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Aimee Bender - A Peculiar Tristeza Guardada Num Bolo de Limão

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    Esta obra foi postada pela equipe Le Livros para proporcionar, de maneiratotalmente gratuita, o benefcio de sua leitura a queles que no podem compr-

    la. Dessa forma, a venda desse eBook ou at mesmo a sua troca por qualquercontraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia.

    A generosidade e a humildade so marcas da distribuio, portanto distribua estelivro livremente. Aps sua leitura considere seriamente a possibilidade de

    adquirir o original, pois assim voc estar incentivando o autor e publicao denovas obras. Se gostou do nosso trabalho e quer encontrar outros ttulos visite

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  • Ficha Tcnica

    Copyright 2013, Aimee BenderTraduo para a lngua portuguesa: copy right 2013, Texto Editores Ltda.

    Ttulo original: The Particular Sadness of Lemon CakeDiretor editorial: Pascoal SotoEditora executiva: Tain Bispo

    Editora assistente: Ana Carolina GasonatoProduo editorial: Fernanda S. Ohosaku, Renata Alves e Mait Zickuhr

    Coordenao externa: Tas GasparettiTraduo: Paulo Polzonoff

    Preparao de textos: Danielle FreddoReviso de textos: Bete Abreu e Tas Gasparetti

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Anglica Ilacqua CRB-8/7057

    Bender, AimeeA peculiar tristeza guardada num bolo de limo / Aimee Bender; traduo de

    PauloPolzonoff. So Paulo : LeYa, 2013.ISBN 9788580447866

    Ttulo original: The Particular Sadness of Lemon Cake1. Literatura americana - Romance I. Ttulo II. Polzonoff, Paulo

    13-0207 CDD 813ndices para catlogo sistemtico:

    1. Literatura americana - Romance 8132013

    Todos os direitos desta edio reservados aTEXTO EDITORES LTDA

    [Uma editora do Grupo Ley a]Rua Desembargador Paulo Passalqua, 86

    01248-010 Pacaembu So Paulo SP Brasilwww.leya.com.br

  • Para Mir

  • Comidas so todas aquelas substncias que, submetidas ao do estmago, podem ser degustadas outransformadas em vida pela digesto, e que podem,assim, reparar as perdas que os seres humanos sofremao longo do ato de viverem.

    (A fisiologia do gosto, Brillat-Savarin)

  • Parte umComida

  • 1Aconteceu pela primeira vez numa tera-feira tarde, num dia quente deprimavera, nos campos prximos a Holly wood, com uma brisa leve soprando aleste, vinda do oceano e agitando as ptalas com olhos negros dos amores-perfeitos recm-plantados em nossas floreiras.

    Minha me estava em casa, assando um bolo para mim, quando surgicorrendo pela calada. Ela abriu a porta da frente antes que eu pudesse bater.

    Que tal uma aulinha? perguntou ela, encostando-se no batente da porta.Ela me puxou para me dar um abrao de boas-vindas, me apertando forte aoencontro de um de seus aventais que era o meu preferido, o de algodo cruenfeitado com desenhos de ramos de cerejas vermelhas entrelaados.

    No balco da cozinha, ela j havia organizado todos os ingredientes: umpacote de farinha, a caixa de acar, dois ovos marrons que se apoiavam naranhura entre os azulejos. Uma barra amarela de manteiga comeava a derreternas beiradas. Uma tigela rasa de vidro com raspas de limo. Eu passeei pelafileira de ingredientes. Era a semana do meu nono aniversrio, e tinha sido umdia longo na escola, cheio de aulas discursivas o que eu odiava e gritos noptio sobre placares. A cozinha iluminada pelo sol e minha me de olhos clidoseram braos abertos de boas-vindas. Enfiei um dedo no saquinho com cristais deacar mascavo e murmurei: Sim, por favor, sim.

    Ela disse que tnhamos cerca de uma hora para prepararmos tudo, por issopeguei logo uma folha do meu caderno.

    Posso ajudar? pedi, espalhando lpis e folhas de papel sobre o piso devinil.

    No respondeu mame, misturando a farinha e o fermento. Meu aniversrio em maro, e naquele ano caiu durante uma semana de

    primavera especialmente ensolarada, animada e tranquila nas ruas residenciaisestreitas onde morvamos, a uns poucos quarteires ao sul da Sunset. O jasmim,cujas flores se abriam noite e que trepava no porto da frente do nosso vizinho,exalava seu perfume inebriante ao anoitecer e, ao norte, as colinas seamontoavam elegantemente sobre o horizonte, as casas espalhadas pelasencostas. Em pouco tempo o horrio de vero comearia e, at mesmo quandofossem quase nove horas, eu associava meu aniversrio com o primeiro sinal dovero, com a sensao das salas de aula com as janelas todas abertas e roupasleves e, dali a poucos meses, nada de lies de casa. Meu cabelo ficava maisclaro na primavera, de castanho-claro para quase loiro, parecido com a cor daspontas do rabo de cavalo de minha me. Nos jardins da vizinhana, os agapantoscomeavam a pr para fora seus caules compridos e verdes e a se abrir em tonsde azul e roxo-claro.

    Mame estava mexendo os ovos e, logo em seguida, passou a peneirar afarinha. Ela havia preparado uma tigela de cobertura de chocolate, que deixaraao lado, e outra com granulados coloridos.

    Fazer bolo difcil como esse no era trabalho para uma tarde comum;minha me no cozinhava com tanta frequncia, mas sempre gostou muito dequalquer coisa ttil, e esse bolo era apenas uma, numa longa e recente linhagemde experincias com atividades manuais. Nos ltimos seis meses, ela cultivou

  • morangos, fez guardanapos de croch com pontos tradicionais e, num surto demotivao, instalou uma porta de carvalho no quarto do meu irmo, com a ajudade um pedreiro. Ela trabalhava como auxiliar administrativa num escritrio, masno gostava de copiadoras, sapatos de salto alto e computadores. Ento, quandomeu pai terminou de pagar o emprstimo que tomara para concluir a faculdadede Direito, ela lhe perguntou se podia tirar umas frias para aprender a fazer algocom as mos.

    Minhas mos... ela lhe disse no corredor, apertando seu corpo contra odele. Minhas mos nunca tiveram aula de nada.

    De nada? ele perguntou, segurando aquelas mos com fora.Ela riu baixinho. Nada prtico disse.Eles estavam bem no meio do caminho, no corredor, enquanto eu corria de

    um cmodo para outro com um leopardo de plstico. Licena eu disse.Ele sentiu o perfume doce dos cabelos espessos dela. Meu pai geralmente

    concordava com os pedidos dela porque, gravada na sua postura ereta e sria,estava a palavra provedor, e ele a amava do mesmo modo que o corao deum admirador de aves dispara quando ouve o canto do colhereiro-rosa, uma avede penas rosadas, com seu piado alegre vindo do mangue. Confere, diria oadmirador de pssaros.

    Claro disse meu pai, batendo com uma das mos cheia de cartas nascostas dela.

    Arr! disse o leopardo, voltando para a toca. Na mesa da cozinha, eu folheava meu caderno e me deleitava com os

    estalidos do forno aquecido. Se eu sentia alguma coisa errada, era s algo como osol se escondendo rapidamente atrs de uma nuvem para brilhar intensamentedepois de alguns segundos. Eu sabia vagamente que meus pais haviam brigado nanoite anterior, mas pais brigam o tempo todo, em casa e na TV. Alm disso, euainda estava ocupada me lembrando do pssimo convite do almoo, feito porEddie Oakley, aquele com sardas e que nunca convidava direito. Li as palavrasdo meu caderno de ortografia: dom, dobra, n; fazer estrela, carrinho de mo,dar pinote. No balco, mame despejava a massa amarela grossa numaassadeira untada e alisava a parte de cima com uma esptula de plstico. Depois,verificou a temperatura do forno e tirou uma mecha de cabelo suado que lhecara sobre a testa com o ossinho do pulso.

    Aqui vamos ns disse, colocando a assadeira dentro do forno.Quando levantei os olhos, ela estava esfregando as plpebras com os dedos.

    Ela me jogou um beijo e disse que iria se deitar um pouco. Tudo bem concordei.Dois passarinhos brigavam do lado de fora. No meu caderno de exerccios,

    pintei de vermelho os cadaros dos tnis da pessoa que fazia estrela e seu rostocom uma cor alaranjada. Desejei jogar a bola com mais fora na quadra paraque fosse bem na direo de Eddie Oakley. Desenhei algumas mas nocarrinho de mo.

  • A cozinha se encheu com um cheiro de manteiga quente, acar, limo eovos. s cinco, o timer apitou e eu tirei o bolo do forno e o coloquei em cima dofogo. A casa estava quieta. A tigela de cobertura estava bem ali, em cima dobalco, pronta para ser usada. Os bolos ficam melhores quando cobertos logo quesaem do forno, e eu realmente no conseguia esperar, por isso virei a assadeirade lado, procurei pela parte menos bvia e peguei um pedacinho quente e macio,de um amarelo intenso. Cobri-o inteiro com chocolate e coloquei tudo de uma svez na minha boca.

  • 2Depois que a minha me pediu demisso, ela passou aqueles seis mesesembelezando a casa. Cada semana era um projeto diferente. Primeiro, elaplantou os morangos no jardim dos fundos, prendendo os ramos na cerca at queos frutinhos vermelhos surgiram, formando fileiras onduladas. E ento seencolheu no sof com pilhas de rendas antigas, escolhendo sua melhor toalhapara colocar na mesa, sob uma tigela de morangos recm-colhidos. Depois elafez um creme para derramar sobre os morangos colhidos e juntou tudo navasilha de cermica que havia feito na faculdade. Era uma tigela vermelha ebranca, delicada e elegante, mas mame sempre recebia mal os elogios. Depoisque a produo de morangos diminuiu, no outono, ela queria fazer algo maisrude, por isso chamou uma amiga que conhecia um pedreiro e o contratou sob apremissa de que poderia ajud-lo enquanto eles instalavam uma porta lateral noquarto do meu irmo, para quando quisesse ir para a rua.

    Mas ele odeia sair! eu disse, seguindo-os at o quarto de Joseph, ondetirariam as medidas para a porta. Por que eu no posso ter uma porta?

    Voc nova demais para ter uma porta disse mame.Meu irmo segurava sua mochila na altura do peito, observando, e

    concordou com um ligeiro sinal quando mame lhe perguntou se ali estava bom. Quanto tempo isso vai demorar? perguntou. S vamos trabalhar nisso enquanto voc estiver na escola disse mame,

    pegando uma folha de caderno com uma lista de materiais necessrios para aobra.

    Foram necessrias trs semanas de serragem, lixamento, destruio ereforma minha me usando calas jeans, seu rabo de cavalo escondido sob ocolarinho de sua blusa e o pedreiro dando longas explicaes sobre como tirar asmedidas. Joseph dormiu sob um cobertor adicional enquanto a paredepermanecia aberta, j que ele preferia dormir na sua prpria cama. Elestrabalharam dia aps dia, at que a pea de madeira foi finalmente encaixada, ajanelinha no alto, instalada e a maaneta, fixada. Cortininhas vermelhas eanimadas pendiam semiabertas nas laterais. Mame mostrou a porta para Josephassim que voltamos da escola.

    Tchanan! disse, puxando-o pela cintura e se curvando.Ele ps a mo na maaneta, saiu pela porta e depois deu a volta, entrando

    em casa pela porta da frente e seguindo at a cozinha para comer seu cereal. Parece boa! gritou ele da cozinha.Mame e eu abrimos e fechamos a porta umas cinquenta vezes, trancando-

    a e fechando as cortinas; destrancando-a e abrindo as cortinas. Quando papaichegou em casa, na hora de sempre e com seus 1,82 metro quase o obrigando aabaixar a cabea quando passava pelas portas, ele fez algumas ligaes no quartoe, quando mame o chamou para ver a obra final, ele disse que havia ficadolegal, muito benfeita, e depois cruzou os braos.

    O qu? perguntou mame. Nada. Tem uma fechadura eu disse, apontando. Que engraado disse papai, coando o nariz. Todo esse trabalho para

  • uma porta num quarto que apenas um de ns usa. Voc pode us-la disse Joseph, da cozinha. No caso de um incndio eu disse. Ns lixamos tanto contou mame, passando os dedos pelos calos

    recm-criados nas palmas de suas mos. Muito delicada disse papai, tocando a cortina.Depois do jantar, enquanto papai conclua o restante do seu trabalho no

    quarto, mame se deitou no tapete da sala de estar, diante da lareira de tijolosvermelhos e, apesar de ainda estar quente l fora, quase vinte graus, ela acendeuo fogo usando um velho pedao de lenha que encontrara na garagem.

    Venha se sentar, Rose ela me chamou.E ficamos ali, juntinhas, sem conseguir tirar os olhos das chamas crepitantes

    que queimavam a lenha, reduzindo-a a cinzas. Eu tive pesadelos naquela noite,porque dizem que mais comum ter pesadelos quando a casa est quentedemais. Sonhei que estvamos mergulhando em rios congelados.

    Meu bolo de aniversrio foi o ltimo projeto da mame porque no era feito

    de uma mistura de caixinha, e sim do zero a farinha, o fermento e com saborde limo, porque eu havia pedido isso ao completar oito anos, quando j haviadesenvolvido certa predileo pela acidez. Procuramos juntas em vrios livros dereceitas at que encontrssemos o bolo certo, o cheiro na cozinhainsuportavelmente agradvel. S para deixar claro: o pedao que comi estavadelicioso. A massa quentinha, leve e ctrica, envolta numa camada espessa dechocolate.

    Mas l fora escurecia e, enquanto eu saboreava aquele primeiro pedao,quando aquela primeira impresso desapareceu, senti uma mudana sutil pordentro, uma reao inesperada. Foi como se um sensor, instalado bem no fundo,dentro de mim, erguesse sua antena para vasculhar ao redor, chamando aateno da minha boca para alguma coisa nova. Porque a qualidade dosingredientes o bom chocolate e os limes frescos parecia cobrir algo maior emais sombrio, e o sabor do que estava escondido estava comeando a sobressairnaquele pedao. Eu podia sentir claramente o sabor do chocolate, mas nosrecantos da boca, e, como se estivesse se expandindo e abrindo, parecia que elatambm se enchia com o sabor da pequenez, da sensao de encolhimento, deirritao, um sabor de distanciamento que eu de algum modo sabia que estavaligado minha me. Era um sabor confuso do raciocnio dela, em espiral, quasecomo se eu pudesse sentir o sabor do ranger de seus dentes que dava origem enxaqueca que a obrigava a tomar tantas aspirinas quantas fossem necessrias,todo um estoque de aspirinas no criado-mudo, como algo que faltasse no que eladissera: Vou s me deitar um pouco.... No era um gosto ruim, mas havia umaespcie de ausncia da perfeio dos sabores, o que fazia com que o boloparecesse oco, como se o limo e o chocolate estivessem apenas envolvendo ovazio. As mos habilidosas de minha me fizeram o bolo e sua mente souberacomo equilibrar os ingredientes, mas ela no estava l, quero dizer, no bolo. Issome assustou tanto que eu peguei uma faca de uma gaveta e cortei uma grandefatia, estragando o formato redondo, porque eu tinha de provar novamente

  • aquele segundo pedao. Coloquei-o, ento, num prato com flores rosas e pegueium guardanapo do porta-guardanapos. Meu corao batia acelerado. EddieOakley virou um probleminha desprezvel. Eu esperava que tivesse imaginadotudo aquilo talvez fosse um limo estragado ou o acar estivesse velhodemais , mas eu sabia, por mais que pensasse o contrrio, que o que eu haviasaboreado no tinha nada a ver com os ingredientes. Acendi a luz e levei o pratopara o outro cmodo, at minha poltrona preferida, aquela com uma estampa delistras alaranjadas, e a cada pedao eu pensava hummm, to bom, o melhor,hummm, mas em cada pedao: ausncia, desejo, confuso, vazios. Esse boloque minha me assara s para mim, sua filha, a quem ela amava tanto, porquem eu a via cerrar os punhos para segurar o choro quando, s vezes, eu voltavada escola, e a quem ela abraava como se o abrao fosse pouco em comparaoao que ela queria me dar.

    Comi a fatia toda, desesperada para provar a mim mesma que eu estavaerrada.

    Quando mame levantou, depois das seis, ela entrou na cozinha, viu o

    pedao faltando no bolo e me encontrou cada aos ps da poltrona de listrasalaranjadas. Ela se ajoelhou e, com carinho, afastou uma mecha de cabelo quecaa sobre a minha testa.

    Rose disse ela. Querida, voc est bem?Abri um pouco os olhos, sentindo as plpebras mais pesadas, como se

    existissem pesinhos de chumbo, daqueles de pescar, presos a cada clio. Eu comi uma fatia do bolo eu disse.Ela sorriu para mim. Eu ainda podia perceber a enxaqueca nela, pulsando

    em sua sobrancelha esquerda, mas o sorriso era sincero. Tudo bem disse ela, esfregando a parte de baixo dos olhos. Como

    que ficou? Bom eu disse, mas minha voz era hesitante.Ela foi at a cozinha, pegou um pedao e se sentou ao meu lado, no cho,

    cruzando as pernas. Seu rosto estava todo marcado pela soneca. Hummm disse ela, comendo um pedacinho. Voc acha que est doce

    demais?Eu podia sentir a montanha crescendo em minha garganta, uma dor se

    espalhando por todo o meu pescoo. O que est havendo, meu amor? ela perguntou. No sei. Joe j voltou da escola? Ainda no. O que h de errado? Voc est chorando? Aconteceu alguma coisa na

    escola? Voc e o papai brigaram? Na verdade, no disse ela, limpando a boca com o guardanapo. Foi s

    uma discusso. Voc no precisa se preocupar com isso. Voc est bem? perguntei. Eu?

  • Est? perguntei, sentando melhor.Ela deu de ombros. Claro disse. Eu s precisava de um cochilo. Por qu?Fiz que no com a cabea. Eu achei...Ela arregalou os olhos, me encorajando. ...Tem sabor de vazio eu disse. O bolo? perguntou ela, rindo um pouco, surpresa. Est to ruim assim?

    Ser que eu esqueci algum ingrediente? No eu disse. No est ruim. como se voc estivesse distante. Voc

    est se sentindo bem?Eu continuava balanando a cabea. As palavras, palavras estpidas, no

    faziam sentido. Eu estou aqui disse ela, alegremente. E estou bem. Mais alguma

    coisa?Ela me estendeu o garfo todo cheio de alegria e chocolate, mas era

    impossvel comer aquilo. Eu engoli e, com esforo, o pedao conseguiucontornar a montanha que eu sentia na garganta.

    Acho que eu no deveria ter comido o bolo antes do jantar eu disse.Foi s ento e somente por um segundo que ela me olhou com

    estranheza. Voc uma criana curiosa disse. Ela limpou os dedos no guardanapo e

    se ps em p. Bem, que tal comearmos? O jantar? perguntei. Frango disse ela, consultando o relgio. J est tarde!Eu a segui at a cozinha. Joseph chegou cerca de dez minutos mais tarde, o

    estrondo de sua mochila batendo no cho era como se fosse uma bigorna caindodo telhado. Ele estava vermelho por causa da caminhada de volta para casa,olhos acinzentados, cabelos escuros molhados de suor e a vermelhido no seurosto e o brilho em seus olhos faziam com que parecesse que ele queria noscontar tudo sobre o seu dia, as piadas, brincadeiras e zombarias. Em vez disso, elelavou as mos na pia da cozinha, em silncio. Joseph parecia usar o ar ao seuredor como um disfarce.

    Mame o abraou como se ele estivesse ausente por um ano, recebendo devolta uns tapinhas no ombro como se ela fosse um cachorrinho. Juntos, ns trscortamos os ingredientes e limpamos, enquanto mame preparava peito defrango milanesa com ervilhas e arroz. Joseph borrifou gua sanitria diludasobre a tbua de corte na pia. O leo estalava na frigideira. Tentei me obrigar apensar na escola, mas a ansiedade se apoderou de mim em meio aos preparospara o jantar. Enquanto observava minha me passar o frango na farinha derosca, pensava: E se aquele gosto estiver no frango tambm? E no arroz?.

    s seis e quarenta e cinco, meu pai estacionou seu carro. Ele abriu a porta,todo alegre, gritando cheguei! como sempre fazia. Ele gritou isso para a salavazia. No fim do dia, seu cabelo, escuro e espesso, estava todo despenteado,como se tivesse absorvido o impacto de todos os problemas profissionais que eletinha em suas mos.

  • Ele parou na porta da cozinha, mas todos ns estvamos ocupados demaispara cumpriment-lo.

    Vejam s o trabalho em equipe! ele disse. Oi, papai eu disse, acenando-lhe com a faca. Ele sempre parecia um

    convidado para mim. Seja bem-vindo em casa. bom estar em casa ele disse.Mame tirou os olhos da frigideira e fez que sim com a cabea. Parecia que

    papai estava querendo entrar e beij-la, mas no tinha certeza se isso daria certo,por isso apenas largou sua pasta contra a parede do armrio, desapareceu pelocorredor para se trocar e se juntou a ns quando nos sentamos ao redor dacomida fumegante, j nas travessas e tigelas. Joseph comeou se servindo e,bem devagar, eu coloquei tudo no meu prato, em pores iguais. Metade de umpeito de frango. Sete ervilhas. Duas colheradas de arroz.

    L fora j estava escuro. Na rua, os postes zuniam com suas lmpadasfluorescentes ligeiramente azuladas.

    O sabor do jantar estava um pouco melhor do que o do bolo, mas no muito.Eu me encolhi na cadeira. Retorci a boca.

    O que houve? perguntou mame. No sei respondi, tomando cuidado para no mago-la. O frango est

    esquisito.Mame mastigou pensativamente. A farinha de rosca? perguntou. Ser que eu botei alecrim demais? Ah, est timo disse Joseph, que comia sem tirar os olhos do prato para

    que ningum pudesse fazer contato visual e realmente conversar com ele.Enquanto comamos, meu irmo falou um pouco sobre o programa

    extraclasse de Astronomia da escola e como um cosmlogo da Universidade daCalifrnia em breve os visitaria para explicar a acelerao do Universo.

    Agora mesmo disse Joseph ele est ficando cada vez mais rpido.Ele indicou isso com seu garfo e um gro de arroz voou por sobre a mesa.

    Papai contou uma histria sobre o cachorro da secretria. Mame cortou seufrango em pedaos.

    Depois do jantar, ela trouxe o bolo finalizado, j com a cobertura, esemifatiado, num prato amarelo de porcelana, e fez um pouco de floreio com asmos.

    A sobremesa! disse.Joseph bateu palmas e papai murmurou alguma coisa. E eu, como no sabia

    o que fazer, me obriguei a comer outra fatia, limpando minhas lgrimas com oguardanapo.

    Desculpe disse. Desculpe. Ser que estou doente?Eu observei os pratos de cada um deles cuidadosamente, mas a fatia do

    papai desaparecera como um raio e at mesmo Joseph, que nunca gostou muitode comida e sempre falava que seu sonho era que houvesse um comprimidopara o caf da manh, outro para o almoo e outro para o jantar, disse quemame deveria se inscrever num concurso ou coisa parecida.

    Voc a nica pessoa que eu conheo que consegue fazer portas e assarbolos e organizar os arquivos do computador disse, levantando os olhos por uns

  • dois segundos. A Rose achou que eu esqueci alguma coisa disse mame. Eu no disse isso respondi, segurando com fora meu prato e sentindo o

    bolo viscoso e ruim na minha boca. De jeito nenhum disse Joe. Est perfeito. Obrigada disse mame, um pouco envergonhada. Todos sentimos os sabores de um jeito diferente, querida disse ela,

    acariciando meus cabelos. No foi isso o que eu quis dizer eu disse. Mame... De qualquer modo, este ser o ltimo bolo durante algum tempo. Vou

    comear num trabalho de meio perodo amanh disse mame. Numamarcenaria em Silver Lake.

    a primeira vez que ouo isso disse papai, limpando a boca. O quevoc vai consertar, mais portas?

    Eu disse marcenaria respondeu mame. No pau para toda a obra.Vou criar mesas e cadeiras.

    Vocs me do licena? pedi. Claro. Vou v-la num minuto disse mame.Tomei um banho e fui para a cama. Senti a aproximao dela mais tarde,

    quando j estava cochilando. Ela em p, ao lado da minha cama. A sensao dovulto de uma pessoa quando se est de olhos fechados.

    Bons sonhos, Rose, meu amor ela sussurrou.Eu me apeguei a essas palavras como se elas fossem uma linha de ouro que

    eu podia seguir na escurido. Segurando-as com fora, dormi.

  • 3Minha famlia morava num dos muitos bairros centrais de Los Angeles, aquinze minutos de vrias autoestradas que se entrecruzavam e espremido entreSanta Monica Boulevard e Melrose. Nossa vizinhana, cercada por merceariasrussas ao norte e pelas famosas lojas de descontos ao sul, era na maior parteresidencial, entre famlias, imigrantes do Leste Europeu e roteiristas que viviamem grandes complexos de apartamentos do outro lado da rua e enfrentavamdificuldades para vender um roteiro. Quando eu caminhava de volta para casa,vindo da escola, via-os em p nas sacadas, fumando cigarros, e at j sabiaquando algum deles havia conseguido trabalho: os caminhes de mudanaapareciam. Era isso ou algum deles havia consumido todas as economias.

    Nosso quarteiro especfico em Willoughby era tranquilo noite, mas, pelamanh, acordava-se com o zumbido dos aspiradores de folhas, quando osvizinhos se ocupavam com suas mquinas e a limpeza das entradas de suas casas.Eu acordei ao som de um alvoroo matinal na cozinha. Meu pai foi o primeiro aacordar e, s sete e quinze, j estava lavando sua xcara de caf na pia dacozinha, espalhando gua por todos os lados e cantarolando baixinho. Elecantarolava msicas que eu jamais ouvira, exalando um entusiasmo matinal quese esgotava e se transformava num simples desejo de assistir TV quando eu ovia novamente, s sete da noite.

    Quando ele saa para seu escritrio no centro da cidade, sempre dava umabatidinha na buzina. Bibi! Ele jamais avisou que faria isso nem nunca perguntounada sobre isso, mas eu estava esperando, enfiada em minha cama. Quando ouvia buzina, levantei-me.

    Bom dia.Meu estmago parecia bem. Depois do caf da manh, uma simples e nada ameaadora barra de

    cereais, servi um copo dgua para minha me e, na ponta dos ps, segui at seuquarto, colocando-o com cuidado sobre o criado-mudo.

    Aqui est sussurrei. Obrigada ela disse, com olhos semicerrados e os cabelos espalhados

    num turbilho espesso sobre o travesseiro.O quarto tinha um cheiro clido, de sono profundo e seda. Ela me puxou e

    me deu um beijo no rosto. Seu almoo est na geladeira murmurou, virando-se para o outro lado.Sem fazer barulho, sa do quarto. Joseph e eu pegamos nossas coisas e

    caminhamos em fila indiana de Willoughby at Fairfax. O cu era de um azulbem escuro. Eu chutava pedrinhas enquanto caminhava, pensando que aquelacoisa toda da comida do dia anterior no passou de um azar passageiro, e eu tinhaum bom dia planejado pela frente, com o estudo dos vaga-lumes e, talvez, umpouco de desenho com giz de cera. Eddie Oakley estava recuperando grandeparte do terreno que j ocupava na seo de coisas indignas da minha mente. Amanh j estava esquentando o noticirio avisara que uma semanasurpreendentemente quente de primavera estava a caminho, com temperaturaschegando aos trinta graus.

    No ponto do nibus, ficamos um pouco separados. Eu me mantinha distante

  • porque era um incmodo para Joseph ter uma espcie de irm-carrapato, mas,enquanto espervamos, ele deu alguns passos para trs at que estivesse bem aomeu lado. Eu prendi a respirao.

    Olhe disse ele, apontando.No cu, bem longe, um pedacinho da lua pairava sobre uma fileira de

    rvores. Est vendo ali perto? perguntou ele.Pisquei os olhos. O qu? O pontinho direita disse ele.Eu podia ver, se olhasse com muito cuidado: um pontinho de luz, ainda

    visvel no cu da manh. Jpiter disse ele. O grando? perguntei e, por um instante, ele no franziu a testa. Esse mesmo disse. O que ele est fazendo? S nos visitando disse. S por hoje.Fiquei olhando para o pontinho at o nibus chegar, rezando para ele como

    se fosse um deus e, antes que Joseph se afastasse, segurei-o pela manga paraagradecer. Tomei cuidado para tocar numa parte que no fizesse realmentecontato com seu brao, para que ele no se livrasse de mim, irritado.

    Dentro do nibus, ele se sentou nas fileiras da frente, enquanto eu meacomodei atrs de uma menina que cantava uma balada pop de cabea baixa.Ao redor, a garotada estourava bolas de chiclete e gritava piadas, mas Joseph semantinha imvel, como se tudo aquilo fosse besteira para ele. Meu irmo maisvelho. O que eu via em seu perfil era clssico: o nariz reto, olhos fundos, cliosnegros e cabelos ondulados castanho-claros. Mame certa vez disse que ele eralindo, o que me surpreendeu, porque ele no era lindo, mas, ainda assim, quandoeu olhava para o rosto dele, podia ver como cada trao era bem delineado.

    Fiquei sentada em silncio, observando a janela cheia de mariposasesmagadas e procurando por Jpiter enquanto rumvamos para o sul. Atrs dens, os carros menores passavam zunindo em direo a Fairfax. Num sinalvermelho, eu fiz um sinal de cabea para uma mulher mais velha que dirigiacom bobes nos cabelos. Acenei para um cara numa moto que me respondeucom um sinal de roqueiro. Olhei para Joseph, que estava minha frente e decostas, querendo lhe mostrar aquilo. Ele lia um livro. Eu me imaginei lhecontando. Ele riu e olhou.

    Chegamos sem incidentes, e eu consegui que quatro pessoas mecumprimentassem de volta. Joseph desceu do nibus e seguiu rumo caladaque levava at o ginsio. Eu atravessei o parquinho de piso asfaltado at aterceira srie.1

    Problemas de matemtica, leitura, brincadeiras no tapete, projeto de artecom desenhos do cu com tinta pastel. Intervalo. Jogo de bola. Dois pontos.Caixinha de leite. Histria, ortografia. Sinal do almoo.

  • Passei o intervalo do almoo aos ps do bebedouro, que estava meioentupido com chicletes, bebendo um gole aps o outro da gua de gosto metlicoque passava pelos canos velhos do encanamento construdo na dcada de 1920,enchendo a boca de ferrugem e flor, tentando tirar o gosto do sanduche depasta de amendoim da minha boca.

    1 O sistema educacional estadunidense diferente do brasileiro.

  • 4Desde quando ainda era criana, minha me dormia at mais tarde porqueno dormia bem noite. Ela havia me contado certa vez, quando lhe levei umcopo dgua pela manh.

    Eu esperava at que me sentisse com sono disse-me, enquanto eu meacomodava na beirada da cama. E eu esperava e esperava e esperava, porquequeria ver como acontecia, como se o sono fosse a fada dos dentes.

    No d para ver o sono chegando eu disse, girando o copo sobre odescanso de cortia.

    Ela sorriu com os olhos semicerrados. Garota esperta disse.Eu podia ouvi-la, s vezes, quando acordava para me ajeitar na cama no

    meio da noite. s duas da manh, no era incomum ouvir o interruptoracendendo as luzes da cozinha e o zunido da chaleira esquentando a gua. Nofinal do corredor, a luz fraca iluminava debilmente a parede do meu quarto. Ossons eram gostosos uma lembrana da presena da minha me, uma sensaode atividade, mesmo sabendo que, pela manh, isso significaria uma me deaparncia cansada, com os olhos perdidos em busca de descanso.

    De vez em quando, eu me esgueirava para fora da cama no meio na noitepara encontr-la na poltrona estampada com listras alaranjadas, com uma mantalhe cobrindo os joelhos. s cinco ou seis da manh, eu subia em seu colo e elaacariciava meus cabelos, como se eu fosse uma gata. Nunca conversvamos, eeu dormia rapidamente em seus braos, na esperana de que meu peso e meusono de algum modo lhe dessem sono. Eu sempre acordava na minha cama, porisso nunca fiquei sabendo se ela voltou para seu quarto ou se ficou l a noite toda,olhando para as dobras das cortinas que cobriam as janelas.

    Moramos nessa casa durante toda a minha vida. Meus pais se conheceram

    em Berkeley, na faculdade, mas se casaram logo depois da formatura emudaram-se para Los Angeles, para que o papai completasse o curso de Direito.Minha me deu luz Joseph logo depois que eles compraram e se estabeleceramnesta parte de Willoughby. Ela teve problemas para decidir o que cursaria nafaculdade, sem saber ao certo do que gostava, mas escolheu aquela casarapidamente porque era confortvel e toda quadradinha, com telhas vermelhas eum arbusto de buganvlia caindo do teto, e lhe pareceu que as janelas da frente,com vidros dispostos em diagonal, criando algo como um diamante, s podiamexibir uma famlia que fosse feliz.

    Papai estudava muito, saa-se bem nas provas e tratava os professores comoiguais. Ele escrevia listas de afazeres nas folhas amarelas dos blocos deanotaes, listas que serviam para lembr-lo de Conversar com a bibliotecria,Doar a blusa verde para o mendigo na Rua Jefferson, Comprar mas. Encontraruma esposa nunca figurou em qualquer lista visvel, mas ele a pediu emcasamento antes do que a maioria dos seus colegas, e algo realmente pareceu seconfirmar dentro dele depois que se casaram. Ele comprava presentes quecombinavam com a decorao e emoldurou a melhor fotografia do casamentodeles para coloc-la na entrada da casa, e apesar de Ter um filho e Ter uma filha

  • parecesse algo melhor no papel do que todo aquele choro e as trocas de fraldas,meu pai estava contente com aquela estrutura de filho mais velho, filha caula. Omundo realizara seus sonhos, e ele se acomodou dentro daquilo que haviamconstrudo. Ele voltava do trabalho bastante alegre, mas no sabia ao certo o quefazer com as crianas, por isso nunca nos ensinou a andar de bicicleta ou ausarmos uma luva de beisebol. E por isso nosso crescimento permaneceuapagado nos batentes das portas, ganhamos altura sozinhos, sem prova algumadisso. Ele saa no mesmo horrio todas as manhs e voltava para casa no mesmohorrio todas as tardes, e as primeiras lembranas que tenho de minha me sodela esperando na porta quando ele estava prestes a chegar, comigo no colo esegurando a mo de Joseph, observando todos os carros que passavam pela rua.Ele nunca se atrasou, mas ela comeava seu ritual de observao cedo dequalquer modo. Durante a tarde, quando estava cansada de brincar com ascrianas, ela s vezes nos dava uma bola de plstico branca para brincarmos enos contava histrias de quando ramos bebs. Ela contava principalmentehistrias sobre nossos nascimentos. Por algum motivo, papai se recusava a entrarem hospitais, por isso mame passou por nossos partos sozinha, enquanto papaiesperava do lado de fora, na calada, sentado num caixote, fingindo ler um livropolicial.

    Que sorte a minha dizia ela, pegando a bola murcha de plstico para si. Fui a primeira a conhecer vocs.

    Quando papai chegava em casa, ele parava na soleira da porta para abri-la,beijava mame, nos beijava, tirava os sapatos e procurava por algo importanteem meio correspondncia. Se algum estivesse chorando, por qualquer motivo,ele pegava um leno e enxugava nosso rosto, dizendo que o sal era bom para acarne, no para nossos rostos. Depois ele ficava sem ter o que dizer e olhava paraas paredes ao redor at que rumava para seu quarto para se trocar. O que meupai fazia de melhor e mais vontade era estender aquelas longas horas enquantomame nos dava banho e comida, nos vestia e nos colocava para arrotarmosvendo o mundo por alto, como se ela estivesse na maior das universidades, numarepetio da dificuldade que tivera anos antes para escolher o que cursar. Vriaspossibilidades a atraam. Ela gostava de tudo, contou-me certa vez, quando euainda era pequena o bastante para que ela me pegasse no colo.

    Eu no sei do que eu gosto! disse, rindo e beijando-me no nariz. Voc to lindinha! To lindinha! Voc! Voc!

    Eu mal conhecia meus outros parentes. Eles ou moravam muito longe ou

    estavam mortos. Trs dos meus quatro avs haviam morrido quando eu tinha unsquatro anos, mas a me da minha me estava aparentemente saudvel comouma atleta olmpica, ainda que ela jamais tenha feito exerccios na vida. Elavivia no norte, no estado de Washington.

    Ela odiava viajar, por isso no nos visitava, mas num sbado tarde, quandoeu tinha oito anos, uma grande caixa marrom chegou at nossa varanda, comVOV em letras maisculas escrito como remetente.

    Uma caixa! eu disse, puxando meus pais at a porta. aniversrio dealgum?

  • No disse mame, sem se emocionar, empurrando a caixa para dentrode casa com o p.

    Dentro dela, sob vrias camadas de isopor, encontrei um pano de prato commeu nome nele. Para Rose, ela escrevera, com uma letra comprida e fina,num pedao de papel preso ao prprio pano. Eu o tirei da caixa e levei-o ao rosto.

    O que isto? perguntou papai, jogando os pedaos de isopor no cho epegando uma xcara de ch lascada com desenhos de margaridas e com umpapel preso a ela: Para Paul. A xcara quebrada dela? perguntou ele.

    O presente de Joseph era um conjunto de fronhas azuis e o nome da minhame estava preso a um saco plstico cheio de vrias embalagens velhas de ruge.

    Ela j est velha dissera mame, passando um pouquinho de ruge nascostas da mo. Mas ainda consegue chegar at a agncia do correio, no ? perguntou mame, largando as embalagens de ruge nos fundos de uma gaveta dacozinha.

    A vov vivia sozinha e provavelmente j havia perdido parte de suamemria, mas ningum ousava incomod-la. Papai tirou um punhado de moedasdos bolsos.

    Uau! Vocs no se gostam muito! disse ele, colocando todas as moedasdentro da xcara, de modo que ningum jamais a usasse para beber qualquercoisa.

    Eu adorei meu pano de prato. Era bicolor e tinha, num dos lados, bordadosde rosas roxas sobre um fundo cor de lavanda e, no outro lado, rosas cor delavanda sobre um fundo roxo. Que lado usar? Uma iluso de tica com a qual eupodia secar nossas louas. O pano era macio, gasto e cheirava a sabo em p.

    Como no nos visitava pessoalmente, a vov ligava uma vez por ms, nastardes de domingo, e minha me nos chamava para perto, colocava o telefone nomeio da mesa da cozinha e apertava o boto do viva-voz. A vov era rude, masengraada. Ela gostava de contar sobre seu grupo de Geologia amador.Convidava as pessoas at sua casa para coletarem e classificarem as pedras dojardim e, assim que passavam pela porta, ela pedia que fizessem silncio.

    s vezes eu at fecho suas bocas com fita adesiva, quando elas deixam.Uma farra. Voc entende, Joseph, no ? disse vov.

    Sim respondeu Joe. Ns bebemos muito disse ela, um pouco desejosa. E voc, Rose? Est

    a? Oi, vov eu respondi. Voc est quieta demais. Fale.Fiz um tubo com um dos jogos americanos de vinil. Amo voc eu disse pelo tubo.Fez-se um silncio. Do outro lado da cozinha, de sua posio como ouvinte

    no canto mais afastado, mame ficou perplexa. Amor? perguntou a vov pelos buraquinhos escuros do telefone. Sim eu disse. Mas voc nem me conhece. Como voc pode me amar? Isso algo que

    eu preciso merecer. Voc grudenta demais. Ela grudenta demais, Lane disse vov.

  • Me disse mame, tocando nas pontas de seu rabo de cavalo. No sou grudenta eu disse. Ela extremamente grudenta disse Joseph. Que rochas vocs

    encontraram? Como esto as coisas por a, me? Tudo bem? perguntou mame. No, nada bem. Eles esto cancelando minha carteira de motorista. E

    em seguida continuou. Basalto, Joseph. Encontramos muito basalto. Vou lheenviar um pouco.

    Caixas, na semana seguinte. Escuras e opacas. Ns repovoamos o jardim.Quando uma professora pediu que desenhssemos nossos avs numa aula sobreGenealogia, eu tomei conta da lousa e desenhei uma caixa escura e espessa comgrades e traos que indicavam a voz que saa dela.

  • 5Depois do almoo, minha professora me mandou para a enfermaria.Estudvamos a natureza nas tardes de quarta-feira. Na terceira srie, a

    natureza era s sobre insetos e eu estava muito empolgada com a aula sobrevaga-lumes, mas meu nimo mudou drasticamente durante a hora do almoo e,assim que voltamos para a sala de aula, deitei a cabea na minha mesa. Eu nopretendia fazer isso, mas foi como se algum tivesse pregado um m minhatesta e outro dentro do meu caderno. Foi para l que minha cabea teve de ir.

    Minha professora interrompeu a lio. Agora fechem os olhos e imaginem que vocs so vaga-lumes, voando e

    piscando na escurido da noite pediu.Ento ela se aproximou da minha mesa e se ajoelhou ao meu lado,

    perguntando se eu estava bem. Eu lhe disse que achava que estava doente, eminha amiga Eliza, que imaginava ser um vaga-lume ao meu lado, abriu um dosolhos para contar que eu havia passado todo o almoo no bebedouro.

    Ela estava com muita, muita, muita sede sussurrou Eliza. Por causa do calor? perguntou nossa professora. Acho que no eu disse.Fiquei em p ao lado da professora enquanto ela escrevia um bilhete com

    meu nome. Meus colegas de classe abriam os braos como se fossem asas,enquanto eu caminhava pelos corredores vazios, passava por velhos trofus epinturas de casas, at a porta aberta da enfermaria, onde, segurando aautorizao escrita pela professora, fiquei aguardando. Eu nunca havia visitado aenfermaria antes. Eu raramente ficava doente. E nunca fingi.

    L dentro, sentada atrs de uma mesa de pinho toda desgastada, umamulher vestindo uma blusa amarela de algodo remexia numa pilha de fichasalaranjadas e rosas. Quando lhe estendi minha autorizao, ela permitiu que euentrasse.

    S um segundo ela disse, escrevendo alguma coisa num pedao depapel.

    Eu j havia visto aquela enfermeira antes em eventos na escola, geralmenteajudando algum com um osso quebrado. Ela era a acompanhante dos ossosquebrados. Ela no usava roupas brancas, mas tinha braos leves e, no pulso, umrelgio com pulseira de seda cor de vinho. Depois de acrescentar anotaes aduas fichas, ela me lanou um olhar, enquanto eu permanecia sentada numacadeira. Outra criana doente, entre vrias crianas doentes.

    Qual o seu problema, querida? perguntou, pegando um termmetro eo chacoalhando.

    Fiquei de braos cruzados, pensando. Voc est com calor? No eu disse. Seu nariz est entupido?Respirei fundo. A sala tinha um leve cheiro de remdio sabor cereja. Voltei

    a olhar para seus cotovelos macios e a pulseira cor de vinho do seu relgio. Useiaqueles braos como primeiro sinal de confiana.

    A comida est com um sabor ruim eu disse.Aquilo no era exatamente a verdade. Eu havia comido uma ma

  • deliciosa durante o almoo. O leite desnatado estava bom. Mas quase tudo o quehavia comido antes o bolo, o frango do jantar, o brownie feito em casa, aansiedade no sanduche de pasta de amendoim havia me deixado com vriosgraus da mesma e assustadora sensao.

    Ruim como? perguntou a enfermeira, dando uma olhada no meu corpo. Voc acha que est gorda?

    No, oca respondi.Ela prendeu um pedao de papel a uma prancheta. Voc se sente oca? No eu respondi, confusa. A comida. como se houvesse um buraco

    na comida.Comida est com buraco, escreveu ela lentamente no papel. Eu vi quando

    ela acrescentou um ponto de interrogao. O arco, o trao, o espao, o ponto.O ar na enfermaria rareou. Ela mediu a minha temperatura. Fechei os olhos

    e imaginei que eu era um vaga-lume, voando e piscando na escurido da noite. Normal disse ela, depois de um minuto, consultando o termmetro.

    Ento... tem certeza de que voc no se acha gorda? No. Preocupam-se com isso cada vez mais jovens... disse ela, como se

    estivesse insinuando alguma coisa. Mas eu como.Ela escreveu aquilo na prancheta tambm. Diz que est comendo. Tome disse, me dando um copinho com gua.A gua supostamente vinha de uma fonte nas montanhas, mas estava

    guardada no plstico h muitas semanas, por isso era como beber acrlico lquidocom um toque de gua das montanhas.

    Beba, querida disse ela.Fiz que sim. Eu ainda queria, e muito, ser agradvel.E agora, no estava bom?, perguntou ela, limpando o termmetro com um

    leno umedecido com lcool. gua importante eu disse, segurando o copo. Temos de beb-la, se

    no morremos. Assim como a comida. Eu gosto de comida eu disse, mais alto. Trs refeies por dia? Sim. E voc alguma vez se obrigou a vomitar? No. Est tomando algum comprimido para ir ao banheiro? perguntou, com a

    testa franzida.Fiz que no com a cabea. O duto de ventilao zuniu e o ar-condicionado

    deu um solavanco. Eu podia sentir que as lgrimas comeavam a se reunir naminha garganta novamente, mas eu as separei, cada uma longe da outra.Lgrimas s so um perigo quando se juntam.

    Bem disse ela, com um suspiro. Ento apenas aguarde mais alguns

  • dias.Ela ps a prancheta de lado. S isso? S isso ela disse, sorrindo. Nenhum remdio? No, voc parece bem. Mas o que isso? perguntei.Ela ajeitou o relgio no pulso e deu de ombros. No sei. Talvez uma alergia... comida? ...Ou talvez uma imaginao frtil.Eu peguei a autorizao para voltar sala de aula. O restante do dia

    demoraria a passar. Apenas descanse um pouco e eu a examinarei novamente daqui a alguns

    dias disse a enfermeira, jogando fora o copinho descartvel. Beba muitolquido e acalme-se. Tudo bem com a sua famlia?

    Minha famlia? Sim, por qu? S perguntando ela disse, voltando a se sentar em sua cadeira e

    colocando um casaquinho amarelo-canrio sobre os ombros. que s vezesessas coisas esto relacionadas.

  • 6Passei o restante do dia no tapete verde e duro da biblioteca da sala de aula,lendo livros com figuras de animais enfrentando problemas. Uma tardedesperdiada. Eddie e Eliza se aproximaram com olhos curiosos para verem seeu queria jogar bola depois da escola, mas eu lhes disse que no estava mesentindo bem.

    Vocs no vo querer pegar isso eu disse, tossindo um pouco no rostodeles.

    Arrastei-me at o nibus. No ponto, Joseph parecia esgotado pelo diatambm e assumiu seu lugar de sempre na janela, mas desta vez se sentou comum amigo que tinha sobrancelhas arqueadas e braos e pernas magros ecompridos. Eles estavam curvados sobre um livro e conversaram e discutiramdurante todo o trajeto at em casa.

    Era uma quarta-feira, e George sempre nos acompanhava nas quartas-feiras depois da escola. Ele era o melhor e nico amigo de Joseph. GeorgeMalcolm: meio branco, meio negro, com cabelos oleosos e desgrenhados,despenteado e cheio de cachos. Certa vez, h mais ou menos um ano, ele estavaem nossa casa e tirou um tufo do seu cabelo, usando-o para me ensinar sobreredemoinhos e hlices.

    Um redemoinho uma corrente que circula em torno de um pontocentral explicou, dando-me um pedao do cabelo para que eu o segurasse. Euajeitei o cacho. A natureza cheia das mesmas formas disse ele, levando-me at a pia do banheiro, tirando o tampo do ralo e mostrando como a guagirava. Levando-me at a estante e abrindo um livro sobre o clima e memostrando a imagem de um ciclone. Depois, uma galxia em espiral. Levando-me de volta pia do banheiro, at meu jarro de vidro com as conchas que eucolecionava, e mostrando o mesmo desenho encaracolado numa conchinha. Est vendo? perguntou, segurando a concha na altura dos cabelos.

    Sim.Seus olhos estavam exultantes com o prazer de ensinar. um cabelo galctico disse ele, sorrindo.Na escola, George j era uma lenda. Ele sabia tanto sobre fsica que, certa

    tarde, o professor de cincias da oitava srie lhe pedira para fazer umaapresentao sobre os aspectos bsicos da teoria da relatividade, bem rpida,para a turma. George se levantou e fez um timo trabalho, usando um peso depapel, uma rgua e o relgio da escola, tanto que o professor tirou uma nota devinte dlares da carteira. O professor lhe dissera que queria ser a primeira pessoaa pagar por sua clareza de raciocnio. E George usou o dinheiro para comprarpizza para a turma. De calabresa, contou-me depois, quando perguntei.

    Naquela tarde, ns todos descemos do nibus em Fairfax e Melrose e eusegui os dois at em casa, cansada, sendo puxada pelo cheiro gorduroso dosburritos de pastrami da Oki Dog, e quando George se virou para mostrar algo nadireo de um avio, ele me viu acompanhando-os bem atrs e acenou.

    Ei, Rose! Tudo bem com voc? Oi. Est quente.Joseph continuou andando com sua camiseta azul desbotada, dando as costas

    para mim.

  • Voc esteve andando atrs da gente esse tempo todo? perguntouGeorge.

    Fiz que sim. Ele continuou andando de costas, como se esperasse poralguma coisa, por isso levantei minha mo.

    George riu. Sim? Senhorita Edelstein? disse ele. Voc alguma vez j esteve na enfermaria da escola? No. Deixa para l eu disse. Tudo bem ele disse. Ele parecia um pouco entediado.Ele comeou a se virar, por isso acenei novamente. Espere! Desculpe. Tenho uma pergunta de verdade. Uma pergunta de

    cincias.Dessa vez meu irmo virou-se para olhar, irritado. Ei, estamos ocupados. No queremos falar sobre vaga-lumes. E se a comida tem um sabor esquisito? perguntei. Voc experimentou aqueles burritos da cantina? perguntou George,

    ainda andando de costas, batendo com o lpis na cabea como se fosse umabaqueta. Eu comi um burrito um dia desses. Nossa, como foi engraado.

    Voc no tem aula de flauta? perguntou Joseph, virando-se apenas parafalar.

    s segundas eu disse. A maioria das comidas. Ou Eliza? disse Joe. Bal eu disse. O que voc quer dizer? perguntou George. O que eu devo fazer? No estou entendendo disse George. Acho que tem algo de errado comigo eu disse, com uma voz hesitante.George me lanou um olhar confuso. Tanto ele quanto Joe eram os

    esquisites da oitava srie. Cada parte de seus corpos crescia a uma velocidadediferente, destruindo a proporo e, naquele momento, as sobrancelhas deGeorge estavam to altas e to pontudas na testa que ele sempre parecia cticoou surpreso.

    Chegamos porta de casa e Joseph remexeu em sua mochila procura dochaveiro. Ele era o responsvel nas tardes de quarta-feira e tinha um chaveironovo que comprara com sua mesada um crculo de prata macia com umfecho especial que se prendia parte vazia do crculo. Depois de encontrar ochaveiro, ele nos deixou entrar e depois prendeu o chaveiro ao cinto, como sefosse um encanador. E seguiu pelo corredor para ir diretamente para seu quarto,mas George ficou mais um pouco na entrada.

    Voc toca flauta? perguntou. Um pouquinho. Ei, George chamou Joseph, tirando o livro da mochila e abrindo-o.

    Aposto com voc. Um barco cheio de bandidos est saindo de um per com seismetros de altura a uma velocidade constante de vinte e quatro quilmetros porhora. Um carro cheio de policiais est prestes a chegar ao per para prender os

  • bandidos. A que velocidade o carro dos policiais deve estar para pousar no barcodos bandidos se o carro sair voando do per quando os bandidos j estiverem adez metros de distncia?

    Mas George cruzou os braos, de um jeito que ele fazia s vezes, quandoentrava e saa do quarto de Joseph, de um lado para o outro. Eles faziam cpiasde problemas de fsica que encontravam na biblioteca e os resolviam durante atarde Joseph em sua escrivaninha e George andando de um lado para o outro.Eles abriam a porta lateral para que o ar fresco entrasse e faziam notas e seesforavam pelas notas extras que o professor lhes daria, coisa que nem oprofessor sabia.

    Ele olhou fixamente para mim. Olhos castanhos e penetrantes. O que h de to errado com voc? perguntou.Fiquei vermelha de vergonha. Contei o que havia relatado enfermeira.

    George ficou na entrada para ouvir, mas Joseph j estava dentro do quarto.Havia acabado de jogar o livro sobre a cama e se sentar diante da escrivaninha,onde ps um pedao de papel quadriculado e um compasso que pegara de umapasta. Enquanto conversvamos, ele ps a ponta fixa do compasso no papel,prendeu nele um lpis e comeou a desenhar, com suas mos meticulosas, umbelo arco. Os movimentos seguros, como se ele soubesse exatamente o mistriodo Universo que estava prestes a apontar.

    Ento como um queijo suo? perguntou George quando terminei defalar.

    No. um nico buraco. A enfermeira disse que eu tenho umaimaginao frtil.

    Joseph amassou seu arco perfeito e pegou outra folha de papelquadriculado.

    No o amasse, Joe disse George. Eu estraguei tudo disse Joseph, jogando a folha no lixo. Eu tenho aquele plano para o meu quarto, lembra? Um papel de parede

    de erros. E novamente virou-se para mim. De qualquer modo, vamosexamin-la. Vamos mesmo ter de fazer um lanche.

    Agora? perguntou Joseph, abrindo o compasso novamente e firmando aponta seca na interseco de dois quadrados azuis.

    S por uns minutinhos disse George. Voc est livre? perguntou,olhando para mim.

    Estou.Ele bateu palmas. Primeiro item da pauta: descobrir o que est acontecendo com a Rose

    disse.Joseph abriu a boca para reclamar. Segundo item, voltar ao trabalho! completou George.Eu me curvei um pouco. Como era bom todas as vezes que ele dizia meu

    nome. Era como ouvir meu nmero sendo chamado num sorteio.Joseph quase amassou sua folha novamente, mas desistiu e a estendeu.

    George a segurou contra a luz, admirando as curvas como se fosse uma pintura. Lado norte da parede disse, balanando a cabea. Perfeito.

  • Naquela tarde, comemos quatro sanduches, salgadinhos, torrada com

    manteiga, e tomamos refrigerante e achocolatado. Comi tudo o que estava nageladeira. Mame ainda estava em seu novo emprego, no estdio de marcenariaperto de Micheltorena, depois da Sunset em direo s colinas, e meu irmo eGeorge passaram acar e geleia sobre as torradas e conversaram sobre suassries de TV preferidas com robs, enquanto eu mordia, mastigava e relatava oque estava sentindo para George. Ele havia encontrado um bloco de anotaesperto do telefone e o mantinha sobre o colo, com uma lista de comidas na colunada esquerda e minha reao a elas na coluna da direita.

    Semioca disse, sobre o que havia sobrado do ensopado de atum damame.

    Horrvel! eu disse, engolindo um bocado do pudim de leite que meu paihavia deixado numa tigela. O papai era to distrado e atrapalhado que eu malpodia sentir qualquer sabor. O sensor parecia no estar restrito s comidaspreparadas pela minha me e havia tanto a experimentar, uma torrente deinformaes mas, com George ali, sentado no calorzinho do sol daquela tarde deprimavera, filtrado pelas janelas da cozinha, preparando torrada com manteigaque eu comia alegremente, leve e bom com sua ateno e sua preocupaogentil, pude comear a pensar nas camadas. O distribuidor de pes, a fbrica depes, o trigo, o fazendeiro. A manteiga, que tinha um sabor triste. Quando olhei aembalagem, li que aquela manteiga vinha de uma grande fazenda em Wisconsin.O requeijo era delgado, como se tivesse algo de muito metlico depois desaboreado. O leite, cansado. Todas aquelas partes distantes, amontoadas como obarulho distante de um avio ou de um carro estacionando, tudo pairava aofundo, ofuscado pelo estado de esprito de quem preparava a comida.

    Ento quer dizer que toda comida tem um sentimento? perguntouGeorge quando tentei lhe explicar sobre o ressentimento cido que sentira nageleia de uva.

    Acho que sim. Muitos sentimentos disse.Ele desenhou alguns quadrados no bloco. isso o que voc est sentindo? perguntou.Fiz que no com a cabea. No sei. Como voc se sente? Cansada. Com sabor de cansada? Mais ou menos.Joseph, que estava sentado mesa com seu livro, preparara para si uma

    torrada com manteiga e geleia e um pouco de acar. Quando ele se distraiu,estiquei-me e peguei um pedao. Devo ter feito uma cara feia imediatamente,porque George me lanou um olhar rpido.

    O qu? perguntou, escrevendo Torrada do Joseph na coluna daesquerda, com letras grandes.

    Ah eu disse, estonteada e com a boca cheia. Diga-nos disse George, com o lpis j pronto.

  • Eu no conseguia olhar para o Joseph. Eu mal podia comer aquilo. O poparecia gosmento e espesso, difcil de mastigar. Um vazio e uma aspereza, algose encolhendo.

    Uma anmona do mar? murmurei.Joseph levantou os olhos, deixando de dobrar o rtulo do ch gelado num

    quadrado perfeito. Seus olhos buscavam a porta. Estou bem! disse ele, rindo. Eu me sinto bem.Cuspi o po num guardanapo.Joseph levou seu prato at a pia. J terminamos? perguntou ele. Prometi ao Patterson que

    resolveramos o problema da corrida. Est bem disse George, levantando-se. Ele se espreguiou e sua

    camiseta se ergueu um pouco, deixando mostra sua pele. Depois ele sorriu paramim. Bom trabalho, mocinha.

    Depois que os dois saram da cozinha, coloquei o leite e a geleia de volta nageladeira, peguei uma faca e raspei minha lngua de leve com a parte afiadapara tirar o sabor da torrada do Joseph da minha boca. Como isso no deu certo,peguei uma caixa com biscoitos doces tranados do armrio. Os biscoitos,preparados individualmente, tinham apenas o distante zunido constante defarinha, manteiga, chocolate e fbricas. Comi seis. L fora j no fazia tantocalor e lavei a loua, a gua fria escorrendo pelas minhas mos, devolvendo obrilho s facas e aos garfos.

    Quando terminei, peguei um jogo de tabuleiro no armrio da sala e o pus dolado de fora do quarto do Joseph, de modo que eu pudesse estar o mais pertopossvel sem na verdade violar a placa de Mantenha distncia. Apegava-me aosom abafado da voz de George que eu podia ouvir atravs da porta de madeira.

    Como voc est se saindo a fora? gritava ele de vez em quando. Tudo bem eu disse, fazendo uma pea amarela avanar quatro casas. Ela louca disse Joseph, escrevendo alguma coisa. Ou seu

    temperamento ruim. Voc j ouviu falar disso. Temperamentos.Meu estmago se contraiu. Talvez disse eu, bem baixinho, para a pilha de dinheiro falso que eu

    estava ganhando no jogo de tabuleiro que disputava comigo mesma. Vamos test-la melhor no fim de semana, fora da casa disse George.

    Joe, leia o oitavo em voz alta novamente. No fim de semana? perguntou Joe.Era impossvel ignorar o tremor em sua voz. S durante uma parte do sbado disse George. Tudo bem, Rose? Um

    pouco mais de informao? Sbado ao meio-dia? Claro eu disse, pagando a mim mesma um milho de dlares tirados da

    pilha de dinheiro.

  • 7Certa vez, h mais ou menos um ano, surpreendi meu pai com um gostoextravagante por desenhar bolas de futebol, cada hexgono se encaixandoperfeitamente no pentgono colorido ao lado. Meu pai, um grande f de futebol,ficou feliz. Ele pegava cada um dos desenhos e se empolgava, enquanto nossentvamos para assistir ao jogo juntos.

    Isso o que eu chamo de arte! dizia, colocando o desenho sobre ateleviso.

    Mas em pouco tempo comecei a cultivar o hbito desanimador deacrescentar grandes olhos com clios compridos e uma boca vermelha sorrindodentro dos espaos vazios da bola.

    Ah, Rose, no! dizia papai, coando o queixo. No consigo evitar eu dizia, entregando-lhe a quinta bola sorridente.

    Elas pareciam simples demais.Depois disso, deixei de assistir aos jogos com ele, mas foi s nessa poca

    que me lembro de ter mostrado um talento especial qualquer. Era to bom juntartodos os seis lados com seus respectivos pentgonos. Fazendo pontinhos como sefossem costuras. Em geral, eu no me destacava em nada, para o bem ou para omal. Comecei a ler com a idade em que as crianas comeam a ler. Eu me saabem na escola, mas ningum jamais chamou meus pais para lhes falar sobremeu potencial, e eu parecia estar satisfeita correspondendo s expectativas.

    Meu irmo era o gnio da famlia. Aos seis anos, ele j construa maquetesdo Sistema Solar com Legos nos quais ele fazia buracos com um instrumento quecomprara do dentista com sua mesada. Ele usava palavras complicadas desdemuito cedo, dizendo coisas como eu devo deglutir agora, ao comer seu cereal,e os adultos riam dele, adorando seus grandes olhos acinzentados e sua aparnciasria, e depois tentavam abra-lo, o que ele recusava.

    No me toque dizia ele, jogando os braos para frente e para trs, comoum rob.

    Joseph brilhante, costumavam dizer os adultos quando saam de casa,admirando com gestos afirmativos o desenho preciso que ele havia feito numbloco dos planetas que ainda seriam descobertos, incluindo a atmosfera espessa esuas luas. Nossa me prestava ateno, admirada. Eu, em geral, era admiradapor ser agradvel.

    Voc faz amizades com tanta facilidade! disse certa vez mame, sporque sorri para o homem que trocou o leo do carro, que me sorriu de volta.

    A verdade que eu no tinha muita concorrncia, j que Joseph nuncasorria para ningum, o papai apenas mostrava os dentes e os sorrisos da mameeram to emocionados que as pessoas recuavam um pouquinho quando ela ascumprimentava. Era difcil saber ao certo o que ela lhes estava oferecendo.

  • 8Por volta das cinco e meia, depois que George e eu havamos esvaziado ageladeira, mame chegou em casa do seu primeiro dia no estdio demarcenaria. Seu rosto estava vermelho, como se ela tivesse corrido.

    Foi maravilhoso! disse ela, me pegando pela mo.Ela procurou por Joseph, mas ele estava lendo em seu quarto. George havia

    ido embora para sua casa. Vamos dar um passeio rpido pelas rvores da vizinhana disse

    mame, com uma voz segura, me puxando para fora da casa. Ento, esta uma figueira disse ela, apontando para uma rvore que crescia no meio dojardim de algum. Madeira macia. Esta aqui: pltano disse, batendo notronco da rvore seguinte. Ela fez uma cara feia. Acho que no se faz mveiscom pltano, mas no sei direito o porqu.

    Eu tirei um pedao acinzentado e em zigue-zague da casca, diretamente dotronco. Percebia seu entusiasmo como a primeira fase de um interesse novo. Asegunda fase viria geralmente trs ou quatro meses mais tarde, quando elaatingia um limite depois que sua empolgao com seu talento desaparecia e elatinha dificuldades para se relacionar com pessoas normalmente habilidosas. Aterceira fase era cheia de negativas com a cabea e muito discurso sobre por queaquela habilidade especfica sociologia, cermica, computadores, francs no servia para ela. A quarta fase era o longo e incmodo perodo de espera, queeu conhecia por acordar vrias vezes s duas da manh, descendo pelo corredorat o colo dela.

    Cascudo demais disse ela, dobrando a casca.Eu me apoiei um pouco no brao dela enquanto caminhvamos pela

    calada sombreada de Martel, acenando para alguns vizinhos segurandomangueiras em seus quintais. s cinco e meia, o calor era ameno, agradvel, e oar parecia cintilante e envolvente. Ela me perguntou se eu estava me sentindomelhor e eu disse que um pouco, tentando ignorar a proximidade do jantar e meconcentrando no que ela disse a seguir, algo sobre estar preocupada com apossibilidade de no ser capaz de se igualar aos demais no estdio. O que nofazia nenhum sentido. Minha me tinha problemas para escolher e persistir, masela era boa em tudo, especialmente em coisas que envolviam suas mos; a camaque ela fez era to perfeita que durante anos eu dormi sobre lenis, no cho,porque eu no queria arruinar a incrvel preciso da cama colocando nela meucorpo.

    Acho que voc se sair bem eu disse.Ela ajeitou uma mecha dos meus cabelos atrs da minha orelha. Obrigada. Voc me apoia tanto. Muito mais do que seu pai.Ela realmente parecia mais leve, com um nimo renovado, enquanto

    visitvamos as rvores para cima e para baixo em Gardner e Vista, voltandodepois para casa.

    As sobras do jantar foram uma repetio dos problemas da noite passada,

    amenizados apenas pelo dia na companhia de George e sua gentileza. Eu melembrei do conselho da enfermeira, tentando ver se minha sensao estava seespalhando, mas ningum mais pareceu incomodado. Papai perguntou sobre a

  • marcenaria e mame nos contou que sua primeira tarefa seria cortar um painel. Um painel! ele disse, brindando com ela. Que coisa!Ela franziu a testa. No seja mau. O que foi que eu disse? perguntou ele, arregalando os olhos. Eu no

    consigo construir nada. S consigo remontar banquinhos que j esto prontos.Ele lhe deu uma piscadinha. Ela esvaziou sua taa, num gole s. Voc j ouviu essa histria, Rose? perguntou ele. Muitas vezes eu disse.Joseph pegou o pimenteiro e o sacudiu sobre a comida, numa chuva de

    gros pretos. Como nossa me, ele tambm tinha mos compridas e belas comoas de um pianista, dedos capazes de aguar e focar como se fossem olhos.

    Sem gosto? perguntou mame.Joseph fez que no. S estou experimentando disse ele. Hoje anunciou papai, com uma pancadinha na toalha de mesa vi um

    homem levando um macaco para passear. Verdade. Onde? perguntei. Praa Pershing. Por qu?Ele deu de ombros. No tenho a menor ideia disse, limpando a boca. Esse foi o meu dia.

    Prximo.Joseph soltou o pimenteiro. Bom ele disse. Meio bom, meio horrvel eu disse. Meio horrvel! disse papai, esperando. Minha cabea est confusa eu disse. Parece bom para mim disse o papai. Muito bom. Ah, Rosie, no! disse mame. Ela jogou um pouco de pimenta sobre

    seu jantar e depois se aproximou para que eu encostasse minha cabea em seucorpo. Voc tem uma cabecinha linda. Uma linda e boa menina a dentro.

    A comida est cheia de sentimentos eu disse, empurrando meu prato. Sentimentos? questionou papai.Por um segundo, ele me examinou bem de perto. No consegui comer meu sanduche eu disse, com a voz trmula.

    No consigo comer o bolo. Ah, isso... disse papai, recostando-se na cadeira. Claro. Eu tambm

    era enjoado. Passei um ano inteiro me alimentando s de batatas fritas. Elas tinham gosto de pessoas? perguntei. Pessoas? disse ele, torcendo o nariz. No. Batatas. Voc parece bem disse mame. Ela experimentou um pouco do

    frango. Melhor com um pouco de pimenta disse, meneando a cabea. Muito melhor, alis.

    Joseph cruzou os braos. Foi s uma experincia disse ele.

  • Vou sair com o George e o Joseph no sbado eu disse. S porque seu aniversrio disse Joseph. Seu aniversrio repetiu mame. Nove anos. D para acreditar?Ela se levantou, foi at o caderno de receitas e escreveu na receita com

    letras bem grandes: ACRESCENTE PIMENTA!. A est! disse ela.Empilhei meu prato sobre o do papai. Ele empilhou nossos pratos sobre o de

    Joseph. Voc no est vendo? perguntei ao papai. Vendo o qu?Apontei para mame. Lane disse ele. Sim, vejo uma bela mulher.Mantive os olhos fixos nele. O qu? perguntou ele novamente. Ela eu disse. Eu? perguntou mame. O que isso, Lane? perguntou papai. O que est acontecendo? Nada disse mame, balanando a cabea e tampando a caneta. Ela riu.

    No tenho a menor ideia do que ela est falando. Rose? Ela disse que quer apoio eu disse. Ah, no disse mame, toda vermelha. Eu s estava brincando. Eu me

    sinto muito apoiada por todos vocs. Posso sair? perguntou Joseph. Ela est fazendo um painel disse papai, levando os pratos empilhados

    at a pia. O que mais h para se dizer sobre isso? Ela far um painel perfeito.Tem sobremesa?

    No me mexi. Mame continuou ajeitando o cabelo atrs das orelhas.Ajeitando, ajeitando. Joseph ficou imvel.

    Posso sair? perguntou ele novamente. O que voc quer fazer no sbado, Rose? perguntou mame. Podamos

    nos arrumar e caminharmos pelo parque juntas. Tem alguns pedaos do bolo delimo ali, Paul.

    Eu tenho um compromisso importante com o George eu disse.Joseph se encolheu em seu lugar mesa. Depois de sbado, mais nada disse ele para mim. Entendido? George? perguntou mame. O George amigo do Joe? Eu no sabia que ela precisava de apoio! disse papai, na pia.Joseph saiu da cozinha. Meus pais se viraram para mim, seus rostos leves e

    iluminados. Ficamos diante da toalha vazia. Ns agradecemos a comida? perguntei. Agradecer algo que as pessoas fazem antes das refeies disse

    mame. Ela caminhou at os pratos empilhados na pia. para agradecer pelacomida que estamos prestes a comer.

    Fechei os olhos. Pela comida que comi sussurrei. Obrigada.

  • Por ser o provedor da casa, meu pai estava dispensado de lavar a loua eJoseph era to meticuloso com as louas que era melhor que ele ficasse no seuquarto, por isso estvamos s eu e minha me em frente pia ensaboada: elalavando, eu secando. Eu secava as louas usando meu novo pano de prato rosa,presente da vov. Mame parecia de bom humor, massageando meu ombro eme perguntando vrias coisas rpidas sobre a escola, mas o gosto do frango aindaestava na minha boca e era difcil acompanhar a animao dela, no era capazde separar as informaes na minha mente. Passei o pano em crculos sobre ospratos molhados, empilhando-os no armrio. Enfiei o pano nas canecas parasec-las. E, por fim, pendurei-o num anel de metal no armrio.

    Depois, peguei minha mochila, colocando-a nos ombros, e sa pelo corredorem direo ao meu quarto. Eu andava devagar, como se meu crebro fosse umcopo cheio dgua que eu precisasse carregar com cuidado pelo corredor.

    Para a minha surpresa, a porta do quarto de Joseph estava semiaberta. Eraalgo raro e bom, como um convite, j que recentemente instalamos umafechadura nova em sua porta, comprada na mesma loja de ferragens, com suamesada. Ele s guardava a chave nova tambm naquele elegante chaveirocircular de prata.

    Ainda havia um restinho de dia l fora, mas as cortinas estavam fechadas epor isso Joseph havia ligado a luminria sobre a escrivaninha. Ele estava deitadona cama, os ps cruzados, lendo Discover perto de um punhado de peasprateadas de um rdio.

    Oi eu disse. Ele tirou os olhos da revista. Mas no levantou os olhos parame cumprimentar, e sim para criar uma barreira entre ns. Desculpe porabusar do George.

    Ele me olhou sem dizer nada. Eu continuei. Voc no precisa me dar nenhum presente de aniversrio. O sbado pode

    ser o meu presente. Est se sentindo melhor? perguntei. Como assim? O que aconteceu antes, com a torrada.Ele voltou para sua revista. Jesus. Voc acha que todo mundo est mal. Eu estava bem o dia todo

    disse, olhando para a revista. S no queria passar minha tarde vendo minhairmzinha lanchando, est bem?

    Ele virou a folha e continuou lendo.Eu fiquei ali na porta, esperando por algum tempo. Toquei no d do cartaz de

    Mantenha distncia pendurado em sua porta.Ele levantou as sobrancelhas. Mais alguma coisa? S isso eu respondi. Boa noite disse ele.Virei-me para sair e estava quase fora do quarto quando percebi algo em

    minha viso perifrica, alguma coisa perto de onde ele estava deitado na cama.Foi como se, por um instante, a estampa do cobertor se iluminasse ou o brancoficasse mais branco. Ento eu me virei novamente para olhar e tudo estava

  • perfeitamente imvel, Joseph lendo, distante. Voc est bem? perguntei, balanando a cabea para pensar melhor.Ele levantou os olhos mais uma vez. A gente no acabou de falar sobre isso? s que...Seus olhos estavam arregalados, fixos. Quase interessado. As cores mudaram? perguntei. O George est vindo para c? Agora? perguntou ele. No. J anoiteceu. Voc se mexeu ou coisa parecida? Eu? Sim, voc saiu da cama?Ele deu uma risada curta e grosseira. Fiquei aqui o tempo todo. Desculpe. Deixa para l. Boa noite.

  • 9Mame amava mais meu irmo. No que ela no me amasse eu sentia osjatos de amor todos os dias, me inundando, mas era um tipo de amor diferente,que jorrava de um cano diferente, vindo de uma fonte mais amena. Eu era suafilha querida; Joseph era tudo.

    Ele no era o favorito mais provvel. Papai, que dizia no preferir ningum,s vezes olhava para Joseph como se ele tivesse cado de uma rvore, e poucaspessoas se aproximavam naturalmente de Joe, exceto George. Ele sempre foiuma pessoa distante eu tenho uma vaga lembrana, de quando tinha dois anos,de encontrar Joseph sentado no seu quarto, no escuro, tanto que at mesmo meucrebro de beb o associou a cavernas , mas em algum momento da terceirasrie, mame comeou a tir-lo da escola. Ele ficava entediado na aula, quasecomo uma ofensa, e a professora certa vez teve de lhe dar a prpria bolsa paraque ele a organizasse enquanto o restante da turma aprendia a somar. Ouacontecia de mame ir peg-lo e ele ter feito uma espcie de corrente com TicTacs, cada bala presa a um alfinete que ele pegara do kit de costura da sala deaula.

    Olhe, mame dizia ele, estendendo a corrente esverdeada e com saborde menta. Bactrias.

    A professora hesitou, envergonhada. Ele to inteligente sussurrou ela, como se Joseph a tivesse magoado

    com aquilo.Certa tarde, mame apareceu comigo no colo, disse ao diretor que Joseph

    tinha uma consulta mdica e o tirou de l, bem no meio de uma aula deEducao Fsica na qual ele teria de arremessar uma bola. O diretor no duvidouda consulta mdica e nem os outros alunos, porque Joseph era magro, plido eencurvado e parecia precisar de muitos cuidados mdicos. Mame nos levou ato carro e me prendeu ao assento.

    A qual mdico vamos? Eu estou doente? perguntou Joseph. Nem um pouco ela disse, saindo do estacionamento da escola e ligando

    o rdio. Soaram trompetes. Voc perfeito e est perfeitamente saudvel.Vamos ao mercado.

    O que ele ia ficar fazendo? Correntes de balas o dia todo? ela meperguntou alguns anos depois, lembrando do que acontecera naquele ano.

    Eu estava com eles o tempo todo, mas muito mais como uma sombra doque como uma participante.

    Naquela tarde, ns trs fomos a uma loja de roupas, ao mercado deprodutos orgnicos e lavanderia. Passeamos por toda o Wilshire Boulevard,desde o litoral at o centro, desviando no caminho de volta para a casa pela SextaAvenida e passando pelos palcios de Hancock Park, por entre os graciosospinheiros plantados em 1932 pelos mandachuvas do mundo do cinema. Paramosno mercado para comprar ravili e espinafre para o jantar. Minha me estavadesempregada naquele ano e ela no gostava de dirigir sozinha. s vezes elesdois conversavam sobre como as rvores cresciam ou por que precisvamos dechuva; s vezes ficavam em silncio enquanto eu espalhava migalhas de biscoitopor todo o banco traseiro. Mame adorava ouvir o que Joseph tinha a dizer, elaconcordava com ele e o encorajava a cada palavra que ele dizia. Por fim,

  • paramos com o carro prximo ao meio-fio e ela lhe pediu conselhos sobre a vida e at s oito da noite ele respondera suas perguntas num monlogo baixo elento. Ela se segurava firmemente ao cinto de segurana, com os olhos fixos nosdele, ouvindo.

    Tudo isso aconteceu durante meses e ningum disse nada ao papai. Tudoestava indo bem at certa tarde quando Joseph estava na sala de aula durante ointervalo porque ele no gostava de jogar queimada. A professora estavalimpando a lousa com um pano mido. Joseph estava agachado no cho da sala,analisando a graduao das cores das fibras do carpete, quando a professora lheperguntou, mostrando-se muito preocupada, se ele j estava se sentindo melhor.Joseph disse que estava bem.

    Mas os mdicos devem estar lhe dando muitos remdios, no ? perguntou a professora.

    Ela era uma professora tolinha. Eu a conheci alguns anos mais tarde e elasoltou um gritinho ao me conhecer, como se eu fosse tortur-la novamente coma genialidade dos Edelstein. Quando lhe disse que no era um gnio, ela semostrou visivelmente relaxada.

    No disse Joseph. Mas ento o que os mdicos fazem? perguntou a professora, enquanto

    tirava os pedacinhos de giz que caram da lousa.Joseph ficava longe da sala de aula durante a maior parte do dia, s vezes

    trs vezes na semana. Ele no respondeu nada. Ele estava debaixo da mesa daprofessora agora, investigando a granulao da madeira.

    Joseph? Ns vamos ao mercado. Voc vai ao mercado com os mdicos? No, eu e mame. Antes de ir ao mdico? perguntou a professora, deixando de limpar a

    lousa. Foi o que os mdicos mandaram disse Joseph, levantando os olhos um

    pouco para v-la com cara de dvida.Eu conhecia a histria toda de trs para frente porque a ouvi sendo contada

    e recontada ao telefone, para amigos, para o meu pai, para qualquer um,enquanto minha me era investigada. Ela falou sobre isso durante anos. Algunsassistentes sociais apareceram e ficaram fazendo perguntas na sala de estar porduas horas. Os partidrios do ensino caseiro na vizinhana surgiram com umapilha de panfletos feitos em casa. Quando papai descobriu o que estavaacontecendo, ele trouxe um bloco de papel para a mesa do jantar para tentarentender, fazendo as mesmas perguntas vrias vezes enquanto Joseph e eucomamos.

    Mas expliquem de novo ele dizia, franzindo a testa. Por que voc oestava tirando da escola?

    Porque ele estava morrendo de tdio dizia mame, agitando o garfo noar. Deixem-no descobrir o mundo sozinho!

    Papai escreveu alguma coisa no bloco. Mas voc no ia a um museu dizia ele. Voc ia a uma lavanderia.

  • Mame rangia os dentes. Ele gostava dizia ela. Voc no aprendeu alguma coisa, querido?Joseph se ajeitou na cadeira. Eles usam solventes lquidos, mas no gua afirmou.Mame teve de conversar com o presidente do responsvel pelos alunos e

    com o diretor e ficou sob observao para sempre. Alguns anos mais tarde,quando ela quis me tirar da escola por causa de uma consulta mdica deverdade, para tratar de uma gripe que no sarava, tive de esperar na sala dadiretoria, olhando para um aqurio escuro com fileiras de peixinhos azuisziguezagueando, enquanto o secretrio ligava para o doutor Horner a fim deconfirmar minha consulta.

    Tussa, Rose mame dissera enquanto caminhvamos juntas para adiretoria. Soltei um espasmo bronquial formidvel.

    Est vendo? perguntou mame para o secretrio. Podemos ir?O secretrio me olhou preocupado. Desculpe disse ele, hesitante. So ordens da escola.Ele ficou tentando falar com o doutor Horner durante quinze minutos e ns

    quase perdemos a consulta. Na sala de espera do mdico, mame folheava asrevistas como se as pginas precisassem ser estapeadas.

    Aqueles meses de vagabundagem pareceram benficos: me e filhos indo a

    lojas juntos. Era at cndido, de certo modo. Os assistentes sociais saram decasa naquele dia segurando fatias do po de banana recm-assado da mame,agradecendo enquanto entravam no carro. Assim que Joseph voltou sua rotinaescolar normal, papai se esqueceu do assunto. Mas a nica consequnciaverdadeira de todas aquelas faltas foi que Joseph, que j era de poucos amigos,criou ainda menos laos com as crianas da turma. Ele teve alguns amigos nosprimeiros anos ningum para chamar em casa, mas suas conversas eramcheias de nomes repetidos: Marco, Marco, Marco, Steve, Marco, Steve, Steve.Depois daquele ano na terceira srie, tudo mudou para Eles e Elas. Eles sarampara o recreio. Eu no gosto deles. Eles jogam xadrez. Eles tiveram ponche defrutas no almoo, posso tambm? Posso ficar em casa? No que qualquer coisadessas fosse um problema para mame ela achava que Joseph era perfeito,mesmo que ele sempre estivesse de mau humor, raramente olhasse as pessoasnos olhos e ignorasse todo mundo. Ela o chamou de Joseph, o deserto, numa tardede vero quando estvamos caminhando pelo Per Santa Monica, porque,explicou ela, ele era um ecossistema que simplesmente precisava de poucosrecursos.

    O sol basta para Joe disse ela, sorrindo para ele.Joseph andava dois metros afastado, encantado com as quadras de esportes

    que margeiam o lado sul do per. Ele uma pessoa econmica em seus recursos contou-me mame, j

    que Joseph no estava ouvindo. E o que sou eu? perguntei, andando por sobre as madeiras frgeis do

    caminho que levava ao fim do per, onde os pescadores ficavam o dia todo comsuas varas de pescar antiquadas.

  • Voc? perguntou ela, olhando para a gua ao longe. Hummm. Umafloresta tropical.

    Floresta tropical, o que isso quer dizer? Voc exuberante. Preciso de chuva? Muita chuva. Isso bom? perguntei. Nem bom nem ruim. Uma floresta tropical uma coisa boa ou ruim? E o que voc ?Ela deu de ombros. Eu mudo muito. Como a Grande Ilha do Hava. Voc o Hava? A Grande Ilha. Ela tem sete climas diferentes. Voc tambm pode ser o

    Hava, se quiser. Voc uma floresta tropical? Acho que no disse ela. Um deserto? s vezes. Um vulco? s vezes disse ela, rindo.Segui caminhando sozinha at o parapeito. O oceano parecia bem definido e

    spero naquele calor todo. Quando chegamos ao fim do per, fiquei ao lado deum velho pescador japons que me contou que estava ali pescando desde as seise meia da manh.

    A que horas voc acordou? ele me perguntou. s sete. Eu j estava aqui disse ele, olhando para o relgio. E ainda estou aqui.Um cesto cheio de peixes, dentro de um isopor, estava a seus ps. Eram trs

    e meia da tarde. Agora eu tambm estou aqui eu disse. Ns dois estamos aqui ele disse. Voc viu o nascer do sol? Sobre as montanhas ele disse. Foi bonito?Ele fez que sim. Alaranjado e rosa disse. Quero ser o oceano e no a floresta tropical eu disse no caminho de

    volta para casa. Claro disse mame, que h muito tempo pensava em outra coisa

    qualquer. Joseph se aproximava de mim raramente, do mesmo modo que, no deserto,

    nasce uma flor de vez em quando. Voc se acostuma tanto com as sutilezas dapaisagem bege e castanha e de repente surge uma flor bem amarela em umgalho cheio de espinhos. Como eu adorava esses momentos floridos, comoquando ele apontava para a Lua ou para Jpiter, mas eram momentos raros e

  • sempre inesperados.Ento, por causa disso tudo, fiquei bem surpresa quando, certa tarde de

    outono, espiei Joseph caminhando do ponto de nibus e chegando em casa comoutra pessoa da stima srie ao seu lado. Uma pessoa da mesma idade que ele.Eu estava desenhando relmpagos com giz colorido na calada porque a aula deCincias daquele dia havia sido sobre o clima: tempestades, tornados e furaces.Tudo muito extico para o cu azul de Los Angeles. Eu estava compenetrada,arrumando as beiradas do primeiro relmpago, quando levantei os olhos e os vivirando a esquina, e a princpio achei que no estivesse enxergando bem. Pintei orelmpago de alaranjado. Levantei os olhos novamente: ainda duas pessoas. Dasegunda vez, achei que fosse um truque. Talvez Joseph fora incumbido de cuidardesse garoto. Talvez ele fosse um babaca, tirando sarro do meu irmo.

    O que voc est fazendo aqui? perguntei, assim que eles chegaram aojardim.

    Acho que eu tinha sete anos. Joseph, como sempre, no respondeu. O ventodo deserto. Cobras e escorpies.

    Oi. Sou o George. Ele se abaixou e me deu a mo. Tinha um aperto demo bom para algum que estava na stima srie. Relmpagos! disse,olhando para baixo.

    Mas por que voc est aqui? perguntei novamente, seguindo-os paradentro de casa.

    Joseph foi para seu quarto. George se virou e disse que eles estavam ali parafazerem a lio de casa.

    Ele est ensinando voc? perguntei a George. No respondeu ele. Mas ento por que voc est aqui com o meu irmo? Lio de Cincias. Coisa cientfica.Notei suas sobrancelhas. Suas calas, que eram calas normais que um

    menino da sua idade vestia. Voc tambm gosta de Cincias? Claro que gosto disse George, desaparecendo dentro do quarto de

    Joseph.Passei o resto da tarde indo e voltando dos desenhos com giz de cera at a

    porta do quarto de Joseph. No podia ouvir exatamente o que eles estavamfazendo, mas parecia que estavam conversando sobre coisas da escola. Desenheiuma fileira de relmpagos rapidamente e depois peguei o giz de cera azul e fiztraos de chuva por todos os lugares, no ar seco e sem nuvens.

    Foi durante a quarta ou quinta visita de George que entendi de repente. Euestava sentada do lado de fora do quarto de Joseph mais uma vez, tentando ouvir;eu ainda achava que Joseph devia estar ajudando George, porque no conseguiaentender por que ele continuava aparecendo em casa, de duas a trs vezes porsemana. Eu fingia que estava feliz construindo uma ferrovia com peas de Legoque, por uma questo que envolvia a lei de zoneamento urbano, era obrigada apassar pelo carpete, bem em frente porta do quarto de Joseph.

    Qual a razo para isso? perguntou uma voz. A voz do meu irmo. a resistncia do vento disse George.

  • Esperei que Joseph explicasse alguma coisa a George. Por que voc resolveu isso desse jeito? perguntou Joseph. Assim mais rpido disse George, rabiscando um bloco de notas. Espere. Faa isso de novo disse Joseph. Que parte? Esta.O trem de brinquedo sacolejava ao longo de uma ferrovia vermelha e azul.

    Eu me sentei e fiquei ouvindo durante meia hora, e no escutei Joseph explicarcoisa alguma ao convidado.

    Se eu estivesse na escola com ele, no ficaria surpresa. O ritmo deaprendizado rpido que impressionara a todos quando ele tinha a minha idade nopodia ser mantido, e quando chegou stima srie George j estava bemavanado em matemtica, sim, mas havia ainda pelo menos trs pessoas na salade aula que eram melhores do que ele. Pela primeira vez, ele teve de fazer alio de casa para acompanhar a turma. Ele passara de gnio para muitointeligente, e ainda que muito inteligente fosse muito bom, para um garotoprodgio uma decadncia.

    Trem voltando aos solavancos para a estao.Para mim, aquilo tinha ramificaes que iam muito alm do crebro. Eu

    achava, desde que nascera, que Joseph era estranho porque era muito inteligente.Mas ali estava George, at mais inteligente do que o meu irmo, mas ele sabiameu nome. Quando ele vinha nossa casa, fazia questo de dizer oi. Quando iaembora, se despedia.

    Fui pega naquele dia. Eu estava deitada de costas no carpete da sala, girandoas rodinhas do trem, quando George abriu de repente a porta para dar umtelefonema.

    Oi, Rose disse ele. Desculpe. Estou fazendo um trem. Para onde ele est indo? Quero dizer, uma ferrovia. O qu? O trem. Ah eu disse. Ventura? Sai daqui! reclamou Joseph, das profundezas do seu quarto.Eu movi meu trem para mais perto da cozinha e fiquei ouvindo o

    telefonema de George. Ele estava falando com sua irm, que era retardada. Notelefone, ele disse:

    Eu preciso de um novo desenho de um elefante, est bem? Meu velhoelefante precisa de um amigo.

    Mame tambm estava na cozinha, limpando um escorredor cheio debrcolis sob a torneira. Olhei para ela quando George saiu.

    Bom menino disse ela. No um deserto eu disse. O que voc quer dizer?Ela deixou os brcolis de lado, para que secassem dentro da pia. Voc no disse que Joseph era um deserto?Ela passou as mos sob a torneira aberta.

  • No, no um deserto disse, como se aquela conversa nunca tivesseacontecido. Joseph como um cristal: liso por fora, complexo por dentro.

    Eu a observei secando as mos. Vi os dedos flexveis e hbeis de minhame. Senti algo se confrontando dentro de mim ali mesmo, enquanto ela elogiavaJoseph. Com inveja porque ele era um cristal um cristal! mas tambmaliviada por ele absorver tanto da superateno dela que s vezes eu me sentiacomo se estivesse afogada em luz. A mesma luz que ele pegava e direcionavapara as paredes da rocha, escondendo nas extremidades afiadas de um topzio outurmalina.

    Ele tem vrias faces e prismas. uma intricada surpresa geolgica eladisse.

    Permaneci na bancada. Ainda segurava o trem de Lego nas mos. E o que o papai ? Ah, seu pai... disse ela, encostando-se na bancada. Seu pai um

    grande e teimoso rochedo cinza.Ela deu uma gargalhada. E eu? perguntei, ansiosa, pela ltima vez. Voc? Querida, voc...Fiquei imvel. Esperando. Voc ...Ela sorriu para mim enquanto dobrava o pano de prato azul e branco. Voc como o vidro do mar. Daquele tipo verde bem bonito. Todo

    mundo a ama e quer lev-la para casa.Demorei um pouco para pegar todas as peas do meu trem e lev-las para

    o meu quarto. Foi um elogio, disse para mim mesma, empilhando as peas.Era para fazer com que voc se sentisse bem, pensei.

  • 10 Amanheceu o sbado, quente e ensolarado. Oficialmente nove anos. Euestava pronta para ir assim que acordei. George s chegaria ao meio-dia, masfiquei saltitando pela casa, abrindo a porta da frente e espiando a calada desdeas dez da manh, criando um caminho de folhas cadas. Quando George virou aesquina em direo ao nosso quarteiro, corri de volta para dentro de casa paraabrir-lhe a porta como se estivesse surpresa.

    Oi!Ele retribuiu o cumprimento, cantou feliz aniversrio para mim e depois foi

    direto para o quarto de Joseph. Depois de dez minutos de convencimento, Josephsaiu do quarto usando um bon com os dizeres A melhor coisa do beisebol obon e George me perguntou o que eu achava de irmos todos juntos a umaconfeitaria na Beverly que se especializara em biscoitos caseiros que custavamabsurdos trs dlares cada.

    Bom eu disse, concordando com a cabea. Acho bom.A onda de calor era mais leve e havia um pouco mais de vento naquela

    tarde de cu branco de sbado. Papai havia sado para jogar tnis, mame estavano estdio de marcenaria aprendendo o ofcio, e ns trs samos juntos, cruzandoa Melrose, andando em direo ao sul pelos prdios residenciais de quatroandares margeados por jacarands que se enfileiravam pela Spaulding.

    Quando eu atravessava a rua, de acordo com a minha me, eu ainda tinhade segurar na mo de algum. Com dez anos, eu seria capaz de atravessar asruas com as mos livres. Eu me segurara mo de Joseph muitas vezes antes,durante muitos anos, mas segurar a mo dele era como se segurar em umaplanta e, como a decepo dos dedos que no me seguravam era muito intensa,em determinado momento optei por me segurar no brao dele. Nas primeirasruas que atravessamos, foi isso o que fiz, mas na esquina da Oakwood, numimpulso, eu me segurei na mo de George. Imediatamente seus dedos meseguraram tambm. O sol. Mais arbustos de amores-perfeitos pendendo dasjanelas em arbustos de tom rosa-escuro. Sua palma da mo quente. Um gatoalaranjado descansando na calada. Pessoas com camisetas pretas amassadassentadas e fumando nos degraus. A cidade se abrindo.

    Chegamos ao outro lado e soltamos as mos. Como eu queria, naquelemomento, que o mundo todo fosse uma rua.

    Enquanto os meninos andavam um pouco frente, Joseph usando uma folhade fcus para agitar no ar e demonstrar alguma coisa sobre torque, eu observavaas costas deles e os gestos de seus braos. No meu prazer de ser includa, meesqueci completamente do motivo do passeio, mas, assim que chegamos esquina e entramos na Beverly, o perfume sedoso da manteiga e do acar metrouxe realidade. O cheiro que geralmente deixa as pessoas babando meinvadiu e caiu horrivelmente no meu estmago.

    Hummm disse George.Joseph revirou os olhos. Ele parecia ser prova de odores, de algum modo.

    Ele escolheu um lugar do lado de fora da confeitaria, sobre uma mureta de pedracercada por algumas azalei