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1 In: Arqueologia da Sociedade Moderna na América do Sul. A.Zarankin e M.X.Senatore (org.). Ed. del tridente, 2002. Entre senzalas e quilombos: “comunidades do mato” em Vassouras do oitocentos* Camilla Agostini ** Este estudo propõe abordar a constituição de comunidades negras entre africanos e afrodescendentes na experiência do cativeiro rural sul-fluminense do século XIX, fazendo uma releitura do que a historiografia norte-americana da década de 1970 convencionou chamar de “comunidades escravas” (Genovese, 1974; Gutman, 1976; Blassingame, 1979). Para abordar o processo de constituição de comunidades escravas procuro concebê-las não a partir de instituições fundamentais ligadas à família e à religião, mas a partir de laços de amizade e vizinhança, das experiências da mobilidade e da violência, de tensões e conflitos inerentes a um organismo vivo e em formação. A escolha por esta abordagem se fundamenta na noção de redes de sociabilidade e fluxos de idéias dinamizadas nestas redes, como princípios estruturais que viabilizam o estudo da mudança social e cultural. Isto é, um estudo da experiência cotidiana do cativeiro afrobrasileiro na formação das chamadas comunidades escravas no Vale do Paraíba sul-fluminense; do processo de socialização de africanos e afrobrasileiros numa sociedade escravista e entre estes e a sociedade mais ampla. O contexto da região de Vassouras, no Vale do Paraíba sul-fluminense, no século XIX, é particularmente interessante para o estudo de um primeiro momento de socialização e negociação de diferenças etno-culturais entre africanos na formação de comunidades escravas. Com uma densidade demográfica relativamente baixa de escravos até o segundo quartel do século XIX, a região recebeu, logo a seguir, um grande número de cativos recém-chegados do continente africano que passaram a ocupar as senzalas das fazendas que investiam calorosamente no plantio do café.

AGOSTINI, Camilla. Entre Senzalas e Quilombos

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    In: Arqueologia da Sociedade Moderna na Amrica do Sul. A.Zarankin e M.X.Senatore (org.). Ed. del tridente, 2002.

    Entre senzalas e quilombos: comunidades do mato em Vassouras do oitocentos*

    Camilla Agostini**

    Este estudo prope abordar a constituio de comunidades negras entre africanos e afrodescendentes na experincia do cativeiro rural sul-fluminense do sculo XIX, fazendo uma releitura do que a historiografia norte-americana da dcada de 1970 convencionou chamar de comunidades escravas (Genovese, 1974; Gutman, 1976; Blassingame, 1979).

    Para abordar o processo de constituio de comunidades escravas procuro conceb-las

    no a partir de instituies fundamentais ligadas famlia e religio, mas a partir de laos de amizade e vizinhana, das experincias da mobilidade e da violncia, de tenses e conflitos inerentes a um organismo vivo e em formao. A escolha por esta abordagem se fundamenta na noo de redes de sociabilidade e fluxos de idias dinamizadas nestas redes, como princpios estruturais que viabilizam o estudo da mudana social e cultural. Isto , um estudo da experincia cotidiana do cativeiro afrobrasileiro na formao das chamadas comunidades escravas no Vale do Paraba sul-fluminense; do processo de socializao de africanos e afrobrasileiros numa sociedade escravista e entre estes e a sociedade mais ampla.

    O contexto da regio de Vassouras, no Vale do Paraba sul-fluminense, no sculo XIX,

    particularmente interessante para o estudo de um primeiro momento de socializao e negociao de diferenas etno-culturais entre africanos na formao de comunidades escravas. Com uma densidade demogrfica relativamente baixa de escravos at o segundo quartel do sculo XIX, a regio recebeu, logo a seguir, um grande nmero de cativos recm-chegados do continente africano que passaram a ocupar as senzalas das fazendas que investiam calorosamente no plantio do caf.

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    Pode-se supor que com a implantao da cafeicultura na regio e a chegada de milhares de cativos, especialmente da frica Central, teria evidenciado-se um processo inicial de construo e resignificao de identidades entre africanos e entre estes e a sociedade local. Neste sentido, trata-se de um contexto de gestao de parmetros de sociabilidade entre cativos e de interao de diferentes cdigos culturais. claro que este processo de constituio de comunidades de cativos no foi resultado de uma gestao autnoma e isolada do escravismo em outras regies. O estudo de redes sociais, neste sentido, permite uma viso que inter-relaciona vizinhanas e regies, extrapolando as fronteiras interprovinciais, ao considerar os diversos fluxos humanos, materiais e ideais que circulavam pelas principais vias de comunicao.

    Venho desenvolvendo este estudo em uma pesquisa na qual procuro centrar a ateno na interao e integrao entre as chamadas comunidades escravas e o que Hebe Matos chamou de comunidades de lavradores de roa (Mattos, 1995). Isto , entre a populao africana e afrodescendente, majoritariamente cativa e a populao livre e pobre, majoritariamente luso-brasileira.

    A abordagem de redes de sociabilidade que integram estes mundos permite enfocar a sociedade de forma abrangente, atravs de uma perspectiva relacional, de interao entre diferentes personagens na sua prtica social. O foco nas fronteiras que so dinamizadas no entre mundos permite abordar tenses sociais e a construo de identidades na experincia cotidiana destes personagens.

    A referncia no ttulo comunidades do mato , assim, uma sugesto sobre a

    possibilidade de inferncia espaos de liminaridade no contexto da escravido. O objeto em estudo que ser tratado nesta comunicao so reas de culto na floresta, entorno das quais se constituam pequenas comunidades, inferidas a partir de um vestgio arqueolgico e do relato de um viajante. Trata-se de abordar um espao social intermedirio entre as comunidades das senzalas e as comunidades quilombolas. Vale ressaltar que a concepo destas comunidades tm um sentido abstrato, quase metafrico, concebidas a partir de objetivos analticos, mas que no deixa de expressar aspectos da realidade.3

    Apresentarei a seguir o relato dos referidos vestgios (arqueolgico e literrio sobre

    reas de culto nas matas) e os significados que eles suscitam dentro de seus contextos scio-culturais. A seguir, ser feita uma reflexo sobre estas evidncias, em dilogo com estudos recentes sobre a experincia africana no sudeste brasileiro e o reconhecimento de uma gramtica cultural profunda entre centro-africanos no cativeiro do sudeste oitocentista.

    Vamos primeira evidncia que informada por vestgios arqueolgicos, botnicos e por

    relatos orais, conhecida como a Pedra de Joo Moleque, localizada nas matas da fazenda do

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    Galo Vermelho, nas proximidades da cidade de Vassouras. Vale ressaltar que as informaes que disponho, no momento, no provm de uma pesquisa arqueolgica sistemtica, mas do reconhecimento do stio e de um primeiro levantamento de informaes orais e botnicas que dever ser aprofundado com o proseguimento da pesquisa (no foram feitas escavaes nem prospeces, seno uma avaliao de superfcie, sem que fossem coletados materiais).4

    No local chamado Pedra de Joo Molque, que se encontra a cerca de 1,5 km da antiga

    sede da fazenda, podem ser encontradas grandes pedras que esto dispostas em forma de crculo (aproximadamente), tendo uma outra pedra redonda no interior deste crculo que, a primeira vista, sugere um altar. Este espao no muito grande. O dimetro do espao interno no chega a seis metros, considerando ainda que a pedra no interior da rea circular tem pouco mais de um metro e meio de dimetro. Em uma das rochas est fixada uma pequena placa de Bronze, com a inscrio:

    Pena Preta e

    Joo Moleque 9 7 1938

    Em toda rea no entorno das pedras pode-se encontrar inmeras epcies vegetais com propriedades medicinais e venenosas, alm de inmeras espcies prprias para o consumo alimentar, como bananeiras de diferentes espcies, ps de mandioca, inhame, inhame gigante, entre outras. H ainda a referncia de uma rea onde havia uma plantao de feijo, prxima ao local onde haveria cerca de oito casas de pau a pique que, aparentemente, no deixaram vestgios superficiais.

    As informaes orais que obtive provm de seis moradores de Vassouras que conhecem o

    local da Pedra. Farei apenas uma breve sntese dos relatos, indicando os indcios que informam sobre Joo Moleque, sobre a rea de culto e a comunidade que vivia ali.

    Joo Moleque, segundo o guia que nos levou at o local, teria sido um homem

    conhecedor de ervas e muita gente ia at ali procura de cura. H tambm referncias de encontros coletivos no local, com mulheres vestidas de branco e a presena de um caboclo (entidade). Pelas descries e mesmo pela designao dada pelos moradores, a Pedra de Joo Moleque seria um local de culto umbandista. Ao que parece, hoje no so mais realizados cultos

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    no local e a mata j toma a rea das rochas. No entanto, h indcios de que o local continua sendo visitado, por vestgios de velas e de oferendas deixados ali. Uma das netas de Joo Moleque, dona Zil, disse que por vezes vai ao local para fazer rezas e prestar homenagens.

    Segundo ela, a placa de bronze em uma das pedras teria sido colocada quando seu av

    morreu, sendo, portanto, o ano de 1938, a data do seu falecimento. Ela nos informou ainda que seu av teria morrido com cerca de sessenta anos de idade, o que indica que Joo Moleque teria nascido no incio da dcada de 1880. Contudo, pela a idade de ex-moradores do local que dizem t-lo conhecido esta no poderia ser a data de seu falecimento. O que podemos dizer, pelo registro da placa, que pelo menos na dcada de 1930 aquele espao deveria estar servindo como um ponto de referncia de JM. Um estudo sistemtico e ampliado dos relatos de antigos moradores dever melhor esclarecer o tempo da ocupao social e religiosa do local.

    Yvone Maggie, em seu estudo sobre cultos afro-brasileiros no Rio, refere-se

    bibliografia sociolgica para localizar na dcada de 1920 o momento de institucionalizao da Umbanda no Rio. A idia de um momento de institucionalizao desta prtica religiosa nas primeiras dcadas do sculo XX, contudo, ganha uma outra dimenso a partir de trabalhos desenvolvidos pela historiografia que investigam prticas religiosas afro-brasileiras no perodo escravista (Sampaio, 2000; Slenes, indito). Retornarei a esta questo mais adiante, indicando de que forma a Pedra de Joo Moleque pode oferecer um estudo no apenas sobre prticas religiosas e medicinais afro-brasileiras do incio do sculo XX, mas tambm apontar caminhos interessantes para pens-las ainda em contextos do sculo XIX, quando africanos agenciavam suas vidas no cativeiro.

    Sobre a riqueza da vegetao em termos de recursos medicinais e alimentares, o guia que

    nos acompanhou chegou a dizer que aquele local alimentou por muito tempo o Grecco, um bairro de periferia de Vassouras. Isto , as pessoas da periferia da cidade iam at l buscar gneros alimentceos para o seu sustento. Um celeiro natural ? No exatamente. Na verdade, resultado da produo de uma comunidade de pequenos sitiantes que viviam no entorno da Pedra de Joo Moleque.

    A neta de JM, que se diz Kardecista de forma muito enftica, nega que aquele lugar era

    um espao onde se realizavam celebraes religiosas, afirmando que ali era onde Joo Moleque era procurado pelos seus dons de cura, aprendidos com um antigo lder indgena do local que teria lhe aparecido em viso: o Pena Preta referido na placa de bronze que foi afixada em uma das rochas.

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    Quando lhe perguntei uma segunda vez sobre pessoas que iam l para praticar cultos, ela acabou dizendo que vai gente l fazer macumba. Sobre os antigos moradores do local, diz no conhec-los, embora afirme tratar-se de gente escura.

    Seu Wilson e dona Maria, ex-moradores do local, ambos negros, que atualmente

    residem na cidade de Vassouras, da mesma forma, no entram em pormenores ao tratar dos descendentes de Joo Moleque, que so pessoas com as quais eles no tm qualquer relao, nem nunca tiveram. Reconhecem, contudo, o dom de cura de Joo Moleque, e aquele espao como local de encontros de cultos umbandistas. Reconhecem tambm as prticas de plantio na mata e de como costumavam viver de forma semelhante em Cachoeira de Macacu, no norte-fluminense, antes de virem para Vassouras.

    Os diferentes relatos sobre Joo Moleque e sobre a vida naquele lugar no convergem em

    todos os sentidos, mas no discordam sobre o ponto de interesse deste trabalho. Isto , se apresentam verses diferentes sobre a sua histria, todos confirmam a relao da prtica scio-religiosa deste lder espiritual com aquele local,5 assim como a existncia de uma pequena comunidade contempornea que vivia da sua produo nos arredores da Pedra.

    Deixemos por um instante a Pedra de Joo Moleque, Vassouras e o sculo XX, e

    peguemos uma carona no passeio de viajantes que passaram pelo sudeste escravista no sculo XIX. Naturalistas, sedentos por coletar e retratar bromlias, flores, pssaros, peixes e paisagens inteiras, assim como especimes humanos e seus costumes nos trpicos. A prtica destes naturalistas os levava a percorrer grandes distncias, procurando lugares inusitados e curiosos que satisfizessem seu olhar imperialista, como diria Mary L. Pratt.

    Instigada pelas evidncias associadas PJM, comecei a procurar descries das

    caminhadas destes viajantes em florestas, procura de relatos sobre peculiaridades da atuao humana nas matas, e sobre a construo de espaos por africanos e afrodescendentes no sculo XIX.

    notria a relao intrnseca entre religiosidade e natureza nos cultos e prticas religiosas afrobrasileiros. Robert Slenes, desenvolvendo um estudo sobre o reconhecimento no Brasil de uma gramtica cultural profunda comum a diferentes populaes etno-lingsticas da frica Central, aborda as relaes entre o mundo sobrenatural e a natureza material como princpios fundamentais numa cosmo viso centro-africana herdada por cativos transportados para o Brasil no sculo XIX (Slenes, 1995).

    A concepo desta gramtica profunda dialoga com estudos africanistas sobre a experincia africana na frica e no Brasil. Nesta concepo, a cultura vista em termos de

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    paradigmas, ou, nas palavras do autor, pressupostos bsicos que subjazem s idias e prticas nas esferas da religio e da famlia (Slenes, 1999). Isto , disposies estruturais de percepo e prtica, de cognio e motivao que permitem abordar a reproduo e a transformao cultural da sociedade. Esta noo se aproxima ao que Bourdieu convencionou chamar habitus. Isto , princpios de gerao e estruturao de prticas e representaes que podem ser objetivamente reguladas e regular determinado ambiente social (apud. Jones, 1997). No trata-se, portanto, da obedincia regras e normas, mas de um sistema de preferncias que disciplina a ao prtica, o que implica na possibilidade de enfocar ideologia e experincia cotidiana; o ideal e o material de forma associada.

    No que se refere relao entre o mundo da natureza e o mundo dos espritos, Slenes

    apresenta a associao de espritos que residem nas guas com formaes rochosas de grandes dimenses ou com formas peculiares que pode-se encontrar em diferentes populaes etno-lingsticas centro-africanas. Esta noo ligada outros princpios gramaticais explica as propriedades mgicas atribudas guas profundas, montanhas, rochas peculiares/de aspecto extico, crregos, quedas dagua e grutas (Slenes, 2001).

    Considerando a possibilidade de inferir sobre esta gramtica na experincia de africanos e

    afrodescendentes na dispora, me perguntava se nas incurses naturalistas em busca de bromlias, pssaros e o que mais deveria ser embarcado para os museus e centros de pesquisa da Europa, eles no teriam encontrado e comentado sobre espaos de culto na mata, a exemplo da PJM.6

    Na medida em que no encontrava os relatos, alm das descries de vegetais e paisagens naturais, me perguntava se seus guias os levariam espaos como estes, uma vez que estes viajantes dificilmente adentravam a mata densa sem um guia experiente do local. Contudo, acompanhando a viagem que Saint Hilaire fez, em 1822, quando ele havia recm passado pela regio de Valena e circulava pelo sul de Minas, tive uma grande surpresa. O Viajante, interessado em fazer incurses nas matas da Fazenda do Tanque, na Serra de Ibitipoca, foi guiado por duas crianas da referida fazenda num passeio que passo a comentar.7

    O relato de Saint-Hilaire sobre as proximidades de uma fazenda no sul de Minas, no

    incio do sculo XIX, conta sobre uma rea de relevncia religiosa em meio floresta, associada a uma formao rochosa na beira de um rio. Nas palavras do viajante:

    Um rochedo ... de cor ebranquiada ... [que] lembra uma, e bastante, a figura de um eremita embuado no hbito, segurando um livro. Dele fizeram um Santo Antnio e objeto de venerao em toda a zona. Todos quantos perderam animais na serra vo rezar o tero diante da imagem e os encontram infalivelmente. Outros h que, em romaria e de vela em

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    punho, visitam o rochedo onde est representado o santo e ali fazem penitncia.8

    A seguir, o relato passa a descrever a economia domstica de uma famlia que morava no entorno de rea de culto, indicando ainda a presena de vizinhos to pobres quanto el[a]. A mulher que recebeu o viajante em seu casebre grosseiramente construdo de taipa, coberto de sap, cujas entradas so portas estreitas fechadas com couro descrita por Saint Hilaire como uma mulata vestida de saia e camisa de algodo muito sujos, e rodeada de grande quantidade de bonitas crianas, trajadas do modo mais pobre. Na quele ano de 1822, pode-se imaginar tratar-se de uma famlia cuja histria deveria encontrar memrias no cativeiro, como libertos ou descendentes de escravos que encontravam uma alternativa um ambiente pobre e hostil na vila onde moravam antes de se dirigirem para aquele fundo de vale.9

    Por outro lado, nada impede, a princpio, que naquele local tambm pudessem ser encontradas pessoas brancas, livres, luso-brasileiras ou no-afrodescendentes, fosse como posseiros, fosse como devotos pedra de Santo Antonio. Contudo, considerando um contexto escravista em que escravos fugidos tambm encontravam alternativas de vida fazendo uso das florestas (e com isso gerando toda uma mitologia acerca dos quilombolas), este universo das matas e de prticas religiosas desta natureza (associao de entidades formaes rochosas) sugere um espao construdo fundamentalmente por afro-brasileiros. Ou, porque no, pelo encontro de africanos com indgenas10 que tambm poderiam encontrar ali alternativas pobreza da vida nos pequenos povoados, como o que foi encontrado por Saint Hilaire, a lgua e meia do local da Pedra de Santo Antonio.

    Neste sentido, a pobreza das famlias que moravam no entorno da pedra de Santo Antonio, tal como descrita pelo naturalista, parece uma contradio quando observada a descrio da economia domstica naquele local. Uma paisagem que oferecia proteo no fundo de um vale, com um grande bosque de um lado, e um riacho, cuja gua excelente e faz mover um pequeno monjolo, de outro. Saint-Hilaire indagando mulher que encontrou no casebre se no se aborrecia, s, no meio daquelas montanhas, obteve como resposta que tdio era coisa que ali no se conhecia, uma vez que os trabalhos caseiros, as galinhas e os animais domsticos toma[vam-lhe] o tempo todo. ... Era preciso plantar, ora colher; nasciam-lhe criaes; o marido e o filho mais velho saam para caar e assim traziam ora um porco do mato, cuja carne, assada, comiam todos, ora um gato selvagem, mostrando-lhe ainda muitas peles j curtidas destes animais.

    Em incurso nas matas ao redor, guiado pelo marido da referida mulata, Saint-Hilaire observa ainda que os pastos que cercam o monte ... so de tima qualidade e poderiam alimentar prodigiosa quantidade de animais. No entanto, s servem aos de meu guia e de alguns outros vizinhos to pobres quanto ele. Foi naquele ambiente, que na viso do naturalista era

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    pobre e miservel, que lhe ofereceram queijo, farinha, bananas, ... um prato de palmito e uma cuia de excelente leite.

    A economia domstica daquelas famlias, num ambiente que lhes proporcionava fartura e proteo, um indcio da possibilidade de uma alternativa de vida para diferentes personagens no contexto da escravido, como fugitivos, famlias pobres de livres e libertos, fossem brancos ou negros, motivadas, quem sabe, pela dinmica particular que aquela rea de culto possibilitava.

    Deve-se considerar ainda as possibilidades de circulao de cativos neste universo,

    viabilizada pela maior mobilidade concedida nos domingos e dias santos, assim como uma circulao informal, no atendimento de favores fortuitos ou em escapadelas diurnas ou noturnas. Lembra-se ainda da possibilidade de cativos que pelo seu ofcio estavam em constante mobilidade, como escravos tropeiros, carroceiros, ou mesmo com outras atividades que pressupunham o deslocamento para o local do servio, como era o caso das obras e construo de cercas, ou a liberdade de circulao pelas matas em especial inerente prtica de caadores.

    Esta situao aparentemente excepcional de reas de culto e do estabelecimento de

    economias informais em reas de conhecimento pblico, para onde podiam se dirigir romarias, no deve ser vista como exceo, mas como a representao de grupos domsticos que se inserem na sociedade, encontrando espaos, sofrendo presses e institucionalizando situaes de liminaridade que permitiam a fabricao paulatina de uma enorme e infinita rede, tal como descrita por Flvio Gomes em seu estudo sobre as relaes entre as comunidades quilombolas e as comunidades das senzalas, na regio de Iguau, no sculo XIX (Gomes, 1995).11

    Ressalta-se a relevncia de se observar a mata como um espao de onde no s se

    extraem recursos naturais ou onde pode-se encontrar refgio, mas como uma paisagem que construda e integrada vida cotidiana no mundo rural fluminense. Um contexto que pode ser inferido atravs da ... anlise da configurao e apropriao dos espaos e paisagens viabiliza[ndo] a percepo de um universo cognitivo de ordenao social", como sugere Sousa (1995).

    Na perspectiva de Bourdieu sobre a reproduo e transformao cultural da sociedade, as

    possibilidades de aes estratgicas que respondem a interesses objetivos, materiais e pragmticos so disciplinadas por um sistema de preferncias, sobre o qual fala Slenes a partir da noo de uma gramtica profunda. Este limite que se coloca ao social de indivduos ou coletividades no inibe, contudo, a resistncia radical expressa em delitos, estratgias ilegais de sobrevivncia ou organizaes mais amplas com objetivos especficos que teriam como princpios geracionais a prpria fora do habitus.

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    Estas aes de resistncia expressam de forma extrema a fora de transformao inerente

    a estas disposies que se constituem na experincia herdada e vivenciada. O estudo de um plano de revolta de escravos em Vassouras, tal como vem sendo conduzido por Slenes, um exemplo desta possibilidade (Slenes, 1995; indito). Este estudo trata de um movimento social, poltico e religioso entre escravos, gerenciado por uma sociedade secreta denominada Ubanda, em 1848, que tinha uma natureza mstica (nas palavras das autoridades policiais) e era devota imagem de Santo Antonio.

    O autor procura estabelecer uma relao deste movimento com cultos de revitalizao nas

    rea bakongo e mbundu, na frica Central; com a Cabula, um culto secreto registrado no Esprito Santo, no incio do sculo XX; e a devoo preferencial Santo Antnio no catolicismo africano e afrobrasileiro. A partir deste estudo os indcios de reas de culto associadas PJM e pedra de Santo Antonio apresentados acima se inserem num contexto mais amplo que sugere a possibilidade de abordar o processo de gestao da umbanda no sudeste, enquanto um movimento religioso que deve ser observado na continuidade de um processo de mudana social e cultural pelo qual passaram africanos e afrodescendentes na experincia do cativeiro e da liberdade.

    Por fim, a relao entre os contextos do incio do sculo XIX e do incio do sculo XX

    deve ser vista como uma possibilidade de inferir sobre os percursos do trabalhador rural fluminense a partir de sua trajetria histrica e sua experincia cotidiana12, assim como sobre a gestao de prticas religiosas e medicinais afrobrasileiras no sudeste brasileiro.

    Sobre a utilizao de fontes de naturezas diferentes, apresentei em outro momento

    algumas reflexes a partir das quais procuro apontar o potencial e os perigos de estudos cujo universo emprico definido por uma viso interdisciplinar (Agostini, 2000). As discusses sobre os problemas de anlises que no consideram as diferentes escalas de tempo representadas pelas fontes utilizadas tm levado pesquisadores a definir quais os problemas podem ser respondidos dentro de cada escala de tempo, e de que forma interelacionar as informaes extradas das diferentes fontes orais, arqueolgicas, documentais, iconogrfcas, etc., evitando uma hierarquizao das mesmas (v.e.g. Fuller, 1997; Kowalewski, 1997; Senatore, 1999).

    A estratgia para o estudo que se apresenta nesta comunicao a de encontrar uma

    margem de tempo-espao na qual diferentes naturezas empricas podem se somar na construo de uma interpretao sobre o passado. Neste sentido, a abordagem da experincia cotidiana e da liminaridade permite uma viso que integra a curta e a longa durao em um estudo de situaes particulares assim como de processos de formao e transformao social e cultural. Neste caso, o universo emprico construdo na forma como cada elemento problematizado dentro do seu

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    contexto (documental e histrico), ressaltando o ato da escrita (de construo do texto) tambm como um ato de anlise e interpretao, atravs de um procedimento analgico-comparativo-contextual dos elementos anteriormente problematizados.

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    * Trabalho apresentado no XII Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira. Rio de Janeiro, setembro de 2001. ** Arqueloga, mestranda em Histria Unicamp / Fapesp.

    Notas 3 O espao de liminaridade que aponto como objeto de estudo uma sugesto de situaes que no se traduzem pela dicotomia de dominao e resistncia que focaliza as relaes de poder estabelecidas entre a casa-grande e a senzala. Compartilho da viso de Flvio Gomes (1995) que integra o universo de escravos fugidos com o das comunidades das senzalas, na formao de um campesinato no tempo do cativeiro. Procuro abordar espaos e situaes intermedirios entre o cativeiro e a ilegalidade nos quais se inseriam africanos e afrodescendentes no meio rural sul-fluminense. 4 O guia que nos acompanhou no reconhecimento do stio, _seu_ Manoel, um trabalhador da referida fazenda, muito ajudou com seu conhecimento sobre propriedades medicinais de espcies vegetais. 5 Dos seis informantes apenas a neta kardecista nega esta relao de Joo Moleque com a Umbanda. 6 Indcios dos significados conferidos a certas formaes naturais por africanos e afrobrasileiros tambm podem ser encontrados nos processos-crimes. Um exemplo so as formas que diferentes

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    testemunhas, em 1853, referem-se a uma lagoa, no muito distante de uma venda em Sacra Famlia do Tingu, onde foi encontrado um escravo morto. Enquanto testemunhas no-negras referem-se lagoa seca, lagoa perto do Secretarinho e lugar das piteiras, o escravo mineiro Quintiliano afirma estar ... preso por causa da morte de um preto do senhor Lolo perto da gua Santa. Centro de Documentao Histrica / FESS (Vassouras), processo-crime 046, 1853, p.67v. 7 Auguste Saint-Hilaire Segunda Viagem do Rio de Janeiro Minas Gerais e So Paulo. 1822. Ed. Itatiaia, 1974, pp.33-35. 8 Op.cit. 9 Saint Hilaire relata que a cerca de uma lgua e meia daquele local se encontrava um povoado composto de ... pequena igreja e meia dzia de casas que a rodeiam, cuja maioria est abandonada, alm de algumas outras miserveis, construdas na encosta de outra colina. No espanta, pois, que inutilmente haja eu procurado, ontem, nesta pobre aldeia os gneros mais necessrios vida. Op.cit. 10 Na regio de Vassouras grupos indgenas podiam ser encontrados at pelo menos o primeiro quartel do sculo XIX, a regio mais ao Norte, em direo ao sul de Minas (local onde foi encontrada a pedra de Santo Antonio por Sait Hilaire), manteve por mais tempo a presena indgena. O processo de dizimao e resistncia pelo qual passaram estes grupos, no momento do estabelecimento da cafeicultura na regio ainda carece de estudos. Deve-se considerar ainda a histria dos remanescentes indgenas e seus descendentes caboclos despossudos, que procuravam se adaptar a nova situao de pobreza que lhe era imposta. 11 Regio esta que inter-ligava a regio da antiga Comarca de Vassouras e a Corte atravs da Estrada do Comrcio, que, por sua vez, era um caminho alternativo Estrada da Polcia. 12 Para pensar aspectos como a mobilidade do trabalhador, a sazonalidade do trabalho, a produo domstica e as relaes comerciais que dinamizam a produo. Neste sentido, ver as consideraes sobre o comrcio de lenha entre a regio de Iguau e a Corte, no sculo XIX, que faz Flvio Gomes, op.cit. Ver tambm o estudo de Julio C. (2001).