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A Justiça de Transição como Modelo de Gestão de Conitos: um Mito Universal? 97 A Justiça de Transição como Modelo de Gestão de Conitos: um Mito Universal? JULIANA LIMA 1 Resumo A chamada justiça de transição aparece como temática relevante à reexão acadêmica, reetindo o espaço conquistado pelos direito penal internacional e pelos mecanismos extrajudicias de resolução de conitos no plano da “diplomacia da paz”. Este artigo visa compreender a complexidade que resulta da aplicação desta expressão a uma multiplicidade de práticas heterogêneas (e, por vezes antagônicas) que são (ou podem ser) agrupadas no seio do que se convencionou chamar de justiça de transição. A partir de uma análise da evolução do conceito, buscamos esclarecer como a expressão justiça de transição ganha em legitimidade (tanto quanto, ao mesmo tempo, confere legitimidade) a uma multiplicidade de atores e práticas fundadas no respeito aos direitos humanos e numa moral universal supostamente aplicável a todas as situações de transição. Enm, este artigo busca analisar o papel da justiça transicional na evolução (normativa e procedimental) do direito internacional, ao mesmo tempo em que questiona a tendência à moralização da rule of law e a independência das instâncias de transição vis-à-vis de um contexto internacional marcado por lutas políticas. Abstract Some important academical research has been devoted to Transitional Justice. That could be partially explained by the succes of international criminal law and extra judiciary mechanisms of conict resolution in the eld of “peace diplomacy”. One of this article’s goals is to shed some light on the complex dynamics of multiple heterogeneous (and even antagonic) practices that are (or could be) identied under the denition of transitional justice. By analysing the dynamics of the construction and evolution of the transitional justice concept we try to understand how it nds its legitimacy (as well as meanwhile legitimazing in return) the existance of a variety of actors and practices based on the respect of human right’s and on a speach of moral and universal content. Finally, this article tries to analyse the role that transitional justice plays on the transformation of international law, at the same time that it questions this world-wide trend that moralises the rule of law and the independence of transitional justice instances regarding an international context where political struggle prevails. 1 Mestre em Ciências Políticas e Estudos Africanos pela Universidade Sorbonne, Doutoranda em Ciências Políticas pela Universidade Sorbonne, professora (chargé de TD) em Direito Constitucional na Universidade Sorbonne.

AJustiça de Transição como Modelo de Gestão de Conflitos ... · de crise” – um voltado para medidas jurisdicionais de solução de conflitos, e outro enquanto vertente não

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A Justiça de Transição como Modelo de Gestão de Conflitos: um Mito Universal? 97

A Justiça de Transição como Modelo de Gestão de Conflitos: umMito Universal?

JULIANA LIMA1

ResumoA chamada justiça de transição aparece como temática relevante à reflexão

acadêmica, refletindo o espaço conquistado pelos direito penal internacional e pelosmecanismos extrajudicias de resolução de conflitos no plano da “diplomacia da paz”.Este artigo visa compreender a complexidade que resulta da aplicação desta expressãoa uma multiplicidade de práticas heterogêneas (e, por vezes antagônicas) que são (oupodem ser) agrupadas no seio do que se convencionou chamar de justiça de transição.Apartir de uma análise da evolução do conceito, buscamos esclarecer como a expressãojustiça de transição ganha em legitimidade (tanto quanto, ao mesmo tempo, conferelegitimidade) a uma multiplicidade de atores e práticas fundadas no respeito aos direitoshumanos e numa moral universal supostamente aplicável a todas as situações detransição. Enfim, este artigo busca analisar o papel da justiça transicional na evolução(normativa e procedimental) do direito internacional, aomesmo tempo emque questionaa tendência à moralização da rule of law e a independência das instâncias de transiçãovis-à-vis de um contexto internacional marcado por lutas políticas.

AbstractSome important academical research has been devoted to Transitional Justice.

That could be partially explained by the succes of international criminal law andextra judiciary mechanisms of conflict resolution in the field of “peace diplomacy”.One of this article’s goals is to shed some light on the complex dynamics of multipleheterogeneous (and even antagonic) practices that are (or could be) identified underthe definition of transitional justice. By analysing the dynamics of the constructionand evolution of the transitional justice concept we try to understand how it finds itslegitimacy (as well as meanwhile legitimazing in return) the existance of a variety ofactors and practices based on the respect of human right’s and on a speach of moraland universal content. Finally, this article tries to analyse the role that transitionaljustice plays on the transformation of international law, at the same time that itquestions this world-wide trend that moralises the rule of law and the independenceof transitional justice instances regarding an international context where politicalstruggle prevails.

1 Mestre em Ciências Políticas e Estudos Africanos pela Universidade Sorbonne, Doutoranda em CiênciasPolíticas pelaUniversidade Sorbonne, professora (chargé deTD) emDireito Constitucional naUniversidadeSorbonne.

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Introdução

Aúltima década do século XX e o inicio do século XXI testemunharam grandestransformações geopolíticas no cenário mundial. Vale ressaltar as intervenções noIraque (1991), na Somália (1992) e no Kosovo (1999), o genocídio na Ruanda(1994), o massacre de Sebrenica na Bosnia (1995), a proliferação de conflitoscivis no continente africano (República Democrática do Congo, Uganda, Angola,Moçambique, República Centro-Africana, entre outros) e, recentemente, o atentadoterrorista do 11 de setembro e a luta contra o terrorismo.Esse contexto levou aorevigoramento das intervenções militares e ao crescimento do número de operaçõesde paz no mundo2, fixando parâmetros para uma reflexão profunda sobre a melhormaneira de prevenir a violência e assegurar a paz no âmbito mundial. Uma sériede dilemas aos quais são confrontados os países “em transição” alimentam estareflexão: dizer ou não da verdade; rememorar ou remeter ao silêncio; perdoar ousancionar os agressores; reconhecer, homenagear e reparar as vítimas (e/ou seusfamiliares); “desembrutecer”3 a sociedade criando meios para a “normalização” e oretorno à vida civil, reconstruir o país e reconciliar inimigos de guerra; impor umahistória oficial ao conflito ou escrever a historia a várias mãos com a participaçãoda comunidade local.Todas estas questões não escapam às tensões existentes entre a “diplomacia

da justiça” e a “diplomacia da paz” e são, em ultima instância, submetidas aosconstrangimentos do jogo político, ao peso das interações locais e internacionais, ea uma luta de poder, sujeita a interesses variados, condicionando os discursos e aspráticas dos mais diversos atores.Neste contexto, duas instituições vão emergir em paralelo, refletindo uma

dinâmica que se funda sob uma “moral universal” e uma crescente “jurisdicisação”4das questões relativas à paz. A institucionalização destes dois modelos de “gestãode crise” – um voltado para medidas jurisdicionais de solução de conflitos, e outroenquanto vertente não punitiva alternativa ao primeiro – é reflexo do engajamento deatores que atuam em diferentes arenas (política, diplomática, profissional, nacional einternacional) em favor dos direitos humanos, conferindo uma nova dinâmica à lutapor espaços de atuação e de poder, que será, em parte, responsável pela disseminaçãode novos métodos de resolução de conflitos, sob a “etiqueta” da justiça de transição.A criação de uma Comissão de Verdade e Reconciliação para investigar os

crimes cometidos pelo regime do apartheid na África do Sul estabeleceu num novo

2 Dentre as mais de sessenta operações de paz das Nações Unidas, mais de quarenta e cinco (ou seja, mais desetenta por cento) foram iniciadas na década de noventa. Segundo dados disponíveis no site da Comissão deConsolidação da paz, emmeados de 2009 quinze operações estavam em curso.

3 Anoção de “embrutecimento” (brutalization”) da sociedade foi levanta por G.L.MOSSE in Fallen Soldiers:Reschaping the Memory of theWorldWars, Oxford, Oxford University Press, 1990.

4 LEVI Ron, HAGAN, John. Penser les crimes de guerre.Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Paris,n. 173, p. 6-21, juin 2008.

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paradigma nas searas de pacificação5, sendo seguida pela criação de mecanismoschamados deAlternative dispute resolution que, junto com as Truth and ReconciliationComissions, se inserem numa linha não punitiva, do que se convencionou chamarde justiça de transição.Por outro lado, a valorização do direito com a proliferaçãode normas internacionais e a criação de instâncias jurisdicionais sobrepondo-se àsfronteiras soberanas dos Estados impulsionaram o movimento global de luta contraa impunidade, inscrevendo-se igualmente na seara da justiça de transição.Estes doismovimentos, construídos inicialmente como vertentes opostas de uma mesma moeda,foram aos poucos se institucionalizando como medidas complementares, legitimandouma série de práticas de resolução e prevenção de conflitos.Dessa forma, os contornos do que se convencionou chamar de justiça de transição

foram se delineando gradualmente, seguindo a evolução do contexto internacional e asdinâmicas de apropriação desta expressão pelos diferentes agentes que se engajavamnos ditos processos de transição. Portanto, é possível observar certa homologiaestrutural na racionalidade e no discurso dos atores que se ocupam da difusão deuma crença nesta justiça de transição, como meio mais apropriado para lidar comas situações de crise, notadamente em períodos pós-conflitos. Assim, a justiça detransição vai ganhando força e se legitimando em diversas searas, estabelecendo-secomo best practice para alcançar uma paz “justa e durável”, sob a pluma de umaretórica universalista e moralizante.Sustenta-se, de um lado, que ela promove a democracia criando espaço para um

amplo diálogo nacional, capaz de reconciliar as partes de um conflito, atraves de umexercício de catarse e de deliberação coletiva nas chamadas Comissões de Verdade.Nestes contextos a justiça de transição aparece como fórmula mágica de apropriaçãode um passado traumático pela nação, constituindo-se no único vetor admissível para aconstrução de uma história nacional consensual, capaz de unificar a memória coletivae recriar o sentimento de identidade nacional. Neste sentido, os procedimentos dejustiça de transição se apresentam como um elemento determinante na superação dedivisões étnicas, religiosas e políticas, sendo considerados a ferramenta mais adequadapara operar uma profunda transformação nas relações entre amigos e inimigos deguerra, criminosos e vitimas, Estado e sociedade.Por outro lado, a luta contra a impunidade – representada atualmente pela Corte

Penal Internacional – encontra sua justificativa de validade na universalidade dasregras do direito internacional e na promoção da rule of Law, como meio de asseguraruma paz longa e duradoura e prevenir o ressurgimento de conflitos: não há paz àrevelia das vítimas, a impunidade cedendo espaço à reincidência. Assim, o respeito aodireito penal internacional assegurado por tribunais internacionais “soberanos” vemcompletar o espectro desta justiça de transição.

5 Este dispositivo já havia sido implementado em outros contextos, como na América Latina, a exemplodas Comissões de Verdade do Chile e da Argentina. Entretanto, é a Truth and Reconciliation Comissionsulafricana que emerge comomodelo de sucesso de justiça de transição.

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Assim, seja uma questão de persecução criminal junto à jurisdição local (como naGuatemala) ou junto aos tribunais internacionais (como na Bósnia e Herzegovinia),ou ainda, diante das duas instâncias (como no caso da Ruanda); ou em se tratando doreconhecimento das vítimas e do direito à verdade com a confrontação das diversasversões do conflito diante das Truth and Reconciliation Comissions (como o exemploda África do Sul); ou ainda, seja pela promoção, pelas “pessoas ordinárias”, de espaçosde coexistência (justice “par le bas”6); o fato é que a chamada justiça transicional vemsendo proclamada como “o” modelo de sucesso na gestão de transições, não havendooutra opção se mostrado mais eficaz.Diante desta realidade, este artigo se presta a esclarecer a dificuldade que reside na

identificação dos elementos constitutivos do conceito de justiça de transição e a suaaplicação a uma multiplicidade de práticas heterogêneas (e, para alguns, antagônicas),que são (ou podem ser) agrupadas dentro do espectro do que se convencionou chamarde justiça de transição. Procuramos explicar como a expressão justiça de transiçãoganha em legitimidade (tanto quanto, ao mesmo tempo, confere legitimidade) a umade série de atores e práticas fundadas no respeito aos direitos humanos e numa moraluniversal supostamente aplicável indiscriminadamente às mais diversas situações detransição. Enfim, este artigo pretende confrontar a universalidade do discurso da justiçade transição aos seus efeitos práticos promovendo uma reflexão quanto à pertinência datendência universal de moralização da rule of law e de sua independência em relaçãoao jogo de poder político na seara internacional. Dentro deste espectro, buscamoscompreender o papel que ocupa o direito internacional nas dinâmicas de transição,enquanto ferramenta de prevenção e de resolução de conflitos.

1 - Evolução do Conceito de Justiça de Transição: a Criação de um MitoUniversal

O termo justiça de transição encontra suas raízes na corrente da transitologiacampo de estudo das relações internacionais, cujas reflexões têm por ponto de partidaas transições políticas no continente latino americano. Não obstante, se a priori oconceito de justiça transicional nasceu atrelado à noção de transição política (e àspolíticas públicas instauradas para fazer face aos desafios da mudança de regime), aolongo do tempo ele foi assumindo contornos bem mais amplos para, enfim, englobartoda uma gama de políticas que são (ou podem ser) implementadas em diversos tiposde processos de transição, notadamente nos períodos pós-conflitos.Assim, a transição para um regime democrático passou de elemento constitutivo

do conceito a uma de suas muitas vertentes. Buscando apresentar respostas aosmúltiplos dilemas encontrados nas situações de pós-guerra, o conceito de justiça de

6 A expressão «par le bas» é de Jean Fraçois Bayart e refere-seàtoda ação politica conceptualizada eimplementada pelas pessoas ordinarias, em contraposição às decisões habitualmente tomadas por uma elitepolitica e/ou altos representantes de instituiçoes (“par le haut”). Em suma, é uma expressão que opõe, nestecaso, as açoes do povo às decisões impostas “de cima”.

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transição é hoje associado a uma multiplicidade de práticas, visando, de um lado,assegurar a coexistência pacífica no seio de uma sociedade desfigurada por umconflito violento, e ao mesmo tempo, garantir a punição dos responsáveis pelos atosviolentos que teriam desestabilizado a paz. Destas duas grandes linhas derivam doisconceitos que, inicialmente, construiram-se em oposição um ao outro, mas que,ao longo do tempo, vieram a constituir dois pilares complementares da chamadajustiça de transição: a justiça restaurativa (restaurative justice) e a justiça retributiva(retributive justice), que representam em grande escala o que hoje é considerado comoo espectro da transitional justice. Assim, a justiça de transição foi se firmando combase em mecanismos que incitam a uma variedade de práticas (à narrativa e ao direitoà verdade, ao reconhecimento simbólico das vítimas, às reparações civis, e ainda, aodesarmamento da população civil, à (re)integração de ex combatentes na sociedade,à realização de eleições democráticas, ao combate à corrupção, à reforma dos setoresde segurança pública, do poder judiciário e das instituições militares) revelando-se umconceito fluido e maleável, suscetível a diversas interpretações.O que se convencionou como restaurative justice tem origem nas experiências

do cone sul da América Latina, calcadas no que Sadrine Lefranc7 chamou de “perdãopolítico”8 (referindo-se às anistias) e, posteriormente, nas chamadas Comissõesde Verdade. As anistias (gerais e coletivas) concedidas nas transições argentinas,chilenas, e uruguaias, e posteriormente materializada na experiência brasileira, sãoa primeira manifestação moderna da restaurative justice, se bem que o termo só viráa ser empregado, anos mais tarde, com a implementação da Comissão de Verdadee Reconciliação (CVR) da África do Sul. Assim, a justiça de transição nasce comoprática orientada para a recomposição social e a garantia da estabilidade dos novosregimes democráticos.Entretanto, o fim do apartheid e a implementação de uma Truthand Reconciliation Commission irão marcar definitivamente o inicio de uma nova era,erigindo reconciliação, o perdão e o imperativo da verdade a elementos essenciais doprocesso de transição política.A Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul será responsável por

lançar mundialmente uma política focada no reconhecimento e na reparação dasvítimas, colocando-as no centro do espectro da transição. Embebida de um simbolismoreligioso ligado a uma cultura protestante e bantu, a CVR da África do Sul, presididapelo arcebispo e prêmio nobel da paz (em 1984) Desmond Tutu, será amplamentemidiatizada. As imagens dos emocionados depoimentos das vítimas junto à comissãosulafricana rodarão omundo, introduzindo uma nova visão da reconciliação: a verdadecomo caminho para ultrapassar as inimizades criadas pela repressão do regime doapartheid (“truth, the road to reconciliation”).A partir da experiência sulafricana, os processos de transição serão atrelados

a um espaço de participação plural e coletiva, incluindo vítimas, seus parentes, as

7 LEFRANC, Sandrine. Les politiques du pardon.Paris, PUF, 2002.8 As experiências de anistia seriam longamente contestadas anos depois, cedendo lugar à uma série de

procedimentos judiciais fundados na imprescritibilidade de crimes contra a humanidade.

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organizações da sociedade civil e os “acusados”9. Esta prática fortaleceu uma filosofiaque se viria a se impor em outros contextos: somente esta ampla participação dacomunidade no processo de transição seria capaz de assegurar o renascimento de umasociedade fundada no estado democrático de direito. Se por um lado o amplo debatepromovido entre as vítimas e acusados nas audiências públicas, garantiria o caráterdemocrático do direito, esperava-se, por outro lado, que esta prática resultaria numrelatório completo da repressão do apartheid. Este foi, em suma, o ponta pé inicialpara uma série de procedimentos valorizando a escrita de uma história nacional avárias mãos. A Comissão de Verdade e Reconciliação (CVR) da África do Sul eraresponsável pela “promoção da unidade nacional e da reconciliação, dentro de umespírito que transcenda os conflitos e divisões do passado (sic)”10.O mandato da Comissão de Verdade sulafricana lhe conferia poderes para

investigar as violações de direitos humanos ocorridas a partir de 1° de março de1960.Além disso, a Truth and Reconciliation Commission era competente parapromover a identificação das vítimas e definir as medidas de reparação cabíveis,visando à restauração da dignidade civil e humana da população. Desta feita, asvítimas do apartheid foram chamadas a testemunhar amplamente os fatos inquiridos,a fim de fazer emergir a verdade sobre o período de discriminação racial, sendo-lhesassegurada uma indenização. A Comissão era competente, também, para concederanistias individuais.As anistias só poderiam ser conferidas às pessoas cujas confissõesde crimes com objetivo político possibilitassem uma verdadeira elucidação dos fatos.Neste sentido, distanciando-se das anistias amplas e irrestritas das antigas comissõessulamericanas, a Truth and Reconciliation Commission de Desmond Tutu introduziuo arrependimento público e o esclarecimento da verdade como condicionantes àobtenção do perdão.Diante do “sucesso” da Truth and Reconciliation Comission sulafricana, as

comissões de verdade e reconciliação passaram a ser reconhecidas como a expressãomais robusta desta restaurative justice, cuja filosofia é calcada no valor universaldo perdão e do direito à verdade – únicas vias capazes de fazer emergir uma novasociedade11 baseada na rule of law e no respeito aos direitos humanos. O modelo dacomissão sulafricana virá a ser duplicado nos quatro cantos do mundo, dando origema mais de trinta instâncias análogas12.Entretanto, apesar desta justiça não punitiva encontrar nas Comissões de Verdade

seu “modelo de sucesso”, as Truth and Reconciliation Comissions não são a únicaexpressão da justiça restaurativa. Os métodos de Resolução Alternativa de Conflitose os procedimentos de mediação e arbitragem são igualmente amplamente difundidos

9 Esta nova perspectiva se firma em oposição às transições latino americanas, onde o ciclo de negociação erarestrito ao âmbito dos altos quadros políticos.

10 Promotion and National Unity Reconciliation act 34of 1995, África do Sul.11 Esta nova sociedade Sulafricana ficou conhecida como “sociedade arco-íris”.12 A título ilustrativo: África do Sul, Bolívia, Argentina, Equador, Gana, Guatemala, Libéria, Marrocos,

Uganda, Ruanda, Serra Leoa, Tchad, Timor Leste, Uruguai.

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enquanto respostas extrajudiciais aos complexos problemas de transição, merecendoser levados em conta na nossa análise do que é chamado de justiça restaurativa.Portanto, se existe entre esta restaurative justice e os procedimentos de Alternative

Dispute Resolution e de mediação e arbitragem uma semelhança de propósitos(uma solução extra-judicial aos conflitos), a mobilização de outra categoria parecemais pertinente a certos atores, que preferem associar suas ações à mecanismosde “resolução” ou de “transformação” de conflitos13, negando a etiqueta da justiçade transição propriamente dita14. Assim, a metodologia da alternative disputeresolution busca se diferenciar das Comissões de Verdade e Reconciliação pelosmeios empregados, estabelecendo como foco principal uma transformação em nívelmicrosocial – inversamente à proposta degrandes mudanças em nível nacional,almejada pela Truth and Reconciliation Comission Sulafricana.Com efeito, os procedimentos de resolução alternativa de conflitos raramente

decorrem de grandes decisões políticas ou de negociações entre as elites detentorasde poder.Inversamente, o princípio da Alternative Dispute Resolution estabelece queverdadeira transição somente pode ser operada pelas “pessoas ordinárias”. O “povo” éconsiderado o principal protagonista do processo de transformação social, calcado naprofunda mudança das mentalidades coletivas a fim de garantir fim dos estereótipossociais estigmatizantes, que deram origem ou sustentaram o conflito.Assim, ao invésde reunir toda a comunidade numa instância institucionalizada com apoio do governo eda comunidade internacional, os partidários da alternative dispute resolution ocupam-se de organizar eventos esportivos, concertos, shows, concursos de poesia e dança,entre grupos que outrora se apresentavam como inimigos no campo de combate. Acriação destes “espaços de convivência” entre grupos antagônicos é vista como umaferramenta capaz de operar uma profunda transformação no imaginário coletivo,auxiliando a sociedade a lidar com seu passado traumático.Nesta seara, a mediação de conflitos ganha espaço se firmando como método

importante na solução de problemas atuais (como, por exemplo, conflitos de terraou conflitos oriundos das relações de trabalho) que teriam causas estruturais nasinimizades passadas. Assim, a institucionalização de instâncias de “formação àmediação” ganha, junto aos partidários desta técnica, um novo impulso, repugnandoos meios jurídicos clássicos de resolução de conflitos. De modo geral, a variedadede práticas da dita justiça restaurativa promove meios alternativos à justiça penalcomo forma de resolução de conflitos, representando uma tentativa de afastar o poderjudiciário deste campo.

13 A doutrina faz a distinção entre as noções de “resolução” e “transformação” de conflitos. A “resolução econflitos” encontra seu princípio nos métodos de gerenciamento de crises oriundo do direito e das relaçõesinternacionais, enquando a “transformação” de conflitos é evocada numa perspectiva analítica da psicologiasocial.Lefranc, Sandrine. Du droit à la paix. La circulation des techniques internationales de pacification parle bas.Actes de la recherche en sciences sociales. Paris, n. 174, sep-2008.

14 Este processo de labelisation de práticas pode ser interpretado como um reflexo das lutas por afirmação deuma série de instituições (e das técnicas por elas difundidas) neste espaço de transição.

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Entretanto, paralelamente à constituição de instâncias alternativas às jurisdiçõespenais, a realidade conflituosa do fim do século XX e inicio do século XXI darálugar à emergência de um outro movimento, erigindo a noção de accountability(responsabilização) à uma obrigação moral intransponível.É o que se convencionouchamar de justiça retributiva ou retributive justice. Com efeito, após a consagraçãodas políticas do perdão, da memória e da verdade, a justiça de transição se voltou paraa “punição-sanção”, refutando o valor das anistias enquanto mecanismo de prevençãode reincidência da violência.Neste contexto, os mecanismos jurisdicionais de resolução de conflitos ligados

à justiça retributiva serão difundidos principalmente por atores da área jurídica,mobilizando-se pela transformação do direito penal, dos direitos humanos e dodireito humanitário internacional. Esta movimento em favor valorização da ruleof law na seara internacional será em grande parte responsável pela instauraçãode um processo de juridicização e judiciarização15 das questões que envolvemsituações de guerra e paz.Com efeito, a filosofia da retributive justice vai ressaltar a importância do

caráter pedagógico e dissuasivo dos procedimentos criminais em nome da lutacontra a impunidade. Os defensores da justiça retributiva encontram no Tribunalde Nuremberg (1945) a afirmação primeira do conteúdo moral da noção deaccountability.A criação, um ano mais tarde (1946), em Tokyo, de um tribunal comcompetências análogas, viria confirmar a universalidade da tendência à primaziado direito na arena internacional. Como ressalta HAZAN, a herança dos crimescometidos pelo regime nazista alemão iria fornecer “a legitimidade, construir oarcabouço moral e juridico e ensaiar o que viriam a ser, décadas mais tarde, asinstituições, os valores e as práticas da justiça de transição”16.Grandes transformações geopolíticas (o genocídio Ruandês, a guerra no Kosovo,

as intervenções no Iraque e na Somália e o conflito separatista na região dos Bálcãs)irão marcar a evolução das normas do direito internacional, cedendo lugar à afirmaçãoplena da justiça penal internacional. É umperíodo de glória para o direito internacional,com a instauração do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (TPII) em1993, seguido da implantação, no ano seguinte, do Tribunal Penal Internacional paraa Ruanda (TPIR). Estes modelos de instância jurisdicional transitória e ad hoc serãoposteriormente replicados em outros contextos17, renovando a esperança na jurisdiçãopenal enquanto meio de prevenção de conflitos mundiais e reforçando as mobilizaçõespara a criação de uma Corte Penal Internacional permanente.É assim que, em respostaa conflitos pontuais, vai consolidando-se este processo de juridicização de crises,afirmando a primazia da rule of law, redefinindo valores universais e promovendo a

15 A noção de juridicização tem a ver esta ligada à produção de normas juridicas ao nivel internacional;enquanto o termo de judiciarização faz referência à promoção e implementação de instituições noâmbito do poder jurisdicional.

16 Hazan, Pierre. Juger la guerre, juger l’histoire. Paris, Puff, 2007, p.17.17 Timor Leste, Serra Leoa, Camboja, Libano.

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evolução de uma série de normas jurídicas18; culminando com a assinatura do Estatutode Roma e a entrada em vigor do TPI (Tribunal Penal Internacional).Este processo de revalorização do direito internacional vai produzir efeitos também

nas jurisdições internas, afirmando-se como uma problemática verdadeiramentetransnacional. Neste sentido, a ordem de prisão do ditador chileno Augusto Pinochetemitida por um juiz espanhol e cumprida pelas autoridades britânicas é testemunha deum movimento de “internacionalização dos tribunais nacionais”19.A decisão do juizespanhol irá iniciar o que Julien Seroussi chamou de “explosão do contencioso dacompetência universal” 20.Vale ressaltar que toda esta mobilização em favor da retributive justice não exclui,

entretanto, o espaço conquistado pela justiça restaurativa. Um bom exemplo é acoexistência das duas instâncias em diversos contextos, assim como a instituição, noseio da Corte Penal Internacional, de uma comissão responsável pela reparação dasvítimas, numa clara tentativa de conciliar os dois approches da justiça de transição.

2 - Um Conceito “Polivalente” Legitimando uma Variedade de Práticas: aConsolidação do Mito Universal

Pelo que se observa, uma variedade de modalidades de “gestão de crises” - quese confudem, se fundem, se opõem ou se complementam segundo as circunstâncias -podem ser agrupadas em torno do que conhecemos hoje por justiça de transição.Esta“permeabilidade” empregada à noção de “justiça de transição” nos parece decorrer, emtese, da interface destas duas palavras que compõem a expressão – justiça e transição – asquais se prestam amúltiplas interpretações, haja vista, em principio, a noção de valor quepode ser agregada à primeira (justiça) e a subjetividade temporal da segunda (transição).A interpretação, em conjunto, destes dois termos, não poderia resultar em outra coisasenão numa confirmação da plasticidade subjetiva do conceito associado à justiça detransição, revelando a sua capacidade de adaptar-se a diferentes contextos de crise.Daí resultam diferentes definições, todas de certa forma fluidas e extremamente

abrangentes. Privilegiamos citar apenas algumas, afim de ilustrar, de um lado, aporosidade das fronteiras da definição deste conceito, e de outro, a possibilidade deidentificação de pontos de convergência entre diversas definições.Umdos principais atores no campo da justiça de transição, responsável pela difusão e

implementação de suas técnicas em varios contextos, salienta que: “a justiça de transiçãonão é uma forma especial de justiça, ela é a justiça adaptada a sociedades em processo

18 Neste sentido, é interessante ressaltar, por exemplo, o debate originado em torno da noção de genocídioapós os eventos de 1994 na Ruanda. O termo genocídio passou a ser utilizado por uma serie de profissionaisestranhos aomeio jurídico, dando origem a uma dinâmica de etiquetagem ou labelisation que implica no usodo termo em situações bem distintas das descritas no seu tipo penal.

19 Seroussi, Julien.Lacausede la compétenceuniverselle.Notede recherche sur l’implosiond’unemobilisationinternationale.Actes de Recherche en Sciences Sociales. Paris, n. 173, juin-2008. p. 99-109.

20 Ibid, p. 108.

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de transformação após um período de perversas violações de direitos humanos”21. Paraesta organização, cujo fundador foi uma das figuras marcantes da Comissão de VerdadeSulafricana, a justiça de transição busca o reconhecimento das vítimas e a promoção dapaz, da reconciliação e da democracia, incluindo as seguites iniciativas: persecuçõescriminais (criminal persecution),comissões de verdade e reconciliação (truthcommissions), programas de reparação – material e moral – de vítimas (reparationsprograms), gender justice (caracterisando a impunidade de crimes contra pessoas dosexo feminino), reforma do sistema de segurança publica (securitu system reform)incluindo as reformas do poder judiciário, a polícia e o exército, institucionalização deatos memoriais (memorialization efforts) compreendendo museus e monumentos querecontem a história dopaís e homenageem as vítimas22. Portanto, apesar de identificaros objetivos e técnicas da justiça de transição, o ICTJ deixa o conceito de transitionaljustice em aberto23, confirmando nossa hipotese de um conceito fluido e maleavel.AOnu24 enfatisa a importância deumaabordagemcompreensiva datransitional justice,

salientando que os mecanismos da justiça de transição deverão incorporar toda uma gamade medidas judiciais e extra-judiciais, incluindo, entre outras, persecuções criminais,reparações, busca da verdade e reforma institucional, para assegurar accountability(responsabilização) e justiça, garantindo a devida atenção às vítimas pormeio de remédiosde reparação, promovendo a paz, a “cura” e a reconciliação, e estabelecendo um sistemade segurança pública independente a fim de restaurar a confiança nas instituições estataise promver a rule of law, os direitos humanos e a democracia.De acordo com Ruti TEITEL, a justiça de transição engloba cinco elementos: a

justiça penal, a justiça histórica, a justiça reparatória, a justiça administrativa e ajustiça constitucional de transição. A partir da reflexão de TEITEL, encontramos oselementos da narrativa que obedece à dinamica na qual se inscreve o direito à verdade, avalorização do papel das vítimas e seu direito à reparação (civil e criminal), a luta contraa impunidade, a democratização e a rule of law como fundamento da transição.Diante destas várias e respeitáveis definições emprestadas ao termo, é forçoso

considerar que o emprego da justiça transicional encontra hoje uma definição amplae abrangente, visando legitimar uma variedade de discursos e práticas de umamultiplicidade de atores que mobilizam todos o mesmo jargão técnico.Os direitoshumanos e os princípios da democracia liberal definem o tom e (re)estruturam osprincípios que se impõem progressivamente nas diversas arenas onde o conceito éaplicado/aplicável. De qualquer forma, a retórica fundada na “moral universal” é ounico ponto de convergência de todos os discursos, legitimando, pois, as diversasdefinições que encontradas para a expressão justiça de transição.

21 Definiçao encontrada no site da instituição: http://ictj.org/en/22 Ibid23 “Estas iniciativas formam a base da transitional justice elas devem ser vistas como uma lista exaustiva,

sendo possivel o desenvolivmento de outras técnicas. Dados obtidos no site da instituição, disponivelem http://ictj.org/en/tj/#1

24 Human Rights Council, Resolução 9/10: Human rights and transitional justice

A Justiça de Transição como Modelo de Gestão de Conflitos: um Mito Universal? 107

Neste sentido, é importante lembrar que, como todo fenômeno social (sócio-político), a institucionalização de mecanismos de justiça transicional não se produzex nihilo. Ela é produto de interações que se projetam (e que se concretizam)neste “espaço de transição” que se materializa em diversas arenas.A importânciaque ganha a justiça de transição ao longo dos anos – enquanto mecanismo deresolução e de prevenção de conflitos – é sem duvida fruto de mudanças nocontexto geopolítico, obedecendo à racionalidade própria de diversos atoresna concretização de seus interesses pessoais, profissionais, institucionais e/ouestatais. Desta forma, a criação, institucionalização e afirmação de mecanismosde justiça de transição não escapa à(s) dinâmica(s) da(s) luta(s) por poder político,econômico e social – no seio da(s) qual(is) se insere uma batalha profissionalde legitimação, valorização e afirmação de determinadas carreiras e trajetóriasprofissionais.Poder-se-ia assim dizer que o espaço conquistado pela justiça de transição é

igualmente produto do vai-e-vem de dinâmicas institucionais, da circulação deatores de um campo a outro, da confluência de dinâmicas internas e internacionaise da racionalidade de profissionais, deste novo métier de construção da paz. A“permeabilidade” da expressão reflete, portanto, uma enorme fluidez deste campode atuação. Nesta arena de transição, circulam juristas, jornalistas, antropólogos,cientistas políticos, psicólogos e assistentes sociais e sociólogos, que se denominam“especialistas” da construção da paz e da reconstrução pós-conflito, posicionando-selado a lado com atores do que se convencionou denonimar diplomacia clássica. Nestesentido, tem-se esta variedade de personagens que se engaja na circulação das idéiase na difusão de um discurso moralizante em nome de uma paz universal, forjandoo conceito da justiça de transição e divulgando suas práticas. Assim, a definição deconceitos, a adaptação das técnicas e amobilização de recursos – humanos efinanceiros– na área da justiça de transição, não é restrita ao campo jurídico, refletindo trajetóriasprofissionais bastante distintas.Diante deste contexto, somente uma retórica focada na universalidade da justiça de

transição – que fornece a base do conteúdomoral do discurso – seria capaz de justificare legitimar a participação desta multiplicidade de atores na institucionalização dosprocessos de justiça de transição: no “universal” é possível encontrar legitimação paratoda uma gama de práticas institucionais.Em decorrência desta vasta gama de profissionais dedicados às políticas de

paz, ao longo das últimas décadas, observamos uma proliferação de OrganizaçõesNão Governamentais e de redes internacionais da sociedade civil especializadas naconstrução da paz, na resolução de conflitos e, precisamente, na justiça de transição:International Center for Transitional Justice (ICTJ), African Transitional JusticeResearch Network, Centre for the Study of Violence and Reconciliation (CSVR),internationalAlert, International CrisesGroup (ICG), ConciliationResources, Institutefor Justice and Reconciliation (IJR), Coalition for the International Criminal Court,dentre tantas outras.

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Além disto, organizações amplamente reconhecidas por sua atuação transnacionalna defesa dos direitos humanos, ainda que não se dediquem exclusivamente à causa dajustiça de transição, foram de certa forma “forçadas” a adaptar seus discursos, a fim dese inscreverem na dinâmica das transições pós- guerra e assegurarem seu espaço nestenovo campo que une a “diplomacia da justiça” à “diplomacia da paz”. É o caso daAnistia Internacional, da Human’s Right Watch e da FIDH (Federação internacionalde direitos humanos), mas também da Oxfam, da Open Society, da Rede Caritas, daSearch for Commun Ground – para citar apenas algumas ONG´s que estão atualmenteenvolvidas em atividades ligadas à justiça de transição e à resolução de conflitos emdiversas partes do globo.Também as organizações intergovernamentais tiveram de se adaptar às “exigências

modernas” da transição. A criação de departamentos e programas específicos no seiode certas instituições faz prova da necessária renovação dos quadros, visando adequaras práticas destas instituições ao imperativo da gestão de conflitos.O PNUD, porexemplo, criou um setor de prevenção de crises, para atuar na área de “prevençãode conflitos e consolidação da paz”, “desarmamentos, desmobilização e reinserção”,“desminagem”, e “fortalecimento do Estado de Direito”25.AUniãoAfricana possui seupróprio Conselho de Paz e Segurança e o Banco Mundial financia, já há alguns anos,“projetos de prevenção de crises” e de “reconstrução pós-conflitos”. Estes exemplosrevelam que as noções de segurança humanitária, desenvolvimento econômico econsolidação da democracia (realização de eleições, reforma do setor de segurançapública e do judiciário, luta contra a corrupção) se misturam às questões primordiaisda justiça de transição (direito à verdade, luta contra a impunidade, reconhecimentoe reparação das vítimas), confirmando, mais uma vez, a plasticidade dos conceitos (eprocedimentos) que procuram encontrar respostas ao complexo contexto das políticasde transição.Os Estados soberanos também desenvolveram, no seio de suas instituições

diplomáticas, setores de cooperação especializada em matéria de direito penalinternacional. Ora, a justiça de transição ainda resta prisioneira desta cooperação,haja vista o princípio da soberania dos Estados e a ausência de uma força policialinternacional. Como salientamRon Levi e Heather Schoenfeld à propósito do TribunalPenal Internacional para a Iugoslávia, “mesmo se as Nações Unidas demandaremoficialmente aos Estados que cooperem com as enquetes do Tribunal Penal, na prática,o acesso do parquet aos documentos de prova, seu poder de prisão ou sua capacidadede interrogação de testemunhas continua dependente da vontade dos Estados decooperar com o Tribunal”26.As breves considerações acima, exemplificando o engajamento das ONG´s e

das OI´s nas situações de transição para a paz, são reveladoras da afirmação destenovo campo, que encontra reconhecimento nestes espaços institucionais criados

25 Dados disponíveis no site do PNUD. http://www.undp.org/french/focusareas/crisis.shtml/26 LEVI, Ron. Schoenfeld, Heather. Médiation et droit pénal international. Actes de la recherche en sciences

sociales. Paris, n. 173, sep-2008.

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pelo discurso e pela prática das técnicas da justiça de transição. Se por um lado estamultiplicidade de atores legitimam a existência destas instituições27; de outro, são asinstituições onde pode ser exercida toda uma gama de expertise ligada à justiça detransição,que inversamente legitimamas trajetóriasprofissionaisdestesmesmosatores.Assim, a evolução do conceito de justiça de transição (definição de seus elementosconstitutivos e limites) é, na realidade, um processo de legitimação recíproco: éatravés dos discursos, das trajetórias profissionais e das práticas institucionais dosatores, que as instituições encontram sua legitimidade, ao mesmo tempo em que estasúltimas legitimam tais discursos, carreiras e ações.Em todo caso, é em razão dos investimentos múltiplos dos agentes da comunidade

internacional que a justiça de transição conquistou seu espaço, constituindo-se hojenuma “quase-obsessão” no gerenciamento de processos de crise.Nada mais lógico.Como já foi ressaltado, uma prática que se diz tão universal não poderia ser difundidase não fosse a atuação de toda esta gama de atores que se dizem sensíveis à causa dapaz e se nomeiam representantes dos interesses coletivos da humanidade.Portanto,é forçoso reconhecer que apesar da universalidade proclamada e das boas intençõesanunciadas pelos atores, os mecanismos de justiça de transição ainda estão aquémdos propósitos a que se prestam. Muitas são as lições que já se pode tirar da aplicaçãoprática dos procedimentos de justiça de transição.

3 - AOutra Face do Mito

Se por um lado os mecanismos da justiça de transição se apresentam como uma“fórmula mágica”capaz de assegurar uma paz estável e duradoura, um balançodestas experiências nos leva a crer que elas não estão à altura das expectativasque são criadas em torno da figura da justiça de transição. Aparentemente, a“justiça perfeita” – que deveria moralizar o mundo, recolocar a humanidade nobom caminho, dissuadir a violência, campeã da verdade – ainda não encontrou“instituições perfeitas”, capazes de concretizar tantas promessas. A apreciação dosresultados da implementação de medidas de justiça transicional resta, em ultimaanálise, no mínimo controvertida e ambígua.Evidentemente, não se trata, por ora, de fazer uma avaliação da eficácia dos

procedimentos de justiça de transição.Não obstante, consideramos ser importante ressaltaralgumas das criticas feitas aos mecanismos da justiça transicional, a fim de fomentar odebate acadêmico. Uma primeira questão que se presta à reflexão concerne a proclamadauniversalidade dosmecanismosde justiça de transição.Ora, a experiênciamostrouque estalógica universal provou-se seletiva : os atores privilegiando algumas crises em detrimentode outras. Assim, vale pensar sobre as conseqüências dos jogos políticos, das lutas porpoder econômico e dos interesses geoestratégicos em tais contextos.

27 Tribunais ad hoc, Corte Penal Internacional, ONG internacionais, ONG locais, Comissões de Verdade,Institutos de pesquisa,Universidades,Departamentos especializados dosMinistérios deRelaçõesExteriores,Organizações Intergovernamentais.

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Neste sentido, já foi lembrado que as motivações que resultaram na intervenção doReino Unido, dos Estados Unidos e da Onu na resolução da crise em Serra Leoa tiverammotivações majoritariamente de ordem pessoal, minimizando a moral universalidadetão proclamada. Roland Marchal28 ressalta o “engajamento pessoal de Tony Blair – e,conseqüentemente, doReinoUnido”emfunçãodoescândalodosmercenáriosdaSandline.Damesma forma, segundoMarchal, a disposição dos Estados Unidos em colaborar com ainstauração de um tribunal penal na Serra Leona tem haver com “a vontade americana demostrar que uma juridição ad hoc seriamais eficaz emenos onerosa” que a criação de umaCorte Penal Internacional permanente, à qual os Estados Unidos sempre se mostraramreticentes29. Por fim, a publicação de relatórios deONG´s (como aHuman’s RightsWatch)denunciando os “diamantes de sangue” pressionou as Nações Unidas, notadamente emvirtude da sua repercussão na mídia, motivando-a a agir. No que concerne o genocídio deRuanda, a rápida instauração do Tribunal Penal Internacional ad hoc logo após o fim dacrise, é tida como um reflexo da culpabilização da comunidade internacional que havia semostrado incapaz de evitar o genocídio dos Tustis.

Ademais, insta ressaltar que, se por um lado, as motivações pessoais (ouinstitucionais) batem de frente com a proclamada universalidade da justiça detransição, por outro lado, uma série de conflitos não encontraram um caminho parapaz com base nesta “fórmula toda poderosa”. É o caso da República Democráticado Congo, onde após a assinatura de diversos acordos de paz, da proclamação deanistias, e da mobilização de procedimentos de mediação no seio de comunidadesbastante afetadas pela guerra, o conflito persiste de maneira mais ou menosgeneralizada em diversas regiões do país. Ainda, é forçoso reconhecer a inação dacomunidade internacional diante do apelo do clero angolano na última fase de umaguerra civil que vai durar quase três décadas. O Comitê Interclesial para a Paz30demandou a intervenção dos atores internacionais objetivando uma solução pacíficapara o conflito, baseada na mediação e num amplo diálogo nacional. Entretanto, osatores engajados na defesa da justiça de transição ignoraram o pedido de socorrodos angolanos, tendo a guerra chegado a termo em 2002, com a morte do líder daUnita (Jonas Savimbi), sem que a comunidade internacional tenha efetivamenteparticipado das negociações de paz31.Como resultado desta inação da comunidade

28 MARCHAL, Roland. Justice internationale et réconciliation nationale: ambigüités et débats. PolitiqueAfricaine. Paris, n.92, déc- 2003.

29 Os Estados Unidos assinaram o tratado na gestão de Bill Clinton, mas ele nunca foi ratificado. O governoBush engajou-se numa forte campanha contra a CPI, firmando, com diversos Estados, uma série de acordosbilaterais estatuindo a proibição da transfêrencia de nacionais americanos à Corte Penal Internacional. Emfevereiro de 2009 o presidente Barack Obama salientou anunciou publicamente seu apoio à CPI mas osEstados Unidos ainda não ratificaram o Tratado de Roma.

30 O comité intereclésial para a paz foi uma instância associativa reunindo diversas igrejas, notamente as igrejascatolicas e protestantes.

31 As Nações Unidas, os Estados Unidos, Portugal e Rússia (posteriormente ex-União Soviética) participaramde dois acordos de paz que não renderam os frutos esperados (Acordos de Bicesse, em1991; e Protocolo deLusaka, em 1994).

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internacional, coube aos angolanos definir seu próprio destino, preferindo estes àspolíticas do silêncio à verdade; o perdão à sanção.Se o caso angolano é apenas mais um exemplo da “seletividade” encontrada no

espectro desta suposta moral universal apregoada pela justiça de transição, a situaçãode Angola faz emergir outra reflexão; tocante ao direito à verdade, que é consideradocomo um dos pilares da justiça transicional. Quem se beneficia efetivamente com averdade? Inversamente, a quem, e a quê poderia servir o silêncio? Contrariando odiscurso da justiça de transição, é possível imaginar uma situação em que a população,cansada da guerra, prefira calar-se e seguir adiante, ao invés de debater longamente osanos de conflito, invocando sofrimentos que agora quer-se enterrar no passado. Nestesentido, em que medida a justiça de transição espelha realmente as expectativas dasvítimas em relação aos processos de paz?Outras críticas se fundam no limite (a)temporal do “período de transição”. É

possível identificar elementos constitutivos de uma “fase de transição”? Quandoela começa? Quando ela pode ser declarada finda? Tais interrogações encontramrespaldo na análise do caso Colombiano. Ainda que não se possa falar em período detransição para a paz – haja a vista a persistência de um conflito armado no país, já épossível identificar uma vasta gama de atores que se engajam na implementação demecanismos de justiça de transição em território colombiano. Da mesma maneira, ainculpação, pelo TPI (Tribunal Penal Internacional ou Corte Penal Internacional), dopresidente em exercício no Sudão, leva-nos a questionar sobre a real existência deuma transição (seja ela “política” ou “pacífica”), sabendo-se que a paz ainda não foiassegurada na região do Darfur. Assim, a chamada justiça de transição é confrontadaa um presente violento, e não mais a um “passado traumático” – o que representa umasérie de conseqüências políticas, diplomáticas, jurídicas e sociais.Por outro lado, se a expedição de um mandado de prisão contra Omar Al Bashir é

amplamente celebrada nas arenas onde se pratica o direito internacional, é ainda difíciljulgar se ele será efetivamente levado a cabo. A questão suscitou, a priori, vigorosascríticas do corpo diplomático, sendo levantada a hipótese de que a inculpação dopresidente sudanês viria a prejudicar as negociações de paz em curso, impedindoassim que os conflitos na região do Darfur e no sul do Sudão chegassem a seu termo.Por outro lado, o efetivo cumprimento do mandado de prisão expedido pelo TPIencontra resistência na ausência de vontade política dos Estados para cooperar com aCorte Internacional. Os países membros da União Africana já manifestaram apoio aopresidente sudanês, mobilizando-se para fazer pressão junto ao Conselho de Segurançada ONU com vistas à aplicação do artigo 16 do Estatudo de Roma32.Desta maneira, a implementação da Corte Penal Internacional ainda suscita

dúvidas quanto ao bom exercício de seu mandato. As reflexões feitas acima sobreo caso do Sudão não esgotam os questionamentos acerca da efetividade da CPI.Conseguirá a corte inculpar e julgar sem discriminação?Aeste respeito, interroga-se a

32 O artigo 16 do Estatuto de Roma autoriza a concessão de um sursis e a suspensão da investigação criminalsob demanda pelo Conselho de Segurança da ONU.

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respeito da atuação da CPI vis-à-vis dos países africanos33. Rolando Marchal perguntase ela não seria uma corte de justiça para julgar os chamados failed states? Sendosua competência limitada aos países signatários do Tratado de Roma, conseguirá acorte, algum dia, promover a acusação de representantes das grandes potências quese recusam a assinar a convenção internacional?Ainda, no tocante à sua competência,saberá a ela respeitar a jurisprudência herdada dos tribunais ad hoc34?Aindependênciadasinstânciasjudiciáriasinternacionaiscomrelaçãoao(s)poder(es)

político(s) em exercício não é matéria restrita à CPI. Vários trabalhos já se dedicarama esta reflexão no âmbito das instâncias transitórias que precederam a criação da CortePenal Internacional. Florence Hartmman faz um levantamento interessante sobre aingerência das grandes potências junto às jurisdições internacionais, sublinhando, apropósito do Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia (TPII), as manobraspolíticas que envolveram a acusação de Slobodan Milosevic35. Por sua vez, o TribunalPenal Internacional para o Ruanda (TPIR) já foi considerado como uma “justiça devencedores”. Helene COBBAN ressalta que a comissão de enquete é impotente faceà ausência de colaboração do governo ruandês36 e Thierry CRUVELLI demonstra queas investigações contra o FPR (partido que assumiu o poder após o genocídio) custama avançar, não se sabendo mesmo se elas serão levadas a cabo37.A competência universal, quanto a ela, já foi igualmente objeto de críticas virulentas:

alguns sustentam sua propensão a se transformar num campo de batalha para lutas de forçaentre os poderes judiciários e o executivo nacional, enquanto outros alegam que ela poderiase revelar um artifício para fazer valer as vaidades pessoais de alguns “juizitos”38 em buscade algunsminutos de fama internacional.Ainda é de se ressaltar que competência universalpode colocar em xeque a vontade política e a capacidade institucional dos Estados quea reclamam. Neste sentido, o caso Belga se afigura como um bom exemplo. Entre 2001e 2003 mais de trinta processos contra chefes de Estado foram ajuizados até que duasrazões levaram o parlamento a revogar a lei que legitimava a competência universal noâmbito interno: o número indiscriminado de demandas e o fato que certos procedimentoscolocavam em risco as relações diplomáticas do Estado39.

33 Atualmente quatro casos estão em análise na Corte Penal Internacional. Todos os quatro envolvem países docontinente africano (República Democrática do Congo, Uganda, Sudão e República Centro Africana). Umnovo procedimento (situation) em relação ao Kenia aguarda seguimento.

34 Apropósito do conflito de jurisprudência entre os tribunais, ver notadamente Pierre -Yves Condé. Causes dela justice internationale, causes judiciaires internationales. Note de recherche sur la remise en question de laCour internationale de justice.Actes de Recherche en Sciences Sociales, Paris, n.174, p. 24-33, sep-2008.

35 Hartmann, Florence. Paix et châtiment. Les guerres secrètes de la politique et de la justice internationales.Paris, Flammarion, 2007, p. 319.

36 COBBAN, Helene. Healing Rwanda: Can international court deliver justice? Boston review, artigodisponível em http://bostonreview.net/BR28.6/cobban.html.

37 CRUVELLI, Thierry. Le tribunal des Vaincus. Un Nuremberg pour le Rwanda? Paris, Calmann-Lévy,2006.

38 MARCHALRoland, op. cit.39 Seroussi, Julien.Lacausede la compétenceuniverselle.Notede recherche sur l’implosiond’unemobilisation

internationale.Actes de Recherche en Sciences Sociales. Paris, n. 173, p. 99-109, juin-2008.

A Justiça de Transição como Modelo de Gestão de Conflitos: um Mito Universal? 113

Estes exemplos nos fazem repensar a “aparente” autonomia das instâncias dejustiça de transição. É forçoso concluir que a sua independência em relação às lutaspolíticas ainda resta no mínimo ambígua. Por outro lado, a extensão dos mandatosdestas instâncias jurisdicionais parece também ser alvo de críticas. A competênciados tribunais, ordinariamente restrita à persecução dos “grandes responsáveis” poratos de violação “grave” aos direitos humanos, coloca em xeque o fundamento daluta contra a impunidade com base na accountability. Os tribunais são confrontadoscom a necessidade de retraçar toda uma cadeia hierárquica visando identificaros “principais responsáveis” ou os mandatários dos crimes, e isto, a despeito dasviolações ao direito serem cometidas essencialmente por aqueles situados na basedesta pirâmide hierárquica. Vale questionar: não seria “imoral” excluir certoscriminosos da persecução criminal? Mais uma vez, somos levados a crer que estajustiça que se diz universal encontra limites difíceis de serem ultrapassados.Por demais, insta ressaltar que os altos investimentos nas instâncias de justiça

de transição se confrontam com a falência dos sistemas jurídicos internos. A tituloexemplificativo, podemos citar que o orçamento daCorte Especial para a Serra Leoa noano de 2002-2003 ultrapassava os 25milhões de dólares, enquanto o sistema judiciáriolocal, na mesma época, era incapaz de atender às necessidades mais elementares dapopulação, contando com um número insuficiente de juízes (em 2002 o país dispunhade apenas 13 magistrados nas cortes locais) que eram obrigados a trabalhar em sistemade rotação, dada as precárias condições de trabalho (falta de energia elétrica, númeroinsuficiente de cadeiras e mesas, uma biblioteca quase inexistente).A reflexão que este caso de figura incita nos parece de extrema relevância,

levando-nos a imaginar que a reforma do Poder Judiciário da Serra Leoa poderiaser um outro caminho para assegurar uma transição eficaz. Portanto, saberia acomunidade internacional reconhecer tais benefícios em detrimento dos seuspróprios? Justifica-se um investimento tão grande nas instâncias transitórias detransição, quando o emprego do mesmo valor poderia servir para reformar, deforma durável, o Poder Judiciário local? De que adianta punir os grandes culpadospela guerra, se os problemas que afligem a população no dia a dia são ligados aofurto de gado, sem que ela tenha a quem recorrer?Em que medida as prioridades dacomunidade internacional não entram em conflito com as prioridades cotidianas dacomunidade local? Como são hierarquizadas estas prioridades e quais os ganhosreais para a população atingida?Ajustiça (seja ela penal ou civil) pressupõe a existência de uma relação de equilíbrio

entre as partes, que devera ser mantida do início ao fim do processo. Sabendo queno campo de batalha, onde se materializam os conflitos, as relações de força sãoraramente equilibradas, quid iuris das situações em que uma das partes em questãoencontrava-se, no campo de batalha, em posição mais avantajada que a outra? Será ajustiça capaz de transformar uma relação assimétrica vertical criada pelo conflito emuma relação horizontal equilibrada? Quais os reflexos das relações de força do campode batalha nas instâncias da justiça de transição?

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No que toca particularmente à restaurative justice, as críticas em relação àComissão de Verdade e Reconciliação da África do sul são numerosas, ainda queseus resultados sejam vangloriados por grande parte da comunidade internacional.Com efeito, André DU TOIT40 ressalta que há um enorme gap entre a apreciação queé feita Truth and Reconciliation Commission na África do Sul e a apreciação que éfeita desta mesma instância no resto do mundo. Por sua vez, WILSON traz a baila adissonância entre o que é considerado como justo pelas vítimas do apartheid e pelaselites políticas sulafricanas41. Ele descreve a incapacidade da Comissão de Verdade eReconciliação em afastar o desejo de vingança que ainda atormenta a grande massados sulafricanos que sofreram com as políticas raciais. De outro lado, esta comissão,que deveria salvar a nação e fundar uma nova sociedade, não conseguiu se desfazer dasamarras políticas. Ora, o relatório negligencia largamente a estrutura social, políticae ideológica do apartheid, tratando indiferentemente das violências cometidas pelogoverno e daquelas cometidas na luta contra a ideologia racista do regime. Ainda, notocante às reparações, seria pertinente indagar seus resultados efetivos já que algumasvítimas dizem sentir que foi um custo muito alto a pagar em nome da verdade42.Uma outra reflexão é feita em torno dos “elementos constitutivos” da justiça

restaurativa. A escritura de uma história oficial, ainda que a várias mãos, não levariaao reforço dos antagonismos, acirrando uma “guerra de verdades” e afastando assimqualquer chance de reconciliação? É possível ignorar a historicidade do contexto e astrajetórias individuais daqueles que sofreram com situações de conflito e pretenderfundar uma nova nação? E ainda, mais importante, de que maneira os mecanismosinstitucionais da justiça de transição permitem verdadeiramente a realização dosobjetivos que lhe são acordados?À guisa de conclusão, vale ressaltar que é atravez de uma análise socio-juridica da

evolução do conceito de justiça de transição, levando em conta os discursos e práticasdos diversos atores que a defendem, que podemos compreender a evolução do seuconceito e identificar toda uma gama de métodos de resolução de conflito calcadas norespeito aos direitos humanos e numa rétorica fundada numa suposta moral universal.Por outro lado, é forçoso concluir que, apesar da justiça de transição ter impulsionadograndes avanços (normativos eprocedimentais) na searadodireito internacional ehaverefetivamente contribuido para a concretização da paz em diversos contextos, ela nãoesta a salvo decríticas – nem mesmo daqueles que a apoiam. Com efeito, poderiamosdizer que é necessario repensar os objetivos traçados, aprimorar os meios utilisados,e compreender as reais possibilidades oferecidas pelo contexto de transição, ao nivellocal e internacional. Algumas reflexões, neste sentido, visam chamar a atenção dosdefensores da justiça de transição para a singularidade das diversas crises e para a

40 DUTOIT,André. La commission vérité et réconciliation sud-africaine. Historie locale et responsabilité faceau monde. PolitiqueAfricaine, Paris, n. 92, p.97/98, déc-2003.

41 Wilson,RichardA.The Politics ofTruth andReconciliation in SouthAfrica: Legitimizing the Post-ApartheidState. NewYork, Cambrige University Press, 2001.

42 André DUTOIT, op cit., p 113.

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importância da historidade dos fatos e da identificação das causas estruturais dosconflitos; pois é forçoso reconhecer que uma única receita não seria capaz de atenderàs prioridades de atores tão distintos. Neste sentido, uma atenção especial precisa serconferida à circulação dos atores em diversas arenas e às relações de poder (político,econômico ou simbólico) em jogo. Da mesma forma, é preciso ter como ponto departida as expectativas das vítimas, em termos do significado de justiça (o que é justo)e de moral (o que é moral), a fim de evitar frustrações desnecessárias. É sem dúvidauma tarefa difícil. Somente uma análise profunda de todas as complexas questões queenvolvem a justiça de transição, a partir das lições tiradas de expêriencias passadas,podera fazer evoluir os procedimentos de justiça de transição.

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REFERÊNCIAS

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A Justiça de Transição como Modelo de Gestão de Conflitos: um Mito Universal? 117

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