Upload
tranquynh
View
218
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
ADEUS DOUTOR
(Peça em dois atos)
à memória de Oswald de Andrade
e
para José Celso Martinez Corrêa
APRESENTAÇÃO
Originária de uma família de imigrantes libaneses no Brasil, Seriema vive o drama de
uma ocidental descendente de orientais. Suas ancestrais precisavam dar à luz um primeiro
filho homem para satisfazer à expectativa da família. A gravidez se torna um problema na
vida de Seriema, que, depois de dois abortos, se separa a contragosto do marido. Porque a
maternidade, no caso dela, é impossível? Porque ela não pode se identificar com as mulheres
da família ou por algum outro motivo?
O fato é que Seriema resolve sair do Brasil a fim de esquecer o drama da separação.
Consegue uma bolsa e vai para a França, onde se submete a uma análise. Através desta,
descobre o verdadeiro motivo pelo qual não pode dar à luz, ou seja, o desejo inconsciente de
satisfazer o desejo do pai, que nunca a autorizou a ter um homem na sua vida. Graças à escuta
do analista, Seriema deixa de ser vítima do seu inconsciente, conquista a possibilidade de
escolher um pai para o filho e se tornar mãe. Por sua vez, o Doutor, que está mal casado, se dá
conta da sua indiferença em relação a si mesmo e resolve se separar a fim de começar outra
vida.
A peça se estrutura em torno das sessões. O modo como a sessão termina é sempre
função do que é dito e o texto o indica claramente. Trata-se do modo do analista, que se vale
também da interrupção da sessão para interpretar a fala da analisanda, dar ênfase ao que nela
é essencial. Cada sessão é uma cena e, tendo em vista a nacionalidade da analisanda, a
passagem de uma para outra cena pode ser pontuada por uma batida de tambor.
PERSONAGENS
Seriema: Analisanda brasileira do Doutor
Doutor: Analista francês
Além dos dois personagens, uma dançarina para o papel de Maria, babá de Seriema, que só
entra em cena dançando e cuja voz é ouvida em off.
ATO I
CENA 1
(Paris. O consultório do Doutor com uma janela e duas portas no fundo. A porta da esquerda
é a porta pela qual os analisandos entram. A da direita é a porta pela qual eles saem. Do
lado esquerdo do consultório, duas poltronas de veludo. Entre elas, mesinha com telefone.
Do lado direito, o divã e a poltrona do analista, imponente.
O Doutor e Seriema estão sentados face a face nas poltronas de veludo. O Doutor com blaser
e uma camisa branca, sem gravata. Seriema de terno, calça comprida e paletó, bolsa de
couro masculina. Ao longo da peça, a roupa da heroína se torna progressivamente mais
feminina.)
DOUTOR
Mas você se separou por quê? Até hoje eu não sei o motivo, o verdadeiro motivo.
SERIEMA
Não queria me separar. Foi o Antônio que saiu de casa. Depois do segundo aborto.
DOUTOR
Foram dois abortos.
SERIEMA
Sim, foram. Perdi a criança duas vezes. No segundo, o Antônio ficou maluco. Quebrou tudo
na casa e sumiu. Pedia para um amigo buscar o que precisava, mas não dava notícia. (Um
tempo) Eu queria que ele voltasse. Esperei três meses e nada. Me virei para conseguir uma
bolsa de estudos. Consegui e fiz as malas. Me distanciei, na esperança de que ele mudasse de
ideia. Por enquanto, nada. (Um tempo) Preciso descobrir por que eu estou sozinha… por que
eu perdi o Antônio.
DOUTOR
Não se separou, perdeu Antônio.
SERIEMA
(Um tempo) Perdi também o Brasil… Não sabia o que significa ser uma estrangeira.
(Sarcasticamente) “De onde você veio? De que país?” E eu nunca sei se estou falando direito.
Para qualquer açãozinha no passado, o francês usa três palavras. (Dizer as palavras em
francês uma a uma) Para comeu, il a mangé. Para um simples número noventa, três palavras:
quatre vingt dix. Eu aqui vivo vertendo e traduzindo, sou obrigada a pensar o tempo todo. No
Brasil, a língua pensa por mim…Até para tomar uma coca-cola aqui é complicado. Se você
não disser cocaaa em vez de coca e se você não mudar o artigo, não disser un coca em vez de
une coca, nada feito, ninguém entende.
DOUTOR
Hum… E o que mais? Diga.
SERIEMA
Não sei…
DOUTOR
(Solilóquio) “Não sei”. Quer e não quer fazer análise. Se o analista não tiver jogo de cintura,
está perdido. Quando está contrariado, tem que se calar. Se não, a análise acaba antes de
começar. (Um tempo) E ela vai ficar assim, em silêncio? Bonita ela… cabelos pretos lisos...
Será que ela tem algum ancestral índio? (Dirigindo-se a Seriema ) Sangue índio na sua
família?
SERIEMA
(Solilóquio) O quê? Eu, índia? Uma silvícola?! Era só o que faltava. O que ele está pensando?
Que eu sou descendente daqueles índios que viviam nus e se jogavam nos navios europeus,
achando que iam para o céu? Iam exibir o cocar e brandir o tacape, animar as festas francesas,
correndo o risco de morrer de frio ou de diarreia. Cadê o arco e a flecha, Seriema? As plumas
e os maracás?
DOUTOR
Você precisa me dizer o que passa pela sua cabeça. Tem sangue índio na sua família?
SERIEMA
Seriema é o nome índio de uma ave brasileira...um nome tupi-guarani. Mas eu de índio não
tenho nada. Já disse que sou neta de libaneses. A minha avó imigrou para o Brasil, porque o
futuro marido estava lá. Casamento arranjado. E ela não fez oposição. Só sabia dizer: “Do
Líbano para o Brasil, cinco filhos, porque maktub, estava escrito. Só isso”. Maktub e ela
entrou no navio, maktub e ela se casou, maktub… Nunca passou pela cabeça dela que uma
mulher pudesse ser livre, ter os mesmos direitos de um homem.
DOUTOR
E o que tem a história desta avó a ver com a sua?
SERIEMA
O que tem a ver comigo? Quando eu nasci, ela disse: “— Bonita criança… pena que seja uma
menina”. O meu nascimento foi uma decepção, ela queria um homem, um verdadeiro
primogênito. Pena que seja uma menina… Como é possível dizer isso? Uma frase basta para
salvar ou condenar uma pessoa, cavar a sepultura.
DOUTOR
Verdade.
SERIEMA
E a minha tia, então? Rezava dia e noite para conceber um varão! “— Ave, Maria, cheia de
graça, o Senhor é convosco… Ave, Maria, cheia de graça, bendito é o fruto...”. Fez até
promessa de atravessar a cidade de joelhos. Novenas e mais novenas. (Indignada) A gravidez
inteira pedindo um homem ao céu.
DOUTOR
Uma irracionalidade…
SERIEMA
Uma aberração!
DOUTOR
(Solilóquio) A gravidez era uma tortura na família dela. Ou a mulher dava à luz um
primogênito homem ou era desvalorizada. Como se o sexo da criança dependesse da mãe! A
mulher era uma injustiçada pelo simples fato de ser mulher. (Dirigindo-se a Seriema) Alguma
relação entre a sua história e a da sua mãe, da sua tia? Estou me referindo ao aborto… aos
abortos.
SERIEMA
O médico disse que foi problema no útero…
DOUTOR
E você não sabia?
SERIEMA
Na primeira vez que eu perdi a criança, não.
DOUTOR
(Surpreendido) E depois?
SERIEMA
Achei que o problema não era grave, que não teria maiores consequências. Só me operei
depois do segundo aborto, quando fui obrigada… uma infecção e uma hemorragia... podia ter
morrido.
DOUTOR
(Suspiro) Você sabia e não se tratou? (Seriema baixa a cabeça e fica calada) Diga, estou
escutando.
SERIEMA
Sei que é culpa minha.
DOUTOR
Você é responsável, culpada, não. Não foi um ato deliberado. Você não ignorou o problema
porque quis.
SERIEMA
E daí? Adianta falar? Adianta pôr fechadura na porta depois que a casa foi arrombada?
DOUTOR
Não há por que se desesperar. Você está em análise… pode trilhar um caminho novo,
reinventar a sua história. (O Doutor se levanta)
SERIEMA
Acabou? Já?
DOUTOR
Volte amanhã.
SERIEMA
Amanhã eu não posso.
DOUTOR
Então, depois de amanhã, às cinco. Até. (O Doutor se levanta e Seriema também, ela põe o
dinheiro em cima da mesa e sai) O aborto poderia ter sido evitado se ela tivesse dado ouvidos
ao médico. Quer ter um filho e, por alguma razão, não quer. Tomara que ela reflita sobre o
que disse, o fato de não ter se tratado, ter ignorado o que sabia, o “problema”… A paixão da
ignorância é a pior das paixões. (Um tempo. Senta, pega o telefone e liga para a secretária)
Ligue para o Eduardo, por favor. (Irritado) O Doutor Eduardo, claro.(Fica aguardando) Boa-
tarde. Tudo bem? O resultado do exame já chegou? (Um tempo) Metástase? Quimioterapia de
novo? (Afasta o telefone assustado, respira fundo e depois volta a falar) Minha mãe não faz.
(Um tempo) Vai ser muito difícil convencer... Ela não para de dizer que já viveu o suficiente
e, se tiver uma metástase, não quer mais se tratar… Mas eu volto a te ligar. (Desliga) Deus,
meu! Minha mãe está condenada! Não acredito. Tenho que contar para minha irmã. Vou fazer
isso pessoalmente. As duas são tão apegadas.
(A luz se apaga e se reacende quando a cena seguinte começa. Isso deverá se repetir até o
final)
CENA 2
(Penumbra. Maria fala em off ao som de uma batucada longínqua. Enquanto isso, o Doutor e
Seriema permanecem imóveis nas poltronas de veludo.)
VOZ OFF DE MARIA
A nuvem passa e a tristeza também. Onde está você Seriema?…você com o teu riso e a tua
alegria? Tão longe daqui! A nuvem passa e a tristeza também. O marido foi embora, mas
pode voltar. Invoca a Senhora da Magia, a Deusa da Sedução, ela tudo pode. Invoca o anjo
incendiário. (Tom de invocação) Oh, senhora da corola de fogo, prepara o filtro mágico —
olho de salamandra, dedo de rã, língua de cachorro –, prepara e faz Antônio beber. Crava no
coração dele a vara incandescente da paixão. Invoca, Seriema. (O tom do começo) A onda vai
e vem. Maria te espera, a tua Maria. Volta ouvir a bateria esquentando os tamborins. Volta ver
o voo dos pássaros inebriados pelo ritmo e pelo céu azul. A onda vai e vem.
(Iluminação do consultório)
SERIEMA
Sonhei com Maria, a baiana que me criou… “— Volta”, ela me dizia.
DOUTOR
(Um tempo) Só isso?
SERIEMA
Me aconselhava a invocar a Deusa da Sedução, pedir que me trouxesse o marido de volta.
Infelizmente, eu não acredito na magia. Se acreditasse, não estaria aqui.
DOUTOR
E o que mais?
SERIEMA
(Um tempo) Pensei no que o senhor disse. O senhor gostaria que eu tivesse sangue índio…
(Riso) Assim, poderia dizer aos colegas que fez análise de uma silvícola. (Ironicamente) Os
franceses adoram os bons selvagens.
DOUTOR
(Solilóquio) Por que ela está me provocando? A troco de quê? Melhor seria que ela tivesse
pensado no que disse: “Sabia e não me tratei”. A causa da separação é esta. Mas não adianta
insistir, forçar a mão aumenta a resistência... não é para isso que eu estou aqui. Paciência,
Doutor! (Dirigindo-se a ela) Estou escutando.
SERIEMA
Na verdade, eu gostaria de ter ascendentes índios, índios e portugueses… Não ser
descendente de imigrantes.
DOUTOR
Por que isso?
SERIEMA
Na infância, eu era chamada de “turca”… era depreciativo. Além de ser uma aberração,
porque meu avô deixou o Líbano para escapar dos turcos... para não ser alistado pelo exército
invasor.
DOUTOR
O exército otomano.
SERIEMA
E o nome do meu avô foi trocado quando ele entrou no Brasil… trocado na alfândega. Que
importância tinha o nome de um imigrante? De um Zé-Ninguém? Depois, como se não
bastasse, o Zé-Ninguém era chamado de come-gente.
DOUTOR
(Estranhando) Come-gente?
SERIEMA
É. Meu avô era mascate. Vendia mercadoria nos sítios … Mala nas costas, cem quilos, de sol
a sol. Vivia de lá para cá, sem almoço, sem onde dormir. “Algodão, seda, tafetá”.
Cumprimentava com Ahlo Sahla e o povo gritava: “— O turco, o come-gente chegou!” As
mães saíam correndo com as crianças. Como se o avô fosse um canibal. Come-gente, pelo
simples fato de falar outra língua.
DOUTOR
E você agora está num país cuja língua não é a sua… o francês não é a sua língua materna.
SERIEMA
Verdade, mas os meus avós são imigrantes libaneses. A França, para eles, era sinônimo de
civilização. Falar francês era o sonho da minha mãe. “— Música no meu ouvido”, ela dizia. E
eu estudei a língua.
DOUTOR
Seja como for, sua língua materna é o português...
SERIEMA
E daí?
DOUTOR
Você poderia fazer análise com uma portuguesa que mora aqui…
SERIEMA
(Solilóquio) Portuguesa? Nem pensar! Será que ele não sabe que a língua dela não é a
mesma? Parece que é, mas não é. A língua de Portugal é uma, a do Brasil é outra. Para
sanduíche, ela diz prego. Se me vir comendo um sanduíche, vai dizer que eu estou comendo
um prego. Broche, na língua portuguesa dela, significa felação. Se eu a elogiar pelo broche,
me expulsa do consultório. Não, não é possível! Do ponto de vista dela, eu deturpo, estrago a
língua… preciso mais de aulas de português do que de sessões.
DOUTOR
E então?
SERIEMA
Não, com portuguesa, nem pensar! Prefiro não fazer análise.
DOUTOR
Bom, então, volte amanhã. Às cinco. (O Doutor se levanta e Seriema também. Ela paga e vai
embora. O Doutor se senta) Seriema quer fazer análise comigo. E, se não for comigo, não faz.
Então, tem que ser como ela quer. Mas por que ela insiste em fazer análise em francês, numa
língua que não é a dela? Seja como for, ela sabe o que quer e o que não quer.
CENA 3
(O Doutor está sentado sozinho no consultório, lendo o jornal)
DOUTOR
(Olha o relógio) Pode ser que não venha. Insiste em fazer análise comigo e depois... falta.
Sugeri a analista portuguesa. Será que se sentiu rejeitada? Nem tudo o que se diz em
português pode ser dito em francês. Agora, o problema talvez nem seja este. Talvez seja o
sexo do analista. Pode ser que ela sequer imagine a possibilidade de fazer análise com uma
mulher. (Pega o telefone e liga. Um tempo) E mamãe que não atende? Pedi para minha irmã ir
à casa dela. (Um tempo) Mamãe não quer mesmo saber de outra quimioterapia. Já sofreu
muito, mas eu não me conformo. Como ficar sem ela? Quero ela viva enquanto for possível.
Sei que sou egoísta. Ninguém pode pedir que o outro se submeta ao tratamento custe o que
custar, doa a quem doer. Sempre me disse que respeitaria a decisão dela, só que agora… eu
não sou eu. (Pega o jornal. Vira as páginas e para na manchete que lê alto)
O CORAÇÃO TEM SEXO.
HÁ DIFERENÇAS ENTRE O DO HOMEM E O DA MULHER.
Até na anatomia do coração, homem e mulher são diferentes! (O telefone toca, ele atende)
Mamãe? Fui eu, sim, que telefonei (Um tempo) Claro, a vida é sua. Sei, sei. Você tem o
direito de decidir. Mas… Mãe? Alô, alô… Desligou, merda! (Põe o telefone no gancho e olha
de novo o relógio) Cinco e meia. Seriema não vem mais (Levanta, joga o jornal e sai)
CENA 4
(O Doutor está de pé. Seriema entra irritada. Ele se senta, e ela, não)
SERIEMA
(Fala em pé) Ouvi o senhor dizer para a secretária: “— A brasileirinha pode entrar”.
DOUTOR
Sente-se. (Ela se senta e fica com a bolsa pendurada no ombro) Sim, foi, eu disse
brasileirinha. O diminutivo em francês é afetuoso.
SERIEMA
Me lembrou do turquinha da minha infância. Não suporto nenhum rótulo, Doutor. (Diz
“Doutor” sarcasticamente )
DOUTOR
(Solilóquio) Merda! Por que eu disse brasileirinha?
SERIEMA
Meu avô contava que, no Líbano, os cristãos eram obrigados a se identificar com uma tarja na
manga. Só podiam andar em um dos lados da rua. Quem andasse no outro, ia preso. “—
Ishmel! Ishmel! À esquerda.” (Irritada) O avô foi chamado de cristão, turco e come-gente e
eu agora sou a brasileirinha. Prefiro ser chamada pelo meu nome: Seriema.
DOUTOR
Com razão. E o que mais? Diga.
SERIEMA
Não sei bem por que estou na França…
DOUTOR
(Solilóquio) Ela não se escuta, não escuta o que diz. (Dirigindo-se a Seriema) Você disse que,
para sua família, a França era sinônimo de civilização… (O telefone toca. O Doutor olha o
número no mostrador e atende) Sim, mãe. Assim que terminar, eu ligo. (Dirigindo-se a
Seriema) Desculpe.
SERIEMA
Pode falar com ela.
DOUTOR
Não. Eu agora estou só para você.
SERIEMA
Verdade que mamãe queria ter nascido aqui. (Ironicamente) “— Paris! A Torre Eiffel, o
Panthéon, Edith Piaf, os direitos do homem! A Sorbonne e os doutores de verdade. A Cidade
Luz! Até a Estátua da Liberdade foi esculpida em Paris!” (Um tempo) Mas o que tenho eu a
ver com a minha mãe? Aqui eu não conheço ninguém… O meu quarto é mínimo e a cama tão
mole que prefiro dormir no chão. Eu, que me criei descalça, não tiro mais a bota do pé. Estou
a dez mil quilômetros de casa.
DOUTOR
(Enfaticamente) Verdade que você deixou o país, a casa, os familiares... Foi uma grande
largada. De um continente para o outro.
SERIEMA
Por causa de um marido que só me queria se eu desse à luz. Para ele, mulher nenhuma é
única. Se casou várias vezes. Qualquer uma ele faz sua mulher. Não quero ficar num pedestal,
mas também não quero ser igual a todas as outras.
DOUTOR
(Solilóquio) Uma ancestral que precisava pôr no mundo um homem para ser querida… corria
o risco de ser desvalorizada ao dar à luz. Seriema não podia se identificar com ela, mas
poderia ter se identificado com outra mulher e ter se tratado para chegar ao termo da gravidez.
Curioso... e se veste sempre de terninho, a mesma bolsa a tiracolo… não usa joia, só esse
pendente estranho. (Dirigindo-se a ela) Você disse que não quer um pedestal, mas também
não quer ser igual a todas as outras. O que significa isso?
SERIEMA
O que significa? Não sei.
DOUTOR
Pense. Nós hoje ficamos por aqui. (Diz isso, levanta e estende a mão para receber. Seriema
paga)
DOUTOR
São 100 euros.
SERIEMA
Como assim?
DOUTOR
Pela sessão de hoje e pela outra, a que você faltou.
SERIEMA
Não tenho 100… (Olha na carteira.) Tenho 100.
DOUTOR
Então, ótimo. (Seriema, envergonhada, paga e sai. O Doutor fica sentado.) Por que ela diz
que não tem o que me deve quando tem?
CENA 5
(Seriema está no consultório, sentada numa das poltronas de veludo. O Doutor está em pé,
olhando fixamente para o pendente que ela usa no pescoço)
DOUTOR
No que você está pensando?
SERIEMA
Com o senhor aí me encarando, eu não consigo pensar. (Solilóquio) Vou dizer que não gosto
de ser olhada assim? Que o olhar me incomoda? Que eu não quero ser cobiçada por ele?
(Dirigindo-se a ele) O senhor tem a idade que o meu pai teria se fosse vivo.
DOUTOR
Hum (O Doutor se afasta um pouco, mas continua em pé) E isso no seu pescoço é o quê?
SERIEMA
O olho de vidro?
DOUTOR
Sim, o olho. Seria um fetiche?
SERIEMA
(Surpreendida) Um fetiche… Nunca me ocorreu que pudesse ser um. (Solilóquio) Depois de
ter me tomado por uma silvícola, ele agora me toma por uma fetichista…
(Silêncio)
DOUTOR
(O Doutor se senta) O que mais você me diz?
SERIEMA
Verdade que eu só saio de casa com o olho, “de corpo fechado”.
DOUTOR
O quê?
SERIEMA
De corpo fechado significa protegida contra a inveja… contra o olho-gordo, o olho mau,
como diz Maria.
DOUTOR
Maria? Quem é?
SERIEMA
A babá negra que me criou… O senhor não escuta. Já falei dela. Porque é dela que eu mais
sinto falta aqui.
(Penumbra. Som de canção de ninar longínqua. Voz off de Maria, que entra em cena
dançando e ninando a pequena Seriema. Enquanto isso, o Doutor e Seriema permanecem
imóveis)
VOZ OFF DE MARIA
Vem cá, coração, vem cá, meu bem. Abraço nunca é demais. A princesa agora precisa dormir.
Medo? Ora… Do quê, filhinha? O vento que zuniu? O raio que caiu? O trovão? E eu aqui?
Dorme, dorme coração.
(Maria sai. Iluminação do consultório)
SERIEMA
Maria nunca me deixou. O olho é um amuleto que ela me deu, um patuá… sem ele eu não
vivo.
DOUTOR
Não vive?
SERIEMA
Não. Mas por que a pergunta?
DOUTOR
Para você se dar conta da sua crença na magia.
SERIEMA
O quê?
DOUTOR
É, você acredita na magia.
SERIEMA
(Exaltada) Acredito em Maria, que me criou. Maria é mais que mãe, é a minha protetora…
me deu o patuá para ele me proteger, como ela. Quem não precisa de proteção? Não basta
estar na França sozinha? Viver sem amor?
DOUTOR
Um amor… isso é o que você mais quer.
SERIEMA
Verdade. Um homem para quem eu seja única…
DOUTOR
Tão única como a filha pode ser para o pai?
SERIEMA
(Um tempo) Meu pai? Morreu há anos! Perdi de vista.
DOUTOR
(Solilóquio) Diz que perdeu o pai de vista. O esquecimento é tão estranho quanto importante.
(Dirigindo-se a Seriema) Bom, até a próxima sessão.
SERIEMA
(Ironicamente) Até a próxima, já?
DOUTOR
(O Doutor se levanta, Seriema paga e sai. Depois, ele se senta novamente e toma notas. O
telefone toca, ele lê o mostrador e atende) Eduardo? Sei, eu sei. Minha mãe não quer fazer o
tratamento. Por que você não fala com ela? Tenta. Obrigado. (Desliga o telefone. Põe a mão
na testa. Aperta a cabeça com os dedos) Já tirou o seio e fez quimioterapia. Agora, está com
uma metástase… não quer mais. “— Não é viver que importa… é viver bem”. Mamãe diz
isso e eu concordo, mas... Não adianta saber que, para ela, a vida não vale mais a pena, se
tornou sinônimo de sobrevida. Saber é uma coisa, aceitar é outra. Preciso falar com minha
irmã (Pega o telefone e disca. Um tempo. Desliga) Secretária eletrônica.
CENA 6
(Seriema e o Doutor estão sentados face a face. Silêncio)
DOUTOR
(Solilóquio) E Seriema que vem para não dizer nada? Se ao menos ela falasse, eu pararia de
pensar na morte, no tempo que passa. (Dirigindo-se a ela) Aqui, você pode falar livremente.
Nada do que você disser será censurado.
SERIEMA
Nunca me ocorreu que o senhor pudesse me censurar. Do contrário, eu não viria. Estranhei o
seu telefonema, perguntando a que horas eu estaria no seu consultório… Nunca ouvi dizer
que analista fizesse isso. O senhor deve ter adivinhado que eu não queria vir…
DOUTOR
Mas você veio, fale.
SERIEMA
(Irritada) Não tenho como dizer o que eu quero. Porque, na sua língua, a palavra me falta...
DOUTOR
Que palavra?
SERIEMA
Saudade. Sem essa palavra, eu não sou eu. Sinto falta da língua e do Brasil. Bonjour e o meu
país me falta, o bom-dia… Bonsoir e eu estranho. Bonsoir não existe na minha língua. Só
boa-noite, bonne nuit. Porque a noite, lá, cai num piscar de olhos. Aqui, quando falo uma
palavra errada, a pessoa primeiro me corrige… só depois escuta o que eu quero dizer. E é
impossível não errar. Em francês, mar é feminino, la mer, em português, é masculino. Banco
em francês é feminino, la banque. E, por mais que eu vá ao banco, eu sempre digo le banque,
eu erro.
DOUTOR
(Solilóquio) Será que ela vai continuar essa enumeração? Não passa uma única sessão sem
falar do problema da língua. Isso serve para ela se desviar do que realmente importa, do
essencial.
SERIEMA
E o pior é que o samba aqui virou la samba… Tudo trocado. Árvore, palmeira, fruta em
francês são masculinos. Até o sexo da bola é diferente…
DOUTOR
O sexo masculino das palavras, o sexo feminino, o sexo… (Seriema vira abruptamente o
rosto para escapar ao olhar do Doutor. Fixa o divã. Depois, se levanta e se precipita sobre
ele. Seguindo o movimento dela, o Doutor se senta na poltrona) Você não foi para o divã,
você conquistou o divã! De agora em diante, ele é seu.
SERIEMA
(Um tempo. Ironicamente) O divã é meu… Para dizer o quê? Que eu durmo sozinha toda
noite? Nem sei mais o que é sexo. Ou melhor, sei. Mas sexo sem amor não conta. Com ele, ao
menos…
DOUTOR
Com ele quem?
SERIEMA
Antônio. Com ele, eu ao menos tinha a ilusão do amor. Achava que ele me amava... meu
contentamento saltava aos olhos.
DOUTOR
E você agora acha que estava enganada? Que não era amor?
SERIEMA
(Um tempo) Não sei mais o que eu acho.
(Seriema levanta a cabeça e olha fixamente para o Doutor)
DOUTOR
E aí? Diga.
SERIEMA
Lembrei do que o meu pai me disse pouco antes de morrer: “— Não esquece que eu te amo”.
Parecia uma cobrança.
DOUTOR
Era (Enfaticamente) E dele você não esquece… (O Doutor se levanta. Seriema paga e sai)
Bom, o face a face acabou. Seriema não precisa mais ficar me olhando. Já pode ficar deitada,
à escuta de si. Foi uma conquista. As pessoas vivem sem se escutar, orelha de eucatex… Há
quem morra por não ter se escutado, ter sido surdo para si mesmo… para o próprio corpo, que
não fala, grita. Uma surdez que basta para justificar a Psicanálise. Se é que ela ainda precisa
ser justificada.
(A partir desta sessão, até o fim, Seriema irá para o divã)
ATO II
CENA 1
(As poltronas de veludo estão no escuro e é o divã que a luz focaliza. A janela, apenas visível
no começo do ato, vai se tornando mais perceptível à medida que a peça avança. Seriema
entra assustada e deita.)
DOUTOR
O que aconteceu? Diga
SERIEMA
(Um tempo. Abruptamente) Aconteceu que eu tive uma alucinação. Isso nunca tinha me
acontecido antes.
DOUTOR
Uma alucinação… (Sem se alterar) E como foi isso?
SERIEMA
Como foi? Eu vi...
DOUTOR
Diga.
SERIEMA
(Baixinho) Ratos (Enojada) Vi ratos na sua sala de espera. O outro paciente disse que não
havia, mas eu vi… vi dois.
DOUTOR
Dois o quê?
SERIEMA
Dois ratos enormes, pretos, horrendos.
DOUTOR
(Estranhando) Dois ra-tos?
SERIEMA
(Um tempo) Que estranho!
DOUTOR
O quê?
SERIEMA
O senhor disse a palavra e eu me dei conta de que ra é a primeira sílaba do nome do meu
pai…e do nome do meu bisavô.
DOUTOR
Qual é o nome?
SERIEMA
Raji… E foi para não ser executado que o meu bisavô emigrou … para que os filhos
pudessem cultuar seus santos, vivessem em paz e enterrassem os seus mortos. Morreu no
navio e, para evitar a peste, foi atirado no mar. O corpo envolto numa mortalha. Os versículos
da Bíblia… adeus… alla cum mag.
DOUTOR
Hum.
SERIEMA
Saiu do Líbano, mas não conseguiu chegar no Brasil.
DOUTOR
Chegou, Seriema. Do contrário, você não estaria falando nele.
SERIEMA
Até hoje, eu nunca havia falado. Como nunca dizia o nome do meu pai quando era criança.
“— Como chama o seu pai?” “— Roberto… Ricardo...” Raji, mesmo, eu nunca dizia. Ia
correr o risco de ser chamada de turquinha? (Seriema cobre o rosto com as mãos)
DOUTOR
(Afetuosamente) O importante, minha cara, é que você agora possa dizer o nome. Que você
possa dizer a sua verdade. Não há como negar eternamente as origens… renegar os ancestrais.
A vida depende do que a gente pode dizer… Sua vida mudou.
SERIEMA
E a alucinação?
DOUTOR
Não vai mais ter. O nome que você calava para esconder as origens se materializou… se
materializou no rato. Você agora pode dizer Raji. Não há mais razão para alucinação. Você
não está mais sujeita a uma aparição inesperada do seu pai… (O Doutor se levanta) Volte
amanhã. (Seriema se levanta, paga e sai) Horrível não poder ser árabe, judeu, negro... não
poder ser quem a gente é… nada é pior do que o racismo voltado contra si mesmo. Disso,
Seriema está curada… se curou hoje, aqui na análise. (Um tempo) Quem precisa de um
analista sou eu, que não aceito a decisão da minha mãe. Ela é categórica : “— Só cuidados
paliativos”. Sempre fui contra o furor terapêutico, mas a morte significa nunca mais…
significa viver sem a certeza de que ela está para o nosso encontro… para me olhar e me
chamar de filho. O filho dela eu vou ser sempre. O filho dela para ela, nunca mais.
(A luz se apaga no final desta cena e das seguintes.)
CENA 2
(O Doutor na poltrona e Seriema no divã)
SERIEMA
Sonhei com meu pai. Faz tanto tempo que ele morreu!
DOUTOR
E o sonho? Como era?
SERIEMA
Estava numa sala na academia de judô, perto da casa onde eu morava na infância. Eu era a
única menina. Vestida de branco e já preparada para lutar… com a faixa amarela na cintura.
DOUTOR
Amarela?
SERIEMA
É, a dos principiantes. O pai estava sentado e me mostrava a faixa preta dos campeões. Queria
assistir à luta. De repente, o professor irrompe na sala e exige a devolução da faixa preta. Dou
um grito e saio correndo. Meu pai me alcança na rua, me segura pelo braço, tira do bolso
outra faixa e dá uma gargalhada.
DOUTOR
Um pai imbatível!
SERIEMA
Ele queria que eu fosse imbatível, campeã de judô, caratê, sei lá eu… Tudo o que os meninos
do bairro faziam eu fazia. Meu pai dizia: “— Você nasceu para ser como eles. Se os meninos
aprendem, você também pode”. O que o pai quisesse, eu queria… os esportes e os estudos.
Fui educada para competir, ganhar concursos, bolsas...
DOUTOR
Por isso você está aqui… Veio com uma bolsa de estudos, não foi?
SERIEMA
(Um tempo. Ironicamente) Ganhei a bolsa depois de ter perdido a vida, o filho que eu
concebi. Abortei em vez de dar à luz. Melhor seria ter nascido estéril e não ter criado
expectativas.
DOUTOR
Que relação existe entre ter perdido o filho e a sua história?
SERIEMA
Que história?
DOUTOR
Sua infância… seu pai.
SERIEMA
Meu pai está morto e enterrado!
DOUTOR
Enterrado não quer dizer esquecido. O seu sonho é a prova disso.
SERIEMA
Morreu depois de ter me educado para gostar só dele. “— Não esquece que você comigo pode
contar sempre. Nunca alguém vai te amar como eu.” Sempre, nunca…
DOUTOR
O que mais?
SERIEMA
Ia me buscar na escola e queria saber se algum menino havia falado comigo. Quando eu
respondia não, e todo dia eu respondia a mesma coisa, ele sorria. Depois, me perguntava: “—
O que você teria feito?” Eu dizia que teria dado no menino. Daí, ele: “— Bem feito.” Não
aceitava que eu me interessasse por nenhum outro. Me queria só para ele. (Seriema cobre o
rosto com as mãos)
DOUTOR
(Solilóquio) Decididamente, ele fez tudo para indispor a filha com os homens… ou seja,
metade da humanidade. Não é à toa que ela está em análise. (Dirigindo-se para Seriema) O
que importa é você ter se lembrado da história.
SERIEMA
Importa por quê?
DOUTOR
Porque quem ignora o passado se torna vítima dele, fica se repetindo, não pode reinventar a
sua vida. (Ele se levanta, Seriema paga e sai) Não queria saber do pai, ele voltou no sonho. O
ancestral volta, não deixa de existir. O meu consolo é este. Quando mamãe não estiver mais,
ela ainda estará comigo… no sonho, na lembrança para me chamar de filho e me dizer que é
preciso viver bem.
CENA 3
(O Doutor na poltrona e Seriema no divã)
SERIEMA
Saí mal daqui. Estou pagando para sofrer. Não sei se quero continuar.
(Silêncio)
DOUTOR
E saiu mal por quê?
SERIEMA
Saí com vergonha do pai… e me lembrei de outras vergonhas.
DOUTOR
Você aqui pode falar, deve… eu estou para escutar.
SERIEMA
(Um tempo) O seio… quando ele começou a crescer, que vergonha! E o bico que se
transformou numa pedrinha? Doía e significava corpo de mulher. De repente, eu deixei de
não ter sexo.
DOUTOR
Deixou de não ter sexo?
SERIEMA
É. Deixei de não ter sexo. Antes da pedrinha do mamilo, o sexo não existia. Daí, foi uma
vergonha atrás da outra. Os pelinhos, o sangue todo mês… a menstruação. Eu me retorcia de
cólica e sentia nojo. Quisesse ou não, eu não era mais como o pai. E, como a mãe, eu não
queria ser... Ela vivia para a igreja. Para ela, tudo era pecado. A palavra liberdade era uma
palavra vazia. Por sorte, quem me criou foi Maria.
DOUTOR
Você teve tanta vergonha do seu corpo quanto das suas origens… o corpo contrariava seu
desejo de ser assexuada.
SERIEMA
(Ironicamente) “— Se os meninos aprendem, você também pode”. E eu imaginava que era
mesmo como eles. (Riso) Qual nada! Só tinha o direito de fazer o que o pai queria. Foi só
encontrar o primeiro namorado que ele deixou de falar comigo. Quis me matar.
DOUTOR
Verdade?
SERIEMA
Não fosse Maria…
(Penumbra. Som de bossa nova. Voz off de Maria, que entra dançando.)
VOZ OFF DE MARIA
Por que você se maltrata? Não há nada de errado com você, Seriema. O seu pai está com
ciúme. O coração ciumento é ciumento porque é. Não liga… O que importa é o que você
sente... Não dá bola, deixa estar, vem, meu bem...
(Maria sai. Iluminação do consultório)
SERIEMA
Maria me dava força. Mas o pai ficou derrotado e eu não tinha mais prazer no namoro. Quis
largar do namorado e, depois, foi ele que me largou.
DOUTOR
(Solilóquio) Mais uma vítima do ciúme… da tirania do ciúme.
SERIEMA
Só tive prazer quando conheci Antônio, ele me incendiou. Gostei do que senti… O sexo
nunca era o mesmo e eu ia para longe. Esqueci a vergonha. Para nós, a palavra pecado não
fazia sentido. Com ele, eu não sabia quem era homem e quem era mulher, cada um de nós
podia ser um e outro. Não tivesse sido o aborto… Antônio me disse que eu não queria um
filho dele. (Um tempo) Isso foi no hospital… logo depois da hemorragia e da operação do
útero. A partir daí, não deu mais certo. Fiquei curada e sem marido.
DOUTOR
(Enfaticamente) E você queria um filho de Antônio?
SERIEMA
(Um tempo) Não sei. (O Doutor se levanta) Digo não sei e o senhor se levanta.
DOUTOR
Verdade.
SERIEMA
Para me deixar com o não sei? Não suporto essa maneira de acabar a sessão… essa
interrupção repentina, brutal (Seriema se levanta e vai sair sem pagar)
DOUTOR
50 euros.
SERIEMA
Não saquei dinheiro.
DOUTOR
Então, vá e volte.
SERIEMA
(Solilóquio na porta do consultório) Amanhã eu volto. Hoje, eu vou tirar férias do
inconsciente!
CENA 4
(O Doutor espera Seriema sentado na sua poltrona)
DOUTOR
(Solilóquio) Um ser sem sexo era o que Seriema queria ser. Porque o sexo biológico
contrariava a fantasia dela… a fantasia de ser como o pai.
SERIEMA
(Entra agitada e deita imediatamente) Me atrasei porque Antônio telefonou. Foi ontem à
noite. Disse que precisava me ver. Respondi simplesmente que eu agora estou em Paris. Ele
desligou e ligou de novo. “— Você está aí... então eu vou aí.” Fiquei perplexa.
DOUTOR
Não é para menos.
SERIEMA
E eu agora estou confusa.
DOUTOR
Hum.
(Silêncio)
SERIEMA
Essa história de pagar cada vez que eu venho me perturba. Não entendo por que tem que ser
assim. Seria melhor se não fosse.
DOUTOR
Para esquecer que você me paga… que eu sou o seu analista. Amor incondicional... é isso que
você quer.
SERIEMA
E eu não nego. Queria ser amada sem condições por Antônio… com filho ou sem filho.
Queria ser amada como eu amava. Engravidei duas vezes porque ele queria.
DOUTOR
(Solilóquio) Engravidou para satisfazer o marido! Uma verdadeira aberração… Isso é que é
ser objeto do desejo do outro. (Dirigindo-se a Seriema) Você só queria o que o Antônio
quisesse… exatamente como na sua infância.
SERIEMA
Não entendo.
DOUTOR
Na infância, você só queria o que o seu pai quisesse… não falava com ninguém na escola...
menino nenhum.
SERIEMA
(Um tempo) Verdade. E depois... sem saber, eu vivi só para satisfazer o Antônio.
DOUTOR
Só que você engravidou e não deu à luz. O desejo de satisfazer o seu marido não foi
realizado… Por quê?
SERIEMA
O senhor só escuta o que eu digo para saber outra coisa.
DOUTOR
(Solilóquio) Está se desviando de novo. Se pudesse, discutiria comigo a teoria analítica para
continuar na ignorância… para não fazer análise.
SERIEMA
O senhor faz perguntas... Respostas, nunca me dá. E eu hoje não tenho o que dizer. Não
aguento mais. Posso ir embora? Quero dormir. Nessa noite, depois do telefonema, eu não
preguei o olho. Fiquei me perguntando o que fazer.
DOUTOR
Até a próxima semana. (O Doutor se levanta)
SERIEMA
Próxima semana?
DOUTOR
O feriado... só por causa do feriado.
SERIEMA
(Seriema se levanta. Ironicamente) Boas férias. (Paga e sai)
DOUTOR
(De pé, andando) Fica mais bonita quando está contrariada. Tão feminina quanto masculina.
De sem sexo ela não tem nada, um andrógino. Por isso gosta de Antônio…“com ele eu não
sabia quem era homem e quem era mulher…cada um de nós podia ser um e outro”. Seriema
não faz questão de ser isto ou aquilo, ela tem uma liberdade que eu não tenho… Nunca tive
uma experiência como a dela. Ou melhor, posso até ter tido, porém, não ousaria dizer que
tive. Dizer que eu não sabia se era homem ou mulher? Nunca. Medo de ser homossexual…
Como se a bissexualidade não existisse. Estudei e não aprendi o que estudei… A análise é
mesmo interminável. Não basta estudar a teoria para reconhecer a própria bissexualidade. A
liberdade desta brasileira, que não tem sangue índio, mas poderia ter, me fascina.
CENA 5
(O Doutor está na poltrona e Seriema, sentada no divã.)
DOUTOR
Melhor deitar. (Seriema põe uma perna no divã.)
SERIEMA
Eu nem vinha hoje.
DOUTOR
Mas você veio e é isso que importa. E você agora está no divã, está deitada… (Seriema não se
mexe e ele não insiste. Solilóquio) Não posso insistir na posição correta. Não quero correr o
risco de que ela vá embora, interrompa a sua análise... preciso ser maneiro.
SERIEMA
(Um tempo) Sexta-feira, eu esqueci a chave no apartamento e não pude entrar no prédio. Tive
que ficar na rua, esperando a vizinha chegar, até três da madrugada. Fiquei doente e passei o
fim de semana na cama. (Enfaticamente) E, ontem, não foi um sonho que eu tive, foi um
pesadelo!
DOUTOR
Estou escutando.
SERIEMA
(Ironicamente) “Estou escutando” Se não tivesse falado do meu pai, eu não teria tido o
pesadelo. Acordei tão assustada que me cortei… bati a cabeça na porta de vidro do banheiro.
Não suporto mais esta análise.
DOUTOR
Mas o que você sonhou?
SERIEMA
Não posso contar.
DOUTOR
Pode, aqui você pode.
SERIEMA
(Seriema se deita) Eu estava numa bolha vermelha… dormindo no chão. De repente, um
assobio e uma voz que dizia: “— Hora agora de acordar”. A frase do meu pai... todas as
manhãs.
DOUTOR
E o que mais?
SERIEMA
(Um tempo) Acordo e vejo o chão da bolha que flutua. Me estiro e levanto com cuidado para
não cair. Ando como se estivesse em cima de uma corda bamba. A cada passo, a voz: “Mens
sana in corpore sano”. Outra frase favorita do meu pai. Paro e fico olhando o vermelho, que
vai clareando e se transforma num clarão... De repente, ele aparece.
DOUTOR
Quem aparece?
SERIEMA
O pai… (Ela se cala e cobre o rosto com as mãos)
DOUTOR
Vergonha do quê?
SERIEMA
Do que aconteceu.
DOUTOR
(Suavemente) Diga.
SERIEMA
(Exaltada) O pai me entrega um recém-nascido que ele segura nos braços. “— Pega, pega o
nosso filho”. (Fora de si) “O nosso filho”… isso é incesto! (Seriema cruza os braços em cima
do peito e vira a cabeça para esconder o rosto) O filho da insanidade, do ciúme mórbido do
meu pai e da minha submissão. (Amarga) Mens sana in corpore sano. Acordei como se
tivesse saído do inferno. O incesto é um crime… uma abjeção. Tenho medo de ficar louca!
DOUTOR
Calma. Fantasia de incesto não é incest, e ninguém é louco por que quer.
SERIEMA
Hum.
DOUTOR
Verdade, a fantasia de incesto não é inócua.
SERIEMA
Não entendo o que o senhor quer dizer.
DOUTOR
Se não fosse a fantasia de incesto, você teria se tratado… poderia ter tido um filho de
Antônio. Mas o pai do seu filho, para você, não era Antônio.
SERIEMA
Estou entendendo ainda menos.
DOUTOR
O pai do seu filho, na sua fantasia, era o seu pai.(Um tempo) O inconsciente existe, nós todos
estamos sujeitos a ele. (O Doutor se levanta) Venha. Você agora não ignora mais o que
precisava saber. (Seriema continua sentada) Venha, Seriema. ( Ela se levanta
mecanicamente, paga e sai) “O meu desejo será o teu”. Um pai que acorrentou a filha…
impediu que ela sequer imaginasse um pai para o próprio filho... Com isso, tornou a
maternidade impossível. Um pai perverso, ceifou a descendência antes mesmo que ela viesse
ao mundo. O inconsciente existe e ele não é um cordeirinho do bom pastor. Mas Seriema deu
o grande passo, ela se desacorrentou. Não está mais sujeita à repetição.
CENA 6
(O Doutor está sentado na poltrona, sozinho)
DOUTOR
Meia hora de atraso. Um passo para a frente e outro para trás.
SERIEMA
(Seriema entra e não se deita; permanece de pé) Não tenho como fazer a sessão e nem sei se
vou ficar na França.
DOUTOR
Por quê?
SERIEMA
Perdi o olho.
DOUTOR
O quê?
SERIEMA
Saindo da cabine telefônica.
DOUTOR
Você se machucou de novo? Perdeu o olho?
SERIEMA
O olho de vidro, o pendente, o meu protetor.
DOUTOR
E como foi isso?
SERIEMA
Hum… na cabine…
DOUTOR
Onde?
SERIEMA
(Hesitação) Na cabine onde eu desconecto o telefone
DOUTOR
(Sem censurar) Desconecta o telefone?
SERIEMA
É… para falar com o Brasil. Os brasileiros todos fazem isso.
DOUTOR
E como foi que você perdeu o fetiche, o protetor?
SERIEMA
Não sei. Só sei que mais nada me interessa.
DOUTOR
(Imperativamente) Volte à cabine. Procure o olho. Se não achar, telefone para o Brasil,
encomende logo outro. (Seriema sai) Sem o pendente, Seriema não fica e eu estou aqui para
que ela fique. Procure, telefone, telegrafe… Tudo para que ela faça a análise até o fim. Se for
preciso agir como um guru, eu viro guru. O analista é um ator que finge não representar, pode
encarnar qualquer um. Não é por ser francês que eu não sou brasileiro. Mesmo sem acreditar
na magia.
CENA 7
(O Doutor na poltrona e Seriema no divã, roupa feminina)
SERIEMA
Na sua sala de espera eu já vi ratos… Hoje, eu cochilei e sonhei que o senhor estava morto
dentro de um caixão. De vez em quando, se levantava… ia consolar os presentes, dizia Adieu.
Como se o senhor fosse uma fantasia.
DOUTOR
Como assim, uma fantasia?
SERIEMA
Não, eu me enganei. Queria dizer fantasma — como se fosse um fantasma, mas eu errei. (Um
tempo) No francês, eu me confundo. Duas línguas tão próximas e tão diferentes! Acho até que
o senhor estava morto por causa disso...
DOUTOR
Do quê?
SERIEMA
(Um tempo) Se o senhor morresse, eu iria embora para o Brasil… eu aqui tropeço nas
palavras, tropeço e caio, as palavras parecem anteparos. Só me servem para dizer:
“— Quanto custa?”, “— Me dá o troco”, “— Me passa o pão”. Não me reenviam a nada, são
opacas, elas são como coisas.
DOUTOR
(Ternamente) E as outras palavras, as do português?
SERIEMA
Com elas eu nasci e me criei, elas têm muitos sentidos, me reenviam a outras épocas,
lugares… Não me valho das palavras só para conseguir isto ou aquilo. Com elas, eu brinco,
eu invento e me surpreendo. A minha língua é a minha alegria. E eu preciso do descanso que
ela me dá. No português, eu me sinto segura. Tenho certeza de poder dizer o que eu quero.
(Um tempo) E chega de viver sem sol. Os franceses dizem que o sol brilha para todos, mas eu
aqui não vejo a luz do sol. Que mal fiz eu para estar longe de casa? Antônio me telefona todos
os dias. Me pede para voltar. Ele é o homem que eu amo… de quem eu quero um filho.
DOUTOR
(Enfaticamente) O homem de quem você quer um filho. Você então escolheu o pai!
SERIEMA
(Um tempo) Escolhi.
DOUTOR
(Solilóquio) Agora ela vai embora…
SERIEMA
Quero um filho dele... um filho nascido lá, que fale a minha língua.
DOUTOR
Hum… E o que mais?
SERIEMA
(Riso) O senhor não se interessa pelo que eu digo, mas pelo que está por ser dito.
DOUTOR
Isso é verdade. Até amanhã. (Seriema paga e sai) O que pode interessar a um analista se não
o que não foi dito? O fato é que o filho está ao alcance de Seriema… ela agora pode dar a
vida, porque pode escolher o pai. Deixou de ser contrária a si mesma. A análise acabou. (Um
tempo) Não, a análise só acaba quando Seriema entender por que escolheu um analista cuja
língua não é a dela, já que, para ela, a língua é fundamental.
CENA 8
(O Doutor na poltrona e Seriema no divã. O celular do Doutor toca)
DOUTOR
(Perturbado) Esqueci de desligar. Desculpe.(Pega e olha o celular. Em vez de desligar, ele
atende) Morta? Não acredito. Como? (Permanece na linha) Vou, vou sim. (Desliga.)
Desculpe.
SERIEMA
Não tem por quê. Pode ir. Vai, doutor.
DOUTOR
Morreu, minha mãe morreu.
SERIEMA
Vai. Imagino o que isso significa. Meus pêsames. Lamento. (O Doutor se levanta e Seriema
também) Na vida, a gente só não perde o que está perdido. Foi o que mamãe disse quando
meu pai morreu. (O Doutor baixa a cabeça em sinal de agradecimento, ele sai por uma porta
e ela sai por outra.)
CENA 9
(O Doutor está sentado na poltrona. Seriema entra e se senta no divã.)
SERIEMA
(Um tempo) Não é fácil dizer...
DOUTOR
Hum.
SERIEMA
Chegou a hora de voltar… Não quero me eternizar aqui. E eu não tenho mais o que falar.
DOUTOR
Acho que tem. Você agora talvez possa me dizer por que você fez a sua análise numa língua
que não é a sua.
SERIEMA
Não sei. (Um tempo) Talvez tenha sido…
DOUTOR
Sim, sim.
SERIEMA
(Titubeando) Talvez tenha sido para não dizer tudo.
DOUTOR
Como assim?
SERIEMA
O pai sempre dizia que só para ele eu podia dizer tudo.
DOUTOR
(Solilóquio) Deus, meu!
SERIEMA
(Um tempo) Foi para fazer o que o pai desejava que eu escolhi o senhor… para não dizer
tudo. Escolhi um analista que ignorava a minha língua. Para não me desvelar… Inacreditável!
Uma aberração!
DOUTOR
Não, minha cara. Foi um ato inconsciente.
SERIEMA
Ter escolhido o analista para obedecer o pai?
DOUTOR
O inconsciente faz e fala por nós. E ninguém pode ser responsabilizado pelo que faz sem ter
consciência.
SERIEMA
Que loucura!
DOUTOR
Uma loucura que era a condição da sua análise. Tive que aceitar a sua escolha para que você
fosse em frente. (Um tempo) Você agora está livre… livre do desejo do seu pai.
SERIEMA
Livre do desejo do meu pai?
DOUTOR
Sim. Você agora pode seguir o seu caminho.
SERIEMA
(Baixinho) Acabou?
DOUTOR
Queira ou não. (Solilóquio) Claro. Não ficou livre do pai para se amarrar ao analista.
SERIEMA
(Com segurança) A análise acabou. O Brasil... Antônio me espera.
DOUTOR
Seriema…
SERIEMA
Adieu.
DOUTOR
Adeus.
SERIEMA
Adeus, Doutor.
(Os personagens ficam imóveis. Som longínquo de samba. Penumbra. Maria entra
dançando.)