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Advocacia em tempos difíceis: ditadura militar 1964-1985

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Advocacia em Tempos Difceis: Ditadura Militar 1964-1985 1

ADVOCACIA EMTEMPOS DIFCEISDitadura Militar 1964-1985

Paula Spieler e Rafael Mafei Rabelo Queiroz (Coords.)2

Esta publicao resultado de iniciativa fomentada comverbas do projeto Marcas da Memria da Comisso deAnistia, selecionada por meio de edital pblico, na IIChamada Pblica. Por essa razo, as opinies e dadoscontidos na publicao so de responsabilidade de seusorganizadores e autores, e no traduzem opinies doGoverno Federal, exceto quando expresso em contrrio.

Spieler, Paula (coord.).S756 Advocacia em tempos difceis: ditadura militar

1964-1985./ coordenao Paula Spieler, Rafael Mafei Rabelo Queiroz./ Curitiba: Edio do Autor, 2013.

912p.

1. Advogados. 2. Brasil Histria Revoluo, 1964. I. Queiroz, Rafael Mafei Rabelo (coord.). II. Ttulo.

CDD 340.092 (22 ed.)CDU 347.921.4

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Paula SpielerRafael Mafei Rabelo Queiroz

Coordenadores

ADVOCACIA EMTEMPOS DIFCEISDitadura Militar 1964-1985

Pesquisadores:Alynne Nayara Ferreira Nunes

Andr Javier Ferreira PayarCatarina Dacosta Freitas

Mariana Campos de Carvalho

Curitiba2013

Paula Spieler e Rafael Mafei Rabelo Queiroz (Coords.)4

REALIZAO:

APOIO:

Escola de Direito de So Paulo da Fundao Getulio VargasEscola de Direito do Rio de Janeiro da Fundao Getulio Vargas

REVISO NA COMISSO DE ANISTIA:Amarlis Busch Tavares (Diretora da Comisso de Anistia), Bruno Scalko Franke

(Coordenador de Articulao Social, Aes Educativas e Museologia) eSnia Costa (PNUD).

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O presente projeto foi apresentado no ano de 2011 IIChamada Pblica do Projeto Marcas da Memria, da Comis-so de Anistia do Ministrio da Justia, e selecionado por Co-mit independente para fomento. A realizao do projeto obje-tiva atender as misses legais da Comisso de Anistia de pro-mover o direito reparao, memria e verdade, permitindoque a sociedade civil e os anistiados polticos concretizem seusprojetos de memria. Por essa razo, as opinies e dados con-tidos na publicao so de responsabilidade de seus organiza-dores e autores, e no traduzem opinies do Governo Federal,exceto quando expresso em contrrio.

Paula Spieler e Rafael Mafei Rabelo Queiroz (Coords.)6

Presidenta da RepblicaDilma Vana Rousseff

Ministro da JustiaJos Eduardo Cardozo

Secretria-ExecutivaMarcia Pelegrini

Presidente da Comisso de AnistiaPaulo Abro

Vice-presidentes da Comisso de AnistiaSueli Aparecida Bellato

Jos Carlos Moreira da Silva Filho

Conselheiros da Comisso de AnistiaAline Sueli de Salles Santos Marina Silva SteinbruchAna Maria Guedes Mrio Miranda de AlbuquerqueAna Maria Lima de Oliveira Marlon Alberto WeichertCarolina de Campos Melo Narciso Fernandes BarbosaCarol Proner Nilmrio MirandaCristiano Otvio Paixo Arajo Pinto Prudente Jos Silveira MelloEne de Stutz e Almeida Rita Maria de Miranda SipahiHenrique de Almeida Cardoso Roberta Camineiro BaggioJuvelino Jos Strozake Rodrigo Gonalves dos SantosLuciana Silva Garcia Vanda Davi Fernandes de OliveiraManoel Severino Moraes de Almeida Virginius Jos Lianza da FrancaMrcia Elayne Berbich de Moraes

Diretora da Comisso de AnistiaAmarlis Busch Tavares

Chefia de GabineteLarissa Nacif Fonseca

GabineteLuciane Faria Gonalves

Fbio da Silva Sousa Costa

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Coordenadora do Servio de Apoio AdministrativoLvia Almeida Santos

Servio de Apoio AdministrativoAlinne Gomes Farias (Estagiria)

Antonio Francisco Marcico RibeiroCleiton de Oliveira Rodrigues

Neire Peres do CarmoOadir Arajo Fernandes

Samuel Domingos de Oliveira

Coordenadora da Central de Atendimento Integrada SNJ / CAAline Carneiro de Aguiar

Central de Atendimento IntegradaCamila Pereira NeryHayara Vianna Silva

Leandro Rocha Mundim de Oliveira (Estagirio)Virna Arcanjo Freire (Estagiria)

Coordenao Executiva do Memorial da Anistia Poltica do BrasilAmarlis Busch Tavares

Coordenador de Projetos e Polticas de Reparao e Memria HistricaEduardo Henrique Falco Pires

Coordenao de Projetos e Polticas de Reparao e Memria HistricaDaniel Fernandes Rocha

Deborah Nunes LyraLvia Vieira Brana

Mariana Gracie Prieto vila (Estagiria)Paula Regina Montenegro Generino de Andrade

Paula Stein de Melo e Sousa (Consultora MJ / PNUD)Snia Maria Alves da Costa (Consultora MJ / PNUD)

Wallison dos Santos Machado

Coordenador de Articulao Social, Aes Educativas e MuseologiaBruno Scalco Franke

Coordenao de Articulao Social, Aes Educativas e MuseologiaEliana Rocha Oliveira (Consultora MJ / PNUD)

Jeny Kim BatistaPriscilla do Nascimento Silva Goudim

Paula Spieler e Rafael Mafei Rabelo Queiroz (Coords.)8

Coordenao do Centro de Documentao e PesquisaAndra Valentim Alves Ferreira (Consultora MJ/ PNUD)

Joo Alberto TomacheskiPmela Almeida Rezende (Consultora MJ/ PNUD)

Rodrigo Lentz (Consultor MJ/ PNUD)

Coordenador Geral de Gesto ProcessualMuller Luiz Borges

Assessoria da Coordenao Geral de Gesto ProcessualCarolina Nunes Barbosa de Sousa

Janine Poggiali Gasporoni e Oliveira

Coordenadora de Controle Processual e Pr-AnliseNatlia Costa

Coordenao de Controle Processual e Pr-AnliseAdriana Soares Guimares Pereira Luana Fonseca OliveiraArquimedes Barros Rodrigues Marcos Denaim Correa da SilvaElaine Cristina Guedes Martins Maria Jos das NevesElisa Machado Rabelo Maria Mnica Rodrigues LimaGardnia Azevedo de Oliveira Matheus Ramos vila (Estagirio)Helbert Lopes Rocha Mislene dos SantosJos Antunes Primo Junior Raiane Feitoza da SilvaJuliana Priscila de Oliveira Renata Alves Neres NogueiraLeonardo Barbosa Cardoso Thiago Azevedo Luna dos Santos

Coordenadora de Julgamento e FinalizaoJoicy Honorato de Souza

Coordenao de Julgamento e FinalizaoAlexandre Tadeu de Oliveira

Ana Lourdes Reis BrodAna Paula Barbacena

Ariane Ramos de Souza (Estagiria)Giovana Rodrigues Arajo

Chefe da Diviso de ArquivoMayara Nunes de Castro

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Diviso de Arquivo e MemriaEmilinha Soares Marques

Leonardo Krieger F. BarbosaMatheus Henrique Santos Dures (Estagirio)

Pedro Henrique Santos Moraes da Silva (Estagirio)rsula Beatriz Silva Sangaleti (Estagirio)

Rodrigo de Jesus SilvaRosemeire de Oliveira Arajo

Coordenador de Anlise e Informao ProcessualAntnio Jos Teixeira Leite

Coordenao de Anlise e Informao ProcessualAlan Cruz Murada

Clarina Soares Meireles PachecoDborah Cristina Colho Machado

Leonardo Aguilar VillalobosLorena das Neves Chaveiro

Marcello Evandro de Carvalho Dias PortelaOdefrnio Vidal Pierre de Messias

Rodrigo MercanteSabrina Nunes Gonalves da Silva

Vnia Margarete Rodrigues Bonfim Souto

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A Comisso de Anistia um rgo do Estado brasileiro ligadoao Ministrio da Justia e composto por 26 conselheiros, em sua maio-ria, agentes da sociedade civil ou professores universitrios, sendo umdeles indicado pelas vtimas e outro pelo Ministrio da Defesa. Criadaem 2001, h doze anos, com o objetivo de reparar moral e economica-mente as vtimas de atos de exceo, arbtrio e violaes aos direitoshumanos cometidas entre 1946 e 1988, a Comisso hoje conta com maisde 70 mil pedidos de anistia protocolados. At o ano de 2012 havia de-clarado mais de 35 mil pessoas anistiadas polticas, promovendo opedido oficial de desculpas do Estado pelas violaes praticadas. Emaproximadamente 15 mil destes casos, a Comisso igualmente reconhe-ceu o direito reparao econmica. O acervo da Comisso de Anistia o mais completo fundo documental sobre a ditadura brasileira (1964-1985), conjugando documentos oficiais com inmeros depoimentos eacervos agregados pelas vtimas. Esse acervo ser disponibilizado aopblico por meio do Memorial da Anistia Poltica do Brasil, stio de me-mria e homenagem s vtimas, em construo na cidade de Belo Hori-zonte. Desde 2007 a Comisso passou a promover diversos projetos deeducao, cidadania e memria, levando, por meio das Caravanas deAnistia, as sesses de apreciao dos pedidos aos locais onde ocorrerams violaes, que j superaram 70 edies; divulgando chamadas pbli-cas para financiamento a iniciativas sociais de memria, como a quepresentemente contempla este projeto; e fomentando a cooperao inter-nacional para o intercmbio de prticas e conhecimentos, com nfasenos pases do Hemisfrio Sul.

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MARCAS DA MEMRIA: UM PROJETO DEMEMRIA E REPARAO COLETIVA

PARA O BRASIL

Criada em 2001, por meio de medida provisria, a Comissode Anistia do Ministrio da Justia passou a integrar em definitivo aestrutura do Estado brasileiro no ano de 2002, com a aprovao de Lein. 10.559, que regulamentou o artigo 8 do Ato das Disposies Consti-tucionais Transitrias.

Tendo por objetivo promover a reparao de violaes a di-reitos fundamentais praticadas entre 1946 e 1988, a Comisso configura--se em espao de reencontro do Brasil com seu passado, subvertendo osenso comum da anistia enquanto esquecimento. A Anistia no Brasil sig-nifica, a contrrio senso, memria. Em sua atuao, o rgo reuniu mi-lhares de pginas de documentao oficial sobre a represso no Brasil e,ainda, centenas de depoimentos, escritos e orais, das vtimas de tal re-presso. E deste grande reencontro com a histria que surgem no apenasos fundamentos para a reparao s violaes como, tambm, a necess-ria reflexo sobre a importncia da no repetio destes atos de arbtrio.

Se a reparao individual um meio de buscar reconciliar ci-dados cujos direitos foram violados, que tm ento a oportunidade deverem o Estado reconhecer que errou, devolvendo-lhes a cidadania e, sefor o caso, reparando-os financeiramente, por sua vez, as reparaescoletivas, os projetos de memria e as aes para a no repetio tm oclaro objetivo de permitir a toda a sociedade conhecer, compreender e,ento, repudiar tais erros. A afronta aos direitos fundamentais de qual-quer cidado singular igualmente ofende a toda a humanidade que temosem comum, e por isso que tais violaes jamais podem ser esquecidas.Esquecer a barbrie equivaleria a nos desumanizarmos.

Partindo destes pressupostos e, ainda, buscando valorizar a lutadaqueles que resistiram por todos os meios que entenderam cabveis a

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Comisso de Anistia passou, a partir de 2008, a realizar sesses de apre-ciao pblica, em todo o territrio nacional, dos pedidos de anistia querecebe, de modo a tornar o passado recente acessvel a todos. So aschamadas Caravanas da Anistia. Com isso, transferiu seu trabalhocotidiano das quatro paredes de mrmore do Palcio da Justia para apraa pblica, para escolas e universidades, associaes profissionais esindicatos, bem como a todo e qualquer local onde perseguies ocorre-ram. Assim, passou a ativamente conscientizar as novas geraes, nasci-das na democracia, da importncia de hoje vivermos em um regime livre,que deve e precisa ser continuamente aprimorado.

Com a ampliao do acesso pblico aos trabalhos da Comisso,cresceram exponencialmente o nmero de relatos de arbitrariedades,prises, torturas, por outro lado, pde-se romper o silncio para ouvircentenas de depoimentos sobre resistncia, coragem, bravura e luta. neste contexto que surge o projeto Marcas da Memria, que expandeainda mais a reparao individual em um processo de reflexo e apren-dizado coletivo, fomentando iniciativas locais, regionais e nacionais quepermitam queles que viveram um passado sombrio, ou que a seu estudose dedicaram, dividir leituras de mundo que permitam a reflexo crticasobre um tempo que precisa ser lembrado e abordado sob auspcios de-mocrticos.

Para atender estes amplos e inovadores propsitos, as aes doprojeto Marcas da Memria esto divididas em quatro campos:

a) Audincias Pblicas: atos e eventos para promover pro-cessos de escuta pblica dos perseguidos polticos sobre opassado e suas relaes com o presente.

b) Histria oral: entrevistas com perseguidos polticos basea-das em critrios terico-metodolgicos prprios da Hist-ria Oral. Todos os produtos ficam disponveis no Memorialda Anistia e podero ser disponibilizadas nas bibliotecas ecentros de pesquisa das universidades participantes doprojeto para acesso da juventude, sociedade e pesquisado-res em geral;

c) Chamadas Pblicas de fomento a iniciativas da Socieda-de Civil: por meio de Chamadas Pblicas, a Comisso se-leciona projetos de preservao, de memria, de divulga-o e difuso advindos de Organizao da Sociedade Civilde Interesse Pblico (OSCIP) e Entidades Privadas SemFins Lucrativos. Os projetos desenvolvidos envolvem do-cumentrios, publicaes, exposies artsticas e fotogrfi-cas, palestras, musicais, restaurao de filmes, preserva-

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o de acervos, locais de memria, produes teatrais emateriais didticos.

d) Publicaes: colees de livros de memrias dos perse-guidos polticos; dissertaes e teses de doutorado sobre operodo da ditadura e a anistia no Brasil; reimpresses ourepublicaes de outras obras e textos histricos e rele-vantes; registros de anais de diferentes eventos sobre anis-tia poltica e justia de transio. Sem fins comerciais oulucrativos, todas as publicaes so distribudas gratuita-mente, especialmente para escolas e universidades.

O projeto Marcas da Memria rene depoimentos, sistematizainformaes e fomenta iniciativas culturais que permitem a toda socieda-de conhecer o passado e dele extrair lies para o futuro. Reitera, por-tanto, a premissa que apenas conhecendo o passado podemos evitar suarepetio no futuro, fazendo da Anistia um caminho para a reflexo crticae o aprimoramento das instituies democrticas. Mais ainda: o projetoinveste em olhares plurais, selecionando iniciativas por meio de editalpblico, garantindo igual possibilidade de acesso a todos e evitando queuma nica viso de mundo imponha-se como hegemnica ante as demais.

Espera-se, com este projeto, permitir que todos conheam umpassado que temos em comum e que os olhares histricos anteriormentereprimidos adquiram espao junto ao pblico para que, assim, o respeitoao livre pensamento e o direito verdade histrica disseminem-se comovalores imprescindveis para um Estado plural e respeitador dos direitoshumanos.

Comisso de Anistia do Ministrio da Justia

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Advogados entrevistadosAlcyone Vieira Pinto Barreto

Amadeu de Almeida WeinmannAntnio Carlos da Gama Barandier

Antnio de Pdua BarrosoAntnio Modesto da Silveira

Arthur LavigneBelisrio dos Santos JuniorBoris Marques da Trindade

Dyrce DrachEny Raimundo Moreira

Fernando FragosoFlvio Flores da Cunha Bierrenbach

Flora StrozenbergGeorge Francisco TavaresHumberto Jansen Machado

Idibal Almeida PivettaIldio Moura

Jos Carlos DiasJos Moura Rocha

Luiz Carlos Sigmaringa SeixasLuiz Eduardo Greenhalgh

Luiz Olavo BaptistaManuel de Jesus Soares

Marcello CerqueiraMaria Luiza Flores da Cunha Bierrenbach

Maria Regina PasqualeMario de Passos Simas

Nlio Roberto Seidl MachadoNilo Batista

Pedro Eurico de Barros e SilvaRen Ariel Dotti

Tales Castelo BrancoTcio Lins e Silva

Virgilio Egydio Lopes Enei

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Advogados falecidos

Aldo Lins e SilvaAntnio Evaristo de Moraes Filho

Augusto Sussekind de Moraes RegoBento Rubio

Eloar GuazzelliHeleno Cludio Fragoso

Hlio Henrique Pereira NavarroHerclito Fontoura Sobral Pinto

Lino MachadoLysaneas Maciel

Mrcia Albuquerque FerreiraMiguel Aldrovando Aith

Osvaldo MendonaPaulo CavalcantiPaulo Goldrajch

Raimundo Pascoal BarbosaRaul Lins e Silva

Rmulo GonalvesRonilda Maria Lima Noblat

Vivaldo VasconcelosWanda Rita Othon Sidou

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LISTA DE ABREVIAESEMPREGADAS NAS ENTREVISTAS

ABI Associao Brasileira de ImprensaABIN Agncia Brasileira de IntelignciaACO Ao Catlica OperriaACP Ato ComplementarAI Ato InstitucionalAIT Ato InstitucionalALN Ao Libertadora NacionalAP Aliana PopularAPML Ao Popular Marxista-LeninistaArt. ArtigoARENA Aliana Renovadora NacionalCACO Centro Acadmico Cndido de OliveiraCALC Centro Acadmico Lus CrpenterCBA Comit Brasileiro pela AnistiaCCC Comando de Caa aos ComunistasCEBRAP Centro Brasileiro de Anlise e PlanejamentoCENIMAR Centro de Informaes da MarinhaCf. ConfiraCIA Central Intelligence Agency (Agncia Central de Inteligncia)CIE Centro de Informaes do ExrcitoCIEx Centro de Informaes do ExrcitoCISA Centro de Informaes da AeronuticaCGI Comisso Geral de InvestigaoCJM Circunscrio Judiciria MilitarCNBB Conferncia Nacional dos Bispos do BrasilCPDOC Centro de Pesquisa e Documentao Histrica Contempornea do BrasilCPOR Centro de Preparao de Oficiais de ReservaCRM Conselho Regional de Medicina

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CRUSP Conjunto Residencial da Universidade de So PauloD. DomDCE Diretrio Central dos EstudantesDEC DecretoDEL Decreto-LeiDER Decreto ReservadoDERSA Desenvolvimento Rodovirio Sociedade AnnimaDETRAN Departamento Estadual de TrnsitoDNE Diretrio Nacional dos EstudantesDOI-CODI Destacamento de Operaes de Informaes Centro de Operaes deDefesa InternaDOPS Departamento de Ordem Poltica e SocialDSN Doutrina de Segurana NacionalDSV Departamento de Operao do Sistema VirioEBAP Escola Brasileira de Administrao PblicaFAB Fora Area BrasileiraFNFI Faculdade Nacional de FilosofiaGETAT Grupo Executivo das Terras do Araguaia-TocantinsHC Habeas CorpusHC Hospital das ClnicasIAB Instituto dos Advogados do BrasilIBRA Instituto Brasileiro de Reforma AgrriaINCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma AgrriaINSS Instituto Nacional do Seguro SocialIPM Inqurito Policial MilitarJUC Juventude Universitria CatlicaLSN Lei de Segurana NacionalMDB Movimento Democrtico BrasileiroMOLIPO Movimento de Libertao PopularMR-8 Movimento Revolucionrio Oito de OutubroNYT New York TimesOAB Ordem dos Advogados do BrasilOBAN Operao BandeiranteOEA Organizao dos Estados AmericanosONG Organizao No GovernamentalONU Organizao das Naes UnidasPCB Partido Comunista BrasileiroPDC Partido Democrata CristoPDS Partido Democrtico SocialPE Polcia do Exrcito

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PIC Peloto de Investigaes CriminaisPM Polcia MilitarPOC Partido Operrio ComunistaPOLOP Organizao Revolucionria Marxista Poltica OperriaPORRA Partido Operrio Revolucionrio Retado e ArmadoPRA Partido de Representao AcadmicaPRP Partido Republicano ProgressistaPSD Partido Social DemocrticoPSOL Partido Socialismo e LiberdadePSP Partido Social ProgressistaPT Partido dos TrabalhadoresPTB Partido Trabalhista BrasileiroPUC Pontifcia Universidade CatlicaRO Recurso OrdinrioSOPS Sees de Ordem Poltica e SocialSNI Servio Nacional de InformaesSTF Supremo Tribunal FederalSTJ Superior Tribunal de JustiaSTM Superior Tribunal MilitarTFP Tradio, Famlia e PropriedadeTJ Tribunal de JustiaTUCA Teatro da Universidade Catlica de So PauloUDN Unio Democrtica NacionalUEE Unio Estadual dos EstudantesUEG Universidade do Estado da GuanabaraUFE Unio Fronteiria de EstudantesUFJF Universidade Federal de Juiz de ForaUFRJ Universidade Federal do Rio de JaneiroUJC Unio da Juventude ComunistaUME Unio Metropolitana dos EstudantesUnB Universidade de BrasliaUNE Unio Nacional dos EstudantesUNESP Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquisa FilhoUnirio Universidade Federal do Estado do Rio de JaneiroURSS Unio das Repblicas Socialistas SoviticasUSP Universidade de So PauloV. VideVAR-Palmares Vanguarda Armada Revolucionria PalmaresVPR Vanguarda Popular Revolucionria

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APRESENTAO

O regime militar, instaurado pelo golpe de 1964, marcou-sepela contnua represso aos adversrios polticos do governo. Paraconferir legitimidade s aes persecutrias do Estado brasileiro deento, criou-se um robusto aparato jurdico, que sofreu constantes aper-feioamentos em prol do regime, sobretudo com a adoo do AI-5 em 13de dezembro de 1968 que, dentre outras medidas, suspendeu a garantiado habeas corpus para os casos de crimes polticos, contra a segurananacional, a ordem econmica e social e a economia popular.

Em meio a esse contexto, de regras cada vez mais voltadas desmobilizao de grupos polticos rivais e da sociedade civil em geral,muitos advogados e advogadas defenderam opositores polticos do regi-me militar que nominalmente vigeu no Brasil entre 1964 a 1985.

Esses profissionais do direito tinham a difcil misso de fazeruso do prprio aparato jurdico do regime militar nas defesas de seusclientes. As perguntas que guiaram a investigao resultante neste livroforam: em um cenrio jurdico de tal maneira desfavorvel, como osadvogados e advogadas faziam uso do direito para defender os interessesdos adversrios polticos do regime? Quais instrumentos jurdicos eramutilizados na ausncia do habeas corpus? Como manter-se na profissonuma rea da advocacia que parecia pouco rentvel e arriscada?

Zelo, probidade e independncia, valores fundamentais a que oadvogado deve se pautar, deveriam estar lado a lado de certa dose decriatividade e domnio das habilidades tcnicas. A edio dos Atos Insti-tucionais, Atos Complementares e Decretos Reservados (ou Secretos),cuja natureza normativa e contedo regulado eram novidade no meiojurdico brasileiro, requeria ainda mais agudez e ponderao por partedos advogados e advogadas. Relatar, nos ambientes forenses, as violn-cias e arbitrariedades cometidas contra os seus clientes, exigia firmeza e,acima de tudo, coragem.

A supresso do habeas corpus para crimes polticos pelo AI-5tornou a rotina desses profissionais mais dificultosa. Usado para afastar

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ilegalidades no cerceamento do direito de ir e vir, qualquer priso quefugisse dos parmetros legais no teria instrumento jurdico correspon-dente para coibi-la. Sem essa ferramenta, advogados e advogadas, se-gundo relatam as entrevistas, adotavam expedientes inominados que, sefuncionassem, levavam a resultados prticos semelhantes. Em suma:contornavam bices processuais de maneira inventiva, garantindo prote-o jurdica mesmo queles a quem as leis da ditadura militar mais que-riam perseguir do que proteger.

Ao mesmo tempo, enquanto o regime recrudescia, as leis torna-vam-se mais rgidas, as denncias de tortura e violncias ocorriam commais frequncia, e os advogados, nessas circunstncias, arriscavam-se asofrer represlias por defenderem clientes considerados subversivos.

Nesse contexto, as 34 entrevistas, que compem esta obra, dealguns dos principais advogados e advogadas que defenderam opositorespolticos durante o regime militar de 1964-1985, trazem relevantes con-tribuies construo desse recente captulo da histria nacional. Sorelatos de destemor e firmeza na defesa das prerrogativas dos advogadose dos direitos fundamentais de seus clientes. So, tambm, testemunhosde criatividade e destreza no manejo do direito favor da justia.

Por fim, esperamos que a leitura seja proveitosa, reveladora, eque instigue o leitor a pesquisar o tema com profundidade, de modo adesvelar outros aspectos acerca desse perodo que precisam ser descor-tinados. dessa maneira que se constri a histria do nosso Pas, seconsolida a democracia, e se descobre a verdade.

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PREFCIO

A memria como reparao.A Comisso de Anistia do Ministrio da Justia integra a es-

trutura do Estado brasileiro desde a aprovao de Lei 10.559/02, queregulamentou o art. 8 do Ato das Disposies Constitucionais Transit-rias da Constituio da Repblica de 1988.

Sua misso constitucional, portanto, a de promover polticaspblicas de reparao e memria em torno das violaes aos direitosfundamentais e sobre quaisquer atos de exceo praticadas entre 1946 e1988.

Trata-se de um espao institucional de superao da tica doesquecimento e do sigilo por uma cultura que valorize a transparncia ea verdade histrica.

Para alcanar estes propsitos foi preciso promover uma vira-da hermenutica no senso comum em torno do conceito de anistia. Se oregime autoritrio pretendeu utiliz-lo como mecanismo de esquecimentoe impunidade ou como um ato em que o Estado perdoava aos perse-guidos polticos que ele mesmo criminalizou pela Lei de Segurana Na-cional, por sua vez, na democracia a ideia de anistia ressignificada.

Na democracia, a anistia constitucional significa memria econhecimento dos fatos para que o Estado assuma a sua responsabilida-de pelo cometimento de graves violaes aos direitos humanos e cumprasua obrigao de reparar. Nestes termos, a anistia passa a significar oato pelo qual o Estado pede desculpas oficiais pelos erros que come-teu no passado a cada um dos ex-perseguidos, presos polticos e familia-res dos mortos e desaparecidos. A condio de anistiado poltico embuteo reconhecimento do legtimo direito de resistir contra a opresso.

A Comisso reuniu milhares de pginas de documentao ofi-cial sobre a represso e a resistncia no Brasil. So centenas de depoi-mentos escritos e orais documentados. O acervo da Comisso de Anistia um privilegiado fundo documental sobre a ditadura brasileira (1964-

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-1985), conjugando documentos oficiais com inmeros depoimentos eacervos agregados pelas vtimas. Esse acervo pouco a pouco disponi-bilizado a toda a sociedade por meio do Memorial da Anistia Poltica doBrasil, stio federal de memria e homenagem s vtimas, em construona cidade de Belo Horizonte.

A necessria reflexo sobre a importncia da no repetio dosatos de arbtrio insere a memria como a melhor arma humana contra abarbrie.

O exerccio da memria um ato de reparao nos marcos daJustia de Transio. Os projetos de memria so aes de reparaocoletiva e tm o claro objetivo de permitir a toda a sociedade conhecer,compreender e, ento, gerar conscincia crtica e condenao moralsobre tais erros.

Uma tica da memria tem sido forjada em um acelerado mo-vimento global desde o ps-guerra. Uma tica segundo a qual uma graveleso aos direitos de qualquer cidado singular ou a um grupo social torturas, genocdios, massacres, desaparecimentos forados, por exem-plo produzidas sistematicamente e independentemente de qualquerterritrio igualmente ofende a todos. Ignorar esses fatos equivaleria anos desumanizarmos.

Partindo destes pressupostos e, ainda buscando valorizar a lutadaqueles que resistiram, a Comisso de Anistia passou, a partir de 2008,a realizar sesses de apreciao pblica, em todo o territrio nacional,dos pedidos de anistia, de modo a tornar o passado e o conjunto de vio-laes acessveis a todos. As "Caravanas da Anistia romperam com osilncio e medo de discutir publicamente o passado e transferiram o tra-balho cotidiano da Comisso de Anistia das quatro paredes de mrmoredo Palcio da Justia para a praa pblica, para escolas e universida-des, associaes profissionais e sindicatos, bem como a todo e qualquerlocal onde perseguies ocorreram. Assim, passou a ativamente conscien-tizar as novas geraes, nascidas na democracia, da importncia de hojevivermos em um regime poltico livre, que deve e precisa ser continua-mente aprimorado.

O projeto Marcas da Memria, como um fundo de apoio siniciativas de memorializao produzidas pela sociedade civil, expandiuainda mais a poltica de reparao individual em um processo de reflexoe aprendizado coletivo, fomentando iniciativas locais, regionais e nacio-nais que permitam a emergncia de olhares plurais. Suas atividades com-pem audincias pblicas, projetos de histria oral, publicaes acadmi-cas, documentrios, publicaes, exposies artsticas e fotogrficas, pa-lestras musicais, restaurao de filmes, preservao de acervos, fixao delocais de memria, produes teatrais e materiais didticos.

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neste contexto que se publica este importante livro como umaparceria da Comisso de Anistia e das Escolas de Direito da FundaoGetulio Vargas. Ela retrata o importante papel da advocacia na proteodos cidados que se viam completamente desamparados pelo Estado queutilizou deliberadamente mecanismos institucionais para reprimir, per-seguir, ferir direitos fundamentais e conceder ao autoritarismo contornosde um regime de legalidade.

Diante de um Estado autoritrio legitimado por leis de exceo que utilizava o direito e suas ferramentas de forma a construir um aparatolegal racional-positivista em que se apoiavam as mais arbitrrias condutas corajosos advogados e advogadas, como se depreende dos relatados aolongo das diversas entrevistas deste livro, mostram como o tecnicismo dopoder constitudo de forma ilegal foi revertido, de maneira criativa, a fa-vor da proteo da integridade fsica dos perseguidos polticos.

A advocacia-arte, portanto, envolveu o conhecimento dos me-canismos legais empregados pelo regime de exceo para torn-los umaferramenta de combate prpria arbitrariedade do Estado. a a ple-nitude da advocacia para preservar o instituto do direito e da justiaameaado durante os anos de chumbo.

O trabalho exemplar destes advogados e advogadas est aquiretratado, entre outras razes, para deixar assentadas as escolhas quefizeram nos momentos mais difceis ao colocarem em risco suas prpriasvidas para salvar as alheias. Honraram seus diplomas e juramentos.

Da que a riqueza destes depoimentos reside no fato de noapenas retratarem o contexto poltico e social de uma importante pocada histria brasileira e da regio, mas tambm transparece as lutas eutopias daqueles juristas que foram protagonistas na defesa da resistn-cia s ditaduras, que demonstraram coerncia e firmeza em defesa dosdireitos humanos e da ordem constitucional de 1946 interrompida porum Golpe contra as instituies democrticas.

Aos que organizaram e trabalharam para este significativoprojeto somados aos que se dispuseram a compartilhar suas memriasfica um sincero agradecimento da Comisso de Anistia pelo engajamentoao movimento nacional pr-memria.

Para que no se esquea. Para que nunca mais acontea.

Paulo AbroPresidente da Comisso de Anistia

Secretrio Nacional de Justia

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SUMRIO

ADVOCACIA E RESISTNCIA: ESTRATGIAS JURDICAS DE DEFESADE PERSEGUIDOS POLTICOS EM MEIO LEGISLAO REPRESSIVADA DITADURA DE 1964 Paula Spieler e Rafael Mafei Rabelo Queiroz .................. 31

I Da Advocacia Resistncia: Os Advogados no Contexto da Oposio Ditadura Militar ............................................................................................... 32

II Do Limo Limonada: As Estratgias de Defesa em Meio LegislaoRepressiva ............................................................................................................... 40

ENTREVISTAS

ALCYONE VIEIRA PINTO BARRETO .................................................................... 49

AMADEU DE ALMEIDA WEINMANN .................................................................... 57

ANTNIO CARLOS DA GAMA BARANDIER........................................................ 78

ANTNIO DE PDUA BARROSO ............................................................................ 85

ANTNIO MODESTO DA SILVEIRA ...................................................................... 114

ARTHUR LAVIGNE .................................................................................................... 136

BELISRIO DOS SANTOS JUNIOR ......................................................................... 144

BORIS MARQUES DA TRINDADE........................................................................... 187

DYRCE DRACH ........................................................................................................... 220

ENY RAIMUNDO MOREIRA..................................................................................... 233

FERNANDO FRAGOSO .............................................................................................. 253

FLVIO FLORES DA CUNHA BIERRENBACH .................................................... 267

FLORA STROZENBERG ............................................................................................ 288

GEORGE FRANCISCO TAVARES ........................................................................... 297

HUMBERTO JANSEN MACHADO ........................................................................... 309

Paula Spieler e Rafael Mafei Rabelo Queiroz (Coords.)30

IDIBAL ALMEIDA PIVETTA..................................................................................... 322

ILDIO MOURA............................................................................................................ 358

JOS CARLOS DIAS ................................................................................................... 376

JOS MOURA ROCHA ............................................................................................... 401

LUIZ CARLOS SIGMARINGA SEIXAS ................................................................... 422

LUIZ EDUARDO GREENHALGH ............................................................................. 449

LUIZ OLAVO BAPTISTA ........................................................................................... 491

MANUEL DE JESUS SOARES.................................................................................... 518

MARCELLO CERQUEIRA ......................................................................................... 530

MARIA LUIZA FLORES DA CUNHA BIERRENBACH......................................... 540

MARIA REGINA PASQUALE .................................................................................... 564

MARIO DE PASSOS SIMAS ....................................................................................... 589

NLIO ROBERTO SEIDL MACHADO..................................................................... 637

NILO BATISTA............................................................................................................. 647

PEDRO EURICO DE BARROS E SILVA .................................................................. 660

REN ARIEL DOTTI ................................................................................................... 686

TALES CASTELO BRANCO ...................................................................................... 719

TCIO LINS E SILVA.................................................................................................. 749

VIRGLIO EGYDIO LOPES ENEI............................................................................. 773

GLOSSRIO.................................................................................................................. 809

1 Personalidades............................................................................................................... 809

2 Fatos ............................................................................................................................. 871

3 Dicionrio de Termos e Expresses Jurdicas Empregadas nas Entrevistas.................. 872

PRINCIPAIS LEIS DO PERODO DE EXCEO................................................... 873

LEIS COMPLEMENTARES........................................................................................ 908

Advocacia em Tempos Difceis: Ditadura Militar 1964-1985 31

ADVOCACIA E RESISTNCIA:ESTRATGIAS JURDICAS DE DEFESA

DE PERSEGUIDOS POLTICOS EMMEIO LEGISLAO REPRESSIVA

DA DITADURA DE 1964

Paula Spieler e Rafael Mafei Rabelo Queiroz

Qual foi o papel do advogado durante a ditadura militar no Brasil?Como eles defendiam presos polticos mesmo sem previso legal de ins-trumentos jurdicos? Esse livro trata sobre essas questes, mais especifi-camente sobre as estratgias utilizadas pelos advogados para defenderpresos polticos durante a ditadura militar1. Nosso principal objetivo relatar a experincia de cada advogado e as estratgias de defesa utilizadas.

Embora haja diversos trabalhos sobre o perodo da ditadura mi-litar, no h algum que trate de forma to detalhada sobre as contribui-es dos advogados no nvel nacional. Entrevistamos, assim, os advoga-dos e advogadas brasileiros que defenderam presos polticos nessa poca,do norte ao sul do pas. So eles: Alcyone Vieira Pinto Barreto, Amadeude Almeida Weinmann, Antnio Carlos da Gama Barandier, Antnio dePdua Barroso, Antnio Modesto da Silveira, Arthur Lavigne, Belisriodos Santos Junior, Boris Marques da Trindade, Dyrce Drach, Eny RaimundoMoreira, Fernando Fragoso, Flvio Flores da Cunha Bierrenbach, Flora

1 Para um estudo sobre a utilizao dos julgamentos polticos pelos militares como

forma de tentar legalizar a represso, veja: PEREIRA, Anthony. Political (In)Justice.Authoritarianism and the Rule of Law in Brazil, Chile, and Argentina. Pittsburgh:University of Pittsburg Press, 2005. Nesse livro, o autor almeja explicar, atravs deregistros histricos, como e por que os julgamentos polticos foram iniciados, manti-dos e abandonados durante as ditaduras militares no Brasil, Argentina e Chile. A ver-so em portugus deste livro foi publicada em 2010: PEREIRA, Anthony. Ditadura erepresso. So Paulo: Paz e Terra, 2010.

Paula Spieler e Rafael Mafei Rabelo Queiroz (Coords.)32

Strozenberg, George Tavares, Humberto Jansen Machado, Idibal AlmeidaPivetta, Ildio Moura, Jos Carlos Dias, Jos Moura Rocha, Luiz CarlosSigmaringa Seixas, Luiz Eduardo Greenhalgh, Luiz Olavo Baptista, Manuelde Jesus Soares, Marcello Cerqueira, Maria Luiza Flores da Cunha Bier-renbach, Maria Regina Pasquale, Mario de Passos Simas, Nlio RobertoSeidl Machado, Nilo Batista, Pedro Eurico de Barros e Silva, Ren ArielDotti, Tales Castelo Branco, Tcio Lins e Silva e Virgilio Egydio Lopes Enei.

Alm deles, Rosa Maria Cardoso teve papel fundamental nesseperodo, mas, em virtude de seu trabalho como membro da ComissoNacional da Verdade, no pde gravar entrevista. Ademais, no podera-mos deixar de registrar a importncia para essa luta de alguns advogadosque j faleceram: Aldo Lins e Silva, Antnio Evaristo de Moraes Filho,Augusto Sussekind de Moraes Rego, Bento Rubio, Eloar Guazzelli, HelenoCludio Fragoso, Hlio Henrique Pereira Navarro, Herclito Fontoura SobralPinto, Lino Machado, Lysaneas Maciel, Mrcia Albuquerque Ferreira,Miguel Aldrovando Aith, Osvaldo Mendona, Paulo Cavalcanti, PauloGoldrajch, Raimundo Pascoal Barbosa, Raul Lins e Silva, Ronilda MariaLima Noblat, Vivaldo Vasconcelos e Wanda Rita Othon Sidou.

Atravs das entrevistas, ficou claro que esse grupo pequeno deadvogados ia alm dos instrumentos legais para, em ltima anlise, salvarvidas: utilizaram muita criatividade e persistncia em suas defesas. Semreceber honorrios na maioria dos casos, eles eram movidos por senso dejustia e pela vontade de salvar pessoas que nem conheciam. Portanto,esses jovens advogados, que tinham na poca entre 25 e 35 anos, tmmuito a nos ensinar. As suas lies devem servir de exemplo para a socie-dade brasileira como um todo, e em especial queles que j nasceramnum pas democrtico, a fim de que saibam sobre o nosso passado e vigiemo nosso futuro.

I DA ADVOCACIA RESISTNCIA: OS ADVOGADOSNO CONTEXTO DA OPOSIO DITADURAMILITAR

Os advogados, como classe, no se opuseram, de incio e porprincpio, derrubada de Joo Goulart e ascenso dos militares ao po-der, considerando a posio de seu rgo mximo de representao na-cional. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, umasemana aps o Golpe, fez constar em ata de sua sesso deliberativa umanota de regozijo manobra militar, saudando-a como a erradicao do

Advocacia em Tempos Difceis: Ditadura Militar 1964-1985 33

mal das conjunturas comuno-sindicalistas, que permitiria a sobrevivn-cia da Nao Brasileira sob a gide intocvel do Estado de Direito 2.Como muitos outros grupos sociais, a reao da OAB Federal foi demuita cautela, com vis de otimismo, diante das incertezas polticas dasmudanas de ento.

A contaminao da classe com o esprito da luta pela redemo-cratizao, a ponto de levar a OAB definitivamente para as trincheiras daoposio ao regime militar, viria com mais fora a partir da fase de recru-descimento poltico, na era Costa e Silva. Vindo o AI-5 e sobretudo asondas de violncia estatal contra a imprensa e os prprios advogados, aOAB passou a adotar um tom de contraponto mais forte s iniciativas doregime. Viu-se que a violncia dos primeiros meses do governo militarno era passageira, como muitos esperavam; ao contrrio, seu vis era dealta, como tambm se perdia de vista a perspectiva de sua durao, nosecos da retrica governista da revoluo permanente que legitima a simesma e que se permitia utilizar da fora necessria para seguir emseu intento transformador. Quando Raimundo Faoro tornou-se presi-dente do Conselho Federal da OAB, em 1977, o rgo contaminou-se devez com o esprito da oposio e tornou-se um importante ator na lutapela redemocratizao, aliado a outras organizaes da sociedade civil.Embora em cenrios regionais a postura dos rgos de classe dos advo-gados possa ter sido diferente3, foi lenta a tomada de posio polticaantirregime no nvel federal.

Que fatores levaram a essa mudana de postura, da saudao espreita cautelosa, da aos protestos pontuais, e por fim oposio polti-ca? As entrevistas e fontes pesquisadas sugerem tratar-se de verdadeiromovimento bottom up: uma posio poltica construda a partir do posi-cionamento de advogados e advogadas que, a cada dia, sentiam-se maislimitados nas suas possibilidades de atuao profissional. Da veio a to-mada de posicionamento de suas entidades de classe em defesa de suasprerrogativas, muitas vezes a pedido desses advogados que, no dia a diados foros e Auditorias Militares eram diminudos ou obstaculizados noexerccio de sua profisso, quando no desrespeitados e at violentados.

Advogados e advogadas que fizeram frente ditadura envolve-ram-se nesse processo, em sua maior parte, como se envolvem em muitos

2 ORDEM dos Advogados do Brasil. Ata da 1115a sesso. 07/04/1964.3 Alguns entrevistados revelam que, em seus respectivos estados, a posio das sees

estaduais da Ordem dos Advogados teria sido de oposio desde o princpio. Taisassertivas sugerem possibilidades de variaes locais na posio classista dos advoga-dos, que teriam de ser investigadas documentalmente a fim de se verificar sua veraci-dade histrica.

Paula Spieler e Rafael Mafei Rabelo Queiroz (Coords.)34

outros: a partir de seus clientes e dos casos nos quais se envolvem profis-sionalmente. Advogados, especialmente os de atuao criminal, repre-sentam pessoas que esto em apuros perante as autoridades estatais, e osopositores polticos do regime, do comeo ao fim da ditadura militar,viram-se nessa condio perenemente. Havia, claro, razes de ordemmoral que os levavam a aceitar tais defesas, muitas vezes mal vistas poroutros colegas de profisso, mas tais razes eram variveis: uns poucosviam-se como causdicos orgnicos, ou seja, militantes da oposio queajudavam causa como podiam, e o podiam advogando; mas as entre-vistas mostram que a maioria, embora julgando-se do lado certo da cisopoltica da poca, tinha absoluta clareza de seus deveres ticos e profissio-nais em cada defesa de perseguido poltico, porque eram, afinal, advoga-dos, no militantes ao menos enquanto estivessem atuando na defesa deum constituinte seu. Assim, nem se misturavam na prtica de ilegalidadescometidas por seus clientes embora os defendessem intensamente con-tra a responsabilizao por esses mesmos atos , nem tampouco usavamde sua condio de relativa superioridade tcnica em face de seus consti-tuintes para praticar proselitismo jurdico. Quisesse o acusado expressarsuas convices subversivas perante o juiz da Auditoria Militar, indican-do por profisso revolucionrio4, que o fizesse. O advogado estava alipara aconselh-lo quanto s consequncias de sua deciso, e no paraimpedi-lo de agir segundo suas convices. Mesmo em processos de na-tureza poltica, seguiam sendo apenas advogados, enfim.

Se hoje se fala muito de judicializao da poltica, pode-se dizerque, nos anos do regime militar, o movimento contrrio ocorreu: a politi-zao da justia. Qualquer ordem poltica que venha em substituio auma ordem anterior, especialmente num contexto de ruptura institucional e no de uma transio negociada, como a que levou Constituio de1988 precisa construir sua legitimidade. Isso se faz tanto pela vincula-o do novo regime proteo e promoo de valores substantivos dealto apreo social, como a ditadura militar procurou fazer ao retratar-secomo defensora de nossas tradies cvicas e paladina do combate cor-rupo que ela s fez aumentar, como tambm pelo controle dos aparatosde poder poltico daquela sociedade, representados sobretudo pela buro-cracia estatal, que responde pelo corao e sistema sanguneo do sistemajurdico: do Estado e seus rgos o direito nasce, e por eles se espalha, seaplica e se faz valer. Quem controla o regular funcionamento da burocra- 4 Episdios nesse sentido so relatados, entre outros, nos depoimentos de Idibal Pivetta,

Nlio Machado, Maria Regina Pasquale e Belisrio dos Santos Junior. A auto-qualificao de revolucionrio foi feita pelo ento estudante Carlos Zarattini, pocadefendido por Idibal Pivetta.

Advocacia em Tempos Difceis: Ditadura Militar 1964-1985 35

cia estatal os rgos criadores e aplicadores do direito consegue im-por seu plano poltico com ares de normalidade, o que , por si s, umfator de sua legitimao; e como Raoul Van Caenegem diz, com simpli-cidade e preciso, quem controla o direito controla a sociedade 5. Poressa razo os militares avanaram, desde os primrdios do regime, no ssobre o Legislativo, mas tambm sobre o Judicirio. Por essa razo, ne-cessitaram sempre de bons juristas para fundamentar juridicamente seusatos de ditadura, pois por mais incompatveis que fossem com o Estadode Direito e a ordem constitucional vigente6; e tambm por isso procura-vam dar roupagem institucional s normas e rgos de represso, regula-mentando e burocratizando a perseguio poltica.

Ao faz-lo, porm, os militares sujeitavam a anlise de seus atos racionalidade jurdica, produto de uma cultura prpria e razoavelmentehermtica que muitas vezes imps revezes imprevistos ao governo. Bastalembrar-se da consistente atuao do STF, nos primeiros meses do gover-no militar, no sentido de impedir que os civis acusados de subverso fos-sem processados perante a Justia Militar, que pela Constituio entovigente (1946) guardava competncia apenas para casos de seguranaexterna, e no interna (art. 108, 1o). Com base nesse dispositivo, o STFconcedeu ordem de habeas corpus a um professor de Cincias Sociais doRio de Janeiro, ainda em 19647. Em 1965, retirou outro pedao da pre-tendida competncia da Justia Militar, no clebre caso Miguel Arraes,pela aplicao de dois princpios de direito processual que, para os juris-

5 CAENEGEM, Raoul van. Juzes, legisladores e Professores. Rio de Janeiro: Campus

Elsevier, 2010. p. 1-46.6 Trs exemplos ilustrativos: Francisco Campos e a defesa do Ato Institucional de 9 de

Abril de 1964 (em BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos polticos dahistria do Brasil, v. 7, p. 485); Carlos Medeiros Silva e a sustentao da constitu-cionalidade dos atos institucionais (A Constituio e os Atos Institucionais, Revistade Direito Administrativo, v. 121, p. 469-475, jul.-set. 1975; e Atos Institucionais eAtos Complementares, Revista de Direito Administrativo, v. 95, p. 282-289, jan.-mar. 1969); e Hely Lopes Meirelles e a justificao jurdica do AI-5, publicada diasaps a publicao do ato (Natureza e contedo do Ato Institucional 5, Revista dosTribunais, v. 57, n. 398, p. 419-423, 1968.

7 STF, HC 40.974, Rel. Min. Antonio Villas Boas, j. em 01.10.1964. A postura do STFfoi uma das razes pelas quais os militares viram-se obrigados, no AI-2, a mudar for-malmente a competncia da Justia Militar, que a partir de ento passou a incluir oscrimes contra a segurana nacional, e no mais externa. No plano doutrinrio-jurdico,a necessidade de caracterizar atos pontuais como conectados a contextos mais amplosde guerra subversiva, e portanto ofensivos segurana nacional, fez surgir a doutri-na da segurana integral, ao qual a Biblioteca Jurdica do Exrcito dedicou umamonografia: PESSOA, Mrio. Direito da Segurana Nacional. So Paulo: RT, 1971.

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tas, so comezinhos. Primeiro: a regra de determinao da competnciaprocessual pela funo do acusado (ratione personae) prevalece sobreaquela que estabelece competncia por matria (ratione materiae), deforma que mesmo nos crimes militares, o foro por prerrogativa de funo(foro privilegiado) deve ser observado. Segundo: a instruo criminal,isto , a fase de produo de provas e apurao da responsabilidade doacusado, estando preso o ru, no pode se prolongar excessivamente, poiso princpio do devido processo legal compreende um direito duraorazovel do processo. Miguel Arraes estava preso h um ano e 18 diasquando o STF mandou solt-lo8.

A deciso do STF, relatada pelo Ministro Evandro Lins e Silva,que seria cassado na esteira do AI-5, foi deliberadamente desobedecidapelos militares, gerando enorme atrito entre o Tribunal e o Executivo.Pouco tempo depois, outro membro da oposio pernambucana, o depu-tado comunista Francisco Julio, foi solto pelo Tribunal, que reformoudeciso anterior do Superior Tribunal Militar que negara seu pedido deliberdade9. A crise dos HCs levou a rusgas entre militares de alta patentee o presidente do STF, lvaro Ribeiro da Costa, udenista at ento vistocomo simptico ao movimento militar10. Ribeiro da Costa disse que osmilitares precisavam entender que, num regime democrtico, as ForasArmadas no eram mentoras da nao; Costa e Silva, ento Ministro daGuerra de Castello Branco, retrucou: o Exrcito no tem chefe. Noprecisa de lies do STF11.

Como era possvel que os advogados pudessem usar do sistemajurdico se os militares se pretendiam acima ou margem do STF, e porconseguinte de todo o sistema de justia? Para entend-lo, preciso terem mente que a lgica da imunidade militar, externada por Costa e Silva,concorria, dentro das Foras Armadas, com outra viso que se pode cha-mar de legalista. A viso de Costa e Silva engendrou e alimentou a ti-grada, apelido com o qual Delfim Netto12 designava aqueles que, nospores ou nas ruas, agiam como caadores de subversivos e contavamcom a impunidade de suas aes, confiando-se acima da lei e entendendoque no deviam obedincia a cdigos ou a juzes. A banda legalista, por 8 STF, HC 42.108, Rel. Min Evando Lins e Silva, j. em 19.04.1965.9 STF, HC 42.560, Rel. Min. Evandro Lins e Silva (p/o acrdo), j. em 27.09.1965.10 Para a posio de Ribeiro da Costa e um relato do episdio, v. SILVA, Evandro Lins.

Salo dos passos perdidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira / FGV, 1997. p. 381 e ss.11 Sobre a contenda entre militares e STF, v. GASPARI, Elio. A Ditadura Envergo-

nhada. So Paulo: Cia. das Letras, 2002. p. 271.12 GASPARI, op. cit., p. 345,

Advocacia em Tempos Difceis: Ditadura Militar 1964-1985 37

sua vez, tendia a um acatamento maior a regras, normas e procedimentos,o que se explica facilmente na mentalidade militar: regras so a base dahierarquia e da autoridade, elementos constitutivos da estrutural institu-cional das Foras Armadas13. O ethos usual de um militar o de respeitos regras, e no o de seu contorno ou violao.

Justamente porque na lgica oposta valia a fora, e no o direito,os rgos encarregados da burocracia jurisdicional militar tornaram-se,como disse Jos Carlos Dias em sua entrevista, uma espcie de enterrode luxo dos legalistas de alta patente quando a linha dura esteve nocontrole do governo. Quem cr na fora, mas despreza as normas, quercomandar tropas e no enfrentar a papelada do STM, mesmo com o statusde Ministro. Da resultou que a Justia Militar, a mais longa justia emfuncionamento na histria brasileira, teve seu rgo de cpula em boaparte preenchido por generais de mentalidade considerada liberal poralguns entrevistados, embora no por isso progressistas. Ainda que ahistoriografia mais recente tenha desmentido a tese de que o STM tenhasido complacente com acusados de crimes polticos14, os depoimentos demuitos entrevistados revelam que, embora a Justia Militar fosse excessi-vamente comprometida com o regime, ela era palco muitas vezes maisdigno para o exerccio da advocacia do que a Justia Comum: o advogadoera recebido adequadamente, no se lhe cassava a palavra e, no rara-mente, saa-se vitorioso quando fosse tecnicamente o caso em face dasleis repressivas da poca leis injustas podem ser aplicadas com justia,lembremo-nos15.

Segundo muitos advogados e advogadas entrevistados, tais vit-rias eram muitas vezes mais fceis de conseguir na Justia Militar do quena Justia Comum16. Como exemplo, Jos Carlos Dias cita que preparou 13 Sobre a relao entre militares, autoridade e sistema jurdico, remetemos ao depoi-

mento de Flvio Bierrenbach, que alm de uma pequena atuao como advogado deperseguidos polticos nos meses seguintes ao Golpe de 1964, foi indicado, no governode Fernando Henrique Cardoso, a Ministro do Superior Tribunal Militar. Confira-setambm sua obra Dois sculos de justia. So Paulo: Lettera.doc, 2010.

14 Cf. MOREIRA, Angela Domingues. Ditaduta e Justia Militar no Brasil: a atuaodo Superior Tribunal Militar (1964-1980). Tese (Doutorado) CPDOC/FGV. Rio deJaneiro, 2011.

15 HART, Herbert L. A. The concept of law. Oxford: OUP, 1994. p. 160.16 Ao comparar julgamentos polticos no Brasil, Argentina e Chile, Anthony Pereira con-

clui que somente no Brasil os advogados de presos polticos foram capazes de alterarsignificativamente interpretaes sobre as leis de segurana nacional. PEREIRA. Op.cit., p. 12. Ademais, o autor ressalta o ndice relativamente alto de absolvio dessesjulgamentos nos tribunais militares: 54%, de acordo com a sua amostra, e 48%, se-gundo outra fonte. Ibid., p. 77.

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uma representao ao STM quando soube que Idibal Pivetta havia sidopreso. Nessa representao, ele dava cincia sobre a priso e ressaltavaque seu nico motivo era o de que Idibal era advogado de preso poltico.Sem protocolar a representao, Jos Carlos Dias pediu a palavra assimque o presidente do STM abriu a sesso e, embora no estivesse inscrito,teve o aval para fazer a sustentao e, no final, lhe foi concedida a per-misso para protocolar a representao. Muito menos laudatrio foi oretrato pintado, nas entrevistas, da principal autoridade civil com quemtinham de lidar, o promotor de Justia Militar, especialmente no caso dosentrevistados paulistas.

A impossibilidade de uma relao, mesmo que burocrtica eprofissional, entre advogados e o sistema de justia da poca da ditaduravai se tornando mais aguda medida que crescem as tentativas de interfe-rncia do governo no s sobre as leis e a justia, mas sobre os prpriosadvogados e seus meios de profisso. O fechamento do cerco imprensaconstituiu uma importante pea desse quebra-cabeas. Embora houvesseescolas de jornalismo em funcionamento desde a dcada de 1940 noBrasil, foi apenas nas dcadas de 1960 e 1970 que o nmero de escolasaumentou expressivamente. Isso significa que durante a maior parte doregime militar, a classe dos jornalistas, assim tambm a dos escritores delivros e peas os profissionais do texto escrito em geral, enfim era emgrande parte formada de bacharis em direito, muitos dos quais tambmadvogados. Os que no eram advogados eram colegas de faculdade deadvogados. Havia, portanto, intensa relao profissional e pessoal entre aclasse dos advogados e a classe dos jornalistas. O recrudescimento e ageneralizao da represso imprensa eram, portanto, interferncia diretasobre as possibilidades profissionais e materiais de personagens egressosdo mundo jurdico, ou co-habitantes dos mundos do direito e das letras.Por a se entende o porqu de a OAB, sempre primeiramente ocupadacom a defesa dos advogados, ter tomado posio institucional aguerridacontra as investidas do governo em face da imprensa.

Os primeiros estranhamentos mostrados pela OAB diante daditadura foram classistas: ainda em 1964, o Conselho Federal da institui-o decidiu que seus filiados, cujos direitos polticos haviam sido cassa-dos pelo governo militar, no estavam impedidos de exercer a profisso17.A leva de prises de advogados e advogadas a partir de 1968 e a posturada OAB em repreenso a essas medidas, protestando publicamente, alian-do-se a outras instituies de representao como a Associao Brasi-

17 ORDEM dos Advogados do Brasil. Histria do Conselho Federal. Disponvel em:

. Acesso em: 01 ago. 2013.

Advocacia em Tempos Difceis: Ditadura Militar 1964-1985 39

leira de Imprensa e promovendo desagravos pblicos de seus filiadosofendidos nas suas prerrogativas profissionais, tambm levou a engaja-mentos maiores da instituio contra o regime. Aqui, eram sobretudo osadvogados criminalistas as maiores vtimas dos atos de represso ao re-gime militar, muitos dos quais entrevistados neste livro. Alguns dessesmesmos advogados, em outras oportunidades, foram os profissionaisdesignados pelas seccionais estaduais da OAB para atuar em favor deoutros colegas presos. Seus depoimentos mostram bem o sentido quetinha essa luta: combater o regime por convices polticas torna-se umarealidade s muito adiante na ditadura; em seus primeiros anos, a luta erasobretudo defensiva, buscando proteger a integridade dos advogados e aspossibilidades de sua atuao profissional.

A legislao repressiva, ao impedir a utilizao de habeas cor-pus ou o acesso do advogado a seu cliente, estrangulava no s a oposi-o do regime, mas a prpria profisso do advogado criminalista. Omesmo vale para invaso de escritrios ou interceptaes de telefonescomerciais e residenciais de advogados, relatadas por muitos dos entre-vistados. Na medida em que o advogado colocava-se em defesa do acu-sado de subverso poltica, oferecia-se como obstculo meta governistade total desarticulao da oposio civil e poltica ao regime. Era neces-srio enfraquecer a defesa para atingir o perseguido que ela defendia. Poressa lgica, advogados e advogadas sofreram violncias variadas, de pri-ses curtas a torturas fsicas, narradas nas pginas deste livro por quem asviveu.

curioso notar, e as entrevistas o mostram bem, as diferenasde violncia sofridas regionalmente, o que permite traar hipteses sobreas variaes regionais da represso aos advogados. O Rio de Janeiro tinhauma gerao de advogados gabaritados na defesa de acusados polticos,por fora da experincia do Tribunal de Segurana Nacional. Emboratambm ali tenha havido violncias praticadas contra advogados, comprises e invases a escritrios, esta parece ter ocorrido de forma distintaem So Paulo, onde a maior parte dos defensores era composta por jovensrecm-formados. Ao menos dois entrevistados paulistas relataram tersofrido espancamentos e choques em seus interrogatrios policiais, o queno apareceu em depoimentos de outras localidades. De toda sorte, ofenmeno de represso a advogados e advogadas defensores de acusadospolticos foi nacional e muito duro. Nesse cenrio adverso, eram necess-rias estratgias criativas, alm de coragem, para dar cumprimento mis-so confiada em procurao: defender, por todos os meios legais, os me-lhores interesses de seus clientes.

Paula Spieler e Rafael Mafei Rabelo Queiroz (Coords.)40

II DO LIMO LIMONADA: AS ESTRATGIAS DEDEFESA EM MEIO LEGISLAO REPRESSIVA

De acordo com o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro(GTNM-RJ), 1971 a 1973 foi o perodo com o maior nmero de desapa-recidos durante a ditadura militar18. Do total de 125 desaparecidos, 98desapareceram durante esses anos19. Esse dado coincide com o perodo demaior represso poltica, que ocorreu de 1969 a 1973, logo aps a ediodo AI-5.

O AI-5, de 13 de dezembro de 1968, extinguiu o habeas corpuspara crimes polticos, crimes contra a segurana nacional, a ordem eco-nmica e social e a economia popular20. Com ele teve incio um perodona histria do pas em que os civis, que foram presos por supostamenteterem cometido esses tipos de crimes, no tinham mais a garantia consti-tucional contra o constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoo.De acordo com artigo do Jornal do Brasil de 1971, a represso era umcorolrio da violncia terrorista: tratava-se do preo que precisvamospagar para que pudesse haver evoluo para a paz21.

A situao tornou-se ainda mais grave com a adoo, em marode 1969, do Decreto-Lei 510/69, que alterou alguns dispositivos da Lei deSegurana Nacional (Decreto-Lei 314/67). Dentre as alteraes, desta-que-se a possibilidade do indiciado ser mantido at dez dias incomunic-vel pelo encarregado do inqurito22. Ademais, o Decreto-Lei 510 au-

18 DARAJO, Maria Celina; SOARES, Glucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (Orgs.).

Os anos de chumbo: a memria militar sobre a represso. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994. p. 28.

19 Idem.20 Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968. Art. 10 - Fica suspensa a garan-

tia de habeas corpus, nos casos de crimes polticos, contra a segurana nacional, aordem econmica e social e a economia popular.

21 Limites da represso. Jornal do Brasil. 14.01.1971 apud PEREIRA, Anthony. Op.cit., p. 72.

22 Decreto-Lei 510, de 20 de maro de 1969. O art. 47 passa a ter a seguinte redao:Art. 47. Durante as investigaes policiais, o indiciado poder ser preso, pelo En-carregado do Inqurito, at trinta (30) dias, comunicando-se a priso autoridadejudiciria competente. Esse prazo poder ser prorrogado uma vez, mediante solicita-o fundamentada do Encarregado do Inqurito autoridade que o nomeou. 1 OEncarregado do Inqurito poder manter incomunicvel o indiciado at dez (10)dias, desde que a medida se torne necessria s averiguaes policiais militares.(grifou-se) De forma contrria, o Estatuto da OAB (Lei 4.215/63) previa o direito doadvogado de se comunicar com o seu cliente: Art. 89. So direitos do advogado:

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mentou as penas de alguns crimes, como o crime de formao ou manu-teno de associao que seja prejudicial segurana nacional. tambmem 1969, com a edio do AI-14, que a pena de morte passou a poder seraplicada em casos de guerra subversiva ou revolucionria23.

importante ressaltar que a partir de 1965, com a edio doAI-224, os civis que haviam supostamente cometidos crimes contra a se-gurana nacional passaram a ser julgados pela Justia Militar. Em marode 1967, com a adoo do Decreto-Lei 314, a segurana nacional passoua compreender a segurana interna e externa25. Sendo assim, qualquerameaa interna segurana nacional passou a ser julgada pela JustiaMilitar, que antes s poderia julgar civis pela prtica de crimes contra asegurana externa.

() III comunicar-se, pessoal e reservadamente, com os seus clientes, ainda quan-do estes se achem presos ou detidos em estabelecimento civil ou militar, mesmo inco-municveis;.

23 O AI-14 d nova redao ao 11, art. 150, da Constituio de 1967, que passou avigorar com a seguinte redao (o art. 150 trata dos direitos e garantias individuais):Art. 150. A Constituio assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes noPais a inviolabilidade dos direitos concernentes vida, liberdade, segurana e propriedade, nos termos seguintes: (...) 11 - No haver pena de morte, de prisoperptua, de banimento, ou confisco, salvo nos casos de guerra externa psicolgicaadversa, ou revolucionria ou subversiva nos termos que a lei determinar. Esta dis-por tambm, sobre o perdimento de bens por danos causados ao Errio, ou no casode enriquecimento ilcito no exerccio de cargo, funo ou emprego na AdministraoPblica, Direta ou Indireta. (grifou-se)

24 O AI-2 alterou o 1o, do art. 108, da Constituio de 1946, que passou a vigorar coma seguinte redao: Art. 108. A Justia Militar compete processar e julgar, nos cri-mes militares definidos em lei, os militares e as pessoas que lhes so, assemelhadas. 1 - Esse foro especial poder estender-se aos civis, nos casos expressos em lei pararepresso de crimes contra a segurana nacional ou as instituies militares (gri-fou-se). A redao antiga fazia aluso a crimes contra a segurana externa.

25 Decreto-Lei 314, de 13 de maro de 1967. Art. 3. A segurana nacional compreen-de, essencialmente, medidas destinadas preservao da segurana externa e inter-na, inclusive a preveno e represso da guerra psicolgica adversa e da guerra re-volucionria ou subversiva. 1 A segurana interna, integrada na segurana nacio-nal, diz respeito s ameaas ou presses antagnicas, de qualquer origem, forma ounatureza, que se manifestem ou produzam efeito no mbito interno do pas. 2 Aguerra psicolgica adversa o emprego da propaganda, da contrapropaganda e deaes nos campos poltico, econmico, psicossocial e militar, com a finalidade de in-fluenciar ou provocar opinies, emoes, atitudes e comportamentos de grupos es-trangeiros, inimigos, neutros ou amigos, contra a consecuo dos objetivos nacio-nais. 3 A guerra revolucionria o conflito interno, geralmente inspirado em umaideologia ou auxiliado do exterior, que visa conquista subversiva do poder pelocontrole progressivo da Nao.

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Em setembro de 1969 entrou em vigor a nova Lei de SeguranaNacional, Decreto-Lei 898/69. Essa lei manteve os dispositivos das leisanteriores e aumentou as penas de determinados crimes, como assalto ouroubo a bancos: a pena, que antes era de 2 a 6 anos, passou a ser de 10 a24 anos. Se deste ato resultasse morte, a pena mnima seria de prisoperptua e a mxima, pena de morte26. Trata-se da Lei de Segurana Na-cional que ficou mais tempo em vigor durante a ditadura militar, de se-tembro de 1969 a dezembro de 1978, quando foi editada uma lei maisbranda (Lei 6.620/ 78).

Assim, durante dez anos27, os advogados defenderam presospolticos sem poder utilizar legalmente o habeas corpus nos casos deconstrangimento ilegal, pois inexistia mecanismo legal para libertar apessoa que estivesse sofrendo constrangimento. Contudo, o habeas cor-pus foi extremamente importante nos casos de desaparecidos polticos.Apesar de extinto formalmente, alguns advogados e advogadas entrevis-tados afirmaram que o habeas corpus continuava a ser utilizado, com oprprio nome ou sob a denominao de petio. Outros ressaltam asubstituio do habeas corpus pelo recurso em sentido estrito, conformeser visto a seguir.

Especificamente em relao ao habeas corpus, esse foi utilizadocom o principal objetivo de evitar a morte da pessoa desaparecida. Issoporque, apesar de saberem que o habeas corpus no seria conhecido, asua impetrao demonstrava que eles estavam cientes do desapareci-mento de determinada pessoa e, assim, evitava ou reduzia muito a possi-bilidade de que ela fosse morta. Ademais, o habeas corpus tambm per-mitia em muitos casos a localizao do preso. A localizao dificultava oassassinato do preso, pois a autoridade competente, que j era identifica-da, teria que dar explicaes sobre a morte. O habeas corpus foi, assim,fundamental em vrios casos para salvar vidas.

Segundo Dyrce Drach, o habeas corpus era o mecanismo exis-tente para os militares saberem que aquela pessoa j tinha uma advoga-da e que ela estava acompanhando o desenrolar da situao. Contudo, ohabeas corpus no servia para localizar o preso. Para isso, Dyrce lem-

26 Decreto-Lei 898, de 29 de setembro de 1969. Art. 27. Assaltar, roubar ou depredar

estabelecimento de crdito ou financiamento, qualquer que seja a sua motivao:Pena: recluso, de 10 a 24 anos. Pargrafo nico. Se, da prtica do ato, resultarmorte: Pena: priso perptua, em grau mnimo, e morte, em grau mximo.

27 A emenda constitucional n. 11, promulgada por Geisel em 13 de outubro de 1978,suspendeu os Atos Institucionais. Essa emenda entrou em vigor em 1o de janeiro de1979, tendo como uma das medidas a volta do habeas corpus.

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bra que era necessria a ida de quartel em quartel procurando os desapa-recidos.

J George Tavares ressalta que o habeas corpus era utilizadoestrategicamente para encontrar o preso e saber se a priso era por motivopoltico. Apesar de o habeas corpus ter sido julgado prejudicado, elesacabavam localizando o preso. Nessa linha, Nlio Machado lembra queeles impetravam habeas corpus pois no era possvel saber de antemo sea pessoa era preso poltico ou no. Assim, comunicava-se o desapareci-mento a fim de obter informao sobre seu paradeiro.

Fernando Fragoso ressalta que o habeas corpus era utilizadonesse perodo para saber se uma pessoa estava ou no presa. Como eracomum que o investigador no comunicasse a priso do preso, Fernandolembra que impetrava o habeas corpus apontando todas as autoridadesmilitares da regio como possveis carcereiros. Essa estratgia fez comque, em muitos casos, os militares do I Exrcito, do Comando da Marinhaou da Aeronutica fossem forados a dizer se aquela pessoa estava detidaem suas instalaes. Trata-se, nas palavras de Antnio Carlos Barandier,de uso poltico do habeas corpus: o Tribunal solicitava informaes e,assim, agentes da represso prestavam os esclarecimentos e os advogadoslocalizavam o preso.

Nesse sentido, Nilo Batista lembra que indicava no habeas corpuso CENIMAR, o CISA, o DOI-CODI e o DOPS como autoridades coauto-ras. Para ele, o habeas corpus, nesse perodo, se converteu num macabroteste de sobrevivncia dos presos, pois a resposta positiva significavaque a pessoa estava viva, ao passo que uma resposta negativa era um mausinal a pessoa poderia j estar morta.

Manuel de Jesus Soares afirma que o habeas corpus era umimproviso. Como no havia mecanismo legal para encontrar o preso, ohabeas corpus acabava cumprindo esse papel, pressionando o STM aadotar uma postura mais enrgica. Atravs dele, quebrava-se a incomu-nicabilidade do preso, permitindo, assim, a adoo de outras medidaslegais para visitar e entrevistar o preso.

Modesto da Silveira ressalta que quando o advogado tinha umdado objetivo e concreto, o habeas corpus poderia ser suficiente. Contu-do, ele optava por adotar uma estratgia intermediria: ele ia ao respon-svel pela priso e dizia que certa pessoa estava presa naquele local. Emmuitas vezes, essa informao chegava a ele porque os presos gravavamnas celas seus codinomes. Modesto, assim, ao perguntar a outros presospor pessoas desaparecidas atravs de seus codinomes, conseguiu algumasvezes saber por onde seus clientes haviam passado.

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O habeas corpus tambm permitia a divulgao internacionaldas prises. Humberto Jansen Machado conta que j conseguiu noticiarinternacionalmente algumas prises. Ele lembra que tinha diversos car-tes de correspondentes de jornais estrangeiros e, assim, logo aps a lo-calizao do preso, noticiava as prises para jornais externos, incluindo oNew York Times e o Le Monde.

Outra estratgia utilizada pelos advogados era impetrar um ha-beas corpus simplesmente com o nome de petio. Tcio Lins e Silvalembra que eles inventaram um habeas corpus sem nome. Ao ser ques-tionado pela funcionria do protocolo, Tcio dizia que estava protocolan-do uma petio. Como ela afirmava que a petio precisava ter nome,ele pedia para colocar Petio n. 1. A petio, dirigida ao presidente doSTM, comunicava a priso ilegal de uma pessoa e solicitava informao.Em seguida, o juiz indeferia alegando que o habeas corpus havia sidoextinto. Tcio ento solicitava informao sobre o desaparecido e geral-mente voltava-se com a notcia de que a pessoa estava presa por ser peri-gosa. A partir da ela no seria mais morta, ou se fosse, o corpo teria queaparecer. A pssima notcia era quando Exrcito, Marinha e Aeronuticadiziam que o preso no estava com eles.

De acordo com Mario Simas, o advogado tinha que ser criativo.Era o que ele denominava de advocacia-arte. A petio, que comuni-cava a priso de uma pessoa, era dirigida ao presidente do STM. Ao rece-b-la, ele oficiava ao comando do I Exrcito (priso ocorrida no Rio deJaneiro) ou II Exrcito (priso ocorrida em So Paulo). O comandanteenviava uma resposta, dizendo se a pessoa estava ou no presa l. A res-posta negativa era um problema, pois poderia significar que a pessoa jestava morta. J a resposta positiva oficializava a priso, tornando maisdifcil que algo mais grave ocorresse com a pessoa. Assim, o objetivo dapetio era alcanado atravs da legalizao da priso. A partir de ento,tanto os familiares quanto os advogados poderiam visitar o preso. Aidentificao e a localizao do preso diminuam os riscos da tortura. Nomesmo sentido, Belisrio dos Santos Jnior lembra que os advogadoscomunicavam a priso de seu cliente ao presidente do STM, mas atravsda chamada representao.

Boris Trindade, por sua vez, conta que impetrava habeas corpusna Justia Comum inventando que seu cliente estava preso ilegalmente naSecretaria de Segurana Pblica por ter cometido determinado crime epedia informao. Em seguida, o delegado voltava com a informao,dizendo que a pessoa estava presa no DOPS, por exemplo. Embora tam-

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bm no prevista em lei, essa era a estratgia que utilizava para encontraro preso.

Ren Ariel Dotti lembra que, de acordo com o caso, utiliza ohabeas corpus ou o direito de petio. Para ele, o direito de petio eraaludido pelos advogados contra o abuso de autoridade. Assim, outra pos-sibilidade era, atravs da petio, solicitar a liberdade do preso, umavez que a priso no cumpria os prazos estipulados em lei. Conformerecorda Mario Simas, o juiz negava a ao dizendo que no havia habeascorpus. Em seguida, o advogado entrava com um recurso no STM, mas ojuiz escrevia embaixo dizendo que sua deciso no comportava recursopor falta de previsibilidade legal. Em seguida, o advogado entrava comuma correio, alegando que o juiz havia cometido um erro ao julgarimprocedente a ao. Nesse caso, o Tribunal conhecia da correio emandava subir o recurso em sentido estrito ao STM, recurso esse contra adeciso que denegou a liberdade. Tratava-se de um caminho difcil, masque s vezes permitia a soltura do preso.

No mesmo sentido, Jos Carlos Dias conta que entregou umapetio ao juiz auditor ao saber que um cliente havia sido removido dapriso Tiradentes para o DOI-CODI. Como seu cliente j havia sido tor-turado, a ideia de Jos Carlos Dias era transferir a responsabilidade para aAuditoria caso algo acontecesse com ele. Como o juiz riscou a parte quenarrava que seu cliente havia sido torturado, o advogado entrou com umarepresentao na OAB-SP e acabou sendo censurado por ter contado oocorrido.

Uma estratgia de Idibal Pivetta era entregar uma petio noDOI-CODI da Rua Tutia, em SP, onde afirmava que seu cliente haviadesaparecido e pedia providncias. Apesar de ficarem bastante irritados,os militares da guarita recebiam a petio. Em seguida, o oficial trazia umofcio que atestava que a pessoa estava presa. De acordo com o oficial, oDOI-CODI no tinha nada a ver com isso: tratava-se de ofcio enviadopelo II Exrcito. Essa ao evitou muitas mortes, pois demonstrava que oadvogado sabia que a pessoa estava sob a responsabilidade dos militares.

Outra possibilidade era, conforme afirma Eny Moreira, utilizaro recurso em sentido estrito em substituio ao habeas corpus. Tratava-sede recurso previsto no Cdigo de Processo Penal que era aplicado subsi-diariamente Lei de Segurana Nacional. Seu principal objetivo era de-limitar o tempo da priso e da incomunicabilidade que, por lei, nopoderia ultrapassar dez dias. Isso porque, apesar da exigncia de comuni-cao imediata da priso, o encarregado do inqurito muitas vezes demo-rava muito tempo para comunic-la.

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Verifica-se, assim, que os advogados e advogadas daquela po-ca utilizavam instrumentos no previstos em lei para localizar pessoasdesaparecidas. Uma vez encontrada a pessoa, o que se podia fazer paraimpedir que ela fosse torturada ou continuasse a ser torturada? pacficoentre os advogados e advogadas que no havia mecanismo algum quepudesse ser utilizado para impedir a tortura. O que se podia fazer eradenunciar a prtica de tortura. Assim, alguns advogados relataram casosde tortura em audincias, com a presena do torturado. Outros enviarampetio ao Tribunal ou ao Procurador Geral da Justia Militar. Contudo,uma vez presos, nada podia ser feito para cessar com esta prtica cruel.

Pelo exposto, constata-se que os advogados e advogadas quedefenderam presos polticos durante a ditadura militar foram imprescin-dveis para salvar inmeras vidas. Aplicando, nas palavras de AlcyoneBarretto, um direito alternativo, ou praticando a advocacia-arte, confor-me diz Mario Simas, os advogados e advogadas tiveram xito ao utilizarestratgias no previstas em lei para evitar diversas mortes. Nesse senti-do, os relatos a seguir so valiosos para que saibamos como foi o exerc-cio da advocacia num perodo de supresso de garantias fundamentais einstrumentos jurdicos, bem como para que no deixemos que a histriase repita.

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ENTREVISTAS

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Alcyone Vieira Pinto Barreto

Data e horrio da entrevista: 11 de julho de 2012, s 13:30 horasLocal da entrevista: escritrio do entrevistado, no Rio de Janeiro-RJEntrevistadora: Paula Spieler

Uma das informaes colhidas sobre o entrevistado pelos investigadores do DOPS/RJ. Odocumento pertence ao Arquivo do Estado do Rio de Janeiro.

Alcyone Vieira Pinto Barreto nasceu em 02 de julho de 1929,filho de Gumercindo Pinto Barreto e Odette Vieira Pinto Barreto. Con-cluiu a faculdade de Direito em 1956 pela Faculdade Nacional de Direito,atual Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desde jovem era engajadoem movimentos polticos, como a campanha O Petrleo nosso,

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Campanha da Paz e diversos movimentos estudantis. Atuou na defesade casos importantes, como os dos Sargentos de Braslia e da Associaodos Marinheiros dos Fuzileiros Navais do Brasil. Ainda, orientou a fam-lia de Flavio Carvalho Molina em uma ao criminal contra os militaresBrilhante Ustra, Miguel Zaninello, Arnaldo Siqueira, Renato Capellano eJos Henrique da Fonseca, em razo dos crimes de sequestro, homicdio efalsidade ideolgica praticados1. Alcyone Barreto faleceu em 19 deagosto de 2013, um ano aps ter concedido esta entrevista2.

Para comear, Doutor Alcyone, ns gostaramos de sabercomo foi a recepo do Golpe, o que o senhor fazia, como o senhorviu essa recepo, e como os advogados receberam o Golpe?

Em 1964, quando houve o movimento militar, que a gente hojepassado o tempo tem que verificar e concluir que realmente o movimentodas Foras Armadas tinha apoio da sociedade civil. O Golpe Militar entrouem vigor o Ato Institucional n 5, que foi um golpe dentro do golpe. Em1964 realmente o movimento teve o apoio da sociedade civil. Posterior-mente quando veio o AI-5 que a sociedade civil comeou a se afastar. Ea na poca, por exemplo, eu j estava comprometido porque eu era advo-gado dos sargentos de Braslia, em setembro de 1963, em Braslia estourouuma revolta dos sargentos. Eles foram presos e vieram para o Rio e euadvogava para eles, eram vrios clientes. E tambm eu era advogado daAssociao dos Marinheiros dos Fuzileiros Navais do Brasil. Ento, logoeu comecei a estender essa advocacia para os presos polticos, porque em1964 a priso recaa nos membros do partido comunista, nos lderes sindicaise nos subalternos do Exrcito, Marinha e Aeronutica. A classe mdia, naverdade, em 1964 no sofreu. Posteriormente com o Ato Institucional n 5 que essa classe comeou a tomar posio contrria ditadura militar.Teve muito jovem que ingressou na luta armada, eram vrias organizaesque acreditavam que a luta armada derrubaria a ditadura. A gente defendeuvrios participantes dessa luta armada tambm, muitos.

Onde o senhor se formou em Direito?Na Nacional de Direito, em 1956.

1 Para mais informaes, veja: . Acesso em 31 jan 2013.2 O IAB publicou nota de pesar acerca de seu falecimento, em: . Acesso em: 28 ago 2013.

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E o senhor tinha atuao poltica?Tinha alguma. Desde muito jovem eu participei das campanhas

polticas, o Petrleo nosso, Campanha da Paz, movimento estudantil.Eu sempre participei.

E como os casos chegavam at o senhor? Quem o procurava?Isso era normalmente, como, na poca eu no era um causdico

desconhecido, eu era procurado. Muitos advogados no queriam atuarnessa rea. Aqui no Rio podemos dizer que eram mais ou menos uns 12advogados. O Lino Machado, que era o pai do Nlio, tinha uma frase,dizia que aqui tinha um time de futebol, brincava que era uma seleo. Eeram mais ou menos 12, 13 ou 14, mas no chegava a 20 os advogadosque realmente participaram das defesas dos acusados da prtica de crimepoltico.

E as aes geralmente eram em conjunto?De um modo geral os processos tinham vrios denunciados no

mesmo processo, ento funcionavam vrios advogados. E a gente tinhacontato sempre, muito contato. Os advogados dessa rea que participa-vam da defesa dos perseguidos polticos, todos se davam muito bem,ramos como se fssemos irmos. A gente combinava as defesas, a gentetinha um dilogo muito amigvel, muito amplo, muito fraternal.

O senhor lembra mais ou menos de quantos casos de presospolticos o senhor defendeu?

Era muita gente, s vezes tinha uns 10 num processo. No casodos marinheiros eram muitos os denunciados. O Anselmo do motim dosmarinheiros foi por mim defendido. Ento era uma clientela de soldados,sargentos a coronel, general, almirante. Eram muitos os clientes. E agente ia defendendo.

Tem algum caso que foi considerado mais emblemtico parao senhor?

Tem vrios casos emblemticos, tem um que mexeu muito co-migo na poca que era um primo meu que foi preso, Irum Santana, e elesofreu muito. Quando eu fui visit-lo eu encontrei praticamente um trapohumano. Isso me causou uma emoo muito grande. Depois eu acompa-nhei o processo e o defendi, mas foi a causa que mais mexeu comigo doponto de vista emocional. Todo processo era como se fosse uma batalha

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que a gente entrava e s vezes ganhava e s vezes perdia. No era fcilabsolver estudantes, militares que tinham sido cassados e estavam sendoprocessados, civis tambm. Eu defendi um colega de Minas Gerais, DimasPerrin, tambm foi muito torturado. No dia da defesa dele combinamos,por ele ser advogado, comear a fazer a defesa, oportunidade em quedescreveu a tortura sofrida, algo indescritvel. Emocionou todo mundo,inclusive eu, quando comecei a falar estava com a voz embargada, quasechorando, eu falei depois dele.

Perrin foi absolvido por unanimidade. Ele era advogado de sin-dicatos, advogado trabalhista de muito prestgio em Belo Horizonte, ondeele morava. Cada caso deixava umas marcas na gente. Eu, por exemplo,acho que era uma espcie de autodefesa, era um certo medo de poder serpreso, ento eu tinha um processo de esquecimento de nome, de tudo.Acho que eu fazia inconscientemente, propositadamente, que era para, seacontecesse alguma coisa comigo, eu no ter conhecimento, no lembrare no falar nada. Em 1964 o meu escritrio foi invadido, eu inclusive fuiembora, me exilei, fiquei 60 dias exilado, fui para o Paraguai e depoispara Argentina e logo depois que acabou o inqurito da Marinha, que eutinha muito receio, por no estar indiciado, voltei. Ns ramos poucosadvogados. Talvez o advogado que tenha tido mais clientes seja o Modesto,talvez no, certo que foi o Modesto, o que mais atuou.

Como era atuar na Justia Militar?Teve duas fases. Uma fase que, por exemplo, havia o habeas

corpus. Depois no tinha mais habeas corpus. A que a gente fazia umacoisa interessante. Quem era preso com base na Lei de Segurana nocabia habeas corpus, ento impetrvamos um habeas corpus indicandoonde a pessoa estava presa e dizia se por acaso a priso for com base naLei de Segurana Nacional, ento que receba esse habeas corpus nocomo habeas corpus, mas como representao, para quebrar a incomu-nicabilidade. Depois veio a ser chamado de direito alternativo, a gentearrumava um jeito na legislao para facilitar os clientes, os presos.

Essa representao era para que? Era na Auditoria?Era, no STM geralmente. Chegava para a autoridade carcerria

quebrando a incomunicabilidade. E a acabava a tortura, mas semprelevava um tempo porque o advogado distribui a petio de HC, a mesmaera distribuda para um relator, o qual solicitava fossem prestadas as in-formaes pela autoridade carcerria e depois eram julgados.

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E quando o senhor sabia que algum preso estava sendo tor-turado, havia algo a ser feito?

O jeito era quebrar a incomunicabilidade, porque enquanto eleestava incomunicvel o advogado no podia ter qualquer contato. Sabiapor comentrio. Por exemplo, uma vez eu fui procurado pelo pai de umrapaz e ele me disse o seguinte, que o filho dele estava preso incomuni-cvel. E ele tinha um irmo coronel do Exrcito, falou com o irmo e eledisse que estava preso em Braslia, algo relativo ao Araguaia3, e, por fa-vor, no perguntasse mais nada, ele no queria se meter nisso.

Eu fui para Braslia, tinha uma audincia l. Eu conversei comos presos e perguntei se essa pessoa l estava presa, e eles me disseramque no sabiam o nome, mas tinha um preso que estava isolado, no po-dendo falar com ningum e que sabiam que tal preso fora trazido doAraguaia. Bom, eu fui l onde ele estava preso. Quando eu cheguei, disseque queria falar com o preso, que eu era advogado, e a pessoa que meatendeu, o Oficial do Dia afirmou que para contatar com aquele preso euprecisava de uma autorizao por escrito do Servio Secreto. Ele me deuo endereo e eu fui. Cheguei l e fui atendido por um oficial da Marinha.Ele disse que no tinha ningum preso com esse nome. Eu disse o se-nhor me desculpe, mas eu uso a franqueza com o senhor, eu quero que osenhor use comigo o mesmo, a gente est em campos opostos, o senhor carcereiro e eu sou advogado e quero conversar com meu cliente.

Se ele no tivesse preso l, no me diriam que eu s poderiaconversar com autorizao por escrito daqui. O cara irritado disse que eleerrou, que no tinha ningum com esse nome, que no teria autorizaonenhuma. Eu fui embora, mas logo depois o soltaram.

Posteriormente, tal preso me contou a histria. O pessoal l doAraguaia, milicos, comearam a atirar e matar o pessoal do grupo dele, eele caiu no cho e fingiu-se de morto. Depois que viram que ele no esta-va morto, faltou aquela coragem de dar o tiro na cara. Ele me disse queescapou por isso. Depois que eu fui a Braslia e tentei falar com tal preso,o mesmo foi solto. No que se refere guerrilha do Araguaia, as ForasArmadas tinham uma preocupao muito grande que era de no deixarque se soubesse da existncia da guerrilha. Esse caso mexeu muito comigoporque se eu no tivesse ido l no teriam soltado ele. Soltaram porqueentenderam que estavam comeando a se saber da guerrilha do Araguaia.

3 A Guerrilha do Araguaia ocorreu entre 1972 e 1975, apesar de ter sido planejada em

1966. Foi um movimento armado desenvolvido pelo Partido Comunista do Brasil,tendo como objetivo a derrubada do regime militar para desencadear a revoluo so-cialista no Brasil. Mais informaes em: . Acesso em: 31 jan 2013.

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Como eram as decises dadas pelos juzes, tanto das Audi-torias militares quanto do STM?

A Justia Militar sofria certamente uma presso muito grandedas Foras Armadas, mas de cer