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Subvertendo a gramÃĄtica e outras crÃīnicas socioambientais
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M Ã R C I O S A N T I L L I
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Subvertendo a gramÃĄtica e outras crÃīnicas socioambientais
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CoordenaçÃĢo editorial: Beto Ricardo
PreparaçÃĢo dos textos e revisÃĢo: Oswaldo Braga de Souza
RevisÃĢo: Juliana El Afioni
Pesquisa e tratamento de fotos: Claudio Tavares
Design e produçÃĢo grÃĄfica: Roberto Strauss (www.robertostrauss.com.br)
Aos meninos e meninas do ISA
O Instituto Socioambiental (ISA) ÃĐ uma associaçÃĢo sem fins lucrativos, qualificada como OrganizaçÃĢo da Sociedade Civil de Interesse PÚblico (Oscip), fundada em 22 de abril de 1994, por pessoas com formaçÃĢo e experiÊncia marcante na luta por direitos sociais e ambientais. Tem como objetivo defender bens e direitos sociais, coletivos e difusos, relativos ao meio ambiente, ao patrimÃīnio cultural, aos direitos humanos e dos povos. O ISA produz estudos e pesquisas, implanta projetos e programas que promovam a sustentabilidade socioambiental, valorizando a diversidade cultural e biolÃģgica do paÃs.
Todos os direitos desta edicÃĢo reservados ao
Instituto SocioambientalAv. HigienÃģpolis 901 01238-001 SÃĢo Paulo SP BrasilFone: (11) 3515.8900 Fax: (11) [email protected] www.socioambiental.org
Conselho Diretor: Deborah Lima (presidente), Marina Kahn (vice-presidente), Beto Ricardo e LeÃĢo Serva
SecretÃĄrio Executivo: AndrÃĐ Villas-BÃīas
CGE - Conselho de GestÃĢo EstratÃĐgica: AndrÃĐ Villas-BÃīas, Beto Ricardo, Deborah Lima, LeÃĢo Serva, Marina Kahn, Adriana Ramos, Biviany Rojas GarzÃģn, Bruno Weis, FÃĄbio Endo, Fany Ricardo, Jurandir M. Craveiro Jr., Marcio Santilli, Marcos Wesley, Raquel Pasinato, Rodrigo Junqueira, Silvia de Melo Futada
Santilli, MÃĄrcio Subvertendo a gramÃĄtica e outras crÃīnicassocioambientais / MÃĄrcio Santilli. -- SÃĢo Paulo : Institu-to Socioambiental, 2019.
1. Direitos indÃgenas 2. Ãndios da AmÃĐrica do Sul - RelaçÃĩes com o governo 3. Povos indÃgenas 4. Povos indÃgenas - Brasil 5. Povos indÃgenas - Brasil - Posse da terra I. TÃtulo.
Ãndices para catÃĄlogo sistemÃĄtico:
1. Brasil : PolÃtica indigenista : Povos indÃgenas : Socioam-biental 306.08998
Cibele Maria Dias - BibliotecÃĄria - CRB-8/9427
19-31667
Dados Internacionais de CatalogaçÃĢo na PublicaçÃĢo (CIP)(CÃĒmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
CDD-306.08998
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SumÃĄrio
PrefÃĄcio de Carlos MarÃĐs . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . . 09
A direita e os Ãndios . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . . 13
O fantasma dos aldeamentos indÃgenas extintos . .. . . 18
Krenak de cara preta .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . . 21
Por baixo da terra. .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . . 25
Altamira 1989: entre a guerra e a trÃĐgua. .. . .. . .. . .. . . 27
Subvertendo a gramÃĄtica e outras histÃģrias .. . .. . .. . . 32
Requerimentos âbranca de neveâ esperam o beijo do âprÃncipeâ JucÃĄ . . .. . .. . .. . .. . .. . .. . . 36
Pactos demarcatÃģrios mudam o mapa da âCabeça do Cachorroâ . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . . 39
Asfalto na selva. .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . . 44
O âTrotskistaâ.. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . . 54
Xavantada maçÃīnica. .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . . 67
A Raposa e os Renans.. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . . 72
O Grande Acre . . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . ..76Clima, florestas e pimentas indianas .. . .. . .. . .. . .. . .. . . 82
A boa notÃcia . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . . 92
Juruna devolveu a grana do Maluf .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . . 95
O Encontro de Canarana . . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. .103
A arrogÃĒncia que cega . . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. . .. .113
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Socioambiental! Que outro nome poderia ter sido criado para designar o fenÃīmeno da convivÊncia Ãnti-ma entre sociedades humanas e natureza? O fenÃīme-no quase nÃĢo precisaria de palavras para o designar. à a prÃģpria vida. Em todas as partes do planeta, e em todos os tempos, as sociedades humanas viveram na, da e com a natureza, porque singelamente sÃĢo nature-za. A modernidade, porÃĐm, com sua mÚltipla divisÃĢo de subjetividades e objetividades, com suas infinitas categorias e mÃĐtodos, isolou a sociedade humana, ima-ginando uma Única sociedade de indivÃduos, cada vez menos solidÃĄrios, menos fraternos, menos coletivos e distantes da natureza, superiores à natureza. Com um sÃģ golpe expulsou a natureza do convÃvio humano e desconsiderou as sociedades e povos que com ela con-viviam e convivem.
A exclusÃĢo da natureza pela modernidade ig-norou as sociedades fraternas e ocultou o fenÃīmeno. Mas ele continuou lÃĄ. Muito especialmente na AmÃĐri-ca Latina. A resistÊncia dos povos indÃgenas por cinco sÃĐculos sempre se fez reivindicando continuar sendo sociedades fraternas, coletivas e associadas à nature-za, à categoria moderna de âterritÃģrioâ, que nada mais
O fenÃīmeno socioambientalP R E F à C I O D E C A R L O S M A R à S Carlos Frederico MarÃĐs de Souza Filho ÃĐ Professor Titular de Direito da PUCPR. Diretor tÃĐcnico do NDI (NÚcleo de Direitos IndÃgenas). SÃģcio-fundador do ISA, do qual foi presidente (1994/1998). Presidente da Funai (1999/2000).
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ÃĐ do que a parte especÃfica do planeta em que se vive. NÃĢo existem sociedades que possam viver sem um lu-gar e que nÃĢo interfiram no lugar e nÃĢo sejam por ele afetadas. As sociedades compartilham e vivem com a natureza, que compÃĩe outra categoria da contempora-neidade, o ambiente.
As pessoas que viviam, compreendiam, admiravam e estudavam esses povos atendiam pelo nome de indige-nistas e trabalhavam com categorias como sociedades, povos, comunidades e seus respectivos territÃģrios. Era claro que viam o fenÃīmeno, mas era tÃĢo claro que nem precisava ser revelado. O direito de um povo existir im-plica o direito ao territÃģrio, ou ao seu ambiente.
Um dia, outras pessoas imersas na hegemÃīnica modernidade se deram conta que a natureza estava so-frendo, expulsa, submetida a uma lÃģgica de transforma-çÃĢo impiedosa e que isso poderia levar à destruiçÃĢo da prÃģpria sociedade. Afinal, destruir a natureza tem como corolÃĄrio destruir a humanidade! Passaram, entÃĢo, a se preocupar com os elementos externos à sociedade hu-mana, e chamaram isso de meio ambiente. Para prote-gÊ-lo, imaginaram que teriam de declarar guerra aos seres humanos, mesmo aqueles que conviviam com a natureza e se sentiam parte dela, misturados e integra-dos ao seu ambiente natural. Formou-se uma dicotomia: gente de um lado, natureza de outro. Uma falsa dicoto-mia, distante do fenÃīmeno.
Mas quem olhava as gentes vivendo na natureza, com a natureza, a partir da sociedade excludente, come-çou a entender o fenÃīmeno. NÃĢo se tratava de uma dico-tomia, mas de uma totalidade. Algo cristalino quando se olhava os povos indÃgenas, quando se defendia seus direitos, porque era impensÃĄvel essa defesa sem que se compreendesse o territÃģrio original onde o fenÃīmeno
se dava. Expulsos de seu territÃģrio, a luta desses povos concentrava-se em recuperÃĄ-lo. Este ÃĐ o fenÃīmeno.
EntÃĢo, os ambientalistas que haviam entendido os malefÃcios da expulsÃĢo da natureza foram chamados a olhar o fenÃīmeno e, junto com os indigenistas, a dar-lhe um nome. Que outra palavra poderia o designar? Ecos-social? Biocultural? Socionatural? Biossocial? NÃĢo! So-cioambiental foi a palavra. Socioambiental, uma sÃģ pa-lavra, como um neologismo para designar uma coisa tÃĢo antiga que nem nome precisava ter. Mas sÃģcio remete a sociedades, mas muito mais à s organizaçÃĩes e situaçÃĩes dentro da sociedade hegemÃīnica, moderna. O neologis-mo refere-se à s sociedades fraternas, tradicionais, nÃĢo hegemÃīnicas. A categoria moderna de meio ambiente refere-se à natureza fora da sociedade humana, mas que precisa ser incluÃda, conservada, mesmo quando al-terada, como o meio ambiente artificial ou cultural.Por isso precisava ficar claro que nÃĢo se tratava apenas da junçÃĢo de duas palavras, mas da criaçÃĢo de uma nova que expressasse o fenÃīmeno. Por isso era ne-cessÃĄrio subverter a gramÃĄtica, na feliz expressÃĢo de MÃĄrcio Santilli. Mas nÃĢo sÃģ a gramÃĄtica, muitas outras categorias, como se vÊ nas pÃĄginas seguintes. AliÃĄs, MÃĄrcio foi um dos primeiros e que mais profundamente compreendeu que o fenÃīmeno precisava ter um nome porque refletia uma realidade dos povos e uma necessi-dade da modernidade adoecida por sua negaçÃĢo. Foi um precursor e, embora o nome tenha sido criaçÃĢo coletiva como sempre ocorre com as coisas boas, ele teve par-ticipaçÃĢo importante e estas suas crÃīnicas a revelam, demonstram e provam.
Curitiba, novembro de 2019.
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A direita e os Ãndios
Assim como muitos de vocÊs, tambÃĐm sofro, hÃĄ dÃĐcadas, com a precariedade a que foi reduzida a his-tÃģrica dicotomia entre esquerda e direita. Para nÃĢo ficar patinando nesse mangue conceitual, vou come-çar essa conversa por uma pessoa acima de qualquer suspeita. Jarbas Passarinho foi um coronel do ExÃĐrcito que se tornou um destacado polÃtico da segunda me-tade do sÃĐculo passado e ocupou diversos ministÃĐrios durante o regime militar e a transiçÃĢo para a demo-cracia, sempre se assumindo, sem ambiguidades, como um homem de direita.
Aprendi a odiÃĄ-lo desde menino. Ele apoiava a di-tadura que roubava a minha juventude. Protagonizou a ediçÃĢo do Decreto-Lei nš 477, que espalhava o obscu-rantismo e a repressÃĢo pelas escolas e universidades. Foi ele quem anunciou, em 1976, a cassaçÃĢo dos manda-tos (que acabou nÃĢo ocorrendo) de meu pai e de outros dois deputados de esquerda que resistiram com os pro-fessores e estudantes a uma invasÃĢo policial na Univer-sidade de BrasÃlia (UnB).
Quando o conheci pessoalmente, ele integrava a bancada do âCentrÃĢoâ â a frente parlamentar conserva-dora que atuou na Assembleia Nacional Constituinte â
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numa ComissÃĢo Parlamentar de InquÃĐrito (CPI) criada para criminalizar os direitos constitucionais dos Ãndios.
Fiquei surpreso e confuso quando o JÚlio Gaiger, entÃĢo assessor jurÃdico do Conselho Indigenista Mis-sionÃĄrio (Cimi) e depois meu sucessor na presidÊncia da FundaçÃĢo Nacional do Ãndio (Funai), transmitiu-me uma recomendaçÃĢo de dom Erwin KrÃĪutler, bispo de Altamira (PA) e entÃĢo presidente do Cimi, para procu-rarmos o entÃĢo senador Jarbas Passarinho (PDS-PA) a fim de discutirmos o texto do futuro âCapÃtulo Dos Ãndiosâ na ConstituiçÃĢo de 1988. Ele sacou o jogo bai-xo contra os indÃgenas na tal CPI e manifestou ao bispo, numa missa rezada em memÃģria da sua falecida esposa, disposiçÃĢo em ajudar a reparar o dano causado à queles direitos devido ao tratamento recebido.
Foi uma longa e dura conversa, que teve como pon-to de partida o texto aprovado pela ComissÃĢo da Ordem Social da Constituinte, jÃĄ que o que constava do primeiro Projeto de ConstituiçÃĢo havia sido deturpado pelo rela-tor, deputado Bernardo Cabral (PMDB-AM), e precisava ser melhorado. Passarinho questionou cada palavra, ris-cando todas as expressÃĩes que lhe soavam ambÃguas ou das quais discordava. Preservou, com uma nova reda-çÃĢo, o dispositivo da ConstituiçÃĢo outorgada pelos mili-tares, em 1966, que estabelece a nulidade dos tÃtulos de propriedade incidentes sobre terras indÃgenas.
Foi Passarinho quem inventou o conceito de âterras tradicionalmente ocupadas pelos Ãndiosâ, consagrado na ConstituiçÃĢo de 1988. Rolava um em-bate entre as expressÃĩes âterras ocupadasâ, prefe-rida pelos indigenistas, e âterras permanentemente ocupadasâ, adotada pelos que queriam um conceito mais restritivo e colonial. A ambiguidade da palavra âtradicionalmenteâ foi um ovo de Colombo, admitin-
do uma leitura antropolÃģgica â âconforme a tradiçÃĢoâ â e outra cronolÃģgica â âpor tempo suficiente para serem tradicionaisâ.
Depois de chegar a um texto satisfatÃģrio (e bem parecido com o que foi promulgado), Passarinho se propÃīs a apresentÃĄ-lo como emenda e defendÊ-lo com unhas e dentes. No final da conversa, ainda saiu com essa: âmeus amigos me dizem que vocÊs conspiram con-tra a soberania nacional. O que vocÊs tÊm a dizer sobre isso?â Respondi que âinteressa ao Brasil superar o pas-sivo histÃģrico na relaçÃĢo com os Ãndios e este ÃĐ o mo-mentoâ. Ele concordou.
Passarinho nÃĢo foi apenas o cara-chave na for-mulaçÃĢo constitucional. Como ministro da Justiça do ex-presidente Collor, formulou tambÃĐm o Decreto nš 22/1991, que destravou a demarcaçÃĢo das terras indÃ-genas, e outros quatro, que estabeleceram competÊn-cias de vÃĄrios ministÃĐrios em relaçÃĢo à s demandas indÃ-genas, desenhando uma polÃtica indigenista pÃģs-tutelar. Foi ele, tambÃĐm, que superou a objeçÃĢo militar e viabi-lizou a demarcaçÃĢo da Terra IndÃgena Yanomami (RR/AM), que Collor faturou altamente durante uma confe-rÊncia de cÚpula da ONU no Rio de Janeiro, a Eco-92.
Da direita, nÃĢo foi sÃģ Passarinho que deu contri-buiçÃĩes positivas para os direitos dos Ãndios. Fernando Collor foi campeÃĢo em decretos de homologaçÃĢo. Mas destaco, principalmente, o deputado Alceni Guerra (PFL--PR), autor do primeiro relatÃģrio sobre os direitos indÃ-genas e de outras minorias na Constituinte, apoiado por gentes de posiçÃĩes tÃĢo diversas como as das deputadas Sandra Cavalcanti (PFL-RJ) e Benedita da Silva (PT-RJ).
Os arautos atuais da direita, que se dedicam a des-truir o texto constitucional sobre direitos indÃgenas, precisam aprender que ele emanou mais de seu cam-
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po ideolÃģgico do que da esquerda, inclusive a previsÃĢo de nulidade de tÃtulos de propriedade incidentes sobre os territÃģrios indÃgenas. Um projeto de paÃs, mesmo de direita, supÃĩe a coexistÊncia, o que o patrimonialismo corporativista prefere nÃĢo entender.
AtÃĐ acho que se aplica bem ao nosso sistema par-tidÃĄrio aquela ideia dos â50 tons de cinzaâ, mas o foco aqui ÃĐ a direita assumida, e nÃĢo a direita que se diz de esquerda ou de centro. Jair Bolsonaro encarna o primei-ro projeto de poder da direita desde a redemocratiza-çÃĢo. OpÃĩe-se aos direitos de minorias â Ãndios, quilom-bolas, homossexuais â e de maiorias â mulheres, pobres e nÃĢo brancos. Na campanha, Bolsonaro disse que, uma vez eleito, nÃĢo demarcaria ânem mais um centÃmetroâ de terras indÃgenas. Depois, corrigiu-se: ânem mais um milÃmetroâ desses territÃģrios seriam oficializados em seu governo.
Para acabar com as terras indÃgenas, vai precisar de um exÃĐrcito de grileiros (ladrÃĩes de terras pÚbli-cas), jÃĄ que garimpeiros e madeireiros poderiam ajudar a destruÃ-las, mas ÃĐ prÃģprio do negÃģcio deles extrair o que interessa e cair fora. O resultado provÃĄvel da inva-sÃĢo desejada seria a liberaçÃĢo de bilhÃĩes de toneladas de CO
2 na atmosfera e a transferÊncia dos estoques de
recursos naturais, ou do seu valor monetÃĄrio, para ter-ceiros interessados.
Essa proposta mostra que Bolsonaro teve um projeto agressivo e populista de campanha, mas nÃĢo tem um projeto de governo. E revela que a direita tam-bÃĐm perdeu a memÃģria e degenerou-se ideologicamen-te nos Últimos anos. Deve ser por essas e outras que a candidatura dele foi rejeitada por parte da alta hierar-quia militar. Ele nÃĢo perderia nada se tivesse a humil-dade de se aproximar da sabedoria do outro e resgatar
a memÃģria da sua prÃģpria vertente ideolÃģgica, o que eu tambÃĐm recomendo aos demais 49 tons da direita.
HÃĄ quem acredite que os Ãndios sÃĢo de direita por-que mantÊm costumes rÃgidos e pertencem a sociedades âprÃĐ-histÃģricasâ. Mas tambÃĐm hÃĄ gente que os considera de esquerda porque o peso da diferença cultural costu-ma balançar as estruturas vigentes. Sou testemunha da inconstÃĒncia da alma selvagem de que fala o Eduardo Viveiros de Castro.
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O fantasma dos aldeamentos indÃgenas extintos
VocÊ jÃĄ viu um âaldeamento indÃgena extintoâ? Pois bem, preste atençÃĢo porque vocÊ pode estar em cima de um. Como vocÊ, eu sempre soube que povos inteiros foram extintos, de modo que âaldeamentoâ parece atÃĐ pouco. Mas sÃģ fui apresentado a essa figura jurÃdica du-rante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte.
Constava do primeiro Projeto de ConstituiçÃĢo um inciso que incluÃa entre os bens dos estados as ÃĄreas pertencentes aos antigos aldeamentos indÃgenas extin-tos. Ele foi incluÃdo por sugestÃĢo do senador MÃĄrio Co-vas (entÃĢo PMDB-SP) com a intençÃĢo de resolver uma pendÊncia judicial que impedia a regularizaçÃĢo fundiÃĄ-ria de uma extensa ÃĄrea situada na zona leste do muni-cÃpio de SÃĢo Paulo. A expectativa dele era que o estado pudesse titulÃĄ-la em favor dos seus ocupantes na ÃĐpo-ca, viabilizando a implantaçÃĢo de serviços pÚblicos e a cobrança de IPTU.
Melhor seria se o Covas tivesse plantado um dis-positivo especÃfico entre as disposiçÃĩes constitucio-nais transitÃģrias. A inscriçÃĢo da figura dos aldeamen-tos extintos de forma genÃĐrica e no corpo permanente de uma nova ConstituiçÃĢo causava estranheza a todos e rejeiçÃĢo por parte de quem acompanhava o tratamento
dado aos direitos constitucionais dos Ãndios. Isso por que a primeira constituiçÃĢo republicana (1892) contin-ha essa mesma formulaçÃĢo que, depois, foi usada para promover a extinçÃĢo de aldeamentos e viabilizar a titu-laçÃĢo das terras.
Os Ãndios e os seus apoiadores manifestaram essa preocupaçÃĢo para o senador, que esclareceu os seus mo-tivos e se dispÃīs a apresentar uma emenda durante a votaçÃĢo em primeiro turno do Projeto de ConstituiçÃĢo, no plenÃĄrio da Constituinte, para restringir ao estado de SÃĢo Paulo a efetividade daquele inciso. PorÃĐm, na hora da votaçÃĢo, quando o Covas encaminhou da tribu-na o voto favorÃĄvel à emenda, rolou uma total confusÃĢo de entendimento por parte de constituintes do Norte e do Nordeste, que a interpretaram como pretendendo resolver apenas o âproblemaâ de SÃĢo Paulo, deixando o resto do paÃs sem soluçÃĢo. E a emenda foi rejeitada.
ConcluÃda a votaçÃĢo em primeiro turno, o Projeto de ConstituiçÃĢo dispunha de um âCapÃtulo Dos Ãndiosâ e de vÃĄrios outros dispositivos constitucionais especÃfi-cos e de sentido positivo inseridos em outros capÃtulos. E ficou tambÃĐm com o tal inciso. No segundo turno de votaçÃĢo, nÃĢo cabiam emendas aditivas ou substitutivas que inserissem novos textos no Projeto de ConstituiçÃĢo, sÃģ sendo possÃveis emendas supressivas ou de redaçÃĢo. Mas nÃĢo seria fÃĄcil convencer a maioria a suprimir qual-quer texto jÃĄ aprovado em primeiro turno, menos ainda em se tratando de uma questÃĢo exotÃĐrica como os al-deamentos indÃgenas extintos.
Pessoas e organizaçÃĩes envolvidas no proces-so constituinte nÃĢo dispunham de informaçÃĩes sobre quais seriam e onde estariam outros casos de aldea-mentos extintos, alÃĐm daquele de SÃĢo Paulo. Assim, fi-cava difÃcil convencer os constituintes da inadequaçÃĢo
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daquela formulaçÃĢo genÃĐrica. Foi a antropÃģloga Rita HeloÃsa de Almeida, da Universidade de BrasÃlia (UnB), que me ajudou a construir uma lista com dezenas de municÃpios, de vÃĄrios estados, originados de aldea-mentos indÃgenas extintos.A lista ficou pronta com as votaçÃĩes do segundo turno jÃĄ iniciadas. Uma emenda para suprimir aquele inciso havia sido apresentada e logo seria votada, mas nÃĢo convinha que o encaminhamento da sua votaçÃĢo fosse feito por algum constituinte paulista, para evitar a repetiçÃĢo do equÃvoco regionalista do primeiro turno. Recorri ao senador Jarbas Passarinho (PDS-PA), jÃĄ em plenÃĄrio, e mostrei que a permanÊncia no texto consti-tucional daquele dispositivo implicaria a desapropria-çÃĢo total ou parcial de vÃĄrios municÃpios. Brinquei di-zendo que o terreno da casa dele em BelÃĐm passaria a pertencer ao estado do ParÃĄ.
Passarinho leu e releu o texto do inciso, arrega-lou os olhos e subiu à mesa diretora para se inscrever. Encaminhou a votaçÃĢo da emenda supressiva, expli-cando calmamente a aberraçÃĢo, que foi suprimida por unanimidade. Mas o fantasma dos aldeamentos indÃ-genas extintos continua sob os vossos pÃĐs, podendo ressurgir a qualquer tempo, atÃĐ que o Brasil resgate de vez a dÃvida histÃģrica contraÃda com os primeiros habitantes da terra.
Quando se lÊ, hoje, a ConstituiçÃĢo de 1988, pode-se ter a impressÃĢo de que ela seja uma construçÃĢo racional e coerente do ordenamento jurÃdico brasileiro. Quanto aos julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF), a quem compete interpretÃĄ-la em Última instÃĒncia, fica--se com a impressÃĢo de que uma lÃģgica inquebrantÃĄvel amarra aquelas escrituras, mesmo quando os seus mi-nistros divergem e polemizam sobre elas. Na verdade, pode-se dizer que o mundo jurÃdico esforça-se para abolir as idas e vindas do texto constitucional, que sÃĢo mais expressÃĩes da polÃtica do que de qualquer lÃģgica jurÃdica ou filosÃģfica.
Assim foram tratados, tambÃĐm, os direitos dos Ãndios durante a Assembleia Nacional Constituinte. No inÃcio dos trabalhos, houve grande convergÊncia de opi-niÃĩes e esforços para garantir uma formulaçÃĢo de boa-fÃĐ para esses direitos e os de outras minorias. AtÃĐ que uma campanha movida por interesses obscuros acusou os Ãn-dios e seus apoiadores de tentarem instituir um padrÃĢo de direitos incompatÃveis com a soberania do paÃs, lan-çando uma nuvem de suspeitas sobre o seu tratamento.
O deputado Bernardo Cabral (PMDB-AM), relator do primeiro Projeto de ConstituiçÃĢo, aproveitou as de-
Krenak da cara preta
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nÚncias para alterar a lÃģgica positiva que vinha sendo construÃda e introduzir os conceitos de âaculturaçÃĢoâ, prevendo que os Ãndios devem deixar de ser Ãndios, e de âposse permanenteâ, como forma de restringir o re-conhecimento dos direitos territoriais dos Ãndios à s si-tuaçÃĩes em que fosse comprovada a presença deles nas terras desde o tempo do outro Cabral.
Cabral 2, o relator, nÃĢo barbarizou apenas os di-reitos dos Ãndios e acabou lesando outras partes do Pro-jeto de ConstituiçÃĢo, tornando imperativo substitui-lo para que a Constituinte pudesse chegar a bom termo. Quanto aos Ãndios, foi necessÃĄria uma sÃĐrie de esforços para repor o sentido positivo no tratamento de seus di-reitos. Eles prÃģprios puxaram essa reaçÃĢo.
Registre-se que, naquele tempo, o movimento in-dÃgena era formado principalmente por lideranças tra-dicionais. A maioria sequer dominava o portuguÊs e ti-nha apenas a FundaçÃĢo Nacional do Ãndio (Funai) como referÊncia sobre a organizaçÃĢo do Estado brasileiro, alÃĐm das figuras pessoais de presidentes e de alguns ministros. Para eles, a Constituinte foi o descobrimento do Congresso Nacional. Havia, entÃĢo, uma Única orga-nizaçÃĢo indÃgena â a UniÃĢo das NaçÃĩes IndÃgenas (UNI) â que reunia jovens de vÃĄrias etnias que conheciam me-lhor o portuguÊs e as manhas da nossa sociedade.
A UNI liderou a proposiçÃĢo e a coleta de mais de 30 mil assinaturas a favor de uma emenda de iniciativa popular que respaldava o texto construÃdo no inÃcio do processo e, depois, distorcido pelo relator. O regimento da Constituinte previa a possibilidade dessas emendas e da sua defesa em plenÃĄrio. A proposta da UNI foi de-fendida por seu coordenador, AÃlton Krenak.
No dia da defesa da emenda, o AÃlton me ligou bem cedo de SÃĢo Paulo. Ele estava com o Beto Ricardo,
do Centro EcumÊnico de DocumentaçÃĢo e InformaçÃĢo (Cedi), e me perguntava se seria possÃvel, em vez de fa-lar, protagonizar uma cena no plenÃĄrio da Constituin-te. Estavam tramando algo que nÃĢo queriam dizer pelo telefone e eu fiquei de pegÃĄ-lo no aeroporto de BrasÃlia para discutirmos o assunto.
Ele queria subir na tribuna e pintar a cara de pre-to, sem dizer nada. SÃģ que os registros oficiais das ses-sÃĩes e pronunciamentos no Congresso eram feitos por meio de gravaçÃĩes, posteriormente transcritas para publicaçÃĢo no DiÃĄrio do Congresso. Uma performance sem palavras seria captada pelas TVs, mas ficaria sem registro formal. O AÃlton teria que falar alguma coisa enquanto se pintava. Nem importaria muito o quÊ seria dito, mas seria preciso dizer algo.
Ele tambÃĐm nÃĢo dispunha de trajes tradicio-nais e, muito menos, de terno e gravata, como se exi-ge para acessar o plenÃĄrio e a tribuna. Emprestei a ele uma gravata e um paletÃģ branco, para contrastar com a pintura do rosto. Na falta de urucum, fomos de gabinete em gabinete pedindo à s secretÃĄrias parla-mentares a doaçÃĢo daquela tintura preta usada pelas mulheres nos cÃlios e sobrancelhas. Enchemos um potinho e o colocamos, aberto, sem derramar a tinta, no bolso do paletÃģ.
Krenak deu um show na tribuna da Constituinte! Havia poucos parlamentares em plenÃĄrio, mas ele ficou cheio de jornalistas, cinegrafistas e curiosos. Nem me lembro do que falou, mas a cena dele se pintando de preto e encarando a NaçÃĢo foi um grito de guerra que correu o mundo, denunciando que os direitos dos Ãndios estavam sendo maltratados. E o texto da emenda, pro-duto dos constituintes, deixava claro que o Brasil pode-ria fazer melhor, se quisesse.
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Outras açÃĩes e articulaçÃĩes seguiram nesse senti-do e, quando os lÃderes dos partidos se reuniram para de-finir o texto do âCapÃtulo Dos Ãndiosâ, adotaram o parÃĒ-metro conceitual da emenda popular, em vez do projeto cabralino de ConstituiçÃĢo. O Brasil e os Ãndios ganharam com o recado do AÃlton. SÃģ eu que perdi um paletÃģ bran-co, que ficou imprestÃĄvel, manchado de preto.
Por baixo da terra
Os direitos indÃgenas estÃĢo inscritos no âCapÃtulo Dos Ãndiosâ e em mais de uma dezena de dispositivos especÃficos constantes de outras partes da Constitui-çÃĢo. Todos esses textos constitucionais resultaram de negociaçÃĩes e foram aprovados, por consenso, pela qua-se totalidade dos constituintes, exceto o inciso XVI do Artigo 49, que inclui entre as competÊncias exclusivas do Congresso Nacional âautorizar, em terras indÃgenas, a exploraçÃĢo e o aproveitamento de recursos hÃdricos e a pesquisa e lavra de riquezas mineraisâ.
As empresas de mineraçÃĢo, lideradas pela com-panhia Paranapanema, vinham tendo um notÃĄvel pro-tagonismo na Assembleia Nacional Constituinte, insti-tuindo, temporariamente, atÃĐ uma reserva de mercado para a mineraçÃĢo no paÃs.
Acostumadas ao direito de prioridade, que lhes ga-rante a pesquisa e a lavra como decorrÊncias da mera for-malizaçÃĢo de um requerimento, elas insurgiram-se contra o consenso dos lÃderes partidÃĄrios, que havia incluÃdo aque-le inciso no Projeto de ConstituiçÃĢo e decidiram promover uma emenda para suprimi-lo em votaçÃĢo no plenÃĄrio.
Bem que o Beto Ricardo, entÃĢo coordenador do Cen-tro EcumÊnico de DocumentaçÃĢo e InformaçÃĢo (Cedi) e
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que depois liderou a fundaçÃĢo do Instituto Socioambien-tal (ISA), vinha advertindo, desde o inÃcio da Constituin-te, que a intensidade dos interesses minerÃĄrios prometia suscitar uma disputa ainda maior pelo subsolo das terras indÃgenas do que pelas riquezas da superfÃcie.
O Cedi tinha, entÃĢo, concluÃdo o cruzamento dos ban-cos de dados do Departamento Nacional de ProduçÃĢo Mi-neral (DNPM) e da FundaçÃĢo Nacional do Ãndio (Funai), constatando a incidÊncia de milhares de requerimentos de pesquisa â e atÃĐ de alguns alvarÃĄs de lavra â em terras in-dÃgenas da AmazÃīnia Legal brasileira. Desse levantamento resultaram listagens e um mapa, impressionante, represen-tando o volume de interesses minerÃĄrios sobre essas terras.
Quando a emenda supressiva das mineradoras entrou na pauta do plenÃĄrio, constituintes favorÃĄveis aos direitos indÃgenas encaminharam a votaçÃĢo contra ela apresentando uma versÃĢo gigante daquele mapa. O discurso dos repre-sentantes das mineradoras ancorava-se no suposto interesse nacional, mas o mapa revelava uma prÃģdiga e concorrencial presença de interesses privados naquela disputa. A emenda acabou rejeitada por 370 votos.
Foi um episÃģdio emblemÃĄtico de como o uso opor-tuno de boa informaçÃĢo pode reverter uma correlaçÃĢo des-favorÃĄvel de forças, em tempo polÃtico real e a favor dos direitos de minorias.
As empresas de mineraçÃĢo estavam por cima da car-ne-seca, acumulando vitÃģrias na Constituinte, mas tiveram de engolir aquela derrota. A verdade, porÃĐm, ÃĐ que nunca a aceitaram. Consideram atÃĐ hoje a necessidade de autoriza-çÃĢo prÃĐvia do Congresso para minerar em terras indÃgenas um fator de insegurança jurÃdica insuportÃĄvel. Talvez seja por isso que as condiçÃĩes especÃficas para a realizaçÃĢo des-sa atividade, previstas na ConstituiçÃĢo, nunca tenham sido regulamentadas em lei.
Altamira 1989: entre a guerra e a trÃĐgua
O povo MbemgokrÊ, conhecido como KaiapÃģ, teve presença marcante nas mobilizaçÃĩes indÃgenas do pe-rÃodo de elaboraçÃĢo da ConstituiçÃĢo de 1988. Numa das suas idas e vindas, tiveram conhecimento de um mapa da Eletronorte com as ÃĄreas que seriam inundadas para a pretendida implantaçÃĢo de um sistema de usinas hi-drelÃĐtricas no Rio Xingu, transformando-o numa suces-sÃĢo de lagos desde a Volta Grande, no Baixo Xingu (PA), chegando a inundar atÃĐ uma parte do Parque IndÃgena do Xingu (MT). Pelo caminho, seriam alagados milhares de hectares das terras kaiapÃģ.Os MbemgokrÊ ficaram pasmos com a cara de pau da Eletronorte. Durante muitos anos, eles autorizaram e ajudaram na realizaçÃĢo de estudos tÃĐcnicos sobre o comportamento do rio ao longo dos seus territÃģrios, mas nunca ninguÃĐm falou em barragens. AlÃĐm disso, a Eletronorte deu o nome de KararaÃī à primeira usina do sistema, que significa um grito de guerra na lÃngua dos Ãndios. Eles perceberam que estavam sendo enganados e insultados, alÃĐm de estarem sob a ameaça de alaga-mento. EntÃĢo, todos os chefes se reuniram na aldeia Go-rotire, com assessores, inclusive o Beto Ricardo, do Cen-tro EcumÊnico de DocumentaçÃĢo e InformaçÃĢo (Cedi), e
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convocaram os seus apoiadores no Brasil e no exterior para uma grande reuniÃĢo, em Altamira (PA), com o in-tuito de protestar contra as usinas.
A convocaçÃĢo dos Ãndios provocou uma reaçÃĢo imediata na regiÃĢo. PolÃticos e empresÃĄrios de Alta-mira e vizinhança viam KararaÃī como uma verdadei-ra redençÃĢo econÃīmica. Entenderam a convocaçÃĢo de manifestaçÃĩes contrÃĄrias, dentro da sua prÃģpria cida-de, como invasÃĢo iminente e ruidosa provocaçÃĢo. Ale-garam que as terras dos KaiapÃģ nÃĢo seriam afetadas pelo primeiro lago â embora vÃĄrias aldeias estejam no extenso municÃpio de Altamira â dizendo-se dispostos a impedir, na marra, a realizaçÃĢo daquele encontro.
Eu era, entÃĢo, o secretÃĄrio-executivo do NÚcleo de Direitos IndÃgenas (NDI), organizaçÃĢo criada com a promulgaçÃĢo da nova ConstituiçÃĢo. Paulinho Paiakan, que liderou a mobilizaçÃĢo dos KaiapÃģ durante a Cons-tituinte, foi um dos seus fundadores. Antes mesmo que a organizaçÃĢo tivesse uma equipe e um escritÃģrio, fui convocado para tentar conter a fÚria dos empresÃĄrios e polÃticos de Altamira e convencÊ-los a aceitar a realiza-çÃĢo do encontro.
O prefeito de Altamira era Domingos Juvenil (PMDB), que voltaria a ocupar o cargo outras vezes. Fomos colegas de bancada na CÃĒmara dos Deputados, entre 1983 e 1986. Ele me recebeu, a meu pedido, no apartamento em que residia em BelÃĐm, de uma forma muito cordial, prÃģpria da sua pessoa, mas, quando en-tramos no assunto, protestou com veemÊncia contra a reuniÃĢo, disse que seus organizadores sequer informa-ram a prefeitura e as âforças vivasâ locais, defendendo KararaÃī como a âÚnica esperança para Altamira sair do abandonoâ. E lamentou que eu, âuma pessoa educadaâ, estivesse participando da âafrontaâ.
Expliquei que a iniciativa do encontro era dos Ãn-dios e que eles tinham motivos para nÃĢo querer a trans-formaçÃĢo do Xingu numa sucessÃĢo de lagos. Mas que, de qualquer forma, eu nÃĢo tinha autoridade para cancelar ou adiar o encontro, conforme ele pretendia. Informei-o que os Ãndios jÃĄ tinham mobilizado outras etnias, orga-nizaçÃĩes da sociedade civil, jornalistas, autoridades e representantes de entidades de vÃĄrios paÃses, que mui-tos jÃĄ estavam a caminho, inclusive os Ãndios, que des-ciam o Xingu de barco rumo à cidade.
â âIsso vai virar guerraâ, reagiu o Juvenil.â âVocÊ precisa zelar para que a imagem de Alta-mira nÃĢo fique suja de sangueâ, ponderei. âVocÊs tam-
bÃĐm tÊm o que ganhar com a realizaçÃĢo do encontroâ.Eram tempos de hiperinflaçÃĢo. Quem tinha juÃzo e acesso, punha o seu dinheiro no âovernightâ, modalida-de de aplicaçÃĢo financeira com liquidez que as pessoas usavam atÃĐ para preservar o salÃĄrio de virar sorvete durante o mÊs. O mercado de cÃĒmbio tambÃĐm era uma loucura: tinha uma cotaçÃĢo oficial totalmente subesti-mada, mas todo mundo comercializava a moeda pelo valor real no cÃĒmbio negro.
â âGanhar o quÊ?â, ele questionou.â âDÃģlaresâ, resumi. âChegarÃĢo a Altamira cente-
nas de pessoas, grande parte do exterior, vÃĢo lotar ho-tÃĐis e restaurantes, fazer compras, utilizar aeroporto, tÃĄxis e lotaçÃĩes, visitar lugares, passear pelo Xingu. Se elas souberem que sÃģ existe o cÃĒmbio oficial na cidade, vÃĢo trocar dinheiro antes de chegar aqui. Melhor do que organizar um massacre ÃĐ criar condiçÃĩes para que Alta-mira se beneficie desse movimento econÃīmico, em vez de outros lugaresâ, concluÃ.
â âCom certeza!â exclamou Juvenil, que perce-beu, no ato, uma significativa oportunidade. E emen-
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dou: âVou para Altamira conversar com o pessoal e volto a te contatarâ.
No dia seguinte, me ligou dizendo que âo pessoalâ queria conversar. Peguei um aviÃĢo e fui atÃĐ lÃĄ. Rolou uma concorrida reuniÃĢo e as âforçasâ estavam, mesmo, bem âvivasâ. Deixaram claro o interesse cambial, mas tambÃĐm queriam algum ganho polÃtico, jÃĄ que estarÃa-mos detonando o projeto de desenvolvimento deles, o que nÃĢo poderiam assistir passivamente.
A programaçÃĢo do encontro estendia-se por toda uma semana. Sugeri, entÃĢo, ad referendum dos Ãndios, al-terÃĄ-la a fim de liberar a quarta-feira para que os regio-nais tambÃĐm pudessem fazer a sua manifestaçÃĢo. Eles seriam convidados a assistir aos demais eventos do en-contro e convidariam os Ãndios e demais presentes para assistirem à manifestaçÃĢo deles. Como a imprensa esta-ria por conta, teriam a mesma cobertura para expressar a sua posiçÃĢo.
As partes aceitaram o acordo e tudo correu con-forme o previsto. NÃĢo houve guerra e a âpax negraâ funcionou perfeitamente, apesar do susto que a Ãndia TuÃra KayapÃģ deu em um dos diretores da Eletronorte na ÃĐpoca, JosÃĐ AntÃīnio Muniz Lopes (mais tarde, presi-dente da empresa), encostando um facÃĢo em seu rosto para expressar a rejeiçÃĢo à usina por seu povo, produ-zindo uma imagem que resumiu o evento e correu o mundo todo.
A Eletronorte trocou o nome KararaÃī por Belo Monte, mas teve que esperar 22 anos pelo inÃcio da obra. Alterou o projeto de engenharia para diminuir o lago, mas seguiu provocando fortes reaçÃĩes. Belo Monte proporcionou um festival de corrupçÃĢo e os seus protagonistas estÃĢo profundamente enrolados na OperaçÃĢo Lava Jato, iniciada em 2014. Altamira ficou
inchada, muita gente foi removida e os impactos am-bientais na Volta Grande estÃĢo determinando altera-çÃĩes irreversÃveis nas formas de vida dos Ãndios e dos pescadores da regiÃĢo.
A Eletronorte nem fala mais das outras usinas projetadas para o Xingu, mas jÃĄ ataca o TapajÃģs!
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Para os que fundaram o ISA 25 anos atrÃĄs, em abril de 1994, a democracia foi um dos pressupostos da organizaçÃĢo. ApÃģs mais de duas dÃĐcadas de ditadu-ra, incluindo a tal âabertura lenta, segura e gradualâ, e uma de redemocratizaçÃĢo, estÃĄvamos todos ÃĄvidos por construir um instrumento novo e mais abrangente de atuaçÃĢo no ÃĒmbito da sociedade civil organizada e em organizaçÃĢo. AcreditÃĄvamos que se a democratizaçÃĢo prosperasse de forma substantiva â e fazer com que isso acontecesse seria uma das nossas missÃĩes â um tal ins-trumento de nova geraçÃĢo poderia tambÃĐm prosperar.
O outro pressuposto foi o de que a generosa base de recursos naturais do paÃs, associada à diversidade das suas gentes, indicava um caminho bem mais inte-ressante para a reconstruçÃĢo do Brasil do que os mo-delos de desenvolvimento vigentes, jÃĄ bastante camba-leantes. Para alguns de nÃģs, essa seria uma boa hipÃģtese e, para outros, o Único caminho à vista.
Ãramos, entÃĢo, umas 40 pessoas reunidas na Fazenda da Serra, em Itatiaia (RJ), durante trÊs dias. Era ali que o Centro EcumÊnico de DocumentaçÃĢo e InformaçÃĢo (Cedi) costumava realizar suas assembleias
Subvertendo a gramÃĄtica e outras histÃģrias
anuais, a meio caminho entre SÃĢo Paulo e Rio de Janeiro, onde ficavam seus escritÃģrios. ApÃģs 20 anos de criaçÃĢo, o Cedi havia decidido encerrar as atividades e se propÃīs a gestar atÃĐ cinco novas organizaçÃĩes, decorrentes dos seus antigos programas, disponibilizando recursos, acervos e relaçÃĩes acumuladas, inclusive com agÊncias de financiamento, para a sua constituiçÃĢo. Daqueles cinco projetos, trÊs foram viabilizados: o ISA, a AçÃĢo Educativa e a Koinonia â Presença EcumÊnica e Serviço.
AlÃĐm dos egressos do Cedi, lÃĄ estavam militantes da SOS Mata AtlÃĒntica, do NÚcleo de Direitos IndÃgenas (NDI) e outras pessoas desse campo polÃtico. A convi-vÊncia durante a ConferÊncia Rio-92 â primeira grande reuniÃĢo de chefes de Estado para aprovaçÃĢo das princi-pais convençÃĩes internacionais sobre o meio ambiente â havia aproximado esses grupos e suas agendas. Todos experimentavam a necessidade de superaçÃĢo das suas experiÊncias institucionais anteriores.
Mais que um nome, um conceito
Criar uma nova organizaçÃĢo era consenso. A abor-dagem da questÃĢo ambiental no cenÃĄrio de uma socie-dade carente e com novos atores emergentes â jÃĄ fun-cionava, por exemplo, a Aliança dos Povos da Floresta â reclamava um modelo prÃģprio, comprometido com as transformaçÃĩes sociais desejadas pelos povos do sul e diferente do ambientalismo conservacionista do âandar de cimaâ do planeta. Daà que a designaçÃĢo de âinstitu-toâ, apesar da caretice da palavra, foi reconhecida como sendo mais representativa da vontade coletiva do que, por exemplo, uma mera âassociaçÃĢoâ, e com um sentido mais afirmativo do que âcentroâ, ânÚcleoâ ou âfundaçÃĢoâ.
O desejo difuso daquelas 40 pessoas era o de encon-trar um nome leve, que fosse âsimpatiquinhoâ e de fÃĄcil
Texto originalmente publicado no site do ISA, em 21 de abril de 2017: https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-isa/subvertendo-a-gramatica-e-outras-historias.
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apreensÃĢo pelas pessoas em geral, induzindo-as a perce-ber a junçÃĢo dos campos âsocialâ e âambientalâ e a iden-tificar-se com ela. Debatemos durante dias em busca de um nome, sem que chegÃĄssemos a algo criativo ou a um razoÃĄvel consenso sobre as sugestÃĩes que iam surgindo.
Enquanto isso, o conceito de âsocioambientalâ ia se consolidando, inclusive por meio da aboliçÃĢo do hÃfen que, segundo as regras da lÃngua portuguesa na ÃĐpoca, seria indispensÃĄvel na forma correta de redigir a sÃn-tese pretendida, mas que todos preferiram dispensar. QuerÃamos a sÃntese, e nÃĢo a justaposiçÃĢo.
Com falta total de imaginaçÃĢo e grande acuidade conceitual, o grupo foi evoluindo para a denominaçÃĢo Instituto Socioambiental, o que parecia uma soluçÃĢo ra-zoÃĄvel, embora excessivamente racional, ainda que pro-visÃģria, sem prejuÃzo da futura adoçÃĢo de algum apeli-do, ou sobrenome, que desse um pouco de graça, ou de leveza, ao conceito consagrado.
PorÃĐm, desde logo, a denominaçÃĢo confrontou um problema: e a sigla? Pela lÃģgica, seria âISâ. Ficou estabe-lecido para aqueles fundadores que seria âISâ. Achamos que, assim, a sigla atÃĐ aportaria algum grau de imagina-çÃĢo, como nos associando à metÃĄfora dos âpingos nos isâ. Aquele encontro inaugural rejeitou a hipÃģtese de uma sigla âISAâ, considerada um contrassenso diante da dis-cussÃĢo acumulada sobre o carÃĄter sintÃĐtico do conceito âsocioambientalâ, uma espÃĐcie de reposiçÃĢo do hÃfen, sem hÃfen, por meio da duplicaçÃĢo de iniciais para o que seria â e ÃĐ â uma sÃģ palavra. Portanto o que se fundou foi o âISâ.
Como vivemos numa sociedade em que a lingua-gem verbal ÃĐ francamente hegemÃīnica, a chamada rea-lidade dos fatos foi destruindo rapidamente a pretensÃĢo siglÃĄria do âISâ. Metido no meio de uma frase qualquer, o âISâ poderia virar qualquer coisa e atÃĐ um plural de ou-
tra coisa. O âsâ escorrega, em vez de identificar. Fomos percebendo que nÃĢo havia como cravar uma identidade nominÃĄvel sÃģ com um âiâ solto no vento por um âsâ. E foi assim, na prÃĄtica, que o âaâ acabou se impondo, subver-tendo o estabelecido.
Bissexual e parente de Ãndio
Com a progressiva e subversiva consolidaçÃĢo da sigla âISAâ, colocou-se uma questÃĢo de gÊnero. Na nos-sa lÃngua, diz-se âoâ instituto, enquanto âISAâ sugere um ente do sexo feminino, tipo âdona Isaâ. Uma instituiçÃĢo bissexual ou hermafrodita! Parte considerÃĄvel dos nos-sos parceiros indÃgenas resolve essa parada dizendo âa ISAâ. Vivemos muitos anos perambulando entre o âaâ e o âoâ. Nem sei se essa perambulaçÃĢo terminou.
Seja como for, lutas memorÃĄveis foram defuman-do o conceito, a denominaçÃĢo e a sigla, atribuindo-lhe os significados especÃficos e concretos que lhes dÃĢo senti-do como instrumento de intervençÃĢo no paÃs. âOâ ou âaâ ISA ficou sendo parente de Ãndio e de populaçÃĩes tradi-cionais, da tribo dos territÃģrios da diversidade, do en-frentamento ao desmatamento e à mudança climÃĄtica, da promoçÃĢo de produtos de povos da floresta, da pro-duçÃĢo de informaçÃĢo sobre as diversidades nacionais, da construçÃĢo e defesa das leis e das polÃticas para um âBrasil Socioambientalâ. Os anos foram clivando uma identidade prÃģpria ao ISA, independente dos gÊneros que se queira lhe atribuir.
Nessa data querida, enfrentando prolongada tem-porada de caça aos direitos socioambientais, seguimos convocando toda a arca de NoÃĐ, de âaâ a âoâ, passando por vogais e consoantes dissonantes, para a reconstruçÃĢo cole-tiva do mundo, seja quais forem o tempo e o estado em que ele serÃĄ resgatado das mÃĢos daqueles que ora o asfixiam.
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O Brasil ÃĐ um espaço-tempo do realismo fantÃĄs-tico. Frequentemente, editam-se leis que nÃĢo se cum-prem. Mas aqui temos a histÃģria de uma âleiâ, nÃĢo escri-ta, que vigora hÃĄ mais de 30 anos!
Em 1987, o Centro EcumÊnico de DocumentaçÃĢo e InformaçÃĢo (Cedi) realizou o primeiro levantamento sobre a incidÊncia de interesses minerÃĄrios em terras indÃgenas. Para isso, cruzou o banco de dados do Depar-tamento Nacional de ProduçÃĢo Mineral (DNPM), que dispÃĩe das ÃĄreas requeridas ou concedidas para a pes-quisa e lavra de minÃĐrios na AmazÃīnia Legal Brasileira, com o banco de dados cartogrÃĄficos das terras indÃge-nas da regiÃĢo, revelando a incidÊncia, nestas, de 2.245 tÃtulos, sobretudo requerimentos de pesquisa mineral.
Como se iniciava um processo constituinte, houve um fluxo intenso da formalizaçÃĢo de requerimentos por empresas de mineraçÃĢo, ÃĄvidas por garantir direitos ad-quiridos sobre ÃĄreas com potencial ocorrÊncia mineral economicamente significativa. Esse fluxo atingiu vÃĄrias regiÃĩes do paÃs com perfil geolÃģgico mais favorÃĄvel, in-clusive terras indÃgenas.
Foi entÃĢo que representantes da UniÃĢo das NaçÃĩes IndÃgenas (UNI) e de organizaçÃĩes de apoio aos Ãndios,
Requerimentos âbranca de neveâ esperam o beijo do âprÃncipeâ JucÃĄ
como o prÃģprio Cedi, solicitaram ao entÃĢo ministro das Minas e Energia, Aureliano Chaves, a anulaçÃĢo daqueles tÃtulos minerÃĄrios incidentes, atÃĐ que a nova Constitui-çÃĢo fosse promulgada, definindo os procedimentos ca-bÃveis a partir de entÃĢo.
O ministro acolheu o pleito, a seu modo. Provavel-mente por orientaçÃĢo do entÃĢo diretor geral do DNPM, Elmer Prata SalomÃĢo, os tÃtulos que haviam sido conce-didos foram anulados, mas foi adotado o procedimento de âsustarâ a tramitaçÃĢo de requerimentos incidentes em terras indÃgenas. Eles nÃĢo seriam deferidos, nem anulados, constituindo um arquivo paralelo, que ficaria congelado atÃĐ que houvesse legislaçÃĢo a respeito.
A ConstituiçÃĢo de 1988 previu a pesquisa e a lavra de minÃĐrios em terras indÃgenas, mas tambÃĐm diz que a autorizaçÃĢo para essas atividades compete exclusiva-mente ao Congresso Nacional, com base em condiçÃĩes especÃficas a serem definidas em lei. Diversos projetos de lei foram apresentados nesses 30 anos para regula-mentÃĄ-las, mas atÃĐ hoje nada foi aprovado. O cartÃģrio paralelo de requerimentos sustados continua existindo e, com a recente extinçÃĢo do DNPM, deverÃĄ ser gerido pela AgÊncia Nacional de MineraçÃĢo (ANM).
Chamamos esses requerimentos de âbranca de neveâ porque estariam dormindo continuamente atÃĐ que o beijo de algum prÃncipe os desperte. Beijo este que pode ser um ato legal capaz de validÃĄ-los, em vez de anulÃĄ-los definitivamente.
O projeto de lei (PL) principal â ao qual os demais estÃĢo apensados na tramitaçÃĢo legislativa â ÃĐ o de nÚ-mero 1.610/1996, de autoria do senador Romero JucÃĄ (PMDB-RR), que pretende validar esse cartÃģrio para-lelo, atribuindo âdireito de prioridadeâ aos detentores de requerimentos sustados. De acordo com a proposta
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original, a realizaçÃĢo de licitaçÃĢo entre as empresas in-teressadas em jazidas explorÃĄveis em terras indÃgenas sÃģ seria aplicÃĄvel a outras ÃĄreas.
O âdireito de prioridadeâ ÃĐ reconhecido no atual CÃģdigo de MineraçÃĢo e garante ao titular de um reque-rimento de pesquisa mineral protocolado no DNPM, des-de que nÃĢo haja outro anterior incidindo sobre a mesma ÃĄrea, o direito exclusivo de pesquisÃĄ-la e de prioridade na concessÃĢo de eventual alvarÃĄ de lavra, caso seja en-contrada alguma jazida explorÃĄvel. Um ato cartorial que, por si, jÃĄ gera direitos em cadeia ao longo do tempo, total-mente imprÃģprio à situaçÃĢo das terras indÃgenas, para as quais a prÃģpria ConstituiçÃĢo prevÊ condiçÃĩes especiais.
SÃģ que o pacote especulativo dos requerimentos âbranca de neveâ, como jÃĄ mostrava o mapa do Cedi, recobre todas as ÃĄreas com viabilidade geolÃģgica para ocorrÊncia de jazidas relevantes. Em outras palavras, a aprovaçÃĢo do PL nš 1.610/1996 validaria o cartÃģrio es-peculativo sobre o que interessa, instituindo uma legis-laçÃĢo adequada ao espÃrito da ConstituiçÃĢo que, no en-tanto, sÃģ seria aplicÃĄvel excepcionalmente a ÃĄreas que escapem do loteamento cartorial do âprÃncipeâ JucÃĄ, que privilegia empresas de garimpo, como as que atuam ile-galmente em Roraima.
à esse tipo de manipulaçÃĢo legislativa, mais do que a prÃģpria oposiçÃĢo dos Ãndios, que explica o fato dessas atividades nÃĢo terem sido adequadamente regulamentadas durante 30 anos. Ela acirra conflitos de interesse entre os contemplados e os excluÃdos do cartÃģrio, assim como entre empresas de garimpo e de mineraçÃĢo industrial. Cada ator envolvido parece desejar uma lei à sua imagem e semelhança. Na ausÊncia dessa, preferem o vazio legal. Enquanto isso continua valendo a âleiâ nÃĢo es-crita que criou a bizarra figura dos âbranca de neveâ.
Chama-se âCabeça do Cachorroâ a regiÃĢo do ex-tremo noroeste do Amazonas, na fronteira com a Co-lÃīmbia. Se vocÊ prestar atençÃĢo no mapa, verÃĄ que a linha da fronteira perfaz a silhueta de um cachorro, com orelhinha, focinho e boca. A ÃĄrea abrangida ÃĐ o municÃpio de SÃĢo Gabriel da Cachoeira, que faz frontei-ra, tambÃĐm, com a Venezuela. NÃĢo hÃĄ estrada de ferro ou de rodagem e o acesso, a partir de Manaus, ÃĐ feito por via aÃĐrea ou fluvial. A regiÃĢo ÃĐ geopoliticamente importante, mas estÃĄ fora das zonas de expansÃĢo da fronteira agrÃcola.
SÃĢo Gabriel ÃĐ um municÃpio indÃgena, com cerca de 340 comunidades e 400 sÃtios, onde vivem 23 po-vos, espalhados pelo alto rio Negro e seus formado-res. TambÃĐm sÃĢo Ãndios 80% dos habitantes da sede urbana do municÃpio, que adota como lÃnguas oficiais, alÃĐm do portuguÊs, o tucano, o baniwa e o nheenga-tu. Predominam os casamentos entre pessoas de et-nias diferentes, havendo muitos poliglotas, que falam a lÃngua materna, a do cÃīnjuge, o portuguÊs, quando nÃĢo o espanhol e o nheengatu, que ÃĐ uma lÃngua de base tupi inventada pelos jesuÃtas e hoje sÃģ falada na-quela regiÃĢo.
Pactos demarcatÃģrios mudam o mapa da âCabeça do Cachorroâ
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Esse territÃģrio foi uma espÃĐcie de laboratÃģrio da polÃtica indigenista derivada do Projeto Calha Norte, que visava adensar a ocupaçÃĢo e promover o desenvol-vimento da ÃĄrea situada ao norte das calhas dos rios Amazonas e SolimÃĩes, o que corresponde a 14% da ex-tensÃĢo do territÃģrio nacional. O projeto foi concebido e implantado pela Secretaria-Geral do Conselho de De-fesa Nacional, que exerceu uma tutela militar sobre as polÃticas federais para a AmazÃīnia durante o governo JosÃĐ Sarney, primeiro presidente civil apÃģs 21 anos de governos militares.
Aquela polÃtica indigenista promoveu um modelo de demarcaçÃĢo das terras indÃgenas em âilhasâ, ou seja, circunscrevendo em fragmentos territoriais as ÃĄreas com maior concentraçÃĢo de habitaçÃĩes indÃgenas e dei-xando de fora os seus entornos. Em 1984, Sarney homo-logou a demarcaçÃĢo de 14 dessas âilhasâ, somando 2,6 milhÃĩes de hectares, e criou Florestas Nacionais, desti-nadas à exploraçÃĢo extrativista, na maior parte das ter-ras indÃgenas. Esse modelo de demarcaçÃĢo promoveu migraçÃĩes e expandiu o garimpo predatÃģrio para ÃĄreas de caça, pesca e coleta dos Ãndios, espalhando conflitos pela faixa de fronteira.
Com a promulgaçÃĢo da ConstituiçÃĢo, em 1988, as demarcaçÃĩes em âilhasâ foram questionadas pelo Mi-nistÃĐrio PÚblico Federal (MPF) e derrubadas na Justiça, por terem desconsiderado o conceito das âterras tra-dicionalmente ocupadas pelos Ãndiosâ, que inclui, alÃĐm daquelas habitadas e utilizadas para as suas atividades produtivas, tambÃĐm as essenciais para a proteçÃĢo am-biental e para a reproduçÃĢo fÃsica e cultural dos povos.
No inÃcio dos anos 1990, laudos antropolÃģgicos comprovaram a ocupaçÃĢo indÃgena sobre ÃĄreas âcon-tÃnuasâ (por oposiçÃĢo à s âilhasâ) e os seus memoriais
descritivos foram publicados no DiÃĄrio Oficial da UniÃĢo e ficaram sujeitos à contestaçÃĢo de terceiros durante o prazo estabelecido pelo Decreto nš 1.775/1996, nÃĢo surgindo objeçÃĩes relevantes. Coube ao entÃĢo ministro da Justiça, Nelson Jobim, decidir sobre os limites das terras a serem demarcadas na regiÃĢo e a mim, como presidente da FundaçÃĢo Nacional do Ãndio (Funai) na ÃĐpoca, assessorÃĄ-lo nessa decisÃĢo.
Estavam pendentes de decisÃĢo os processos rela-tivos à Terra IndÃgena Alto Rio Negro â a âCabeça do Ca-chorroâ propriamente dita â e à s Terras IndÃgenas MÃĐ-dio Rio Negro I e MÃĐdio Rio Negro II, entre SÃĢo Gabriel e Santa Isabel do Rio Negro, e as Terras IndÃgenas TÃĐa e Apaporis, contÃguas, num total de 10.6 milhÃĩes de hec-tares. A objeçÃĢo real à demarcaçÃĢo vinha de militares, que viam a formalizaçÃĢo de territÃģrios indÃgenas exten-sos em regiÃĩes de fronteira como ameaça à soberania nacional na medida em que dificultasse a presença e o trÃĒnsito das Forças Armadas naquelas ÃĄreas.A Marinha expressou, especificamente, preocupa-çÃĢo com a navegabilidade do Rio Negro, que ÃĐ a mais im-portante via natural de comunicaçÃĢo para toda a regiÃĢo e tem as suas nascentes na Venezuela, onde tambÃĐm se liga naturalmente com a bacia do Rio Orinoco e com o Caribe atravÃĐs do Canal de Cassiquiare. Jobim decidiu, entÃĢo, de-safetar o canal navegÃĄvel do Rio Negro da condiçÃĢo for-mal de terra indÃgena, dividindo em duas â I e II â a Terra IndÃgena MÃĐdio Rio Negro. Os decretos de homologaçÃĢo incluÃram todas as ilhas dentro das ÃĄreas demarcadas e nÃĢo implicaram perdas territoriais para os Ãndios.
A AeronÃĄutica implantava, na ÃĐpoca, o Projeto Si-vam (Sistema de VigilÃĒncia da AmazÃīnia), que tem um dos seus radares em SÃĢo Gabriel. Ela pretendia construir uma PCH (Pequena Central HidrelÃĐtrica) em um igarapÃĐ
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prÃģximo, que faz divisa com a terra indÃgena, para ali-mentar o radar. Nos termos da ConstituiçÃĢo, o aprovei-tamento de recursos energÃĐticos em terras indÃgenas depende de uma autorizaçÃĢo especÃfica do Congresso Nacional, e a AeronÃĄutica temia que a provÃĄvel demora na obtençÃĢo dessa autorizaçÃĢo prejudicasse o projeto. A PCH inundaria uma extensÃĢo mÃnima da terra indÃgena e, consultados, os Ãndios optaram por suprimi-la em tro-ca do apoio da AeronÃĄutica à demarcaçÃĢo da terra.
O ExÃĐrcito jÃĄ mantinha alguns pelotÃĩes de frontei-ra situados na Terra IndÃgena Alto Rio Negro e preten-dia ampliar o seu nÚmero no contexto do Projeto Calha Norte. E dispunha, para os locais dos antigos batalhÃĩes, de tÃtulos dominiais em seu nome, relativos a pequenas extensÃĩes de terras situadas ao seu redor. Jobim con-venceu os militares de que aqueles tÃtulos eram nulos, mas tambÃĐm desnecessÃĄrios para garantir a presença militar onde fosse requerida. Jobim editou uma porta-ria regulando a atuaçÃĢo do ExÃĐrcito em terras indÃgenas e a demarcaçÃĢo foi absorvida.
A demarcaçÃĢo fÃsica das terras indÃgenas do Rio Negro aconteceu na gestÃĢo do meu sucessor na Funai e seguiu um modelo prÃģprio. A Funai contratou uma empresa para fixar os marcos demarcatÃģrios nos pontos geodÃĐsicos de amarraçÃĢo do perÃmetro da ÃĄrea e delegou aos Ãndios, por meio da FederaçÃĢo das OrganizaçÃĩes IndÃgenas do Rio Negro (FOIRN), a abertura de picadas e a fixaçÃĢo de placas ao longo do perÃmetro, o que lhes permitiu ampliar o seu conhecimento sobre os limites e a sua capacidade de controle futuro. O Programa Rio Negro do ISA, coordenado pelo Beto Ricardo, deu apoio tÃĐcnico e administrativo à FOIRN.
Decretos do presidente Fernando Henrique homo-logaram a demarcaçÃĢo, em abril de 1998. Houve muitas
mudanças nas relaçÃĩes entre Ãndios e militares nesses mais de 20 anos. Rancores do passado cederam lugar à cooperaçÃĢo. O ExÃĐrcito ampliou a sua presença, trans-ferindo para SÃĢo Gabriel a Segunda Brigada de Infan-taria de Selva (2004), divisÃĢo comandada por general, elevando o nÃvel de interlocuçÃĢo com os Ãndios e outras instituiçÃĩes. Passou, tambÃĐm, a priorizar o recrutamen-to de jovens indÃgenas em vez de trazer contingente do sul do paÃs, passando a dispor de uma tropa adaptada à s condiçÃĩes locais e reduzindo conflitos causados por assÃĐdio de soldados a Ãndias.
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Foi numa manhÃĢ de setembro de 1995 que tomei posse no cargo de presidente da Funai, numa breve ce-rimÃīnia realizada no MinistÃĐrio da Justiça. Ao final, o ministro Nelson Jobim pediu que eu subisse atÃĐ seu ga-binete apÃģs os cumprimentos de praxe.
Logo que entrei no gabinete, ele me disse: â âHÃĄ um grupo de Ãndios que ocupou a BR-174, na
fronteira entre o Amazonas e Roraima, e expulsou de lÃĄ o batalhÃĢo de engenharia do ExÃĐrcito, que se preparava para iniciar a pavimentaçÃĢo do trecho em que a rodovia atravessa uma terra indÃgena. VÃĄ atÃĐ lÃĄ, se for preciso, e retire esses Ãndios do leito da estrada.â
Com efeito, os Ãndios Waimiri-Atroari haviam empatado a obra. Imprensa e classe polÃtica regional faziam um auÊ danado, acusando os Ãndios de querer impedir a redençÃĢo de Roraima, pois a pavimentaçÃĢo da rodovia, na visÃĢo local, retiraria o estado do seu iso-lamento histÃģrico em relaçÃĢo ao resto do paÃs.
Expliquei ao ministro que os Waimiri-Atroa-ri sÃĢo um povo guerreiro que sofreu um impacto genocida com a abertura daquela estrada, ainda nos tempos de ditadura, e que nÃĢo era sem motivo que os militares tinham optado pela retirada. E que ele nÃĢo
Asfalto na selva deveria esperar que eu, ou qualquer outro mortal, fosse retirar os Ãndios à força.
O ministro argumentou que a faixa de domÃnio ao longo da rodovia havia sido desafetada da condiçÃĢo de terra indÃgena pelo decreto presidencial que ho-mologou a demarcaçÃĢo da ÃĄrea e que, dessa forma, os Ãndios estavam ocupando uma ÃĄrea sobre a qual nÃĢo detinham direitos, nÃĢo podendo o governo tolerar tal ilegalidade. Informei-o, entÃĢo, que, embora desafetado, o trecho da estrada que atravessa o territÃģrio indÃge-na era extenso â 125 km â e que, independentemen-te da sua condiçÃĢo jurÃdica, sua pavimentaçÃĢo repre-sentaria, sim, impactos adicionais, sendo melhor que o governo se dispusesse a discutir com os Ãndios as condiçÃĩes reais da ÃĄrea em vez de querer lhes impor, simplesmente, a formalidade da lei. Disse-lhe, ainda, que eu desconhecia as condiçÃĩes do conflito naquele momento que voltaria a conversar com ele assim que tivesse tempo para me informar devidamente.
O primeiro telefonema que dei como presidente da Funai foi para PorfÃrio Carvalho, um indigenista historicamente formado no ÃģrgÃĢo, mas que jÃĄ vinha prestando serviços como consultor à Eletronorte hÃĄ alguns anos, mediando as relaçÃĩes entre a empresa e os grupos indÃgenas afetados por empreendimen-tos hidrelÃĐtricos na regiÃĢo amazÃīnica. Carvalho foi o principal protagonista da construçÃĢo do Programa Waimiri-Atroari (PWA) como resultado de um con-vÊnio entre a Funai e a Eletronorte para proteger as terras e melhorar as condiçÃĩes de vida dos Ãndios, abaladas pela implantaçÃĢo de vÃĄrios projetos de de-senvolvimento, como a implantaçÃĢo da prÃģpria BR-174, da hidrelÃĐtrica de Balbina e da Mina do Pitinga, onde a mineradora Paranapanema explorava cassi-
Em memÃģria de PorfÃrio Carvalho
Texto originalmente publicado no site do ISA, em 8 de maio de 2017: https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-ppds/asfalto-na-selva.
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terita, empreendimentos que incidem em ÃĄreas de ocupaçÃĢo tradicional que foram excluÃdas dos limites demarcados como terra indÃgena.
Carvalho me explicou que a ocupaçÃĢo da estrada pelos Ãndios jÃĄ vinha acontecendo hÃĄ alguns dias e que os militares haviam concordado em se retirar e evitar qualquer ato de força que pudesse agravar a animosi-dade entre Ãndios e trabalhadores, aguardando nego-ciaçÃĩes para resolver pacificamente o conflito. O co-mando do batalhÃĢo de engenharia havia percebido uma intençÃĢo meio malandra do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit), que havia licitado, entre empreiteiras privadas, os demais trechos da obra e reservado ao ExÃĐrcito apenas o trecho em que havia conflito com os Ãndios.
Carvalho tambÃĐm informou que os Waimiri-Atroa-ri estavam dispostos a aceitar a pavimentaçÃĢo caso o go-verno se dispusesse a bancar a implantaçÃĢo e o funciona-mento, por 10 anos, de um novo plano de fiscalizaçÃĢo e vigilÃĒncia daquele trecho da estrada. O PWA jÃĄ realizava a sua fiscalizaçÃĢo, mas necessitaria de recursos adicio-nais para ampliar a sua estrutura diante do previsÃvel aumento do trÃĄfego, do risco de acidentes e do atrope-lamento de animais em consequÊncia da pavimentaçÃĢo.
Com essas informaçÃĩes, retornei ao ministro Jo-bim e defendi a posiçÃĢo dos Ãndios, mostrando que a providÊncia de ampliar a fiscalizaçÃĢo da ÃĄrea bem po-deria ser solicitada pelos usuÃĄrios da estrada:
â âImagine, ministro, o senhor fazendo uma via-gem com a famÃlia e o seu carro quebra em algum ponto remoto da fronteira entre Amazonas e Roraima. NÃĢo lhe seria confortÃĄvel saber que hÃĄ uma estrutura de moni-toramento permanente para lhe garantir socorro em um tempo razoÃĄvel?â
Ele disse, entÃĢo, que estava convencido da perti-nÊncia da reivindicaçÃĢo dos Ãndios, mas que eu teria de convencer o governo como um todo:
â âAo MinistÃĐrio dos Transportes compete a exe-cuçÃĢo da obra; ao Planejamento, a disponibilizaçÃĢo dos recursos; ao Meio Ambiente, o licenciamento ambiental; a nÃģs compete apenas a desobstruçÃĢo da via.â
Ocorreu-me, entÃĢo, fazer do limÃĢo uma limonada: um caso exemplar de consulta aos Ãndios para se implan-tar um empreendimento de infraestrutura com impac-tos potenciais sobre seu territÃģrio. Sugeri ao ministro or-ganizarmos uma visita de Estado ao territÃģrio indÃgena para uma conversa direta com os Waimiri-Atroari sobre a obra e a sua condicionante. Eu lideraria uma delegaçÃĢo com representantes dos quatro ministÃĐrios envolvidos, à qual ele sugeriu incorporar representantes dos gover-nos do Amazonas e de Roraima. O ministro dispÃīs-se a indicar o seu representante e a solicitar formalmente a designaçÃĢo dos representantes dos demais ministÃĐrios e governos. No geral, foram indicadas pessoas com consi-derÃĄvel grau de hierarquia funcional.
Informei ao PWA e aos Ãndios que o governo estava pronto para conversar com eles sobre a pavimentaçÃĢo da estrada e a proposta do plano de fiscalizaçÃĢo, dei-xando-lhes bem claro que nÃĢo havia qualquer decisÃĢo de governo sobre a reivindicaçÃĢo dos Waimiri-Atroari, mas sim uma disposiçÃĢo de negociar em alto nÃvel e na prÃģpria terra indÃgena, caso eles tambÃĐm concordas-sem. Eles perguntaram â e eu expliquei â quais pessoas iriam e, entÃĢo, consentiram em nos receber, dizendo que tambÃĐm formariam uma comissÃĢo de alto nÃvel. Da-tas foram acordadas.
A reuniÃĢo das partes aconteceu no Posto IndÃgena Nawa â NÚcleo de Apoio aos Waimiri-Atroari â situado
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no seu prÃģprio territÃģrio e à beira da estrada, distante uns 200 km de Manaus. Fomos vendo, pelo caminho, a situaçÃĢo da pavimentaçÃĢo da estrada, nÃĢo faltando co-mentÃĄrios politicamente incorretos sobre a interrup-çÃĢo das obras pelos Ãndios e sobre sua proposta de fis-calizaçÃĢo do trecho. O representante do MinistÃĐrio do Planejamento â um jovem de inteligÊncia brilhante e altamente graduado â revelava grande ansiedade em se encontrar com Ãndios, o que faria pela primeira vez. Ao mesmo tempo, ironizava a reivindicaçÃĢo deles, dizendo que ânÃĢo existe antecipaçÃĢo de orçamento por 10 anosâ.
Chegando ao limite da terra indÃgena, os repre-sentantes do governo federal ficaram impressionados com o trabalho do PWA. Havia um prÃĐdio de apoio, veÃculos e pessoal operando a cancela de controle da entrada. Os transeuntes recebiam instruçÃĩes verbais sobre a condiçÃĢo legal da ÃĄrea em que estavam entran-do e como deveriam proceder em caso de emergÊncia. TambÃĐm recebiam sacos de lixo e a informaçÃĢo de que nÃĢo se pode jogÃĄ-los na estrada, alÃĐm de uma cartilha sobre os Waimiri-Atroari e seu territÃģrio. Seguimos, entÃĢo, atÃĐ o posto indÃgena, onde ficamos hospeda-dos atÃĐ a manhÃĢ seguinte, quando ocorreria a reuniÃĢo com os Ãndios.
Os visitantes impressionaram-se com a estrutura simples, porÃĐm impecÃĄvel do Posto Nawa. O alojamen-to era rÚstico, de madeira, coberto com telhas venezue-lanas, com isolamento tÃĐrmico e que oferecem conforto e ventilaçÃĢo no forte calor, havia limpeza e alimentaçÃĢo caseira saudÃĄvel. Embora situado à beira da estrada, o local era bonito, florido, agradÃĄvel e todo o trecho da estrada era florestado, de modo que animais e gentes transitavam. à noite, o trÃĄfego era interrompido e im-perava a sinfonia da selva.
No jantar, o representante do MinistÃĐrio do Pla-nejamento sentou-se ao meu lado à mesa e me pergun-tou muitas coisas sobre os Ãndios, a terra e a rodovia. Perguntou, tambÃĐm, sobre o PWA, dizendo-se bem im-pressionado com o zelo pela cancela e o posto. Eu lhe informei que o PWA desenvolve açÃĩes de vÃĄrios tipos em todas as aldeias, alÃĐm da fiscalizaçÃĢo da estrada em outros pontos, assim como da vicinal que leva à Mina do Pitinga e dos acessos fluviais Ã ÃĄrea atravÃĐs da represa de Balbina. TambÃĐm contei que o programa fazia, me-diante convÊnio com o Instituto Brasileiro de Meio Am-biente (Ibama), a fiscalizaçÃĢo da Reserva BiolÃģgica do UatumÃĢ, contÃgua à terra indÃgena e que conserva im-portantes espÃĐcies endÊmicas das cabeceiras do Rio Ua-tumÃĢ e que, do ponto de vista dos Ãndios, funciona como colchÃĢo protetor para uma parte do limite da sua terra.
Depois, ele passou a falar da reivindicaçÃĢo dos Ãn-dios, mas jÃĄ sem a ironia tecnocrÃĄtica que o havia emba-lado durante a viagem e com nÃtida preocupaçÃĢo quanto à impossibilidade â por ele alegada â de antecipar recur-sos orçamentÃĄrios para despesas futuras. Quanto a isso, apenas lhe disse que teria a oportunidade de explicar o problema diretamente aos Ãndios na reuniÃĢo da manhÃĢ seguinte. Apesar do silÊncio, sÃģ entrecortado por sons de sapos, insetos e aves noturnas, o cara nem dormiuâĶ
O dia seguinte amanheceu radiante e, quando acordamos, a delegaçÃĢo dos Ãndios jÃĄ estava presente. Era composta por jovens lÃderes de vÃĄrias aldeias, uma geraçÃĢo que se viu obrigada a assumir precocemente o comando do seu povo, apÃģs a dizimaçÃĢo da geraçÃĢo dos seus pais pela guerra do contato. Eles estavam lindos: pintados, paramentados e... armados!
A conversa aconteceu numa espÃĐcie de quiosque, redondo, coberto de palha, que fica no jardim aos fun-
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dos do alojamento do posto. Havia uma longa mesa de madeira dividindo a construçÃĢo ao meio, com um semi-cÃrculo de cadeiras de um lado e, do outro, um alongado banco de madeira. Antes que a reuniÃĢo começasse, en-quanto as pessoas se apresentavam e conversavam do lado de fora, dois Ãndios entraram no quiosque e, com gestos casados, fincaram duas lanças cruzadas sobre a mesa de madeira, que vibraram vigorosamente por al-guns segundos, completando o cenÃĄrio.
Carvalho abriu a conversa, informando que o as-sunto era a pavimentaçÃĢo da estrada e a proposta de um plano de vigilÃĒncia, passando, a seguir, à apresen-taçÃĢo de cada um dos indÃgenas presentes. Passou-me a palavra para apresentar cada um dos visitantes e dar boas-vindas a todos em nome da Funai. O representan-te do MinistÃĐrio dos Transportes explicou o que seria a obra e as condiçÃĩes da sua execuçÃĢo, sem a perma-nÊncia na ÃĄrea de operÃĄrios durante a noite e com o in-gresso, vindos de fora, dos insumos necessÃĄrios, como cascalho, terra, asfalto etc. Carvalho expÃīs detalhes do plano de fiscalizaçÃĢo. O representante do MinistÃĐrio do Meio Ambiente informou que o licenciamento da obra nÃĢo havia considerado a ampliaçÃĢo da estrutura de fis-calizaçÃĢo do trecho em terra indÃgena, mas que estava convencido da pertinÊncia da reivindicaçÃĢo dos Ãndios e bem impressionado com a integridade ambiental da ÃĄrea, o que aproximaria a condiçÃĢo objetiva daquela parte da rodovia à de uma estrada-parque. O represen-tante da Justiça limitou-se a dizer que ali estava como testemunha, para relatar ao seu ministro o andamento da negociaçÃĢo e seus resultados. O do governo de Rorai-ma relatou a preocupaçÃĢo da populaçÃĢo do estado com o impasse e ressaltou a importÃĒncia da obra. JÃĄ o re-presentante do Amazonas foi alÃĐm, comentando sobre
telefonema recebido naquela manhÃĢ do prÃģprio gover-nador, Amazonino Mendes, que colocava seu governo à disposiçÃĢo para qualquer operaçÃĢo que ajudasse a via-bilizar um acordo para o prosseguimento da obra.
SÃģ que todos eles estavam em posiçÃĢo cÃīmoda para embromar ou concordar com a reivindicaçÃĢo dos Ãndios, pois nÃĢo lhes caberia pagar a conta do plano de fiscalizaçÃĢo, de pouco mais de R$ 4 milhÃĩes, em valores da ÃĐpoca, que nem era tÃĢo salgada se considerados os 10 anos de execuçÃĢo. A fala verdadeiramente esperada era a do representante do Planejamento, o dono do cofre.
Antes, porÃĐm, usei novamente a palavra para pedir um esclarecimento aos Ãndios. Carvalho e eu sa-bÃamos que na lÃngua dos Waimiri-Atroari inexiste o nÚmero 10. Existem um, dois e... muitos. Perguntei a eles, entÃĢo, por que queriam o dinheiro adiantado para os prÃģximos 10 anos, e nÃĢo trÊs ou 20. A pergunta pro-duziu irritaçÃĢo e os Ãndios começaram a falar agitada-mente entre eles, na prÃģpria lÃngua, atÃĐ que um deles respondeu em portuguÊs, em alto e bom som: â âPor que nÃģs nÃĢo confiamos em vocÊs!â Por Ãģbvio, o dono do cofre ficou por Último. Assim que lhe passei a palavra, ele jogou a toalha e nem falou em âimpossibilidadeâ. TambÃĐm se disse bem impressio-nado com tudo o que viu e ouviu, que estava convenci-do da necessidade do plano de fiscalizaçÃĢo e que os re-cursos seriam, ali, melhor geridos do que por qualquer ÃģrgÃĢo pÚblico. Finalizou dizendo que, no seu retorno a BrasÃlia, providenciaria a soluçÃĢo tÃĐcnica adequada para que os recursos necessÃĄrios, nos prÃģximos 10 anos, chegassem rapidamente à s mÃĢos do PWA, de modo que a obra fosse, da mesma forma, retomada e concluÃda. Depois, eu soube que o dinheiro passou pelo governo do Amazonas, mas chegou, com presteza, ao seu destino.
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Ignoro qualquer mutreta que tenha sido feita com o di-nheiro nesse caminho. ConcluÃda a sua fala, vivamente emocionada, eu retomei a palavra: âCarvalho, por favor, lavre a ata da reuniÃĢo!â Fica difÃcil descrever a cena da lavratura da ata. NÃĢo havia, entÃĢo, celulares, computadores ou coisas do gÊnero. Nem mesmo uma mÃĄquina de escrever elÃĐtrica. Carvalho tirou de uma caixa uma velha mÃĄquina Olivet-ti manual, objeto que eu imagino que os escribas atuais nÃĢo imaginem. AlÃĐm disso, faltava-lhe a letra ânâ, de modo que o texto que ia sendo produzido ficava trun-cado por espaços nos lugares dos enes. AlÃĐm da via ori-ginal da ata, iam sendo produzidas outras sete cÃģpias em papel carbono. Todos os presentes assinaram as oito vias do registro: os Ãndios com as suas impressÃĩes digitais, eu e Carvalho como testemunhas. A primeira via ficou comigo, para que eu a levasse oficialmente ao governo, por meio do ministro da Justiça, de modo que o seu representante ficou com a Última via, quase apa-gada, apenas a tÃtulo de registro. O PWA incumbiu-se de guardar e conservar a primeira cÃģpia, dos Ãndios.
Assim, chegaram a um acordo os Waimiri-Atroari e os governos, em pouco mais de uma hora de negocia-çÃĢo. A natureza da reivindicaçÃĢo indÃgena, dado o apoio efetivo do PWA, simplificou tudo, pois nÃĢo se tratava de exigir que o poder pÚblico fizesse isto ou aquilo, mas que liberasse os recursos para que eles prÃģprios fizessem o que cabia fazer, de forma autÃīnoma e por longo tempo.
Seis anos depois, voltei à terra dos Waimiri-A-troari para consultÃĄ-los sobre a inclusÃĢo do seu ter-ritÃģrio num projeto de corredor ecolÃģgico. O plano de fiscalizaçÃĢo estava sendo plenamente executado â como vem sendo atÃĐ hoje â e havia se desdobrado em vÃĄrios outros projetos, com outras fontes de recursos.
Pude conhecer atÃĐ os resultados do monitoramento do impacto da estrada sobre a fauna. O PWA ÃĐ o mais bem-sucedido programa oficial de açÃĢo indigenista que conheço. Melhor, inclusive, que o seu irmÃĢo, o Programa ParakanÃĢ, tambÃĐm resultante de um convÊnio entre a Eletronorte e a Funai. HÃĄ quem critique o PWA por manter os Ãndios em isolamento su-postamente excessivo, distanciando-os de outros po-tenciais apoiadores e do prÃģprio movimento indÃgena. Mas, mais importante que tudo, ÃĐ registrar que, antes dele, os Waimiri-Atroari haviam sido reduzidos a 374 pessoas, em 1987, em consequÊncia do desastroso con-tato. Trinta anos depois, sÃĢo agora mais de dois mil indi-vÃduos, vivendo em territÃģrio demarcado em expressi-va extensÃĢo e que permanece ambientalmente Ãntegro, distribuÃdos em dezenas de aldeias e, por toda a ÃĄrea, falando sua lÃngua e praticando todas as suas ativida-des tradicionais e culturais, com saÚde, reproduzindo--se fÃsica e culturalmente.
Certamente cabe aos Waimiri-Atroari, com o seu heroÃsmo, disposiçÃĢo de luta e persistÊncia, grandes mÃĐritos no sucesso do PWA. Muitas pessoas, indige-nistas e profissionais de vÃĄrias especialidades, tam-bÃĐm contribuÃram decisivamente para isso. Mas todos os envolvidos serÃĢo unÃĒnimes em reconhecer o mÃĐrito principal de PorfÃrio Carvalho.
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Fui nomeado presidente da Funai pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em setembro de 1995, apÃģs alguma embromaçÃĢo. Tive o privilÃĐgio de poder indicar nomes da minha confiança para as suas diretorias e de-mais cargos em comissÃĢo. Pedi ao governo a indicaçÃĢo de um gestor pÚblico para a diretoria de administraçÃĢo, cal-çando-me das adversidades burocrÃĄticas e facilitando a in-terlocuçÃĢo com os ÃģrgÃĢos de controle do Estado. No mais, aproveitei os melhores quadros que jÃĄ estavam no ÃģrgÃĢo. Para chefiar o gabinete da PresidÊncia, desloquei o antropÃģlogo Jorge Pozzobom, pessoa querida e que atuava na diretoria de Assuntos FundiÃĄrios. Pedi socor-ro, provisoriamente, para que ele me ajudasse a segurar o agito do gabinete no primeiro tempo da gestÃĢo, jÃĄ que a sua alta qualificaçÃĢo intelectual e interesse profissio-nal nÃĢo tinham nada a ver com aquela funçÃĢo.
Na estrutura da Funai inexiste o cargo de vice--presidente. A cada gestÃĢo ocorre a designaçÃĢo, pela PresidÊncia da RepÚblica, de um substituto funcional para eventuais ausÊncias do presidente do ÃģrgÃĢo, fun-çÃĢo que, geralmente, recai sobre um dos diretores. No meu caso, pedi ao ministro da Justiça, Nelson Jobim, a designaçÃĢo do chefe de gabinete.
O âTrotskistaâ Transcorreram algumas semanas sem que a de-signaçÃĢo oficial do Jorge fosse efetivada, o que gerava transtornos burocrÃĄticos a cada viagem minha. Pergun-tei ao ministro o porquÊ da demora e fui informado que a consultoria jurÃdica do ministÃĐrio havia questionado a legalidade da indicaçÃĢo. Em burocratÊs: o presidente da Funai ocupa um cargo DAS-6 (mais alto nÃvel hierÃĄr-quico na estrutura administrativa do governo federal para esse tipo de funçÃĢo) e, segundo a consultoria, o seu substituto deveria ser um DAS-5 (que ÃĐ o nÃvel hierÃĄr-quico atribuÃdo aos diretores), enquanto o cargo do Jor-ge, de chefe de gabinete, era de nÃvel DAS-4.
Respondendo ao questionamento, a procuradoria jurÃdica da Funai elaborou um parecer dizendo que nÃĢo havia impedimento legal para se designar qualquer ocu-pante de funçÃĢo de confiança como substituto, pois, ao assumir a PresidÊncia interinamente, passaria a exercer funçÃĢo de nÃvel DAS-6 automaticamente, com nÃvel hie-rÃĄrquico superior aos demais dirigentes do ÃģrgÃĢo, sendo, inclusive, remunerado como tal. E apontou precedentes de designaçÃĩes similares em outros ÃģrgÃĢos. Jobim apro-vou o parecer da Funai, mas, mesmo assim, a designaçÃĢo do Jorge nÃĢo saÃa no DiÃĄrio Oficial da UniÃĢo (DOU).
Alguns dias depois, em audiÊncia com o ministro, perguntei de novo sobre a questÃĢo. Ele disse, entÃĢo, que teria surgido uma objeçÃĢo polÃtica da Casa Civil, pois Pozzobom seria filiado ao PT. âVocÊ indicou um cara de uma ala trotskista do PT e, ainda por cima, do meu es-tado! Estou sendo cobrado por isso pelos parlamentares gaÚchos da baseâ, disse-me o ministro.
Apesar de conhecÊ-lo hÃĄ anos, eu nÃĢo tinha a me-nor ideia sobre preferÊncias ou vinculaçÃĩes partidÃĄrias do Jorge. Depois, fiquei sabendo que ele era compadre do Miguel Rossetto, deputado federal pelo PT do Rio
Texto publicado originalmente no site do ISA, em 24 de julho de 2017: https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/ blog-do-isa-blog-do-ppds/o-trotskista.
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Grande do Sul e integrante da Democracia Socialista, uma corrente interna do partido, tida como de inspira-çÃĢo trotskista. Rossetto foi depois ministro do Desen-volvimento AgrÃĄrio e secretÃĄrio-geral da PresidÊncia da RepÚblica
Respondi ao Jobim que eu nada sabia sobre a op-çÃĢo partidÃĄria do Jorge e compreendia o constrangi-mento polÃtico. Mas que tudo o que a Casa Civil estava dizendo dele sÃģ reforçava a minha opçÃĢo por sua de-signaçÃĢo. Ele reagiu: âComo assim, MÃĄrcio?â Expliquei, entÃĢo, que a tradiçÃĢo na Funai ÃĐ o substituto conspirar para derrubar o presidente e, sendo ele adversÃĄrio po-lÃtico do prÃģprio ministro, nÃĢo teria a menor condiçÃĢo de pretender o cargo. ApÃģs segundos de silÊncio, ele aquiesceu: âSabe que vocÊ tem razÃĢo?! NÃĢo tinha pen-sado nisso...â Alguns dias depois, a designaçÃĢo do Jorge saiu publicada no DOU.
Com trÊs meses de exercÃcio, a direçÃĢo da Funai apresentou à s instÃĒncias superiores de governo uma dupla proposta para a reestruturaçÃĢo do ÃģrgÃĢo: refor-ma modesta numa primeira etapa, nos limites da le-gislaçÃĢo vigente, e mais profunda, visando ao resgate da sua institucionalidade de fundaçÃĢo, apÃģs a suposta aprovaçÃĢo da reforma do Estado pelo Congresso Nacio-nal. Reestruturar a Funai havia sido o objetivo da mi-nha nomeaçÃĢo. PorÃĐm o ministro da reforma do Esta-do, Bresser Pereira, achava que nÃĢo convinha efetivar nem mesmo a primeira etapa da reestruturaçÃĢo, pois suscitaria reaçÃĩes corporativas que poderiam dificul-tar a aprovaçÃĢo da emenda constitucional relacionada ao assunto no Congresso.
Pedi uma conversa presencial com o presidente Fernando Henrique e expliquei que eu nÃĢo tinha inte-resse em permanecer na PresidÊncia da Funai. Rela-
Setembro de 1987. Ailton Krenak protesta no PlenÃĄrio do Congresso, em BrasÃlia, contra a supressÃĢo do capÃtulo dos direitos indÃgenas na Constituinte. O gesto teve grande repercussÃĢo na imprensa e comoveu a opiniÃĢo pÚblica.Luiz Antonio Ribeiro/CPDoc JB
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Fevereiro de 1989. TuÃra KayapÃģ adverte diretor da Eletronorte, no I Encontro dos Povos IndÃgenas contra as hidrelÃĐtricas
no Rio Xingu, Altamira, ParÃĄ.ProtÃĄsio NenÊ/EstadÃĢo ConteÚdo
Maio de 1988. Em pÃĐ: MÃĄrio Juruna, Everaldo Tinoco (quarto da esq. para dir.), MÃĄrco Santilli (quinto). Sentado: Amaury Muller, Tadeu França, Plinio de Arruda Sampaio (quarto da esq. para dir.), FÃĄbio Feldman (sexto), Otavio Elizio, Gabriel Guerreiro, Arthur da Tavola e MÃĄrio Covas. De costas: JosÃĐ Dutra (segundo da esq. para dir.), Jarbas Passarinho, Sandra Cavalcante, Siqueira Campos e Haroldo Lima. Lideranças partidÃĄrias e outros parlamentares negociam emenda no capÃtulo dos Direitos IndÃgenas na Constituinte.Beto Ricardo/ISA
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Maio de 1988. Ãndios de vÃĄrias etnias, tendo à frente, na bancanda, da esq. para dir. Teseya PanarÃĄ, KanhÃĩc KayapÃģ, Raoni Metuktire e Tutu Pombo KayapÃģ, ocupam auditÃģrio da liderança do PMDB, durante negociaçÃĩes do capÃtulo dos Ãndios na Constituinte.
Beto Ricardo/ISA
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Março de 1988. Deputado VigildÃĄsio Senna, da Bahia, leva à tribuna da CÃĒmara mapa feito pelo CEDI âEmpresas de MineraçÃĢo em Terras IndÃgenas na AmazÃīnia brasileiraâ.AndrÃĐ Dusek/AGIL
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tei a objeçÃĢo do Bresser e ele informou que forçaria a barra por uma votaçÃĢo em breve da reforma do Estado pelo Congresso. Respondi que o ÃģrgÃĢo e o seu governo jÃĄ dispunham de uma proposta (na verdade, duas) para a reestruturaçÃĢo da Funai e que poderia executÃĄ-la no momento que mais lhe conviesse, nÃĢo fazendo muito sentido que eu permanecesse no cargo para esperar por isso. A discussÃĢo dentro do ÃģrgÃĢo sobre essa proposta jÃĄ estava produzindo reaçÃĩes corporativas que se esva-ziariam com a nomeaçÃĢo de outra pessoa. O Lucas (meu filho mais novo) tinha nascido e, alÃĐm disso, eu preferia trabalhar no terceiro setor. Mas ele me pediu que eu es-perasse a decisÃĢo do Congresso sobre a reforma admi-nistrativa. E eu esperei.
PorÃĐm, nas semanas seguintes, o Congresso foi desidratando completamente a proposta de reforma administrativa. NÃĢo vale a pena, aqui, entrar em de-talhes sobre o seu mÃĐrito, mas o fato ÃĐ que o Estado estava preferindo continuar podre e inerte. A ciÊncia polÃtica ensina que as burocracias nÃĢo se reformam, sÃģ se reproduzem, a menos que sejam impactadas por movimentos populares ou por fortes direçÃĩes polÃti-cas. A aprovaçÃĢo â na verdade, rejeiçÃĢo â da pÃfia re-forma administrativa pelo Congresso foi a senha para eu apresentar o pedido de demissÃĢo.
No dia seguinte, reuni a diretoria da Funai, com o Jorge presente, e informei que iria ao MinistÃĐrio da Justiça para entregar minha carta de demissÃĢo. Pedi aos diretores que permanecessem no exercÃcio das suas funçÃĩes atÃĐ que fosse nomeado meu sucessor. Precisei de algum tempo para finalizar a carta e, quando cheguei à garagem para pegar o carro oficial rumo ao ministÃĐ-rio, lÃĄ estava o Jorge, com um envelope na mÃĢo: âEntre-ga a minha junto!â. E eu entreguei. O mais interessante
Junho de 1988. Ãndios de vÃĄrios povos comemorando a votaçÃĢo do capÃtulo sobre seus direitos em primeiro turno na Constituinte, ao fundo o Congresso Nacional, BrasÃlia.Beto Ricardo/ISA
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foi que, no dia seguinte, o Jorge â âtrotskistaâ e tudo â foi convidado pelo entÃĢo chefe de gabinete do MinistÃĐrio da Justiça, JosÃĐ Gregori, para assumir a presidÊncia da Funai. E nÃĢo topou.
Eu nunca soube se o Jorge foi, ou nÃĢo, trotskista. Olhando para a cara dele, parece que sim. Mas eu acho que nÃĢo, mesmo que em algum momento ele tenha se en-cantado com a ideia de uma revoluçÃĢo permanente. Acho que ele acreditou mais nos Ãndios Hupda (leiam âVocÊs Brancos nÃĢo tÊm Almaâ) e no Freud do que no Trotsky. Com inteligÊncia criativa e fino bom humor, cos-tumava me ligar na madruga: âpresidente, que horas o senhor deve chegar ao hospÃcio?â Quando caiu grave-mente doente, ele me disse que atribuÃa o cÃĒncer à s ten-sÃĩes vividas na Funai. Assim sendo, temo pela extensÃĢo da minha contribuiçÃĢo para a sua agonia.
BeijÃĢo Camarada!!!
Quando passei pela presidÊncia da Funai, ela dis-punha de 48 unidades regionais, entÃĢo chamadas de administraçÃĩes e, atualmente, de coordenaçÃĩes. Vejo mÃĐrito no fato de sua estrutura vincular essas uni-dades diretamente à sede do ÃģrgÃĢo em BrasÃlia, sem a mediaçÃĢo de outras instÃĒncias burocrÃĄticas, como superintendÊncias estaduais, que jÃĄ existiram antes. TambÃĐm vejo mÃĐrito no desenho das respectivas juris-diçÃĩes, que priorizam as concentraçÃĩes de terras indÃ-genas e as relaçÃĩes entre os grupos, em vez das fron-teiras estaduais ou municipais.
PorÃĐm havia distorçÃĩes absurdas nesse desenho administrativo. Por exemplo, duas unidades regionais â em Barra do Garças e Nova Xavantina (MT) â atendiam especificamente o povo Xavante, entÃĢo constituÃdo por de cerca de 10 mil pessoas. Os seus orçamentos soma-vam mais de 20% do total destinado à s administraçÃĩes regionais. Para comparar, havia uma Única unidade para atender todo o noroeste do Amazonas, com 40 mil Ãndios â que representam 10% da populaçÃĢo aldeada no paÃs â e com apenas 4% do orçamento disponÃvel. Curiosamente, tambÃĐm havia uma em GoiÃĒnia, capital de GoiÃĄs, onde nÃĢo hÃĄ terras e populaçÃĩes indÃgenas, se-
Xavantada maçÃīnica
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nÃĢo uma pequena comunidade. Por esta unidade, supos-tamente dedicada a âfunçÃĩes administrativasâ, fluÃam mais 10% daquele orçamento.
Essa distorçÃĢo era atribuÃda a dois fatores com-binados: a relativa proximidade das ÃĄreas Xavante em relaçÃĢo à BrasÃlia e o carÃĄter guerreiro desse povo de tronco linguÃstico GÊ, incisivo na pressÃĢo sobre auto-ridades e governos. Uma explicaçÃĢo bem razoÃĄvel, ex-tensiva aos KaiapÃģ do sul do ParÃĄ, detentores de ou-tras duas unidades com orçamentos desproporcionais. Justificativa que, no entanto, omite um fator principal: uma quadrilha de funcionÃĄrios nÃĢo Ãndios que desviava a gordura orçamentÃĄria em proveito prÃģprio, cevando um punhado de caciques.
O impacto da burocracia corrupta sobre os Xa-vante ia alÃĐm: disseminou entre os caciques um su-premo desejo de consumo por picapes de traçÃĢo. Os veÃculos representavam instrumentos de poder para eles, nÃĢo apenas pela facilidade de locomoçÃĢo pelas quebradas dos territÃģrios indÃgenas, mas pelo acesso à s cidades, à assistÊncia e a outros bens de consumo. Ao ponto de fragmentarem as comunidades, prolife-rando aldeias, caciques e picapes. Hoje, existem al-guns âcemitÃĐriosâ, com restos desses veÃculos, nas terras Xavante.
Como ÃĐ (ou foi?) tradiçÃĢo na Funai, a primeira tarefa de todo novo presidente ÃĐ receber uma romaria de caciques Xavante, que comparecem em peso à s ceri-mÃīnias de posse. Faziam fila na porta do gabinete e re-jeitavam audiÊncias coletivas. Durante alguns dias, um por um, sentaram-se à minha frente, com pastinhas de plÃĄstico que continham ofÃcios, solicitando â sobretudo â picapes. E aà morava o segredo: as compras e os con-sertos dos veÃculos eram feitos em GoiÃĒnia.
Durante minha gestÃĢo, de setembro de 1995 a março de 1996, a diretoria da Funai desenvolveu um conjunto de critÃĐrios e uma planilha para dividir os re-cursos disponÃveis entre as unidades locais, cotejando populaçÃĢo, extensÃĢo das terras e condiçÃĩes logÃsticas. A sua implantaçÃĢo desagradou unidades que antes dispu-nham de orçamentos desproporcionais, mesmo haven-do maior disponibilidade orçamentÃĄria no perÃodo.
Constavam de uma proposta de reestruturaçÃĢo do ÃģrgÃĢo indigenista, que encaminhamos ao MinistÃĐ-rio da Justiça, a extinçÃĢo da administraçÃĢo regional de GoiÃĒnia e a criaçÃĢo de um programa regional na ÃĄrea abrangida pelas unidades que atendiam aos Xavante. A proposta foi enviada em meados de dezembro e, na semana seguinte, polÃticos de GoiÃĄs jÃĄ pressionavam o ministro para deixar tudo como estava. Na regiÃĢo, funcionÃĄrios envolvidos no esquema de corrupçÃĢo es-palhavam que, em vez de reestruturar, nÃģs querÃamos extinguir a Funai.
Em janeiro de 1996, baixou em BrasÃlia uma dele-gaçÃĢo Xavante liderada pelo cacique Celestino, da Terra IndÃgena Parabubure (MT). Os Ãndios pediram audiÊncia e, no dia marcado, chegaram antes da hora e ocuparam o gabinete. Eu estava no MinistÃĐrio da Justiça e o Jorge Pozzobom, chefe de gabinete, avisou sobre a ocupaçÃĢo. Cheguei à Funai e fui direto à sala da presidÊncia. Enca-rei a ocupaçÃĢo, convicto das medidas tomadas, com o desenho de um programa para a regiÃĢo deles nas mÃĢos e em condiçÃĩes de enfrentar qualquer discussÃĢo.
O que eu nÃĢo sabia ÃĐ que havia entre eles, dentro do gabinete, um cinegrafista de uma importante rede de televisÃĢo, com cÃĒmera e tudo. Se eu soubesse, teria deduzido que nÃĢo se tratava de uma audiÊncia, mas de uma armaçÃĢo. Os Ãndios levantaram-se e o Celestino
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disse apenas que eu era um assassino e que, por isso, eles iriam me arrancar dali e me arrastar atÃĐ o Minis-tÃĐrio da Justiça, para que eu fosse substituÃdo por outro presidente que eles indicariam.
Fui arrastado atÃĐ o elevador e conduzido à ga-ragem, onde fui acudido por DamiÃĢo, cacique de Ma-raiwatsede (MT), territÃģrio Xavante que estÃĄvamos lutando para reocupar. Junto com Odenir Pinto, indige-nista criado entre eles, DamiÃĢo relatou, na lÃngua, to-das as iniciativas que eu estava tomando e convenceu o Celestino e os demais a me largarem e encerrarem aquela constrangedora manifestaçÃĢo. O cinegrafista gravou tudo, mas os telejornais sÃģ editaram a primei-ra parte da cena, disseminando a impressÃĢo de que a Funai estaria fora de controle.
No dia seguinte, DamiÃĢo e Odenir apertaram Ce-lestino, que abriu o jogo sobre todo o esquema arma-do por um grupo de funcionÃĄrios que se beneficiava de negÃģcios feitos com os recursos destinados aos Xavan-te. AlÃĐm dos nomes, informou datas e locais em que foi preparado o ataque à sede da Funai. Eles utilizaram-se de reuniÃĩes de lojas maçÃīnicas de GoiÃĒnia e de BrasÃlia, por onde teria sido articulado, inclusive, o recrutamen-to do cinegrafista.
O Ministro da Justiça determinou que a PolÃcia Fe-deral investigasse o episÃģdio. VÃĄrios documentos foram solicitados e enviados, mas parece que o caso caiu em mÃĢos erradas. Semanas depois, um delegado compareceu ao meu gabinete para devolver os documentos, dizendo que nada havia sido comprovado. Assinou um ofÃcio for-malizando a devoluçÃĢo, acrescentando à assinatura os trÊs pontinhos indicativos da condiçÃĢo de maçom. Anos depois, folheando uma ediçÃĢo do DiÃĄrio Ofi-cial da UniÃĢo, por acaso, vi decretos do presidente Fer-
nando Henrique Cardoso demitindo, a bem do serviço pÚblico, alguns daqueles funcionÃĄrios. Quis crer, sem saber, que decorriam daquele caso.
Muitas foram as âxavantadasâ nos Últimos anos do sÃĐculo passado. Ãndios de outras etnias tambÃĐm fo-ram usados em operaçÃĩes similares. A Última que te-nho memÃģria tentou impedir a reestruturaçÃĢo da Fu-nai durante a gestÃĢo do MÃĄrcio Meira, no governo Lula. Salvo engano, nÃĢo existe mais a mÃĄfia que saqueava a Funai e, por isso mesmo, jÃĄ nÃĢo se fazem âxavantadasâ como antigamente, embora atÃĐ hoje nÃĢo exista um pro-grama consistente para fazer frente à s legÃtimas ne-cessidades do povo Xavante.
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A demarcaçÃĢo da Terra IndÃgena Raposa Serra do Sol (RR) foi uma das mais sofridas na nossa histÃģria re-cente. A Funai concluiu a identificaçÃĢo em 1993, publican-do no DiÃĄrio Oficial o memorial descritivo de uma ÃĄrea contÃnua de 1,6 milhÃĢo de hectares. Em 1996, apÃģs a edi-çÃĢo do Decreto nš 1.775, o ÃģrgÃĢo respondeu todas as con-testaçÃĩes apresentadas à demarcaçÃĢo pelo estado de Ro-raima, pelo Ibama e nÃĢo indÃgenas que ocupavam a ÃĄrea.
O entÃĢo ministro da Justiça, Nelson Jobim, em vez de decidir definitivamente sobre a demarcaçÃĢo, publi-cou um âdespachoâ que resolveu algumas interfaces importantes daquele processo, reconhecendo a dupla afetaçÃĢo de uma parte da terra sobreposta ao Parque Nacional do Monte Roraima e oficializando o livre trÃĒn-sito e permanÊncia dos militares naquela regiÃĢo de trÃplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana.
PorÃĐm o despacho atribuÃa legitimidade a tÃtulos de propriedade incidentes sobre a ÃĄrea e determinava que a Funai realizasse estudos complementares para subtrair 300 mil hectares da extensÃĢo proposta para demarcaçÃĢo. Esse despacho paralisou o processo e foi contestado, por que parte dos tÃtulos legitimados jÃĄ haviam sido anulados por decisÃĩes judiciais e por que
A Raposa e os Renans
a ÃĄrea abrangida por eles era muito menor do que a extensÃĢo indicada.
Em 1999, o ministro jÃĄ era Renan Calheiros. Ele foi meu colega de bancada na CÃĒmara dos Deputados e reencontrei-o na condiçÃĢo de ministro em uma reuniÃĢo do Programa Comunidade SolidÃĄria. Durante o almoço, conversamos um monte sobre assuntos da vida e da po-lÃtica geral e, lÃĄ pelas tantas, ele me disse que gostaria de protagonizar algum feito marcante em relaçÃĢo à s terras indÃgenas como legado da sua gestÃĢo.
Eu disse, entÃĢo, que a principal pendÊncia no pro-cesso de demarcaçÃĢo, à quela altura, era o caso Raposa Serra do Sol, por força do malfadado despacho do seu antecessor. Informei que quase 20 mil Ãndios de quatro etnias viviam ali e que havia um histÃģrico de conflitos. A grande visibilidade polÃtica do caso seria determinante na avaliaçÃĢo de desempenho da sua gestÃĢo. Finalmen-te, alertei que uma decisÃĢo consistente sobre aquela pendÊncia deveria considerar as suas vÃĄrias interfaces com a fronteira, com o parque nacional, com a sede do municÃpio de UiramutÃĢ e a presença dos ocupantes nÃĢo Ãndios. E que haveria um preço polÃtico inevitÃĄvel a pa-gar devido à objeçÃĢo do governo de Roraima e da sua bancada no Congresso.
Algumas semanas depois, o ministro ligou dizen-do que tinha decidido assinar a portaria, declarando os limites oficiais da ÃĄrea. Esse ato ministerial ÃĐ mui-to importante, porque representa a decisÃĢo polÃtica do Estado brasileiro sobre os limites a serem demarcados. Ele me pediu para conversar com o consultor jurÃdico do ministÃĐrio sobre como o ato deveria se reportar ao despacho do seu antecessor.
Dr. Byron, o consultor, tinha minutado outro des-pacho que reconhecia, mas nÃĢo resolvia as questÃĩes pen-
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dentes do despacho anterior, remetendo-as a um futuro incerto. Ponderei que melhor seria anunciar a transfe-rÊncia para o Estado das terras federais devolutas e o rÃĄpido reassentamento dos nÃĢo Ãndios que permaneciam na ÃĄrea. Mas prevaleceu a providÊncia jurÃdica do segun-do despacho, junto ao qual foi publicada a portaria minis-terial que declarou os limites da terra indÃgena em ÃĄrea contÃnua e determinou à Funai a demarcaçÃĢo fÃsica.
A ediçÃĢo da portaria ministerial teve fortes reper-cussÃĩes. O Conselho IndÃgena de Roraima (CIR) organizou uma grande festa na aldeia do Maturuca para comemorar a demarcaçÃĢo, que mobilizou as mais de 100 comunida-des que vivem na terra e implicou o convite aos parentes de outras terras e aos seus aliados. O governo estadual e os representantes de interesses contrariados convoca-ram um protesto em Boa Vista. Eu fui convidado para a festa, e o ministro foi convocado para a manifestaçÃĢo.
A festa foi linda, repleta de emoçÃĩes! Teve atÃĐ ca-valhada, com Ãndios e convidados montando cavalos de bandos arredios que existem por lÃĄ. E o baile atravessou a noite toda, começando pelo repertÃģrio politicamente correto que enaltece a luta pela demarcaçÃĢo e caindo no forrÃģ depois que seu Jaci, o tuxaua, recolheu-se. Rolou muito churrasco, passeio pelo lavrado e comoventes ma-nifestaçÃĩes de felicidade diante do momento histÃģrico.
A esposa do seu Jaci deu à luz um menino no dia em que foi assinada a portaria ministerial e eles o bati-zaram com o nome de Renan Calheiros. Eu o conheci as-sim que cheguei à aldeia, e Jaci tirou uma foto polaroid minha com o bebÊ no colo, que eu guardei com todo o cuidado para entregar ao ministro na volta. Ainda per-guntei se tinha sido tranquila a decisÃĢo de dar nome ao menino, e o lÃder indÃgena respondeu que tinha sido um âconselho de Deusâ.
JÃĄ a manifestaçÃĢo de protesto deve ter sido um bo-cado tensa. Estiveram lÃĄ deputados, senadores, dirigen-tes de sindicatos patronais e de clubes de serviços e atÃĐ militares. O governo nÃĢo economizou no transporte de claques, como se faz em campanhas eleitorais, distribuiu lanches e camisetas e infestou a cidade de faixas e carta-zes, especialmente no caminho do aeroporto para o cen-tro da cidade. Ãnimos exaltados. Renan passou aperto.
Chegando a BrasÃlia, o ministro me pediu para ir vÊ-lo e me disse que iria revogar a portaria. Fez seu rela-to sobre Roraima, disse que as pressÃĩes eram enormes e que o ato tinha provocado um rombo na base parla-mentar do governo, alÃĐm de continuar convicto de que a demarcaçÃĢo da ÃĄrea contÃnua era a melhor soluçÃĢo, mas que nÃĢo tinha respaldo sequer do seu partido â o PMDB â para sustentar aquela decisÃĢo. Agradeceu minha fran-queza ao alertÃĄ-lo sobre todas as dificuldades, o que o levava a me informar pessoalmente antes.
Eu nÃĢo escondi a minha tristeza. Tirei do bolso a foto polaroid e a entreguei: âSabe qual ÃĐ o nome desse menino?â E jÃĄ respondi: âRenan Calheiros!â Expliquei que se tratava do filho de um grande chefe Macuxi, nascido no dia da assinatura da portaria dele. E ainda emendei: âSe a portaria for revogada, esse menino terÃĄ vergonha do prÃģprio nome pela vida todaâ.
A portaria declaratÃģria dos limites da Raposa Ser-ra do Sol nÃĢo foi revogada. Essa demarcaçÃĢo constituiu o principal ato do ministro Renan Calheiros relativo à po-lÃtica indigenista. A terra foi demarcada pela Funai e ho-mologada, em 2005, por um decreto do presidente Lula. Em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a demarcaçÃĢo estava de acordo com a ConstituiçÃĢo, pondo fim a 20 anos de luta. Mas essas jÃĄ sÃĢo outras histÃģriasâĶ
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A histÃģria do Acre ÃĐ singular e confunde-se com a histÃģria da BolÃvia. O seu territÃģrio ÃĐ originalmen-te boliviano, embora tenha sido colonizado por mi-grantes nordestinos fugidos das secas severas que se sucederam, apÃģs 1870, e atraÃdos pela demanda por seringa nativa gerada pela revoluçÃĢo industrial. A BolÃvia foi arrasada durante a Guerra do PacÃfico (1879-1883) e cedeu extensa regiÃĢo da sua AmazÃī-nia para uma corporaçÃĢo norte-americana, produ-zindo um levante dos colonos brasileiros, liderados por PlÃĄcido de Castro e que chegaram a fundar uma repÚblica independente que durou dois anos, atÃĐ a aquisiçÃĢo do territÃģrio do Acre pelo Brasil, na bacia das almas boliviana.
Com a anexaçÃĢo do Acre, a antiga fronteira entre o Brasil e a BolÃvia, constituÃda fundamentalmente por linhas secas, passou a ser a fronteira entre o Amazo-nas e o Acre. Que me perdoem os amazonenses, mas trata-se de uma fronteira artificial, que nÃĢo contempla acidentes geogrÃĄficos referenciais. Linhas secas que atravessam o alto curso de alguns dos afluentes da margem direita do Amazonas, como os rios Purus e Ju-ruÃĄ, segmentando as respectivas bacias. Uma frontei-
O Grande Acre ra que tambÃĐm desconsidera a melhor logÃstica para atender as demandas das populaçÃĩes regionais, histo-ricamente isoladas.
Vem de longe a discussÃĢo sobre a redivisÃĢo terri-torial da AmazÃīnia. A literatura geopolÃtica brasileira faz fartas referÊncias à irracionalidade administrativa de estados excessivamente extensos, como o ParÃĄ e o Amazonas. Outras aberraçÃĩes desse gÊnero foram cor-rigidas, com o desmembramento de Mato Grosso, e a au-tonomizaçÃĢo de Mato Grosso do Sul, e de GoiÃĄs, dando origem ao Tocantins. Antigos territÃģrios federais, como o prÃģprio Acre, Roraima e AmapÃĄ, foram promovidos à condiçÃĢo de estados. Outras propostas especÃficas de divisÃĢo foram rejeitadas, como o desmembramento das regiÃĩes do Tocantins e de CarajÃĄs, no ParÃĄ.
O caso do Amazonas, com 1.571.000 km2 ou quase trÊs vezes o territÃģrio da França, ÃĐ o mais gritante. Se-manas de viagem por barco separam Manaus dos mu-nicÃpios mais distantes, tornando hercÚleos os esforços dos cidadÃĢos e das administraçÃĩes locais para manter as relaçÃĩes com a capital. Assim como sÃĢo gigantes os custos de logÃstica para qualquer açÃĢo administrativa do Estado nas suas regiÃĩes mais remotas. NÃĢo por aca-so, a presença do governo federal ÃĐ muito maior do que a do governo estadual no alto curso dos rios Negro e SolimÃĩes, regiÃĩes para as quais existem propostas de criaçÃĢo de novos territÃģrios federais.
HÃĄ situaçÃĩes inusitadas na regiÃĢo. A distÃĒncia en-tre Boca do Acre (AM) e Manaus, capital do estado, ÃĐ de 1.556 km pelas BRs 319 e 364, mas de apenas 222 km para Rio Branco, capital do Acre. Ipixuna (AM) nÃĢo ÃĐ acessÃvel por estrada e fica a mais de 4 mil km da capi-tal estadual pelo sinuoso Rio JuruÃĄ. Cruzeiro do Sul ÃĐ a segunda maior cidade do Acre. EstÃĄ situada na fronteira
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estadual e ÃĐ o polo de referÊncia em abastecimento e serviços para o extremo sudoeste do Amazonas. Assim, sempre me pareceu lÃģgico que, no contexto objetivo de um projeto de redivisÃĢo territorial da AmazÃīnia, os mu-nicÃpios amazonenses que fazem fronteira com o Acre deveriam ser a ele incorporados, facilitando a atençÃĢo administrativa à s demandas da sua populaçÃĢo e à ges-tÃĢo territorial da regiÃĢo como um todo.
Jorge Viana foi eleito governador do Acre em 1998, reelegeu-se em 2002 e elegeu sucessores, implementan-do uma polÃtica de alianças prÃģpria e colocando fim em dÃĐcadas de profundo obscurantismo polÃtico e violÊn-cia social no estado. Foi o desdobramento histÃģrico de movimentos sociais que alteraram profundamente as correlaçÃĩes locais de forças. Desses, a Aliança dos Po-vos da Floresta e a inspiraçÃĢo de Chico Mendes foram os exemplos mais conhecidos. TambÃĐm emergiu desse processo a figura emblemÃĄtica da Marina Silva, que ar-rebanhou mais de 20 milhÃĩes de votos em duas eleiçÃĩes presidenciais recentes.
AlÃĐm dos fatores logÃsticos e administrativos, o novo contexto polÃtico acreano tambÃĐm favorecia a dis-cussÃĢo de projetos de futuro mais arrojados do que a mera gestÃĢo do status quo. No meu primeiro encontro com o Jorge Viana apÃģs sua eleiçÃĢo, perguntei se ele achava oportuno levantar o debate sobre incorporar aqueles municÃpios ao estado, cuja realidade de aban-dono e de isolamento ele conhecia muito melhor do que eu. E ele me perguntou se o ISA poderia fazer um mapa representando esse cenÃĄrio de incorporaçÃĢo, para faci-litar o seu entendimento e o debate da questÃĢo, o que eu me dispus a providenciar.
SÃģ que os tÃĐcnicos em geoprocessamento do ISA reagiram vigorosamente a essa demanda, digamos, in-
duzida. âNÃĢo inventamos mapas!â, me disseram, reafir-mando que os produtos cartogrÃĄficos do ISA resultam de cruzamentos de dados oficiais, sejam fÃsicos (hidro-grafia, relevo, vegetaçÃĢo) ou polÃticos (fronteiras, cida-des, estradas). Ponderei que os limites dos municÃpios amazonenses eram oficiais, que nÃĢo se tratava de inven-tar, mas de reorganizar, que tambÃĐm nÃĢo se tratava de um produto para publicaçÃĢo, mas de um cenÃĄrio carto-grÃĄfico para estudos e discussÃĩes por grupos especÃfi-cos de trabalho, dispensando a identificaçÃĢo do autor.
O laboratÃģrio de geoprocessamento produziu, en-tÃĢo, o desenho do cenÃĄrio cartogrÃĄfico demandado, com legendas explicativas e sem identificaçÃĢo de autoria. E eu o enviei para o Jorge Viana, junto com um bilhe-te que pedia comentÃĄrios para o seu aperfeiçoamento. Dias depois, no contexto de uma coletiva de imprensa, o governador abriu e apresentou o mapa para os jornalis-tas, agradecendo a contribuiçÃĢo do ISA para o debate e defendendo o sentido lÃģgico e humano da redivisÃĢo ter-ritorial sugerida.
No dia seguinte, o jornal A CrÃtica, de Manaus, es-tampou o mapa em uma matÃĐria, com chamada de capa, que denunciava o expansionismo do Acre â com a cola-boraçÃĢo do ISA â que, por sua vez, atua na Bacia do Rio Negro, no Amazonas, e nÃĢo no Acre. A mÃdia manauara repercutiu a notÃcia, incrementando a retÃģrica regiona-lista, como se tivesse havido uma armaçÃĢo entre um go-vernador imperialista e uma ONG traÃra.
O Jorge Viana nÃĢo tinha nada de imperialista e jÃĄ havia herdado problemas suficientes no seu estado. Ao dar publicidade ao mapa e à proposta, estava preocupa-do com a situaçÃĢo das populaçÃĩes isoladas dos municÃ-pios amazonenses limÃtrofes, que recorrem comumente à s principais cidades do Acre para necessidades bÃĄsi-
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cas. A reaçÃĢo amazonense irracional nÃĢo deu espaço à discussÃĢo madura sobre racionalidade administrativa, e o governo do Acre tampouco tinha interesse numa disputa interestadual.
E sobrou para mim... Foi como se questionar a atual divisÃĢo territorial da AmazÃīnia fosse alguma molecagem polÃtica, quando, na verdade, essa reaçÃĢo manipula simbolismos das antigas relaçÃĩes de domi-naçÃĢo que marcaram o apogeu do ciclo da borracha. AtÃĐ a galera do ISA ficou me estranhando, tanto os tÃĐc-nicos do geoprocessamento quanto os que atuam no Amazonas. NÃĢo disseram nada, mas ficou aquele clima de ânÃģs avisamosâ.
Longe de mim querer magoar os amazonenses, manauaras, ou desonrar aquele formoso estado. Tam-pouco me propus a beneficiar o Acre em seu detri-mento. O foco da preocupaçÃĢo deve ser a populaçÃĢo regional isolada e a melhor forma de atender as suas demandas em relaçÃĢo ao poder pÚblico. O que eu acho que tambÃĐm faria bem aos manauaras e à AmazÃīnia em geral. Se tratarmos as fronteiras estaduais como se fossem clÃĄusulas pÃĐtreas, perderemos a capacidade de organizar de forma mais adequada a gestÃĢo do nosso imenso territÃģrio e de melhorar a atençÃĢo à populaçÃĢo e a sua qualidade de vida.
Anos depois, o IBGE arbitrou uma disputa terri-torial cartogrÃĄfica entre o Acre e o Amazonas, optando por uma inflexÃĢo das linhas secas que compÃĩem a fron-teira entre eles, o que implicou a incorporaçÃĢo ao Acre de mais mil km2, correspondentes à s partes mais remo-tas dos mesmos municÃpios amazonenses fronteiriços. O Amazonas contesta em juÃzo a decisÃĢo e considera-se prejudicado por perdas de arrecadaçÃĢo, mas desconsi-dera que deixarÃĄ de ter responsabilidades em relaçÃĢo Ã
ÃĄrea e aos custos, supostamente. Estima-se que 10 mil pessoas vivam nessa ÃĄrea em litÃgio, que, no entanto, nÃĢo inclui as sedes municipais. Mas a decisÃĢo da Justiça nÃĢo alcançarÃĄ a dimensÃĢo de uma redivisÃĢo territorial tecnicamente planejada.
Continuo achando que a redivisÃĢo territorial da AmazÃīnia ajudaria muito a racionalidade administrati-va e o desenvolvimento sustentÃĄvel da regiÃĢo, notada-mente por meio da redivisÃĢo dos territÃģrios atuais do ParÃĄ e do Amazonas. E que faria muito mais sentido su-bordinar a uma administraçÃĢo estadual sediada em Ma-naus a regiÃĢo de OriximinÃĄ, hoje pertencente ao ParÃĄ, do que o extremo sul e oeste da ÃĄrea atual do Amazonas. NÃĢo acho que sejam propostas contrÃĄrias ao Amazonas, ao ParÃĄ, a Manaus ou BelÃĐm, mas que promoveriam a reestruturaçÃĢo administrativa da regiÃĢo, em benefÃcio dos seus habitantes e da organizaçÃĢo polÃtica do paÃs.
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Na virada do sÃĐculo, jÃĄ havia a ConvençÃĢo do Cli-ma (1992) e o Protocolo de Quioto (1997) estava assi-nado e vinha sendo ratificado pelos paÃses para poder entrar em vigor, estabelecendo metas obrigatÃģrias de reduçÃĢo de emissÃĩes de gases do efeito estufa para os paÃses industrializados, que desenvolveram, antes dos demais, economias movidas pelo consumo de combus-tÃveis fÃģsseis, o que os caracteriza como emissores his-tÃģricos responsÃĄveis por iniciar um desejÃĄvel processo de reduçÃĢo de emissÃĩes.
Entre 1998 e 2002, aqueles paÃses deveriam re-duzir suas emissÃĩes, em mÃĐdia, para 5,2% abaixo dos nÃveis de 1990. Poderiam fazÊ-lo no ÃĒmbito das suas prÃģprias economias ou por meio de trÊs mecanismos de compensaçÃĢo pelos quais financiariam projetos que promovessem reduçÃĩes comprovadas em outro paÃs. Um deles, o MDL â Mecanismo de Desenvolvimento Limpo â permitia a execuçÃĢo de projetos compensatÃģ-rios em paÃses em desenvolvimento, como o Brasil, que nÃĢo dispunham de metas obrigatÃģrias de reduçÃĢo das suas emissÃĩes. A regulamentaçÃĢo desses mecanismos estava em plena negociaçÃĢo.
Clima, florestas e pimentas indianas
Florestas
O Instituto de Pesquisa Ambiental da AmazÃīnia (Ipam) acompanhava as negociaçÃĩes internacionais sobre o clima em parceria com o Environmental De-fense Fund (EDF) e outras organizaçÃĩes, com foco no papel das florestas tropicais para o clima e nas emis-sÃĩes de gases do efeito estufa oriundas do desma-tamento. Embora a queima de combustÃveis fÃģsseis represente mais de 80% das emissÃĩes globais, a gravi-dade da crise requer providÊncias tambÃĐm em relaçÃĢo à s emissÃĩes decorrentes da destruiçÃĢo florestal e das queimadas, sobretudo nas florestas tropicais, que re-tÊm mais carbono.
Essa ÃĐ a interface da crise climÃĄtica que toca mais de perto ao Brasil, que tinha, entÃĢo, uma composiçÃĢo das suas emissÃĩes fortemente invertida em relaçÃĢo aos paÃses industrializados, com a maior parte constituÃda por emissÃĩes florestais, e nÃĢo pela queima de combus-tÃveis fÃģsseis. Assim, a maior contribuiçÃĢo que o paÃs poderia dar ao esforço global no combate à s mudanças climÃĄticas seria pela reduçÃĢo do desmatamento, o que continua valendo atÃĐ hoje. Embora o MDL tenha sido formatado para projetos de energia, seria a Única por-ta de entrada para projetos de desmatamento evitado, cuja elegibilidade potencializaria a contribuiçÃĢo do Bra-sil para a mitigaçÃĢo das emissÃĩes globais e ainda traria benefÃcios associados.
PorÃĐm havia uma enorme resistÊncia a se ad-mitir no MDL projetos de reduçÃĢo do desmatamento. Uma parte da comunidade cientÃfica temia pelo grau de incerteza dessas iniciativas e pelo risco de que a compensaçÃĢo pretendida nÃĢo fosse efetiva. Havia o re-ceio de que os paÃses industrializados se limitassem a
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comprar crÃĐditos gerados por esses projetos, em vez de fazerem sua parte no enfrentamento da crise cli-mÃĄtica. As ONGs do hemisfÃĐrio norte pressionavam seus governos para mudar a matriz energÃĐtica e viam os projetos compensatÃģrios como vÃĄlvulas de escape capazes de retardar essa mudança.
AlÃĐm disso, o governo brasileiro, que foi prota-gonista na instituiçÃĢo do MDL e deveria ser o principal interessado em ampliar o mecanismo para projetos de reduçÃĢo do desmatamento, vetava-os radicalmente, ar-guindo um rosÃĄrio de objeçÃĩes tÃĐcnicas, mas temendo cobranças externas pelo eventual descumprimento de compromissos assumidos. O Brasil ÃĐ o maior detentor de florestas tropicais e era, entÃĢo (depois foi supera-do pela IndonÃĐsia), responsÃĄvel pelo maior volume de emissÃĩes de origem florestal e um dos cinco maiores emissores globais.
Ipam e aliados defendiam a elegibilidade de pro-jetos de reduçÃĢo do desmatamento no MDL para viabi-lizar recursos em escala para a proteçÃĢo das florestas, mas eram acusados de pretender fragilizar o regime internacional de combate à s mudanças climÃĄticas em estruturaçÃĢo, introduzindo nele um fator de incerteza. Uma cortina de desconfiança minava o tratamento da questÃĢo florestal nas negociaçÃĩes internacionais por-que os Estados Unidos, resistindo à ratificaçÃĢo do Pro-tocolo de Quioto, reivindicavam descontar da sua meta de reduçÃĢo o carbono absorvido por florestas conÃferas em regeneraçÃĢo.
Entrando no clima
Em 1999, o Paulo Moutinho, diretor executivo do Ipam, e o Steve Schwartzman, especialista em mudança climÃĄtica do EDF e tambÃĐm fundador do ISA, pediram
minha ajuda para tentar desbloquear o tratamento da questÃĢo florestal nas negociaçÃĩes internacionais sobre o clima. Queriam que eu os acompanhasse na prÃģxima conferÊncia das partes da ConvençÃĢo do Clima para fa-zer um diagnÃģstico polÃtico da situaçÃĢo.Eu tinha apenas uma vaga noçÃĢo do assunto e fi-quei impressionadÃssimo com o que eles e o Daniel Neps-tad, entÃĢo pesquisador do Woods Hole Research Center (WHRC), ensinaram-me sobre mudança climÃĄtica, que ainda era tratada como uma ameaça futura, e logo com-preendi a sua importÃĒncia. Participar de conferÊncias da ONU, que costumam ocorrer nos frios dezembros do hemisfÃĐrio norte, nÃĢo me agrada, mas a relevÃĒncia da causa me motivou.
Fiquei pasmo com o tratamento equivocado que se dava na ONU à s florestas tropicais. AliÃĄs, preferiam falar em âsinksâ em vez de florestas, jÃĄ revelando, no nome, o carÃĄter redutor da sua abordagem. NÃĢo se dis-cutiam soluçÃĩes para as emissÃĩes resultantes da des-truiçÃĢo das florestas, nem o papel essencial que exer-cem para a regulaçÃĢo do clima ao reterem na superfÃcie da Terra um estoque gigante de carbono que, liberado na atmosfera, anularia outros esforços pela reduçÃĢo de emissÃĩes. A maioria dos negociadores internacionais nÃĢo sabe o que ÃĐ floresta tropical e sÃģ a enxerga como um absorvente de carbono, subvertendo negociaçÃĩes.
Nova DÃĐlhi
O MDL foi regulamentado em 2001, por meio dos Acordos de Marrakesh, e projetos de desmatamento evi-tado ficaram excluÃdos. Em 2002, houve um novo salto nas taxas de desmatamento da AmazÃīnia e nÃģs resolve-mos denunciÃĄ-lo na conferÊncia seguinte, em dezembro, em Nova DÃĐlhi, Ãndia. O Ipam jÃĄ estava credenciado para
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a conferÊncia e propÃīs um âside eventâ sobre o tema, que foi aprovado, com hora e local definidos na progra-maçÃĢo. Eu, Paulo, Steve, Erika Pinto (Ipam) e Annie Pet-sonk (EDF) compusemos uma delegaçÃĢo.
Na primeira noite em Nova DÃĐlhi, fomos jantar num restaurante autenticamente indiano. Aparente-mente ÃĐramos os Únicos estrangeiros. O cardÃĄpio era escrito em hÃndi e nÃĢo tinha traduçÃĢo em inglÊs. Pedi-mos instruçÃĩes ao garçom, mas eu, com o meu inglÊs macarrÃīnico, nÃĢo entendi nada do que ele disse com so-taque indiano. Resolvi, entÃĢo, fazer uma aposta icÃīnica. Alguns pratos tinham elefantinhos grafados à frente dos seus nomes. Umas gracinhas! Escolhi o prato mais prendado, com quatro elefantinhos.
O jantar foi servido com pompa e circunstÃĒncia. O meu prato estava exuberante, mas quando eu aboca-nhei a primeira garfada tive a sÚbita sensaçÃĢo de estar me transformando num dragÃĢo. Elefantinho significa pimenta! Eu nÃĢo teria a menor condiçÃĢo de prosseguir naquela refeiçÃĢo se nÃĢo fosse acudido por um hindu que estava na mesa ao lado e percebeu a situaçÃĢo. Gentil-mente, ele me ensinou que o iogurte que estava num pote ao lado atenuaria o ardor da pimenta e deveria ser ingerido concomitantemente.
Como bom libriano, adorei aquele balanço e de-vorei tudo a que tinha direito. Na volta ao hotel, uma erupçÃĢo estomacal jÃĄ ia se armando e seguiu-se uma noite impressionante. Tive medo de derreter e ter de ser internado naquele lugar estranho com desidrataçÃĢo galopante, ao ponto de resistir ao sono, mesmo estan-do quebrado por conta da longa viagem atÃĐ a Ãndia. Luz acesa, televisÃĢo ligada, dois travesseiros, fazendo esfor-ço para refletir sobre a missÃĢo iniciada em vez de ficar sÃģ pensando em merda.
CompensaçÃĢo entre paÃses
LÃĄ pelas tantas, fez-se a luz! TÃnhamos sido der-rotados na pretensÃĢo de incluir a reduçÃĢo do desma-tamento no MDL. Ele jÃĄ regulamentado, nÃĢo fazia mais sentido reabrir aquela discussÃĢo. O desenho do MDL como um conjunto de projetos pontuais nÃĢo favorecia mesmo a inclusÃĢo de projetos de desmatamento evita-do. Mas as emissÃĩes florestais continuavam crescendo e o seu impacto climÃĄtico justificava um mecanismo prÃģ-prio para induzir a sua reduçÃĢo. Mas como?
Constatei, entÃĢo, que a maior parte das objeçÃĩes tÃĐcnicas suscitadas contra projetos de desmatamento evitado tinha a ver com a escala limitada desses proje-tos e que o risco de apenas deslocar os desmatamentos, em vez de reduzi-los, ou de superestimar o seu benefÃcio climÃĄtico seria irrelevante se a relaçÃĢo compensatÃģria se baseasse na evoluçÃĢo de taxas nacionais de desmata-mento, e nÃĢo em projetos pontuais.
SÃģ o Brasil dispunha de um sistema de monito-ramento oficial suficientemente robusto para medir o desmatamento (restrito à AmazÃīnia) com uma sequÊn-cia histÃģrica de dados, realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Algo que outros paÃses detentores de grandes extensÃĩes de florestas poderiam desenvolver, com metodologias compatÃveis e interna-cionalmente reconhecidas.
Duvidei daquele surto visionÃĄrio. Estava exausto, debilitado e, talvez, alucinado. O dia clareava, a ativida-de vulcÃĒnica estava cessando e eu precisava dormir um pouco para estar bem na nossa apresentaçÃĢo, algumas horas adiante. Anotei os elementos principais daquela ideia, e desmaiei. Acordei com um telefonema do Paulo, chamando para organizarmos o evento.
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No hall de entrada
Eis que quando chegamos ao local do evento, a sala por nÃģs reservada estava ocupada por uma reu-niÃĢo â atrasada â de delegaçÃĩes de vÃĄrios paÃses. A hora avançava, a reuniÃĢo oficial nÃĢo terminava, os con-vidados jÃĄ estavam chegando e nÃĢo havia onde sentar. A sala ficava no tÃĐrreo. Contornei o prÃĐdio por um gra-mado e constatei, pela vidraça, que a reuniÃĢo estava sendo presidida por um membro da delegaçÃĢo oficial brasileira que se opunha à nossa postulaçÃĢo. Ele deu um risinho sarcÃĄstico quando me viu espiando. NÃĢo havia como provar que a reuniÃĢo estava sendo prolon-gada com a intençÃĢo de inviabilizar a nossa apresenta-çÃĢo, mas eu surtei de raiva.
Voltei para o hall que dava acesso à sala, puxei o Paulo e o Steve num canto e propus fazermos a apresen-taçÃĢo ali mesmo. Eles disseram que eu estava doido, que aquele nÃĢo era um local de reuniÃĩes e apontaram para um policial indiano que vigiava o hall. Sugeri que eles fossem ajeitando os equipamentos para projetarmos a apresentaçÃĢo em PowerPoint na maior parede, mas o Paulo disse que faltava um cabo de extensÃĢo de energia para ligar o equipamento.
Fui atÃĐ o policial e mostrei a programaçÃĢo dos eventos com a designaçÃĢo da hora e do local da nossa apresentaçÃĢo. Disse-lhe que nÃĢo querÃamos atrapalhar a reuniÃĢo oficial, mas que pessoas estavam se aglome-rando para assistir à nossa apresentaçÃĢo e que, entÃĢo, ela seria feita ali mesmo no saguÃĢo. Disse que nos falta-va um cabo de extensÃĢo e que eu sabia que a funçÃĢo dele era outra, mas estava disposto a pagar US$ 100 caso ele pudesse nos ajudar. O policial logo voltou com um cabo e nÃĢo se importou com o improviso do evento.
A apresentaçÃĢo foi um sucesso! O Paulo arrasou no PowerPoint e os dados, fotos, mapas e grÃĄficos proje-tados impressionaram a galera. O hall estava lotado de delegados, militantes, cientistas e jornalistas sentados no chÃĢo e dando a maior atençÃĢo. Ao ponto de os parti-cipantes da reuniÃĢo oficial sÃģ conseguirem deixar a sala pela vidraça, quando resolveram encerrÃĄ-la.
O Steve me acudiu com a traduçÃĢo e eu encerrei o evento dizendo que o desmatamento estava se agravan-do e nÃĢo poderia ficar sem soluçÃĢo. Pedi que os presen-tes fizessem alguma proposta melhor do que a rejeita-da, mas ninguÃĐm se atreveu. Prometi, entÃĢo, apresentar uma nova proposta na conferÊncia seguinte, provocan-do a audiÊncia a apresentar soluçÃĩes mais adequadas no caso de uma nova rejeiçÃĢo.
Nova propostaPaulo e Steve ficaram chocados com a minha pro-messa. Logo apÃģs a dispersÃĢo da plateia, me puxaram para um cafÃĐ, muito apreensivos com a gravidade do compromisso que eu tinha assumido publicamente. Contei, entÃĢo, sobre a fatÃdica madrugada e sobre o raio de luz que me acometeu, explicando que nÃĢo tinha dado tempo para conversarmos antes. Tirei do bolso a folha do bloquinho de recados e passei a descrevÊ-la. Eles acolheram a ideia com entusiasmo e fazendo, de ime-diato, vÃĄrias sugestÃĩes de aprimoramento.
Eu e o Paulo publicamos no jornal Folha de SÃĢo Paulo um artigo com um resumo dela. Steve reforma-tou-a para facilitar a sua inserçÃĢo nos arranjos climÃĄ-ticos em negociaçÃĢo e agregou a contribuiçÃĢo da Lisa Curran sobre o caso da IndonÃĐsia, dando pegada mais ampla à proposta. O Daniel Nepstad revisou e atualizou os dados e o desenho do novo mecanismo, e o pesqui-
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sador Carlos Nobre melhorou a formulaçÃĢo da linha de base sugerida para se calcular compensaçÃĩes.
Essas cinco pessoas transformaram o meu ra-bisco de hotel num artigo cientÃfico intitulado âTropi-cal Deforestation and the Quioto Protocolâ, publicado pela revista Climate Change, em 2005, que foi citado mais de mil vezes em artigos acadÊmicos posteriores e ÃĐ, hoje, considerado um clÃĄssico. Estava lançada a proposta de âreduçÃĢo compensada do desmatamen-toâ, precursora do atual mecanismo chamado de Re-duçÃĢo de EmissÃĩes por Desmatamento e DegradaçÃĢo Florestal (REDD+).
Acho que eles vÃĢo contar os capÃtulos seguintes dessa histÃģria, se ÃĐ que jÃĄ nÃĢo contaram. Registro ape-nas que nÃģs apresentamos a proposta para a entÃĢo mi-nistra do Meio Ambiente, Marina Silva, ainda no inÃcio de 2003, pedindo uma avaliaçÃĢo do governo a respeito. Na conferÊncia seguinte, em MilÃĢo, nÃģs a apresentamos publicamente, conforme a promessa de Nova DÃĐlhi, e o Carlos Langoni, secretÃĄrio-executivo do ministÃĐrio e chefe da delegaçÃĢo brasileira, compareceu ao even-to, prometendo uma decisÃĢo de governo durante 2004. Meses depois, eu e o Paulo fomos convocados para uma reuniÃĢo no Itamaraty, quando nos informaram que a proposta seria assumida, em parte, pelo governo.
Finalmente
Dia desses, um jovem pesquisador da questÃĢo climÃĄtica me perguntou se eu era o pai do REDD, me-canismo gerado para lidar com a questÃĢo florestal na continuidade das negociaçÃĩes internacionais. Respondi que participei dessa gÊnese, mas que se fosse meu fi-lho chamaria-se âCREDDâ: faltou um âCâ para garantir o compromisso com compensaçÃĩes efetivas.
Nessa rota, eu atÃĐ poderia virar avÃī do Fundo AmazÃīnia, gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvi-mento EconÃīmico e Social (BNDES), um desdobramento da polÃtica prÃģ-REDD da Noruega em acordo com o go-verno brasileiro. NÃģs participamos da sua criaçÃĢo e do seu desenho e sabemos que ele apoia Ãģtimos projetos.
Mas o que nÃģs propusemos foi um mecanismo compensatÃģrio de carÃĄter macroeconÃīmico, e nÃĢo um fundo de projetos. O agravamento da crise climÃĄtica e da situaçÃĢo das florestas ainda poderÃĄ ensejar um me-canismo de escala para substituir as precÃĄrias opçÃĩes de subsistÊncia e de produçÃĢo predatÃģria que predomi-nam nas regiÃĩes de florestas.
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Passei anos dando palestras sobre mudança cli-mÃĄtica, desde quando me dei conta da sua gravidade e atÃĐ que informaçÃĩes suficientes fossem se espalhando pela sociedade. Falei para estudantes, militantes, tÃĐcni-cos de governos e funcionÃĄrios de empresas, focando a relaçÃĢo entre as florestas e o clima, sua interface mais relevante para o paÃs, que mantÃĐm a maior extensÃĢo de florestas tropicais e ÃĐ o sÃĐtimo maior emissor de CO
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por causa do desmatamento e das queimadas, sobretu-do na AmazÃīnia.
Falar do assunto com vÃĄrias gentes ÃĐ um trabalho gratificante, que abre olhos, inclusive os meus. A impor-tÃĒncia do tema exige que todos possam se apropriar dele e reunir forças suficientes para reverter a crise climÃĄti-ca. A cada conversa, eu aprendia mais com a percepçÃĢo empÃrica das instituiçÃĩes e das pessoas sobre a situaçÃĢo atual do planeta. Entre todos os pÚblicos visitados, os Ãndios foram os que mais me surpreenderam.Imaginava que seria mais difÃcil informar sobre um processo de natureza antrÃģpica vivenciado por uma civilizaçÃĢo diversa. Mas as percepçÃĩes indÃgenas sobre a mudança climÃĄtica sÃĢo aguçadas e somam a observa-çÃĢo empÃrica sobre alteraçÃĩes nos regimes de chuvas e
A boa notÃcia no comportamento de animais e plantas com as refe-rÊncias pertinentes nos seus mitos.
Eu sempre escolhia expressÃĩes do senso comum para substituir os principais conceitos da ciÊncia do cli-ma, como âmitigaçÃĢoâ, âadaptaçÃĢoâ, âemissÃĩes de CO2â, âcombustÃveis fÃģsseisâ. Valorizava os tradutores e re-servava bastante tempo para que os pÚblicos indÃgenas pudessem conversar nas suas prÃģprias lÃnguas sobre as informaçÃĩes que iam pintando.
Em 2008, fui falar sobre esse assunto num curso de formaçÃĢo para professores Yanomami, na aldeia do Catrimani, na Terra IndÃgena Yanomami, em Roraima. HÃĄ uma missÃĢo salesiana no lugar e uma boa infraestru-tura para alojamento e reuniÃĢo. O curso foi organizado por LÃdia Castro e pela equipe do ISA, que apoia os Ãn-dios. Estavam lÃĄ uns 40 jovens, homens e mulheres de vÃĄrias aldeias, com os quais pude conversar o dia inteiro.
Fui iniciado em assuntos relativos aos Yanomami, hÃĄ dÃĐcadas, por pessoas muito queridas, como o Rubens Beluzzo Brando, ClÃĄudia Andujar, Carlo Zaquini e Davi Kopenawa, com os quais participei da luta pela demar-caçÃĢo do territÃģrio. Depois, passei alguns anos mais distante e nÃĢo tinha ideia de que jÃĄ houvesse entre eles tantos professores formados. As minhas relaçÃĩes pes-soais limitavam-se à geraçÃĢo precedente e era o meu primeiro encontro com aquelas pessoas.
Comecei dizendo que estava muito feliz de retor-nar ao territÃģrio Yanomami, mas que tambÃĐm estava triste porque nÃĢo lhes trazia boas notÃcias. Adverti que irÃamos falar de um assunto muito preocupante e pro-vavelmente trÃĄgico.
Mostrei-lhes uma montanha de fotos sobre po-luiçÃĢo urbana, derretimento de geleiras, tempestades, inundaçÃĩes, aumento do nÃvel dos oceanos. Vimos ma-
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pas sobre desmatamento e imagens de queimadas e do cobertor de gases envolvendo a Terra. TambÃĐm infor-mei sobre a ONU e a ConvençÃĢo do Clima, os relatÃģrios dos cientistas e as negociaçÃĩes entre os paÃses, sempre destacando o tratamento dado â ou negado â à questÃĢo das florestas tropicais.
Os professores Yanomami interrompiam sempre, perguntavam muito e pediam tempo para digerir as in-formaçÃĩes na prÃģpria lÃngua. Foi uma discussÃĢo exten-sa, intensa, multifacetada, criativa e impressionante. No final do dia, cansados, concluÃmos a conversa, satisfeitos e emocionados. Depois de me despedir, tomou a pala-vra o DÃĄrio Yanomami, entÃĢo coordenador da Hutukara (organizaçÃĢo dos Yanomami) e filho do Davi Kopenawa, para agradecer minha presença. E terminou dizendo que tinha apenas uma correçÃĢo a me fazer:
â âVocÊ chegou dizendo que nos trazia mÃĄs no-tÃcias, mas, na verdade, nos trouxe uma boa notÃcia. NÃģs jÃĄ sabÃamos que vocÊs estavam acabando com o mundo e, agora, ficamos sabendo que vocÊs tambÃĐm estÃĢo sabendo.â
As oposiçÃĩes ao regime militar deram um banho no governo nas eleiçÃĩes de 1982. Pela primeira vez, apÃģs 20 anos, estÃĄvamos elegendo governadores pelo voto direto. O PMDB venceu nos principais estados, inclusive em SÃĢo Paulo e Minas Gerais, onde foram eleitos Fran-co Montoro e Tancredo Neves, respectivamente. No Rio de Janeiro, ganhou o PDT com Leonel Brizola, que havia retornado do exÃlio com a aprovaçÃĢo da Lei de Anistia.
Com o deslocamento de grande parte do eleitora-do para as oposiçÃĩes, aquelas candidaturas majoritÃĄrias ajudaram a puxar uma representaçÃĢo parlamentar reno-vada, com muitos jovens, de diversos partidos, que nÃĢo haviam exercido outros mandatos eletivos e que, grosso modo, estavam num campo polÃtico mais âprogressistaâ. Foi o meu prÃģprio caso, com a conquista de um mandato de deputado federal. Assim como foi o caso do saudoso MÃĄrio Juruna, nativo da Terra IndÃgena xavante de SÃĢo Marcos, em Mato Grosso, mas que tambÃĐm havia sido eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro, pelo PDT, com mais de 80 mil votos, na esteira da vitÃģria do Brizola.
Enganam-se os que pensam que a eleiçÃĢo de Juru-na foi um caso de caricatura polÃtico-eleitoral. Ele havia se transformado num personagem midiÃĄtico efetivo,
Juruna devolveu a grana do Maluf Texto publicado originalmente no site do ISA, em 30 de maio de 2017:https://www.socioambiental.org/pt-br/ noticias-socioambientais/juruna-devolveu-a-grana-do-maluf.
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carregando consigo um gravador em que ia registrando afirmaçÃĩes e promessas de ministros de Estado e polÃti-cos em geral, tornando pÚblicas essas gravaçÃĩes quan-do eles agiam em desacordo com as prÃģprias afirmaçÃĩes ou descumpriam promessas. A utilizaçÃĢo por um Ãndio da tecnologia dos âbrancosâ para desnudar a mentira na polÃtica e a forma, entre corajosa e ingÊnua, com que ele fazia aquilo produziam grande empatia nas pessoas, que queriam se livrar do pesado silÊncio imposto pelo regime militar ainda vigente.
Quando chegamos à CÃĒmara, o seu presidente era FlÃĄvio MarcÃlio, um governista que havia apoiado a di-tadura desde sempre. Ele era hÃĄbil nos bastidores e tra-tava bem todo mundo. Mas foi especialmente generoso com MÃĄrio Juruna, dando-lhe todo o apoio para que se instalasse em BrasÃlia e, sobretudo, promovendo a cria-çÃĢo da ComissÃĢo do Ãndio, como instÃĒncia tÃĐcnica per-manente da Casa e que foi presidida por Juruna durante toda a legislatura.
Fato ÃĐ que aquela comissÃĢo teve funcionamento muito efetivo, com reuniÃĩes regulares, e pautou os prin-cipais casos de conflitos ou pendÊncias relativas aos povos indÃgenas. A questÃĢo indÃgena nunca havia tido visibilidade polÃtica equivalente, e a iniciativa de Mar-cÃlio prestou serviço à causa, embora ele nÃĢo fosse de dar ponto sem nÃģ. A atuaçÃĢo persistente e corajosa de Juruna possibilitou uma intervençÃĢo da CÃĒmara em si-tuaçÃĩes graves, produzindo recomendaçÃĩes ao governo e ajudando a solucionar conflitos. Havia uma disputa fe-roz de interesses e vÃĄrios deputados eram representan-tes de estados e territÃģrios federais, como Roraima, em que os conflitos envolvendo os povos indÃgenas eram graves. Fui indicado para liderar a representaçÃĢo do PMDB na ComissÃĢo, o que me dava o direito de exercer
o voto de bancada, que era majoritÃĄria. Com isso e mais o voto de Juruna, podÃamos garantir maioria e grande poder de negociaçÃĢo com os demais membros. A ques-tÃĢo indÃgena conquistou espaço inÃĐdito no Congresso.
Muito alÃĐm da causa indÃgena
Naquela legislatura, desenvolvemos o costume de visitar regiÃĩes conflagradas do paÃs para trazer os prin-cipais problemas para discussÃĢo no Congresso. Ãamos em grupos de uns 20 deputados, à s nossas prÃģprias custas, fazÃamos um grande barulho localmente, repercutindo as viagens no plenÃĄrio e nas comissÃĩes da CÃĒmara, co-brando autoridades e dando visibilidade a conflitos tra-dicionalmente abafados por poderosas forças locais.
Numa dessas viagens, visitamos o sertÃĢo do Cea-rÃĄ e do PiauÃ, assolado por mais de uma dÃĐcada de seca e, principalmente, por uma concentraçÃĢo fundiÃĄria que jogava milhares de pessoas em beiras de estradas e na periferia das cidades, sem ÃĄgua, comida e serviço de saÚde. O desespero estava estampado na cara das pes-soas. A nossa comitiva ia parando na beira das estradas, ouvindo clamores do povo e falando horrores do gover-no militar. Chegamos a CrateÚs (CE). O prefeito e outras autoridades deixaram a cidade para nÃĢo nos receber. TambÃĐm determinaram à s rÃĄdios e aos jornais que nÃĢo nos dessem qualquer espaço.
Foi, entÃĢo, que resolvemos sair andando pela prin-cipal avenida da cidade, cumprimentando e nos apre-sentando à s pessoas que passavam e juntando pequenos grupos para ouvir e falar sobre a situaçÃĢo. A presença de Juruna fazia toda a diferença. A fofoca inicial â âtem um bando de deputados na cidadeâ â logo deu lugar a outra, que se espalhou como pÃģlvora: âo Juruna estÃĄ an-dando na avenida!â. Os grupos iam se juntando, outras
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pessoas chegavam e, em pouco tempo, tÃnhamos uma passeata com mais de duas mil pessoas protestando contra o governo e exigindo apoio mais efetivo para su-portar a seca.
Com isso, quero dizer que a atuaçÃĢo do MÃĄrio foi muito alÃĐm da questÃĢo indÃgena. Participamos juntos da campanha pelas âDiretas JÃĄâ e perdemos juntos na vota-çÃĢo da emenda Dante de Oliveira na CÃĒmara, que previa as eleiçÃĩes diretas para presidente. Foi lançada a can-didatura do Tancredo Neves à presidÊncia pelo PMDB, com apoio do PDT e de outros partidos, para derrotar o regime militar no ColÃĐgio Eleitoral. Todo o processo abriu uma dissidÊncia na base parlamentar do regime militar. A emenda nÃĢo foi aprovada, mas 50 votos gover-nistas foram dados à oposiçÃĢo. O entÃĢo governador de SÃĢo Paulo, Paulo Maluf, derrotou na convençÃĢo do par-tido governista, o PDS, o candidato dos militares, MÃĄ-rio Andreazza, ampliando o racha no governo. E FlÃĄvio MarcÃlio foi escolhido seu vice.
O dinheiro de Maluf
A poucos dias da reuniÃĢo do ColÃĐgio Eleitoral que escolheria o prÃģximo presidente, fui procurado por Por-fÃrio Carvalho e Odenir Pinto, dois importantes indige-nistas da Funai, cedidos à CÃĒmara para assessorar MÃĄ-rio Juruna. Pinto tinha o Xavante como lÃngua materna. Ambos pediram para conversarmos a sÃģs, pois ninguÃĐm poderia nos escutar. Odenir foi direto ao ponto: âO MÃĄ-rio pegou dinheiro do Maluf! NÃģs desconfiamos, aperta-mos ele e ele confessouâ. PorfÃrio completou: âBrigamos com ele, mas nÃĢo conseguimos demovÊ-lo. Achamos que sÃģ vocÊ poderÃĄ reverter a decisÃĢo deleâ. Fiquei pasmo com a novidade, pedi a eles que nÃĢo comentassem nada com ninguÃĐm, pois a eventual publicidade disso provo-
caria um forte impacto sobre o mandato do primeiro indÃgena eleito para o Congresso.Naquela mesma noite, ao final da sessÃĢo, disse ao Juruna que precisava conversar com ele a sÃģs. Encon-tramo-nos umas onze horas da noite, num banco de jar-dim da quadra onde morava. Eu lembrei a ele das nos-sas andanças pelo paÃs, da campanha das âDiretas JÃĄâ e do desejo que constatÃĄvamos nas pessoas de todos os cantos do paÃs de superar aquele tempo de ditadura e conquistar a democracia, como condiçÃĢo de podermos vir a influir mais efetivamente na vida do paÃs e no fu-turo dos nossos filhos. Falei que a candidatura do Maluf representava a continuidade de um regime que jÃĄ havia causado muito sofrimento aos brasileiros, inclusive aos Ãndios. E que nenhum dos amigos dele, nem parentes, nem eleitores, iriam concordar que votasse no candi-dato do governo.
Juruna reagiu: âEu nÃĢo conheço esse Maluf, eu nÃĢo conheço esse Tancredo, quem eu conheço ÃĐ o FlÃĄvio MarcÃlio, que sempre foi muito bom para mimâ. Retru-quei: âVocÊ deve, mesmo, reconhecer o que ele fez para te ajudar a ajudar os Ãndios, mas ele nÃĢo pode querer que vocÊ vote contra o seu prÃģprio povo. Ele nÃĢo faria isso por vocÊ. E tem mais, MÃĄrio: o Maluf vai perder e tudo o que ele tem a oferecer ÃĐ dinheiro. Quem estiver do lado dele ficarÃĄ marcado como corruptoâ. Ele disse que ia pensar no que eu disse. Chegando ao hotel, liguei para o PorfÃrio, relatei a conversa, e pedi que ele son-dasse o MÃĄrio e me avisasse caso a situaçÃĢo permane-cesse a mesma. Nesse caso, eu iria imediatamente para o Rio de Janeiro conversar com Darcy Ribeiro e Brizola em busca de ajuda.
Eis que na manhÃĢ seguinte, antes mesmo de pas-sar pelo gabinete, MÃĄrio Juruna ligou para o comitÊ de
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imprensa convocando os jornalistas para uma coletiva que aconteceria logo mais, na agÊncia do Banco do Bra-sil, no Anexo 4 da CÃĒmara dos Deputados. MÃĄrio apare-ceu lÃĄ na abertura da agÊncia e entrou na fila de atendi-mento, com uma caixa de papelÃĢo na mÃĢo. Jornalistas e cinegrafistas a postos. Quando chegou a sua vez de ser atendido, ele se virou para a plateia disponÃvel e falou, quase gritando:
â âEstou devolvendo esse dinheiro para depositar na conta do dr. Calinheiro!â, que era como ele chamava o Calim Eid, chefe da Casa Civil do Maluf no governo pau-lista e âtrem pagadorâ da sua campanha presidencial.
Foi um tremendo auÊ! A cena passou em todos os telejornais. Todo mundo sabia dos mÃĐtodos malufistas de compra de votos, tanto que seu nome se transfor-mou em verbo. Mas ainda nÃĢo havia acontecido uma situaçÃĢo daquelas, de denÚncia pÚblica e, muito menos, de devoluçÃĢo de dinheiro. EscÃĒndalo nacional de cor-rupçÃĢo eleitoral!
Vi a cena pela TV no meu gabinete e saà correndo para o banco. Quando cheguei, o MÃĄrio jÃĄ tinha saÃdo. O caixa me disse que tinha entregado a caixa para o ge-rente, atÃĐ por que o Calim Eid nÃĢo tinha conta naquela agÊncia e ele nÃĢo sabia o que fazer com o dinheiro. Por sua vez, o gerente levou o dinheiro para a secretaria-ge-ral da Mesa Diretora da CÃĒmara. Era entÃĢo o Único caso de um deputado ter devolvido espontaneamente (nÃĢo se sabe bem para quem) algum dinheiro de origem ilÃcita que tivesse recebido.
Claro que o auÊ estendeu-se à campanha eleitoral, que era uma mobilizaçÃĢo pÚblica, de rua, apesar do Co-lÃĐgio Eleitoral. O episÃģdio acabou fortalecendo a cam-panha do Tancredo e encurralando Maluf, mas o des-gaste tambÃĐm sobrou para o MÃĄrio. Eu, ele e dois terços
daquele ColÃĐgio votamos em Tancredo, para, depois, assistirmos, juntos, à posse de JosÃĐ Sarney, em vista da doença â e depois a morte â de Tancredo. Assim como havÃamos votado juntos pelas eleiçÃĩes diretas e pela convocaçÃĢo da Assembleia Nacional Constituinte.
Vencedores e derrotados
Nas eleiçÃĩes seguintes (1986), para a Constituinte, eu e ele fomos derrotados, assim como uma parte consi-derÃĄvel dos segmentos mais âprogressistasâ da CÃĒmara. Apesar da ampla vitÃģria das oposiçÃĩes, nos principais estados governados pela oposiçÃĢo, houve uma recicla-gem mais conservadora das bancadas, com um predo-mÃnio dos candidatos ligados à mÃĄquina de governo, tanto no caso do PMDB de SÃĢo Paulo, quanto no do PDT do Rio de Janeiro.
De volta a BrasÃlia para limpar gavetas, encontrei MÃĄrio no tÚnel que leva ao plenÃĄrio da CÃĒmara. Ele me viu, saiu da esteira eletrÃīnica e me esperou entre duas delas. Quando o alcancei, nos abraçamos e choramos muito. Ele disse entÃĢo uma frase em xavante, que eu nÃĢo compreendi, emendando outra em portuguÊs: âQuem nÃĢo devolveu, ganhou!â à impossÃvel transmitir a outros a dor que se sente quando se perde uma eleiçÃĢoâĶ
Voltei para trÃĄs com ele. Fomos tomar cafÃĐ e con-versar. Mostrei que muitos dos que ânÃĢo haviam devol-vidoâ tambÃĐm haviam perdido, assim como muita gente boa havia vencido. A Constituinte nÃĢo seria tÃĢo mÃĄ com a ausÊncia da gente. Mas estÃĄvamos igualmente apreen-sivos sobre como se daria nela, entÃĢo, o tratamento aos direitos indÃgenas.
PorÃĐm, tambÃĐm aÃ, surgiram outros interlocuto-res e, apÃģs memorÃĄveis batalhas, a ConstituiçÃĢo brasi-leira passou a contar com um capÃtulo especÃfico para
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reconhecer os direitos originÃĄrios dos Ãndios. O Último do texto constitucional e o primeiro da histÃģria. NÃĢo hÃĄ uma relaçÃĢo palpÃĄvel de conteÚdo entre a atuaçÃĢo da ComissÃĢo do Ãndio e o âCapÃtulo dos Ãndiosâ, mas nÃģs acreditamos que a experiÊncia da primeira ajudou a criar um ambiente, inÃĐdito, para que o segundo fosse possÃvel. SÃģ que a ComissÃĢo foi extinta e nunca mais o Brasil teve um deputado Ãndio.1
Entre 1995 e 2005, o desmatamento na AmazÃīnia brasileira manteve Ãndices pornogrÃĄficos. Os 225 mil km2 entÃĢo desmatados no perÃodo representaram qua-se 20 bilhÃĩes de toneladas de CO
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ra e levaram o Brasil à s primeiras posiçÃĩes no ranking dos maiores emissores de gases do efeito estufa. Mato Grosso foi o estado que mais desmatou no perÃodo, se-guido de perto por ParÃĄ e RondÃīnia.
O nordeste de Mato Grosso foi das regiÃĩes mais afetadas. A expansÃĢo da soja e de outras culturas inten-sivas nos cerrados mato-grossenses empurrou a pecuÃĄ-ria extensiva rumo à floresta amazÃīnica, num processo alimentado pela abertura e pavimentaçÃĢo de rodovias federais, como as BRs 158 e 163, que atravessam a AmazÃīnia Oriental do sul para o norte, acompanhando, grosso modo, os divisores de ÃĄguas entre as bacias hi-drogrÃĄficas do Araguaia-Xingu e do Xingu-Teles Pires.
A rÃĄpida ampliaçÃĢo do desmatamento afetou a re-giÃĢo das nascentes e formadores do Rio Xingu, numa es-pÃĐcie de âabraço da morteâ ao redor do Parque IndÃgena do Xingu (PIX), a mais conhecida e emblemÃĄtica terra indÃgena do paÃs, cujo reconhecimento oficial, em 1961, foi obra dos irmÃĢos Villas-BÃīas.
O Encontro de Canarana
1. Em outubro de 2018, mais de um ano e meio depois da publicaçÃĢo deste texto no site do ISA, foi eleita a primeira deputada federal indÃgena da histÃģria do paÃs, JoÊnia Wapichana (Rede-RR).
Texto publicado originalmente no site do ISA, em 17 de Julho de 2017: https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/ blog-do-xingu-blog-do-ppds/o-encontro-de-canarana.
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A delimitaçÃĢo dessa ÃĄrea priorizou linhas secas e excluiu os principais formadores do Xingu, resul-tando numa extensÃĢo bem menor do que a inicial-mente proposta. Embora o territÃģrio do PIX tenha se mantido Ãntegro em boa medida, os povos indÃgenas xinguanos passaram a sofrer impactos crescentes, sobretudo por conta da erosÃĢo, do fogo, do lixo e dos agrotÃģxicos levados pela ÃĄgua, comprometendo o seu uso pelos Ãndios e alimentando conflitos com os fa-zendeiros vizinhos.
Durante anos, os tÃĐcnicos do ISA ouviram recla-maçÃĩes dos Ãndios de que a qualidade da ÃĄgua estava piorando. NÃĢo seria difÃcil para a organizaçÃĢo denunciar o âabraço da morteâ. O Xingu ÃĐ uma referÊncia sobre os povos indÃgenas e a diversidade socioambiental do paÃs para a grande maioria da populaçÃĢo brasileira, que tam-bÃĐm nÃĢo aprecia a destruiçÃĢo das florestas. A contribui-çÃĢo das emissÃĩes florestais para a crise climÃĄtica jÃĄ mo-bilizava atençÃĩes da opiniÃĢo pÚblica mundial. PorÃĐm a simples denÚncia da situaçÃĢo nÃĢo seria suficiente para uma reversÃĢo dessa sinistra tendÊncia.
AtÃĐ entÃĢo, a atuaçÃĢo do ISA na regiÃĢo estava fo-cada especificamente no apoio aos povos indÃgenas do PIX. Mas a sua presença fÃsica no municÃpio de Canara-na, a contrataçÃĢo de serviços e a movimentaçÃĢo comer-cial e financeira nos municÃpios da regiÃĢo permitiram à organizaçÃĢo um contato direto e frequente com as narrativas locais sobre Ãndios e desmatamento. A ÃĄrea ÃĐ cortada pela linha que divide os biomas do Cerrado e AmazÃīnia, aos quais a legislaçÃĢo florestal atribui obri-gaçÃĩes diferentes quanto à extensÃĢo da cobertura flo-restal nas propriedades rurais. Num mesmo municÃpio, pode haver imÃģveis situados em biomas distintos e, por-tanto, com exigÊncias ambientais diversas.
A principal crÃtica dos grandes proprietÃĄrios de terra à legislaçÃĢo florestal referia-se à figura da Reser-va Legal (RL), que obriga a conservaçÃĢo da cobertura florestal em 80% da extensÃĢo das propriedades locali-zadas no bioma AmazÃīnia, 35% quando localizadas no bioma Cerrado dentro da AmazÃīnia Legal e 20% nos de-mais biomas, inclusive nos cerrados nÃĢo amazÃīnicos. A retÃģrica dominante entre os proprietÃĄrios da regiÃĢo re-jeitava a obrigatoriedade da RL, mas, atÃĐ em funçÃĢo dis-so, reconhecia a pertinÊncia das Ãreas de PreservaçÃĢo Permanente (APPs), notadamente das matas ciliares. De muitos proprietÃĄrios, o ISA ouviu consideraçÃĩes de que, enquanto a RL impunha limitaçÃĩes excessivas, a prote-çÃĢo oferecida à s APPs era modesta, e que atÃĐ concorda-riam em manter (ou recuperar) matas ciliares em maior extensÃĢo, embora jÃĄ houvesse, em 2005, um passivo de 300 mil hectares desse tipo de vegetaçÃĢo na parte ma-to-grossense da Bacia do Xingu. A narrativa dos fazen-deiros tambÃĐm incorporou a consciÊncia de que a ÃĄgua ÃĐ um ativo fundamental, inclusive para a produtivida-de agrÃcola. Muitos deles vinham constatando perdas e danos desse ativo nas suas propriedades em funçÃĢo de desmatamentos desnecessÃĄrios realizados no passado.
Campanha de recuperaçÃĢo de nascentes
ApÃģs um intenso debate interno, o ISA decidiu fa-zer um investimento institucional para viabilizar uma campanha com foco na proteçÃĢo e recuperaçÃĢo de nas-centes e matas ciliares na Bacia do Xingu. Decidiu, ain-da, preferencialmente, articular essa campanha e lan-Ã§ÃĄ-la em conjunto com os atores sociais e institucionais da regiÃĢo das cabeceiras do Xingu, incluindo as prefei-turas e representantes dos povos indÃgenas, dos assen-tados da reforma agrÃĄria e dos proprietÃĄrios rurais e
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seus respectivos sindicatos patronais. Para tanto, saà da coordenaçÃĢo do Programa de PolÃtica e Direito do ISA para coordenar a articulaçÃĢo dessa iniciativa e, nos me-ses seguintes, a organizaçÃĢo contratou Daniela de Paula e Rodrigo Junqueira, agrÃīnomos atuantes no campo so-cioambiental, para compor uma equipe de coordenaçÃĢo.
Essa decisÃĢo decorreu da avaliaçÃĢo de que esse trabalho teria de se desenvolver, sobretudo, fora do PIX e nÃĢo deveria comprometer a continuidade dos projetos desenvolvidos em parceria com a AssociaçÃĢo Terra In-dÃgena do Xingu (Atix) dentro daquela ÃĄrea. AlÃĐm disso, o objetivo de recuperar nascentes e matas ciliares em assentamentos e propriedades rurais requeria pessoas com formaçÃĢo tÃĐcnica distinta da dos tÃĐcnicos do ISA que jÃĄ atuavam com os Ãndios.
Mas a organizaçÃĢo jÃĄ vinha realizando hÃĄ alguns anos, no ÃĒmbito do Programa Xingu, o monitoramento do avanço do desmatamento e jÃĄ dispunha de um ma-peamento preliminar dos principais atores sociais e institucionais da regiÃĢo, realizado pela biÃģloga Rosely Sanches. O instrumento fundamental para a articulaçÃĢo dessa campanha foi um mapa que sintetizava o resul-tado acumulado desse monitoramento. A imagem do avanço do desmatamento deixava evidente a gravidade e a urgÊncia da situaçÃĢo, mostrando a vulnerabilidade do PIX, para onde todas as ÃĄguas correm.
A proposta nÃĢo era a de simples denÚncia ou dis-cussÃĢo sobre o desmatamento, mas juntar as forças dos atores sociais e institucionais para promover a re-cuperaçÃĢo de matas ciliares nas propriedades rurais, nos lotes dos assentamentos e em terras pÚblicas, vi-sando reverter a tendÊncia de perda de qualidade e de disponibilidade de ÃĄgua. AlÃĐm de reunir os sujeitos de direito sobre essas ÃĄreas, a articulaçÃĢo da campanha
buscou apoio das escolas municipais, da Escola FamÃ-lia AgrÃcola de QuerÊncia e da Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat), em Nova Xavantina e Sinop. Foram mobilizadas instituiçÃĩes com relevante presen-ça na regiÃĢo, como a Eubiose, os Centros de TradiçÃĩes GaÚchas (CTGs) e a AssociaçÃĢo dos Fazendeiros do Ara-guaia-Xingu (Asfax). Prefeituras e organizaçÃĩes de mais de 20 municÃpios foram visitadas, independentemente da filiaçÃĢo partidÃĄria ou da orientaçÃĢo ideolÃģgica. A dis-posiçÃĢo em proteger e recuperar as matas ciliares foi a Única condiçÃĢo para aderir à campanha. A entÃĢo se-cretÃĄria de Agricultura e Meio Ambiente de Canarana, Eliane de Oliveira Felten, deu um suporte fundamental para o inÃcio dessa articulaçÃĢo regional.
Afinidade com os Ãndios Em 2004, o ISA jÃĄ era bem conhecido na regiÃĢo, so-
bretudo nos municÃpios do leste do Xingu, e tinha, jÃĄ hÃĄ quase 10 anos, a sede do Programa Xingu instalada em Canarana. Como nÃĢo poderia deixar de ser, a instituiçÃĢo era regionalmente conhecida por sua afinidade com os povos indÃgenas, atÃĐ por que todos os seus projetos eram, entÃĢo, executados no PIX. NÃĢo deixou de causar surpresa a alguns dos nossos interlocutores a iniciativa do ISA em procurÃĄ-los, o que tambÃĐm ensejou situaçÃĩes curiosas. Lembro-me da primeira visita que fizemos à pre-feitura de Ãgua Boa, quando fomos recebidos pelo se-cretÃĄrio municipal de Agricultura e que jÃĄ havia sido prefeito da cidade. Ele ouviu em silÊncio e atentamente a apresentaçÃĢo que fiz do problema e da proposta de cam-panha e, quando terminei, ainda esticou um pouquinho o silÊncio de forma meio cerimonial e disse: âEu jÃĄ tive vontade de te matar!â Diante do meu susto, ele emen-dou: âFique calmo, eu nÃĢo quero mais te matar. Se ainda
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quisesse, nÃĢo estaria te dizendo issoâ. âMas, por quÊ?â, perguntei. âPor que vocÊ e os seus advogados impedi-ram a implantaçÃĢo da hidrovia Araguaia-Tocantins! Eu era o prefeito, construà um porto à s margens do Rio das Mortes, mas uma liminar da Justiça Federal impediu a inauguraçÃĢo.â Com efeito, o NÚcleo de Direitos IndÃge-nas (NDI) â uma das organizaçÃĩes que formaram o ISA â havia representado em juÃzo as comunidades Xavante das Terras IndÃgenas AreÃĩes e de Pimentel Barbosa, que seriam afetadas pela hidrovia sem que houvessem sido consultadas a respeito.
Apesar desse karma, nenhum dos nossos inter-locutores negou-se a conversar sobre o avanço do desmatamento e suas consequÊncias, assim como ninguÃĐm recusou a ideia de uma campanha com foco nas nascentes e matas ciliares. Inclusive os repre-sentantes dos grandes agricultores apreciaram a ini-ciativa do ISA em procurÃĄ-los e convidÃĄ-los para um trabalho conjunto, em vez de simplesmente denun-ciÃĄ-los. Tomei a decisÃĢo, inclusive, de bater à porta da ConfederaçÃĢo da Agricultura e PecuÃĄria do Brasil (CNA), em BrasÃlia, e, por indicaçÃĢo dela, na da Fede-raçÃĢo da Agricultura e PecuÃĄria de Mato Grosso (Fa-mato), em CuiabÃĄ, assim como outras organizaçÃĩes de ÃĒmbito estadual e federal, sempre com o mesmo problema e a mesma proposta, onde fomos igualmen-te bem recebidos.
Da mesma forma, foram contatadas a Confedera-çÃĢo Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Con-tag) e a FederaçÃĢo dos Trabalhadores na Agricultura (Fetragri). O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Lucas do Rio Verde, Nilfo Wandscheer, liderou a mobilizaçÃĢo das associaçÃĩes dos assentamentos e da agricultura familiar.
Propusemos, entÃĢo, a todas as partes, a realizaçÃĢo de um grande encontro regional para pactuar os termos e condiçÃĩes da campanha. A proposta gerou um des-conforto inicial entre representantes dos fazendeiros, preocupados com a possibilidade de sofrerem algum constrangimento numa reuniÃĢo desse tipo. Os Ãndios tambÃĐm estranharam a ideia de se reunirem com os produtores rurais, o que nunca haviam feito antes, mas aceitaram o convite, ainda que tivessem muitas dÚvidas sobre a possibilidade de algum resultado palpÃĄvel.
O encontro se daria em Canarana. A prefeitura cedeu o centro comunitÃĄrio para sediar o evento e cer-ca de 340 pessoas participaram dele, representando os principais segmentos sociais e instituiçÃĩes regionais. Os grandes proprietÃĄrios nÃĢo compareceram em mas-sa, mas prestigiaram o encontro. Figuras importantes do agronegÃģcio pactuaram os seus resultados, como Homero Pereira, entÃĢo secretÃĄrio de Desenvolvimento Rural de Mato Grosso e presidente da Famato e futu-ro deputado federal; William Khoury, diretor da CNA; e JoÃĢo Shimada, diretor da Amaggi (maior empresa da cadeia da soja, que pertence à famÃlia do ex-governador e ex-ministro da Agricultura, Blairo Maggi); alÃĐm de Marcos da Rosa, entÃĢo presidente do sindicato rural de Canarana e futuro presidente da AssociaçÃĢo dos Produ-tores de Soja de Mato Grosso (Aprosoja).
O encontro durou trÊs dias e a sua metodologia priorizou espaços de autonomia para que cada segmen-to â Ãndios, assentados da reforma agrÃĄria, proprietÃĄrios rurais e gestores municipais â organizasse a discussÃĢo sobre a sua inserçÃĢo no tema das matas ciliares e no es-forço de campanha. Houve uma dinÃĒmica de comparti-lhamento dos resultados das discussÃĩes em cada grupo com os demais, a tÃtulo de informaçÃĢo e de coleta de su-
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gestÃĩes, sem que um grupo tivesse de subordinar aos outros as suas conclusÃĩes. Os relatÃģrios dessas conclu-sÃĩes foram acolhidos como anexos do documento final do encontro que, em uma pÃĄgina, reafirmou o objetivo geral de proteger e recuperar nascentes e matas cilia-res, incorporando quatro propostas especÃficas, que re-sumiam necessidades e expectativas de cada segmento: respeito à s terras indÃgenas e aos seus limites; geraçÃĢo de renda para os assentados da reforma agrÃĄria; redu-çÃĢo dos custos de restauraçÃĢo florestal nas proprieda-des rurais; e provimento de serviços de saneamento bÃĄ-sico nos municÃpios da regiÃĢo. A âCarta de Canaranaâ foi aprovada por aclamaçÃĢo e a Única questÃĢo que foi sub-metida à votaçÃĢo foi o nome da campanha, tendo sido vencedora a proposta dos Ãndios KamaiurÃĄ: âY Ikatu Xinguâ â que significa âÃgua Boa no Xinguâ.
Nos anos seguintes, a campanha desenvolveu--se em vÃĄrias frentes, agregando parcerias e atrain-do recursos para a regiÃĢo. O MinistÃĐrio das Cidades realizou um diagnÃģstico da situaçÃĢo de saneamento bÃĄsico em todos os municÃpios mato-grossenses com territÃģrios na Bacia do Xingu. A Empresa Brasileira de Pesquisa AgropecuÃĄria (Embrapa) conseguiu recursos para implementar um projeto de pesquisa, em apoio à campanha. O Instituto Nacional de ColonizaçÃĢo e Re-forma AgrÃĄria (Incra) aprovou recursos para restau-raçÃĢo florestal nos assentamentos. O Fundo Nacional do Meio Ambiente aprovou projetos de prefeituras e de outras instituiçÃĩes para o desenvolvimento de iniciati-vas de recuperaçÃĢo de matas ciliares.
A Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), a AgÊncia Nacional de Ãguas (ANA), o FÃģrum das Or-ganizaçÃĩes de Meio Ambiente e Desenvolvimento de Mato Grosso (Formad), o Instituto Centro e Vida (ICV),
a Aliança da Terra e o Instituto de Pesquisa Ambiental da AmazÃīnia (Ipam), entre vÃĄrias outras organizaçÃĩes governamentais e nÃĢo governamentais atuantes na re-giÃĢo, tambÃĐm participaram ativamente da mobilizaçÃĢo. A mÚsica da campanha foi composta e gravada por uma dupla sertaneja de SÃĢo JosÃĐ do Xingu.
Por sua vez, o ISA desenvolveu tÃĐcnicas de res-tauraçÃĢo florestal apropriadas a cada tipo especÃfico de propriedade ou de produtor rural, fundamentadas no uso intensivo de sementes de espÃĐcies florestais nati-vas. Nos lotes de assentamentos, foi difundido o uso da âmuvucaâ de sementes para o plantio de agroflorestas. Plantadeiras de soja e de capim foram reguladas para o plantio mecanizado de matas ciliares nas fazendas. Essas tÃĐcnicas foram disseminadas por meio de publi-caçÃĩes e de âdias de campoâ. Somente com a assistÊncia direta do ISA, existem experiÊncias de restauraçÃĢo flo-restal em curso ou jÃĄ realizadas em 160 propriedades rurais, com diversos tamanhos e culturas. Como resul-tado desse esforço inicial, atÃĐ 2017 foram restaurados 5 mil hectares dentro e fora da Bacia do Xingu.
Legado
A criaçÃĢo da Rede de Sementes do Xingu, em 2007, foi o principal desdobramento e legado da Campanha âY Ikatu Xingu. Ela reÚne 450 coletores em 13 comuni-dades indÃgenas e 14 assentamentos da regiÃĢo, que jÃĄ produziram 175 toneladas de 200 espÃĐcies florestais nativas, gerando uma renda de R$ 2,5 milhÃĩes. As se-mentes sÃĢo compradas por produtores rurais e empre-sas interessadas em restaurar matas ciliares. Eles po-dem fazer isso por meio das tÃĐcnicas de uso intensivo de sementes a um terço do custo mÃĐdio de restauraçÃĢo florestal pelo mÃĐtodo tradicional de plantio de mudas.
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Os agricultores reconhecem a eficiÊncia e a qualidade dessas tÃĐcnicas, que dependem da disponibilidade cres-cente de sementes oferecidas pela rede. Um belo exem-plo de cooperaçÃĢo concreta entre diferentes segmentos sociais, com ganhos para todos.
O legado da campanha foi incorporado institucio-nalmente pelo Programa Xingu do ISA, sob a coordena-çÃĢo de AndrÃĐ Villas-BÃīas (atual secretÃĄrio-executivo da organizaçÃĢo), com equipe prÃģpria e sem prejuÃzo à s atividades no PIX. Uma terceira equipe foi formada para atuar na regiÃĢo de Altamira (PA), no apoio à s comuni-dades das reservas extrativistas da regiÃĢo conhecida como Terra do Meio.
Os produtores locais continuam valorizando a campanha, o trabalho do ISA e a Rede de Sementes, seja pela eficiÊncia e pelo baixo custo da restauraçÃĢo florestal, seja pelos canais diretos de interlocuçÃĢo que se abriram nesse processo entre todos os atores re-gionais. Por outro lado, os supostos representantes do agronegÃģcio em ÃĒmbito estadual e nacional â CNA, Fa-mato, bancada ruralista â pouco aproveitaram da expe-riÊncia. NÃĢo se opuseram à campanha, mas deletaram a sua memÃģria ou, pelo menos, a sua participaçÃĢo. Os que, em seu nome, testemunharam aquele processo, com o passar dos anos, faleceram ou foram substituÃ-dos. Da parte desses representantes, o que sobrou foi uma agenda truculenta e predatÃģria, que começou com a destruiçÃĢo da legislaçÃĢo florestal e agora pretende restringir direitos dos demais atores sociais do campo â Ãndios, quilombolas, extrativistas, assentados e agri-cultores familiares â e viabilizar a expansÃĢo do agro-negÃģcio sobre esses territÃģrios e outras terras pÚblicas sem destinaçÃĢo oficial e sujeitas à grilagem.
Mais de 200 deputados e alguns senadores inte-gram a Frente Parlamentar da AgropecuÃĄria (FPA), tambÃĐm conhecida como bancada ruralista. Seria ma-ravilhoso se toda essa força polÃtica focasse a produçÃĢo agropecuÃĄria, base da economia brasileira desde sem-pre e setor que mantÃĐm um desempenho vital diante da crise econÃīmica que nos assola.
PorÃĐm os segmentos mais dinÃĒmicos do agrone-gÃģcio produzem, independentemente de bancadas ou de sindicatos patronais, e chegam a ser omissos na in-terlocuçÃĢo do setor com o conjunto da sociedade. Com isso, a FPA prioriza uma agenda descolada da produçÃĢo propriamente dita e voltada a fazer avançar a ocupaçÃĢo predatÃģria de novas ÃĄreas.
Uma simples consulta ao site dessa frente parla-mentar jÃĄ mostra a Ênfase dada à s chamadas situaçÃĩes de conflito. A desapropriaçÃĢo de terras para assenta-mentos, a demarcaçÃĢo de terras indÃgenas, a titulaçÃĢo de quilombos, a criaçÃĢo de unidades de conservaçÃĢo e a aplicaçÃĢo da legislaçÃĢo ambiental a propriedades rurais sÃĢo temas malditos, que se inscrevem nesse paradigma do conflito. Outras questÃĩes tambÃĐm aparecem, como a anistia de dÃvidas previdenciÃĄrias rurais, a manuten-
A arrogÃĒncia que cega
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çÃĢo de privilÃĐgios fiscais, a dispensa de rotulagem para produtos transgÊnicos e a liberaçÃĢo da venda de terras para empresas estrangeiras, que interessam a determi-nados proprietÃĄrios de terra, mas nÃĢo à agropecuÃĄria em si e, muito menos, ao resto da sociedade.
Depois de reformar o CÃģdigo Florestal à sua ima-gem e semelhança, em 2012, com ampla anistia a des-matamentos passados e maior dificuldade de contro-le sobre os futuros, a bancada ruralista partiu para o ataque contra os direitos dos Ãndios e dos quilombolas, promovendo uma emenda à ConstituiçÃĢo, que ficou co-nhecida como PEC 215, para transferir do Poder Execu-tivo ao Congresso Nacional a competÊncia para definir os limites das terras a serem demarcadas como indÃge-nas ou tituladas como quilombos.
O entÃĢo presidente da CÃĒmara dos Deputados (posteriormente preso), Henrique Eduardo Alves (PM-DB-RN), instalou uma comissÃĢo especial, com maioria ruralista, para emitir parecer sobre a PEC 215, tendo como relator o deputado ruralista Osmar Serraglio (PM-DB-PR), de tosca formaçÃĢo jurÃdica, que alegou inconsti-tucionalidade na demarcaçÃĢo de terras pelo Executivo e acrescentou dispositivos para promover o arrendamen-to das terras indÃgenas e para dispensar empreiteiros e mineradores da obrigaçÃĢo de consultar as comunidades indÃgenas afetadas por obras e minas. Serraglio depois ocuparia o MinistÃĐrio da Justiça por 90 dias, no bizarro governo de Michel Temer.
Por anos, a PEC 215 foi usada pelos ruralistas como instrumento de chantagem, em especial no governo Dil-ma Rousseff, que reduziu drasticamente o ritmo da de-marcaçÃĢo das terras indÃgenas, assim como a destinaçÃĢo de terras pÚblicas para outras finalidades socioambien-tais. A partir de 2013, o movimento indÃgena, liderado
pela ArticulaçÃĢo dos Povos IndÃgenas do Brasil (Apib), promoveu grandes mobilizaçÃĩes contra a PEC e apro-fundou alianças com outros movimentos sociais para denunciar a ameaça de rompimento unilateral do pacto construÃdo na Assembleia Nacional Constituinte ao re-dor dos direitos originÃĄrios dos Ãndios sobre suas terras.
Apesar do empenho dos ruralistas, muitas ob-jeçÃĩes à PEC foram surgindo na medida em que o seu conteÚdo ficava mais conhecido pelos deputados. NÃĢo eram apenas objeçÃĩes de carÃĄter ideolÃģgico dos que defendem os direitos indÃgenas. A transferÊncia para o Congresso de uns 130 processos pendentes de demar-caçÃĢo de terras indÃgenas e de outros 1.500 de titulaçÃĢo de quilombos aumentaria de forma insuportÃĄvel o grau de entropia jÃĄ elevado que caracteriza o processo legis-lativo, o que ÃĐ percebido por parlamentares experientes que sequer atuam nesses campos. HÃĄ atÃĐ objeçÃĩes de congressistas que temem o aumento da presença â para eles indesejÃĄvel â de Ãndios e negros no Congresso.
A bancada ruralista ÃĐ forte, mas sua proposta tem muitas debilidades. Com relaçÃĢo à s terras indÃgenas ela chega a ser obtusa, pois nÃĢo subordinaria à vonta-de do Congresso mais de dois terços das terras, que jÃĄ estÃĢo demarcados, e nem a maior parte dos processos pendentes, que estÃĄ judicializada. A aprovaçÃĢo da PEC transferiria a obrigaçÃĢo de solucionar conflitos para um Congresso desprovido dos instrumentos administrati-vos ou judiciais necessÃĄrios.
Em maio de 2015, representei o ISA na abertura de uma exposiçÃĢo de fotos representativas da luta dos povos indÃgenas nos Últimos 25 anos no Brasil, reali-zada no Senado Federal por proposta do senador JoÃĢo Alberto Capiberibe (PSB-AP). ApÃģs a cerimÃīnia, numa conversa informal no seu gabinete, o senador me per-
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guntou como avaliÃĄvamos as chances de aprovaçÃĢo da PEC 215 na CÃĒmara. Disse-lhe que nÃĢo costumamos subestimar a força dos nossos adversÃĄrios, mas que eu achava muito difÃcil, relatando as objeçÃĩes de diversas naturezas que estÃĄvamos identificando nas conversas com deputados.
No dia seguinte, o senador me telefonou para di-zer que tinha sondado alguns senadores e constatado aquelas matizes de objeçÃĩes que eu mencionei. Infor-mou, tambÃĐm, que estava redigindo um documento de senadores contra a PEC com o objetivo de colher assi-naturas e divulgar uma manifestaçÃĢo coletiva. Fiz su-gestÃĩes pontuais para o texto e avaliamos como chegar ao apoio de 33 senadores, nÚmero correspondente ao montante de votos suficientes para barrar a PEC se ela chegasse ao Senado.
Na semana seguinte, ele telefonou de dentro do plenÃĄrio para contar que o documento jÃĄ tinha 40 assinaturas! Pediu para ir ao seu gabinete conversar sobre a divulgaçÃĢo do texto. Interessava muito conse-guir pelo menos mais uma assinatura, que caracteri-zaria a maioria do Senado, que dispÃĩe de 81 cadeiras. Capiberibe ligou para o Renan Calheiros (PMDB-AL), entÃĢo presidente do Senado, e disse que tinha reser-vado a ele â presidente â a honra de constituir a maio-ria da casa em apoio ao documento. E o Renan tam-bÃĐm assinou.
Observamos, ainda, que senadores do PSDB esta-vam em reuniÃĢo de bancada e ausentes da sessÃĢo em que as assinaturas foram coletadas. Procuramos o lÃder do partido, senador CÃĄssio Cunha Lima (PSDB-PB), que agregou outras sete, alcançando 48 (60% do Senado). PoderÃamos ir alÃĐm, mas evitamos contatar senadores ausentes ou ruralistas assumidos.
No dia seguinte, na presença da SÃīnia Guajajara, da coordenaçÃĢo da Apib, e de outros representantes indÃ-genas, de organizaçÃĩes de apoio e parlamentares, o do-cumento foi divulgado, alcançando grande repercussÃĢo. NÃĢo me lembro de outro caso de proposiçÃĢo que tenha sido rejeitado enquanto ainda tramita na outra casa.
Os deputados ruralistas nÃĢo acreditaram. Baixa-ram em bloco no Senado assim que souberam do do-cumento. Partiram para cima do Renan Calheiros que, segundo eles, como presidente do Senado, nÃĢo poderia detonar uma proposta que tramitava na CÃĒmara. Renan respondeu, com a autoridade de ex-ministro da Justiça, que aquela proposta nÃĢo tinha qualquer chance de pros-perar no Senado e que tinha assinado o documento cor-roborando a posiçÃĢo da maioria.
Os deputados cobraram, entÃĢo, Renan e outros senadores, para que apresentassem outra soluçÃĢo para o âproblemaâ, acusando-os de omissÃĢo pela morosida-de na tramitaçÃĢo no Senado de proposiçÃĩes a respeito do assunto. EntÃĢo, Renan agilizou a tramitaçÃĢo de ou-tra proposta de emenda constitucional que nÃĢo afeta as demarcaçÃĩes, mas institui o direito de indenizaçÃĢo aos portadores de tÃtulos legÃtimos de propriedade inciden-tes em ÃĄreas em demarcaçÃĢo.
Vale registrar que essa PEC da indenizaçÃĢo foi relatada pelo senador Blairo Maggi (PR-MT), ruralista insuspeito, tambÃĐm conhecido como âRei da Sojaâ. Pon-derado, Maggi adotou procedimento oposto ao dos ru-ralistas da CÃĒmara, ouviu sugestÃĩes dos que defendem os direitos dos Ãndios e aprovou a emenda por unanimi-dade no Senado. Ela estÃĄ agora na CÃĒmara e tem parecer favorÃĄvel da ComissÃĢo de ConstituiçÃĢo e Justiça, mas os ruralistas protelam a sua aprovaçÃĢo final por desinte-resse em soluçÃĩes pactuadas.
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Mesmo sabendo da sua inviabilidade, os ruralistas aprovaram a PEC 215 na comissÃĢo que estava sob o seu controle na CÃĒmara. Enxertaram uma emenda que su-prime a transferÊncia das demarcaçÃĩes para o Congres-so, preservando as outras maldades inseridas no texto. Ou seja, tramita outra emenda como se fosse ela e eles insistem em votar essa mula sem cabeça para tentar es-conder a prÃģpria incompetÊncia.
Independentemente do que ainda possa ocorrer com essa PEC, que continua em tramitaçÃĢo, o caso ÃĐ exemplar de como ÃĐ possÃvel uma bancada gigantesca e poderosa isolar-se politicamente a esse ponto. Se a sua força fosse empenhada no apoio à produçÃĢo agro-pecuÃĄria, ampliaria seus resultados. Mas quando foca na agenda negativa, de exclusÃĢo de direitos alheios, des-mobiliza os prÃģprios membros que nÃĢo dependem dessa agenda predatÃģria de fronteira, situaçÃĢo que se agrava com a arrogÃĒncia que impede a percepçÃĢo dos seus se-guidos equÃvocos.
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Fontes: Cambria e Frutiger.1000 exemplares impressos em off-set na GrÃĄfica Hawaii em dezembro de 2019. Capa em papel CartÃĢo Supremo Duo Design 250 g/m2 e miolo em papel Polen Soft 80 g/m2 e Polen Bold 90 g/m2.