigia. Dentro dele, estumados, uivam os ces da memria. Aquela noite, o luar e o vento no cip-prata e ele, o medo a cavalo em fuga das folhas do cip-prata. A me no fogo cantando, os zanges, a poeira, o ar anmico. Ladra seu sonho insone, em saudade, vinagre e doura.

    F 123 F Uma vez, da janela, vi um homem que estava prestes a morrer, comendo banana amassada. A linha do seu queixo era j de fronteiras, mas ele no sabia, ou sabia? Como posso saber? Comia, achando gostoso, me oferecendo corriqueiro, todavia inopinado perguntou ou perguntou comum como das outras vezes?

  • Como ser a ressurreio da carne? como ns j sabemos, eu lhe disse, tudo como aqui, mas sem as ruindades. Que mistrio profundo!, ele falou e falou mais, graas a Deus, pousando o prato.

    Episdio 124 EPISDIO Ele tinha o costume de gesticular seu pensamento, de sorte que estar parado era j ter compreendido ou no ter dvidas. Foi um abalo enorme quando se deu o que conto, porque ultimamente ocupava a compreenso em tomar os remdios, no comer sal, medir cor e volume de sua urina difcil. Sem que ningum suspeitasse ficou em p na sala e comeou a cantar, pondo e tirando da jarra o galhinho de flor, a voz como antes, firme, alta, grossa, anterior a qualquer debilidade do seu corpo. Um susto s avessas do susto foi o nosso, porque a barriga dele continuava altssima e alagava a mina rompida de sua perna. Fugimos como nas guerras. Um de ns foi chorar na privada, outro no quintal, eu inventei uma barata pra matar com um chinelo. A alegria dele desertava, quase, do que fosse uma alegria humana e no estvamos altura de entende-la. Sofrer era muito mais fcil.

    O retrato 125 O RETRATO Eu quero a fotografia, os olhos cheios dgua sob as lentes, caminhando de terno e gravata, o brao dado com a filha. Eu quero a cada vez olhar e dizer: estava chorando. E chorar. Eu quero a dor do homem na festa de casamento, seu passo guardado, quando pensou: a vida amarga e doce? Eu quero o que ele viu e aceitou corajoso, os olhos cheios dgua sob as lentes.

    O reino do cu 126 O REINO DO CU Depois da morte eu quero tudo o que seu vcuo abrupto fixou na minha alma. Quero os contornos desta matria imvel de lembrana, desencantados deste espao rgido. Como antes, o jeito prprio

  • de puxar a camisa pela manga e limpar o nariz. A camisa engrossada de limalha de ferro mais o suor, os dois cheiros impregnados, a camisa personalssima atrs da porta. Eu quero depois, quando viver de novo, a ressurreio e a vida escamoteando o tempo dividido, eu quero o tempo inteiro. Sem acabar nunca mais, a mo socando o joelho, a unha a canivete a coisa mais viril que eu conheci. Eu vou querer o prato e a fome, um dia sem tomar banho, a gravata pro domingo de manh, a homilia repetida antes do almoo: conforme diz o Evangelho, meus filhos, se tivermos f, a montanha mudar de lugar. Quando eu ressuscitar, o que quero a vida repetida sem o perigo da morte, os riscos todos, a garantia: noite estaremos juntos, a camisa no portal. Descansaremos porque a sirene apita e temos que trabalhar, comer, casar, passar dificuldades, com o temor de Deus, para ganhar o cu.

    Uma forma de falar e de morrer 128 UMA FORMA DE FALAR E DE MORRER Ele tinha um modo de falar a palavra inabalvel. O l final concludo moda dos holandeses que pregaram pra ns, catecismo, misses, missas dominicais. Inabalvel certeza, inabalvel f, poder inabalvel. Quando usava esta forte palavra, no a dizia com a boca de quem come as perecveis matrias, ou nomeia o que julga indigno do seu falar, melhor, por serem as comuns coisas: malho, bigorna, ferro, o encarregado, o chefe. Inabalvel, a lngua demorando na base superior dos dentes, a doutrina exigente necessitando de um mais puro som, conforme o que exprimia, coisas de Deus, eternas coisas aterradoras de to impossvel mcula. Quando a vida abalvel enrijeceu seu queixo, a lngua paralisada conformou se roxa, a ponta voltada para a raiz dos dentes, inabalvel.

    Modinha 129 MODINHA Quando eu fico aguda de saudade eu viro s ouvido. Encosto ele no ar, na terra, no canto das paredes, pra escutar nefando, a palavra nefando. Um homem que j morreu cantava a flor mimosa

  • desbotar no pode, nem mesmo o tempo de um poder nefando mais dolorido canta quem no cantor. A alma dele zoando de to grave, tocvel como o ar de sua garganta vibrando. No juzo final, se Deus permitisse, eu acordava um morto com este canto, mais que o anjo com sua trombeta.

    A poesia 130 A POESIA Recita Eu tive um co, depois Morrer dormir, ele dizia. Eu recitava toda poderosa. Eh trem!, ele falava, guturando a risada, os olhos amiudados de emoo, e comeava a dele: Estrela, tu estrela, quando tarde, tarde, bem tarde, brilhaste e volveste o teu olhar para o passado, recordas-te e dirs com saudade: sim, fui mesmo ingrato. Mas tu lembrars que a primavera passa e depois volta e a mocidade passa e no volta mais. A ltima palavra, sufocada. O que estava embaado eram seus culos. meu pai, o que me dava ento? Comida que mata a fome e mais outras fomes traz? Eu hoje fao versos de ingrato ritmo. Se os ouvisses por certo me dirias com estranheza e amor: Isso, Delo, isso! O bastante para eu comear recompensada. Agora as boas, pai, agora as boas: Eu tive um co, Estrela, tu estrela. Morrer dormir, jamais termina a vida, jamais, jamais, jamais.

    Figurativa 131 FIGURATIVA O pai cavando o cho mostrou pra ns, com o olho da enxada, o bicho bobo, a cobra de duas cabeas. Saa dele o cheiro de leo e graxa, cheiro suor de oficina, o brabo cheiro bom. Ns tnhamos comido a janta quente de pimenta e fumaa, angu e mostarda. Pisando a terra que ele desbarrancava aos socaves, catava tanajuras voando baixo, na poeira de ouro das cinco horas. A me falou pra mim: vai na sua av buscar polvilho, vou fritar uns biscoitos pra ns. A voz dela era sem acidez. Arreda, arreda, o pai falava com amor. As tanajuras no sol, a beira da linha, o verde do capim espirrando entre os tijolos da beirada da casa descascada, a menina embaraada com a opresso da alegria, o corao doendo, como se triste fosse.

  • O sonho 132 O SONHO O reconheci na frao do meu nome, me chamou como em vida, a partir da tnica: Dlia, vem c. Peguei nos ps do catre, onde jazia s sua cara doente, e o fui arrastando por corredores cheios de mdicos, seringas e uniformes brancos. Depois foi o dia inteiro o peito comprimido, sua voz no meu ouvido, seus olhos como s os dos mortos olham e a esperana, em puro desconforto e nsia.

    Para perptua memria 133 PARA PERPTUA MEMRIA Depois de morrer, ressuscitou e me apareceu em sonhos muitas vezes. A mesma cara sem sombras, os graves da fala em cantos, as palavras sem pressa, inalterada, a qualidade do sangue, inflamvel como o dos touros. Seguia de opa vermelha, em procisso, uma banda de msica e cantava. Que cantasse, era a natureza do sonho. Que fosse alto e bonito o canto, era sua matria. Aconteciam na praa sol e pombos de asa branca e marrom que debandavam. Como um trao grafado horizontal, seu passo marcial atrs da msica, o canto, a opa vermelha, os pombos, o que entrevi sem erro: a alegria tristeza, o que mais punge.

    As mortes sucessivas 134 AS MORTES SUCESSIVAS Quando minha irm morreu eu chorei muito e me consolei depressa. Tinha um vestido novo e moitas no quintal onde eu ia existir. Quando minha me morreu, me consolei mais lento. Tinha uma perturbao recm achada: meus seios conformavam dois montculos e eu fiquei muito nua, cruzando os braos sobre eles que eu chorava. Quando meu pai morreu, nunca mais me consolei. Busquei retratos antigos, procurei conhecidos,

  • parentes, que me lembrassem sua fala, seu modo de apertar os lbios e ter certeza. Reproduzi o encolhido do seu corpo em seu ltimo sono e repeti as palavras que ele disse quando toquei seus ps: deixa, t bom assim. Quem me consolar desta lembrana? Meus seios se cumpriram e as moitas onde existo so pura sara ardente de memria.

    ALFNDEGA

    Alfndega 137 ALFNDEGA O que pude oferecer sem mcula foi meu choro por beleza ou cansao, um dente exraizado, o preconceito favorvel a todas as formas do barroco na msica e o Rio de Janeiro que visitei uma vez e me deixou suspensa. 'No serve', disseram. E exigiram a lngua estrangeira que no aprendi, o registro do meu diploma extraviado no Ministrio da Educao, mais taxa sobre vaidade nas formas aparentes, inusitada e capciosa - no que estavam certos - porm d-se que inusitados e capciosos foram seus modos de detectar vaidades. Todas s vezes que eu pedia desculpas diziam: 'Faz-se de educado e humilde, por presuno', e oneravam os impostos, sendo que o navio partiu enquanto nos confundamos. Quando agarrei meu dente e minha viagem ao Rio, pronto a chorar de cansao, consumaram: 'Fica o bem de raiz pra pagar a fiana'. Deixei meu dente. Agora s tenho trs refns sem mcula.