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ALAIN GRESH Israel, Palestina: Verdades sobre um Conflito Tr adução de Lígia Calapez Gomes 1ª edição CAMPO DAS  LETRAS 1

Alain Gresh - Israel, Palestina Verdades Sobre Um Conflito(PDF)(Rev)

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  • ALAIN GRESH

    Israel, Palestina:Verdades sobre um Conflito

    Traduo de Lgia Calapez Gomes

    1 edio

    CAMPO DAS LETRAS

    1

  • CONSIDERAES INICIAIS

    Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefcio de sua leitura queles que no podem compr-la ou queles que necessitam de meios eletrnicos para ler.

    Dessa forma, a venda deste e-book ou at mesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia.

    A generosidade e a humildade a marca da distribuio, portanto distribua este livro livremente.

    Aps sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim voc estar incentivando o autor e a publicao de novas obras.

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  • NDICE

    Agradecimentos ...................................................................................................................................4

    Carta minha filha. Deus est do lado dos perseguidos...................................................................5

    Os primrdios do conflito (1917-1939)..............................................................................................12

    Promessas contraditrias de Londres..................................................................................................12

    O mandato britnico sobre a Palestina................................................................................................13

    Uma terra sem povo?......................................................................................................................13

    O Yishouv: imigrao, compra das terras e organizao poltica..............................................................14

    Uma longa revolta (1936-1939)........................................................................................................16

    O Livro Branco.............................................................................................................................17

    Do judasmo ao sionismo...................................................................................................................18

    Quem judeu?..............................................................................................................................18

    O que uma nao?........................................................................................................................19

    Os Hebreus: lenda e histria.............................................................................................................20

    O sculo XIX inventa as raas.......................................................................................................21

    Theodor Herzel e o sionismo............................................................................................................22

    Uma dimenso colonial...................................................................................................................24

    Nascimento de Israel, naufrgio da Palestina (1947-1949)................................................................27

    Intransigncia britnica...................................................................................................................27

    A arbitragem das Naes Unidas ......................................................................................................28

    Os mitos da guerra 1948-1949..........................................................................................................31

    Do genocdio expulso, os sofrimentos do Outro............................................................................34

    A Shoah.......................................................................................................................................34

    Roger Garaudy e o negacionismo......................................................................................................37

    Massacres e transferncia.............................................................................................................39

    Mais uma guerra? (1950-2001)..........................................................................................................43

    O dia-a-dia nos territrios ocupados..................................................................................................46

    Estado judaico e democracia.........................................................................................................48

    Abertura em Oslo...........................................................................................................................49

    Cronologia: Da Primeira Guerra Mundial Segunda Intifada...........................................................56

    Bibliografia.........................................................................................................................................62

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  • AGRADECIMENTOS

    Este livro nasceu de uma conversa sobre as lies do conflito israelo-rabe, de um receio suscitado pelas manifestaes que se sucederam, em Frana, ao desencadear da Segunda Intifada, e de uma indignao face forma como os acontecimentos foram abordados pelos responsveis polticos. Utilizei os trabalhos de dezenas de autores palestinianos, israelitas, franceses, anglo-saxes. Recorri sem complexos s mais recentes anlises sobre a histria do conflito, mas tambm a antigas reflexes sobre a questo judaica ou sobre a nao. Na bibliografia reconheo esta minha dvida.

    Agradeo a Isabelle Avran, Alice Barzilay, Sylvie Braibant, Marina Da Silva, Laurence Malegat, Rita Sabah e Dominique Vidal pela sua releitura minuciosa do manuscrito, mas sobretudo pelas suas crticas, as suas sugestes enriquecedoras, sem as quais esta obra no seria o que .

    Os meus maiores agradecimentos a Henri Trubert, das edies Fayard, que aceitou sem hesitaes o projecto incipiente que lhe apresentei e o apoiou com os seus conselhos.

    Este livro dedicado minha filha e aos jovens da sua gerao, aos nossos filhos. Foi a pensar nela, e neles, que o escrevi.

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  • CAPTULO I

    CARTA MINHA FILHADEUS EST DO LADO DOS PERSEGUIDOS...

    Escrevi este livro para ti, a pensar em ti e em todos os jovens de 20 anos. H mais de duas dcadas que escrevo, participo em conferncias, fao reportagens sobre o conflito israelo-palestiniano. Debati com ardor os direitos dos palestinianos, o carcter do Estado de Israel, as perspectivas de paz. Convencido da fora, da razo e da lgica, da necessidade de ultrapassar preconceitos, tentei compreender e fazer compreender este complexo Oriente. Sempre o fiz de forma apaixonada, porque trago o Mdio Oriente no corao, porque foi l que nasci e cresci. E espero transmitir-vos, a ti e aos teus irmos, ao menos uma pequena parcela deste sentimento, ainda que o meu percurso seja diferente, quer do teu, quer do deles.

    Com os acordos de Oslo, com a escalada da violncia no Mdio Oriente, senti-me durante uns tempos desencorajado. Uma vez mais se afastava a perspectiva de paz, uma vez mais a regio era arrastada para a loucura dos confrontos. Pior ainda, o conflito transbordava para o Hexgono1. Milhares de judeus franceses, frequentemente muito jovens, manifestavam-se diante da embaixada de Israel, alguns gritando Morte aos rabes! Alis, outros jovens franceses, frequentemente de origem magrebina, gritavam a sua indignao face represso na Cisjordnia e em Gaza, alguns aos gritos de Morte aos judeus! Sinagogas foram atacadas, incendiadas. Durante vrias semanas, o espectro de uma guerra entre comunidades perpassou pela cordial Frana. Para l da mera condenao de princpio de quaisquer manifestaes de anti-semitismo, os responsveis polticos pareciam paralisados. Nas escolas, nos liceus, os professores, siderados, diziam preferir o silncio a abrir a discusso: as solidariedades de grupo os feujs com Israel, os beurs com os palestinianos, os franceses de cepa olhando de lado pareciam to fortes, to naturais, de tal forma insuperveis; mais valia tentar no as exacerbar.

    Como tolerar este fosso? Para mim, isto corresponderia a abdicar dos princpios que esto na base do meu trabalho, a minha militncia, as minhas convices. Perteno a uma gerao que veio poltica como se diz, vir ao mundo nos anos 60 atravs do formidvel movimento de descolonizao e em apoio da luta, que proclamvamos invencvel, do povo vietnamita contra a agresso dos Estados Unidos. As clivagens de ento eram polticas, diria mesmo ideolgicas, se esta palavra no estivesse hoje to denegrida. Nem as origens nem a religio de cada um tinha qualquer peso nas nossas anlises, nas nossas lutas, nas nossas certezas. Consideravmo-nos como parte integrante da humanidade, acima dos preconceitos, das origens de raa ou mesmo de nao. Foi o que nos seduziu na mensagem universalista do marxismo: Proletrios de todos os pases, uni-vos!

    verdade que o conflito israelo-rabe era mais complexo do que a guerra do Vietname. A vitria israelita sobre o Egipto, a Sria e a Jordnia levantou ondas de entusiasmo em Frana. O peso do genocdio dos judeus, o mito do kibboutz (exploraes agrcolas colectivas) socialista, mas tambm o sentimento de vingana anti-rabe, volvidos apenas cinco anos sobre a guerra da Arglia factores que explicavam as tomadas de posio unilaterais a favor de Israel. Mas, no fundamental, o confronto continuava a ser poltico. E, nas organizaes comunistas e de extrema-esquerda, onde os militantes judeus eram numerosos, defendamos, uma vez mais, posies internacionalistas.

    No entanto, ramos herdeiros de uma tradio nacionalista. Ainda nos sentamos fascinados por aqueles franceses considerados traidores ptria por terem apoiado a Frente de Libertao Nacional Argelina; chamavam-lhes os porteurs de valise. Ao invs de Albert Camus, tinham preferido a justia me ptria. Nascido no Egipto, de uma me de origem judaica russa e de um pai copta2, ateu, mas respeitador dos crentes, eu identificava-me com a ptria das Luzes.

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    1 - A Frana metropolitana (N. da T.).2 - Cristo do Egipto e da Etipia (N. da T.).

  • Como j te disse, minha filha, tive o imenso privilgio de ter escolhido a minha nacionalidade: o liceu do Cairo fez-me francs de cultura e de corao, ainda que o no fosse de sangue. Admirava Voltaire. Ele tinha-se envolvido no caso Calas, defendendo esse calvinista acusado em 1761 de ter morto o seu filho alegadamente convertido ao catolicismo, e executado um ano depois em Toulouse. O caso dividiu a Frana. Foi preciso esperar por 1765 para que Calas fosse reabilitado depois de Voltaire ter defendido a sua causa com todo o talento e energia, que alis punha sempre no combate contra os fanatismos religiosos, incluindo o protestantismo, e os privilgios das igrejas.

    Com o meu irmo contra o meu primo, com o meu primo contra os estrangeiros: este provrbio resume, de alguma forma, a espiral de massacres que o Lbano viveu, mergulhado na guerra civil, durante os anos setenta. Sempre rejeitei esta lgica. Teremos de a aceitar hoje, num momento em que se celebra a aldeia global, os direitos universais da pessoa e a igualdade entre seres humanos? Ser de considerar como legtimo que os judeus estejam solidrios com Israel e os muulmanos com os palestinianos? Podemos compreender as proximidades familiares, afectivas, religiosas. Quase todos os judeus de Estrasburgo assinalava um responsvel do Conselho representativo das organizaes judaicas de Frana (CRIF) aps os diversos incidentes anti-semitas do Outono de 2000 tm famlia por l. O sentimento de base uma reaco de ansiedade pelos seus prximos. Sempre que um perigo ameaa Israel, a solidariedade joga em pleno. Quanto aos jovens de origem muulmana, eles identificam-se com esses atiradores de pedras por razes sociais Deserdados de todos os pases, uni-vos ou por um sentimento, mais ou menos difuso, de pertena cultural e religiosa. Uma nota do servio de estatstica relativa ao ms de Dezembro de 2000 sublinhava que as agresses anti-semitas, muito espordicas, exprimiam sobretudo a exploso de sentimentos de alguns jovens das cidades e que no era de lhes atribuir qualquer carcter poltico. Mas ficaremos por aqui?

    Porque a verdade que a esquerda se mantm estranhamente margem dos acontecimentos da Palestina. Paralisada pelo receio dos excessos, recorrendo s autoridades religiosas para acalmar as tenses, abandonou sua sorte estes jovens que crescem fora da sua influncia, da sua cultura, da sua viso do mundo. Ela no soube dirigir-se-lhes, dar resposta aos problemas que se vivem nas cidades, encontrar as palavras adequadas, implementar as aces que poderiam dar um sentido universal ao que se passava na Palestina e em Israel. Revoltados, para quem se poderiam voltar estes jovens? Para os que do a esta luta uma explicao e uma resposta, religiosa ou comunitria?

    H entretanto vozes corajosas, ainda que minoritrias, que rejeitam quer esta cegueira da esquerda quer a deriva das solidariedades comunitrias. Em 18 de Outubro de 2000, Le Monde publicava um apelo: Cidados do pas em que vivemos e cidados do planeta, no temos razes nem por hbito pronunciarmo-nos como juzes, escreviam dezenas de intelectuais, entre os quais o resistente Raymond Aubrac, o antigo dirigente dos Mdicos Sem Fronteiras Rony Brauman, o filsofo Daniel Bensaid, o mdico Marcel Francis Kahn, a advogada Gisle Halimi, o matemtico Laurent Schwartz, o historiador Pierre Vidal Naquet.

    Lutamos prosseguem contra o racismo, incluindo, naturalmente, o anti-semitismo sob todas as suas formas. Condenamos os atentados contra as sinagogas e as escolas judaicas que visam uma comunidade e os seus locais de culto. Recusamos a internacionalizao de uma lgica comunitria que se traduz, tambm aqui, por confrontos entre jovens de uma mesma escola e de um mesmo bairro.

    Mas, ao pretender falar em nome de todos os judeus do mundo, ao apropriar-se da memria comum, ao erigir-se em representantes de todas as vtimas judaicas do passado, os dirigentes do Estado de Israel arrogam-se tambm o direito de falar, sem nos consultar, em nosso nome. Ningum tem o monoplio do genocdio de judeus pelos nazis. Tambm as nossas famlias tiveram o seu quinho de deportados, de desaparecidos, de resistentes. O recurso chantagem da solidariedade comunitria, para legitimar a poltica de unio sagrada dos dirigentes israelitas, intolervel. Algumas semanas mais tarde, com intelectuais rabes ou de origem rabe, criaram um comit para defender uma paz justa no Mdio Oriente. Os dois grupos felizmente no foram os nicos tentaram superar as lgicas identitrias em nome de princpios universais e apesar das condenaes:

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  • Roger Ascott, em Larche, le mensuei du judaisme franais (Julho-Agosto 2001), denunciava como um punhado de meios-traidores estes judeus que no eram solidrios com Israel. Apesar de tudo no exigiu que fossem fuzilados.

    Como sempre acontece em cada nova crise na regio, fui convidado para participar em debates. Frequentemente as discusses foram inflamadas. Encontrei muitos jovens da tua idade, estudantes do secundrio ou da universidade. Apercebi-me de que no tnhamos sido capazes de transmitir esta experincia internacionalista de que falava atrs. Quero assumir, contra ventos e tempestades e sem pretender idealizar passado o papel de elo e transmitir um testemunho. este desejo que est na origem deste livro. Pretendi simultaneamente restabelecer um certo nmero de factos sem os quais nenhuma discusso sria possvel e expor os princpios sobre os quais assenta a minha perspectiva sobre este conflito.

    O confronto na Palestina um dos mais antigos do planeta. Surgiu h quase um sculo, com a emergncia do movimento sionista na Europa e as primeiras vagas de colonizao na Palestina. Da Primeira Guerra Mundial at aos nossos dias, envolveu, em cada poca, todas as grandes potncias, do imprio otomano Rssia czarista, da Unio Sovitica Alemanha nazis, dos Estados Unidos Gr-Bretanha. Traduziu-se em cinco guerras, algumas das quais quase degeneraram em conflitos mundiais. No programa de histria do ltimo ano da escola secundria, que fala do mundo contemporneo, o Mdio Oriente abordado em diversos captulos e sob vrias perspectivas. Por acrscimo, pelas razes j evocadas, como muitos professores evitam tratar este tema sensvel, que raramente aparece nas provas finais, a confuso instala-se. Ora, o conhecimento uma condio indispensvel a qualquer debate. Diferentes pontos de vista podem confrontar-se se jovens ou menos jovens estiverem na posse dos elementos histricos de base, o que em geral no o caso. Assim, irei relembrar factos e processos que me parecem indispensveis para qualquer debate srio.

    Mas no basta precisar factos. Na verdade, h j centenas de obras dissecando o conflito, a sua histria e os seus protagonistas. Mas nem por isso os especialistas esto de acordo entre si. Por qu? Porque, conscientemente ou no, cada um faz a sua leitura deste conflito atravs de grelhas de anlise, que do um sentido aos acontecimentos. Que resposta dar a algum que proclama que a terra de Israel foi dada aos judeus por Deus? Pode-se contestar Deus? Uma viso religiosa, baseada numa mensagem divina, no negocivel. Como convencer os estudantes muulmanos que pensam que a Palestina um waqf (bem de mo morta) islmico e que no pode ser objecto de negociao ou compromisso?

    Esclarecendo melhor. A linha de demarcao, no que respeita Palestina ou em relao a outros conflitos, no passa necessariamente entre crentes e no crentes. H pessoas laicas que defendem posies nacionalistas extremistas, que atribuem uma superioridade aos seus contra os outros tal como se viu na Srvia ou na Crocia.

    Em contrapartida, alguns crentes defendem uma leitura humanista. Num texto de opinio publicado no jornal Le Monde de 9 de Janeiro de 2001, o rabino David Meyer lembrava que, na tradio judaica, no existia qualquer idia de terra santa ou de promessa incondicional referindo-se terra de Israel. Ele citava o captulo IV do Deuteronmio (um dos primeiros livros da Bblia): E agora escuta, povo de Israel, as leis e as regras que te ensino para as praticares, para poderes viver e alcanar o pais que o Eterno, o Deus dos teus pais, vos concede. (...) Vede, ensinei-vos as leis e as regras, tal como me foi ordenado pelo Eterno, o meu Deus, para que as cumprais no pas para onde ides para o fazer vosso. Observai-as e praticai-as! Ser essa a vossa sabedoria e a vossa inteligncia aos olhos dos povos (...). Ora, quando tiverdes engendrado os vossos filhos, os vossos netos, e envelhecido sobre esta terra, se ento degenerardes, se fabricardes um dolo, a imagem de um qualquer ente, afrontando assim a vontade do Eterno, vosso Deus, e ofendendo-O, tomo hoje como testemunhas contra vs os cus e a terra; prontamente desaparecereis deste pas, por cuja posse ireis agora passar o Jordo, no podereis l continuar, sereis proscritos. E o rabino interroga-se sobre esse culto insensato que consiste na idolatria da terra de Israel, da Grande Israel, que leva a dar mais valor s noes de santidade e de sagrado do que do respeito pela vida humana.

    Certos intelectuais laicos bem poderiam aprender aqui alguma coisa.

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  • Pela minha parte, no perteno a nenhum partido de Deus, contento-me, como o bastardo Goetz, personagem central da pea O Diabo e o Bom Deus, de Jean-Paul Sartre, de pertencer ao dos homens, ou antes, ao dos seres humanos. No reconheo qualquer hierarquia, tal como no classifico em nenhuma escala ascendente ou descendente as comunidades religiosas ou nacionais. Mesmo que compreenda que, por razes ou familiares, ou religiosas, frequentemente culturais, nos poderemos sentir mais prximos deste ou daquele povo... Na condio de no o idealizar, na condio de no absolver os crimes cometidos em seu nome.

    Claude Lanzmann o director de Les Temps Modernes, uma revista fundada por Sartre. Ela representou mas isso foi bem antes do teu nascimento um papel no debate intelectual em Frana. Lanzmann produziu um filme lamentvel e apologtico sobre o exrcito israelita. Estava no seu direito, somos um pas livre. Realizou um outro, marcante, sobre o genocdio dos judeus. Rodou um terceiro, intitulado "Pourquoi Israel?" (Por que Israel?). Em nenhum momento refere os rabes. Questionado sobre o porqu dessa omisso, respondeu, em artigo de opinio no Le Monde (7 de Fevereiro de 2001): Cabe a eles fazerem-no. Pensa um minuto apenas na aberrao desta afirmao. Os negros deveriam escrever sobre negros, os rabes sobre rabes, os judeus sobre judeus... Lgica tnica, tribal, lgica de guerra, afastada de qualquer ideal humanista.

    Na Palestina no existe, na minha opinio, qualquer direito natural ou religioso. Recuar a trs mil, ou esmo a mil anos, para definir que pedao de terra pertence a quem um exerccio absurdo, ilegtimo mas tambm sangrento. Idntica argumentao foi utilizada pelo governo de Belgrado para justificar um direito sobre Kosovo, bero da Srvia. Sabemos que as naes modernas remontam ao sculo XVIII e Revoluo Francesa. Voltarei a este ponto no terceiro captulo. Mas a ocupao de tal regio francesa pelas tribos germnicas ou da Aquitnia pelos anglo-saxes no d lugar a nenhum direito.

    Como poderemos ento identificar direitos, face a reivindicaes opostas? Pela afirmao do primado do Direito Internacional. Que dizem, em substncia, as resolues das Naes Unidas sobre a Palestina e Israel? Elas reconhecem que, neste momento, no territrio histrico da Palestina esto instalados dois povos, um judeu israelita outro palestiniano, e que ambos estes povos tm direito um Estado independente.

    Importa entretanto matizar esta simetria. Antes de mais, o povo israelita dispe de um Estado j h mais de cinquenta anos, enquanto os palestinianos continuam privados dele e vivem num exilo forado ou sob ocupao. Por outro lado, a situao actual nasceu de uma injustia primordial: os palestinianos foram expulsos das suas terras, nomeadamente em 1948-1950, pelas milcias judaicas e posteriormente pelo exrcito israelita, assunto que irei desenvolver no quarto captulo. Esta expulso, durante muito tempo negada e recusada tanto em Israel como no Ocidente, doravante um dado adquirido, graas nomeadamente aos trabalhos dos novos historiadores israelitas. Vivemos numa poca e num espao, a Europa, onde dever de memria invocado saciedade. Muito bem, mas ento no devemos fazer discriminaes. A injustia feita aos palestinianos merece, tal como as outras mltiplas durante o perodo colonial , reparao e, antes do mais, reconhecimento. Esta dimenso moral no pode ser escamoteada porque ela condiciona uma reconciliao entre israelitas e palestinianos.

    O genocdio dos judeus pesa fortemente sobre este conflito. As tomadas de posio, tanto em Frana como no Mdio Oriente, esto marcadas a ferro e fogo pelo que foi um dos mais monstruosos crimes deste sculo. O assassinato em massa dos judeus pelo nazismo e seus aliados, a incapacidade demonstrada pelas grandes potncias da poca de impedir este crime criaram um sentimento de culpa na opinio pblica ocidental e uma tendncia a favor dos que se reivindicam como herdeiros da histria e da memria dos judeus. Este martrio favoreceu o voto da Assembleia Geral das Naes Unidas de 29 de Novembro de 1947 a favor da partilha da Palestina, e como tal da criao do Estado de Israel. Mas foram os palestinianos quem pagou o preo de um crime que no cometeram. Voltarei a abordar mais profundamente esta contradio, no quinto captulo.

    Quando se fala do Mdio Oriente, no nos podemos pr de fora da confuso. A neutralidade uma iluso. Recuso, entretanto, a solidariedade no abstracto com qualquer dos campos. No acredito que um povo, seja ele qual for, seja bom, justo, superior por natureza ou por uma

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  • qualquer graa divina ou imanente. Nenhum povo est investido de uma misso superior. Em contrapartida, existem causas justas. Esta distino escapa por vezes aos comentadores. Richard Liscia, num artigo sobre ou antes contra a imprensa publicado por L. Arche em Novembro de 2000, denunciava um dos mecanismos dos media e das pessoas em geral, a solidariedade com os revoltados: A admirao das pessoas pelos grevistas da SNCF e da RATP, ou pelos camionistas que, entanto, lhes envenenam a existncia , no deixa tal de ter alguma relao com a defesa frentica da caida palestiniana. Actualmente alinha-se quase sistematicamente pelos revoltados. Ser razo para preocupao que a opinio pblica esteja, espontaneamente, do lado das vtimas?

    No Figaro, o psicanalista Daniel Sibony explica que opinio pblica ocidental s ama as pessoas enquanto vtimas. Ela ama os judeus vtimas dos campos de concentrao (ela ama-os sobretudo depois dos campos concentrao) e ela ama os palestinianos vtimas de judeus. Pese embora o comentrio ambguo sobre campos de concentrao, repito, ser to anormal sentir-se solidrio com as vtimas? No, na condio de reter as lio da histria: as vtimas de ontem podem, infelizmente com muita facilidade, tornar-se nos carrascos de hoje. Os exemplos abundam, como aquele, muito recente, em Ruanda. Os tutsis foram vtimas de genocdio por parte dos hutus, mas uma das suas organizaes consegiu alcanar o poder e cometeu terrveis massacres. Ser caso para absolver os responsveis pelos massacres dos tutsu? Pierre Vidal-Naquet, historiador e crtico da tortura durante a guerra da Arglia, incansvel combatente da causas justas, cita este antigo comentrio rabnico da Bblia, que dedico aos crentes e aos no crentes: Deus est sempre do lado de quem perseguido. Pode-se deparar com um caso em que um justo persegue um justo, Deus est do lado do perseguido; quando um mau persegue um justo, Deus est do lado do perseguido; quando um mau persegue um mau, Deus est do lado do perseguido, e mesmo quando um justo persegue um mau, Deus est do lado do que perseguido.

    Quanto aos intelectuais franceses, no esto sempre desse lado. O silncio de muitos deles depois do desencadear da Segunda Intifada ensurdecedor. Na verdade, por vezes seria prefervel que se abstivessem. Num delirante artigo de opinio (Libration, 10 de Julho de 2001), trs de entre eles, Marc Lefevre, Philippe Gumplowicz e Pierre-Andr Taguieff, apoiados por uma dezena de outros, denunciaram a visita de solidariedade de uma delegao, que inclua nomeadamente Jos Bov, aos territrios ocupados. O subttulo resumia a idia central: A origem das desgraas dos palestinianos est na sua direco poltica corrupta e no nos colonos israelitas, como afirma o dirigente sindical Jos Bov. Os quatrocentos mil colonos? S uma pequena minoria de entre eles trinta mil so fanticos religiosos; porqu ento preocupar-se? Sero evacuados no momento oportuno. A represso israelita? Ela nem sequer referida, os signatrios apenas denunciam os atentados brbaros. As bases de um acordo definitivo para resolver todos os problemas? Elas foram definidas em Taba em Janeiro do 2001, escrevem os autores, o que verdade; apenas Arafat no quis aproveitar esta oportunidade, o que mentira. A menos que se trate de pura ignorncia arvorada em argumento terico. Uma soluo baseada em dois Estados a nica possvel? Estamos encantados por ouvir dizer que Ariel Sharon tambm a admite quando os microfones so desligados. Sem dvida tal como a frica do Sul do apartheid aceitava a independncia dos bantustes... No dia em que este texto apareceu, o exrcito israelita destrua uma vintena de casas de palestinianos em Jerusalm e na faixa de Gaza.

    Numerosas famlias ficaram na rua. Mas para qu preocupar-se, essas casas sero mais tarde reconstrudas...

    Decididamente, aplicam-se a este pequeno territrio Palestina-Israel outros princpios, anlises diferentes das que so utilizadas noutros casos. Fico sempre confundido quando constato que destacados intelectuais, sempre prontos a mobilizarem-se por inmeras causas, hesitam quando se trata da Palestina. Mesmo um filsofo como Jean-Paul Sartre, cujas posies generosas so conhecidas, da guerra da Arglia luta dos negros americanos, era pelo menos timorato neste domnio. Por vezes, inconscientemente, aplicamos ao Mdio Oriente a regra de dois pesos, duas medidas.

    Ser cinismo perguntar de onde vm estas crianas, quem as colocou na primeira linha, no quadro de que lgubre estratgia do martrio? (...) Ser arriscado sugerir, sim, que a insensata

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  • brutalidade do exrcito sul-africano, este excesso e esta desproporo dos meios utilizados era uma resposta ao que preciso considerar uma declarao de guerras dos negros? Estas palavras, se tivessem sido escritas no dia seguinte aos motins de Soweto de 1976, em que se assistiu revolta da juventude dos townships da frica do Sul, teriam desacreditado definitivamente o seus autores...

    Ora, este texto escreveu-o Bernard Henry Lvy em Le Point de 13 de Outubro de 2000. Estava escrito: Ser cinismo perguntar de onde vm estas crianas, quem as colocou na primeira linha, no quadro de que lgubre estratgia do martrio? (...) Ser arriscado sugerir, sim, que a insensata brutalidade do exrcito israelita, este excesso, esta desproporo dos meios utilizados era uma resposta ao que preciso considerar uma declarao de guerra dos palestinianos? Dezenas de jovens com menos de 18 anos, por vezes mesmo crianas, foram mortos nas primeiras semanas da Segunda Intifada. E Bernard-Henry Lvy pergunta-se o que fazem eles na primeira linha. Teria colocado esta mesma questo se estes jovens fossem bsnios ou tchetchenos?

    Algumas semanas mais tarde, Bernard-Henry Lvy corrige ligeiramente o tiro, se que tal se pode dizer, no regresso de uma viagem Palestina. Um argumento que no voltarei a utilizar reconhece depois de ter ouvido as mes palestinianas falarem-me, como qualquer me do mundo, da sua louca angstia quando, hora da sada da escola, no viam regressar os seus filhos: as crianas deliberadamente empurradas para a frente, friamente transformadas em escudos humanos, etc. Mas acrescenta que o pequeno Mohamed El Dourra, essa criana cuja morte foi filmada em directo pelas cmaras de televiso, foi morto por uma bala perdida, no por o tiro deliberado de um soldado judeu assassino de crianas (Le Point, 24 de Novembro de 2000). Assim, Bernard-Henry Lvy precisou de fazer uma viagem Palestina para compreender que as mes palestinianas no gritam de alegria quando os seus filhos so mortos, que os palestinianos so, muito simplesmente, seres humanos?

    A histria d por vezes estranhas voltas, como o testemunha esta informao. A manifestao foi muito dura. Os confrontos prolongaram-se. Na sequncia de um dia de motins, registaram-se nove mortos e 44 feridos graves. Entre estes, 18 tinham idades compreendidas entre os 8 e os 16 anos, 14 tinham entre 16 e 20 anos. A imprensa denuncia ento esses pais que utilizam os seus filhos como escudos humanos ou que os mandam para o meio da confuso enquanto ficam tranquilamente em casa. Estes factos tm lugar precisamente na Palestina, mas em... Novembro de 1945 em Telavive! Os manifestantes eram judeus que protestavam contra as restries imigrao. Davar, o jornal da central sindical judaica (a Histadrout), publicou ento uma caricatura que lhe valeu o encerramento por uma semana: um mdico, ao lado de crianas feridas na cama de hospital, diz a um colega:

    Bons atiradores, estes ingleses! Com alvos to pequeninos, e no falham nenhum!Este episdio foi relatado por Charles Enderlin, correspondente da Erance 2 em Jerusalm,

    cuja equipe filmou em directo a morte do pequeno Mohamed El Dourra. Bernard-Henry Lvy teria ento escrito que os jovens manifestantes tinham sido mortos por uma bala perdida? E que significa a sua expresso soldado judeu assassino de crianas? Uma censura dirigida a todos os que criticam o exrcito israelita: eles estariam imbudos de um anti-semitismo camuflado, andariam a espalhar os piores clichs do anti-semitismo, dos judeus assassinos de crianas. Se o nosso filsofo tivesse muito simplesmente lido a imprensa israelita, teria ficado a saber que, sim, os soldados israelitas matam deliberadamente, incluindo crianas.

    A jornalista israelita Amira Hass publicou este incrvel dilogo com um atirador de elite do exrcito israelita: Estamos proibidos de matar crianas, diz, falando das ordens da sua hierarquia. Mas acrescenta: No se pode atirar sobre crianas com 12 anos de idade ou menos. Acima dos 12 anos, j autorizado. o que eles dizem (Le Monde, 24 de Novembro de 2000). A organizao israelita de defesa dos direitos humanos B'Tselem demonstrou, com base em nmeros do prprio exrcito israelita que em trs de cada quatro dos incidentes mortais, entre o incio da Intifada e 15 de Novembro de 2000, no se registara nenhuma presena de atiradores palestinianos (International Herald Tribune, 14 de Dezembro de 2000). A imprensa mencionou numerosos casos em que palestinianos, sim, crianas tinham sido deliberadamente mortas enquanto a vida dos soldados no corria qualquer perigo. A recusa do exrcito em abrir inquritos sobre a maioria destes casos

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  • encoraja naturalmente tais comportamentos. E um inqurito do jornalista israelita Joseph Algazy, do jornal Haaretz, revelou o pesadelo de dezenas de palestinianos de 14, 15 ou 16 anos, espancados, maltratados, torturados nas prises israelitas.

    O caso de Mohamed El Dourra tocou um ponto sensvel, provocando outras incrveis reaces. Claude Lanzmann, outra vez ele, explicou em Les Temps Modernes o que o revolta neste caso: que esta morte foi filmada em directo pelo cameraman rabe de uma cadeia francesa de televiso. Eu, se visse uma criana ameaada de morte debaixo dos meus olhos, o meu impulso seria mais de correr e tentar salv-la, do que de lisonjear o que Lacan chamava de pulso scopique3. Charles Enderlin, responsvel por Talal, o cameraman em causa, interrogava-se em carta dirigida ao Le Monde, onde ironicamente se apresentava como jornalista judeu da cadeia francesa France 2:

    Devemos assinar as nossas reportagens indicando aos telespectadores a nossa pertena nacional ou religiosa: jornalista judeu, cameraman rabe, responsvel pelo som cristo, montador de imagem vietnamita? E explicava:

    Debaixo de fogo durante quarenta minutos, receou perder ele prprio a vida, e por diversas vezes me contactou pelo seu telefone porttil para me pedir que tomasse conta da sua famlia no caso de morrer. Os outros cameramen presentes no local filmaram a cena, Talal e o seu assistente tentando proteger-se por detrs de uma camioneta branca no meio do cruzamento. O condutor de uma ambulncia tentou socorrer o pequeno Mohamed e seu pai. Foi morto. Mas ser preciso sublinhar que ele era rabe, palestiniano e muulmano?

    Uma nica questo merece ser colocada: como que possvel um soldado apontar para crianas e mat-las? Qualquer outra interrogao obscena, comenta com emoo o psiquiatra palestiniano Eyad Serraj. desta obscenidade que ns devemos defender ao mergulhar na histria deste conflito. No entrarei em detalhes. H um sem-nmero de livros sobre este assunto; farei uma escolha dos encadeamentos de factos que me paream indispensveis para a compreenso deste conflito. Para o complexo Oriente, voarei com idias simples, escreveu Charles de Gaulle. Esta frmula batida serve frequentemente para justificar posies que esto em contradio com os valores universais. Voemos antes para este complexo Oriente guiados pela bssola da razo humana.

    113 - Scop: notcia dada em primeira mo por um jornalista. Caixa (N. da T.).

  • CAPTULO II

    OS PRIMRDIOS DO CONFLITO (1917-1939)

    Um mundo afunda-se em 1917. A Primeira Guerra Mundial entra no seu ltimo ano. Os imprios otomano e austro-hngaro no lhe sobrevivero. A Rssia czarista j est morta e os bolcheviques preparam-se para o assalto ao Palcio de Inverno para instaurar um regime cuja durao ir coincidir com o que os livros de histria designam por sculo XX. Nesse 2 de Novembro de 1917, Lorde Arthur James Balfour, ministro do poderoso imprio britnico, do ltimo retoque sua carta. Ter hesitado antes de lhe apor a sua rubrica? Ter sido assaltado por alguma premonio? Sem dvida que no, porque este texto, mais conhecido como Declarao Balfour, foi longamente debatido pelo governo de Sua Majestade. Este declara que encara favoravelmente o estabelecimento, na Palestina, de uma ptria para o povo judeu e que envidar todos os esforos para facilitar a concretizao deste objectivo. A declarao, que, numa primeira verso, evocava a raa judaica, precisa que, para a concretizao deste objectivo, nada ser feito que possa atentar nem contra os direitos civis e religiosos das comunidades no-judaicas existentes na Palestina, nem contra os direitos e o estatuto poltico de que os judeus gozem em qualquer outro pas. Como criar uma ptria para os judeus sem afectar as populaes locais rabes? Esta contradio, a Gr-Bretanha nunca poder resolv-la e estar na origem do mais longo conflito que marca o mundo contemporneo.

    PROMESSAS CONTRADITRIAS DE LONDRES

    A declarao de Balfour responde a vrias preocupaes do governo de Londres. Antes do mais, enquanto a guerra se intensifica no continente, trata-se de ganhar a simpatia dos judeus de todo o mundo, que se considera deterem um considervel poder, frequentemente oculto. Por ironia da histria, esta perspectiva no est muito longe da dos piores anti-semitas que vem, por todo o lado, a mo dos judeus. Assim, o primeiro-ministro britnico da poca refere nas suas Memrias o poderio da raa judaica, guiada por interesses exclusivamente financeiros. O prprio lorde Balfour foi quem apresentou, em 1905, um projecto de lei sobre a limitao da imigrao na Gr-Bretanha, que visava antes do mais os judeus da Rssia. Mark Sykes, um dos negociadores dos acordos que levaram partilha do Mdio Oriente em 1916, escrevia a um dirigente rabe: Acredite-me que sou sincero quando lhe digo que esta raa (os judeus) vil e fraca hegemnica no mundo inteiro e ns no a podemos vencer. H judeus em todos os governos, em todos os bancos, em todas as empresas. A carta de Balfour enviada a lorde Walter Rothschild, um dos representantes do judasmo britnico, prximo dos sionistas.

    O que o sionismo? Voltarei a este tema no prximo captulo. Limitemo-nos de momento a dizer que este movimento reclama o renascimento nacional do povo judeu e o seu regresso terra da Palestina.

    A missiva de Balfour dirige-se particularmente aos judeus americanos, suspeitos de simpatia pelo imprio austro-hngaro, aliado da Alemanha, e aos judeus da Rssia, influenciados pelas organizaes revolucionrias que derrubaram o czar na Primavera de 1917. Muitos deles so favorveis a que a Rssia assine uma paz em separado com o inimigo. Londres espera evitar o abandono por parte do seu aliado. Balfour evoca mesmo a misso que seria confiada aos judeus da Palestina: fazer com que os judeus de todo o mundo se comportem convenientemente! Um clculo que ir falhar, pois, na noite de 6 para 7 de Novembro de 1917, os revoltosos Bolcheviques tomam o poder em Petrogrado e apelam a uma paz imediata.

    Mas a Gr-Bretanha, ao reforar o movimento sionista, persegue igualmente um objectivo mais estratgico: o controlo do Mdio Oriente. O desmembramento dos vencidos negociado entre Paris, Londres e Moscou, antes mesmo de a vitria estar garantida. Em 1916 so assinados por Paris

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  • e Londres, e depois ratificados pelo czar, os acordos conhecidos sob o nome de Sykes-Picot (Mark Sykes e Georges Picot so dois altos funcionrios, um britnico, outro francs), que definem as linhas de partilha e as zonas de influncia no Mdio Oriente. Para Londres, a Palestina protege o flanco leste do canal do Suez, linha vital entre as ndias, a glria do imprio, e a metrpole. O apadrinhamento do sionismo permite ao governo britnico obter um controlo total sobre a Terra Santa.

    Mas os britnicos no se limitaram a fazer promessas ao movimento sionista, fizeram-nas tambm aos dirigentes rabes. O califa otomano (que exerce a sua autoridade sobre os territrios rabes do Mdio Oriente e o comendador dos crentes) juntou-se em 1914 Alemanha e ao imprio austro-hngaro. Chegou mesmo a lanar um apelo guerra santa contra os infiis. Como resposta, Londres impulsiona uma revolta dos rabes contra o imprio otomano, estimulada pelo dirigente religioso, o xeque Hussein, de Meca. Em troca, Hussein obtm a promessa britnica de apoiar a independncia dos rabes. Mas as promessas apenas comprometem os que nelas acreditam... Como conciliar, na prtica, a independncia rabe e a criao de uma ptria para os judeus? A revolta rabe ficar clebre atravs de uma verso claramente deformada, forjada por um dos agentes britnicos que nela jogou um papel decisivo, Thomas E. Lawrence, conhecido como Lawrence da Arbia. Este relato, Os Sete Pilares da Sabedoria, ser levado ao cinema por David Lynch, com Peter O'Toole a encarnar Lawrence.

    O MANDATO BRITNICO SOBRE A PALESTINA

    O Mdio Oriente ser assim partilhado entre a Frana e a Gr-Bretanha. Criada em 1920, a Sociedade das Naes (SDN), o antepassado das Naes Unidas, reunia ento apenas algumas dezenas de Estados, na sua maioria europeus. Ela instaura o sistema de mandatos, assim definido na sua carta: Algumas comunidades, que antes pertenciam ao imprio otomano, atingiram um tal grau de desenvolvimento que a sua existncia como naes independentes pode ser provisoriamente reconhecida, na condio de que os conselhos e ajuda de um mandatrio orientem a sua administrao at serem capazes de se orientarem por si. Assim, os povos considerados menores teriam necessidade de tutores para, talvez um dia, aceder maioridade...

    A 24 de Julho de 1922, a SDN outorga Gr-Bretanha o mandato sobre a Palestina. O texto prev que a potncia mandatria seja responsvel pela concretizao da declarao originalmente elaborada em 2 de Novembro de 1917 pelo governo britnico e adoptada por as potncias aliadas no sentido da criao de uma ptria para o povo judeu. Os filhos do xeque Hussein, controlados por Londres, instalam-se nos tronos do Iraque e da Transjordnia (pas criado pelos Britnicos a leste da Jordnia), enquanto os territrios libans e srio so atribudos Frana. O Egipto, formalmente independente desde 1922, continua sob ocupao britnica.

    Todos os actores do drama palestiniano esto presentes: a potncia dominante, a Gr-Bretanha, que pretende manter o seu controlo sobre uma regio estratgica, rica em petrleo, com um peso crescente no plano econmico e militar; o movimento sionista, fortalecido com o seu primeiro grande sucesso diplomtico, que organiza a imigrao para a Palestina; os rabes da Palestina, que ento ainda no eram designados por palestinianos, que comeam a mobilizar-se contra a Declarao de Balfour; e por fim os pases rabes, na sua maioria sob influncia britnica, que iro gradualmente envolver-se nas questes palestinianas.

    UMA TERRA SEM POVO?

    O que a Palestina? Uma terra sem povo, para um povo sem terra, como afirmam os sionistas? Os mais lcidos de entre eles adoptam uma viso mais realista. Entre estes um judeu russo, Asher Ginzberg, actualmente venerado por toda a Israel como Ahad Haam, deslocou-se pela primeira vez Palestina em 1891. De l regressou com um artigo premonitrio intitulado A verdade sobre a terra de Israel. Temos o costume de pensar, fora de Israel escreve , que a

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  • terra de Israel est actualmente quase deserta, rida e inculta, e que quem quiser comprar a terras o pode fazer sem entraves. Mas a verdade outra. Por todo o pas, difcil encontrar terras cultivveis que ainda no estejam cultivadas (...). Temos o costume de pensar, fora de Israel, que os rabes so selvagens do deserto, um povo de burros, que no vem nem compreendem o que se passa sua volta. Mas estamos profundamente enganados. O rabe, como todos os filhos de Sem4, tem uma inteligncia aguda e astuciosa (...). Se vier a acontecer que a vida do nosso povo (os judeus) no pas de Israel se desenvolva tanto que leve a repelir, por pouco que seja, o povo deste pas, este no abandonar facilmente a sua terra.

    um facto que a terra da Palestina habitada, na sua grande maioria, por rabes: seiscentos mil muulmanos e setenta mil cristos (tambm a vivem oitenta mil judeus). Os camponeses os fellahs representam quase 60% da populao activa e um tero no possui qualquer terra. Mais de metade das terras pertence a um nmero restrito de famlias latifundirias (menos de 10% dos proprietrios), no essencial muulmanos que gozem de uma influncia dominante nos campos. Tm tambm grande influncia nas cidades, mas a as grandes famlias crists tambm tm um papel activo. Apesar do peso do passado otomano as ltimas dcadas de hegemonia turca foram marcadas pela incapacidade, pela corrupo, pelo despotismo , a regio economicamente activa. Conhecida pelos seus citrinos (as suas laranjas so conhecidas na Europa), produz tambm trigo e outros cereais. Uma indstria de manufactura est em desenvolvimento. As classes mdias predominam nas cidades, que entretanto so de pequena dimenso, excepo de Jerusalm, que conta mais de cinquenta mil habitantes. H vrias dcadas que as peregrinaes tm vindo a alimentar uma indstria de turismo, em Jerusalm, claro, mas tambm em Belm e na Nazar. No incio do sculo, a vida intelectual e poltica est em pleno florescimento, com o nascimento da imprensa, nomeadamente o Al Karmel em Haifa e o Filastin em Jaffa.

    Na Palestina, a oposio ao projecto sionista manifestou-se mesmo antes da guerra. Traduziu-se, concretamente, pela rejeio desses invasores, cujos costumes e modo de vida so totalmente estranhos e cujo comportamento se caracteriza muitas vezes pelo racismo e o desprezo pelos brbaros. As compras de terras a proprietrios absentistas, que viviam em Beirute ou Constantinopla, desde 1880 que suscita resistncias, tanto maiores quanto rapidamente so apercebidas como tentativas de desapropriao.

    A ocupao de Jerusalm pela Gr-Bretanha em 9 de Dezembro de 1917, a queda do imprio otomano e a revelao da promessa Balfour acentuam a inquietao dos palestinianos. Com a instaurao do mandato britnico sobre a Palestina em 1922 e a fixao das fronteiras, a luta passa a desenvolver-se dentro da Palestina objecto de mandato, e o movimento nacional palestiniano, pelo menos at grande revolta de 1936-1939, ter que contar apenas com as suas prprias foras. Os palestinianos exigem a constituio de um governo nacional que ser responsvel, perante um parlamento eleito por todos os que residiam na Palestina antes da guerra, muulmanos, cristos e judeus. Mas j era demasiado tarde. O mandato britnico entrou em vigor, abria-se uma nova pgina.

    O YISHOUV: IMIGRAO, COMPRA DAS TERRAS E ORGANIZAO POLTICA

    At 1939, a Gr-Bretanha favorece sem restries a instalao dos judeus na Palestina e a sua organizao autnoma. A partir da conquista de Jerusalm, em 1917, instala-se, a par da administrao britnica, uma administrao independente sionista. O Yishouv (designao dada a comunidade judaica instalada na Palestina) inicia a sua caminhada para a construo de um Estado. O texto do mandato previa a criao de uma entidade judaica, como interlocutor da autoridade mandatria. Esta ir funcionar como um verdadeiro governo-sombra, dedicando-se nomeadamente acelerao do processo de imigrao, considerando os britnicos que os sionistas so os nicos com competncia para escolher os candidatos, as formalidades tero lugar nas instalaes do movimento sionista por todo o mundo, e no nos consulados britnicos.

    144 - Filho mais velho de No, o antepassado dos Semitas (N. da T.).

  • Quem so os imigrantes? No essencial, vm da Rssia e da Europa central, fugindo dos pogroms5. Enquadrados por militantes convictos, esperavam poder assim construir uma nova vida. Entretanto, os nmeros da imigrao, pelo menos at chegada de Hitler ao poder em 1933, reflectem as dificuldades do movimento sionista em mobilizar as massas judaicas. No prximo ano em Jerusalm: este slogan tem mais a ver com invocao religiosa do que com palavra de ordem poltica. Entre 1919 e 1923, imigram apenas 35.000 pessoas. O processo acelera-se um pouco em 1924-1925, data do incio de uma poltica antijudaica na Polnia e da adopo, pelos Estados Unidos, de medidas limitadoras da imigrao, para sofrer uma quebra com a crise econmica na Palestina. Em 1927, contavam-se mesmo mais emigrantes judeus da Palestina do que imigrantes. Em 1928, 155.000 judeus esto instalados na Palestina enquanto, entre 1870 e 1927, o nmero de judeus nos Estados Unidos passa de 250.000 para... quatro milhes. Livres de escolher, a grande maioria de judeus da Rssia e de Leste prefere, tal como os irlandeses ou os italianos, o Novo Mundo Terra Santa.

    Atravs do Fundo Nacional Judeu, a compra de terras um dos objectivos e um dos meios essenciais do movimento sionista. Como refere em 1925 um memorando do Fundo, no se pode falar de uma colonizao de terras virgens na Palestina, porque j existem camponeses autctones; no se pode to-pouco expropri-los pelos processos sumrios utilizados nas colnias, como na Arglia. As propriedades adquiridas so cedidas a particulares mas continuam a ser propriedade inalienvel do povo judeu. encorajada a mo-de-obra exclusivamente judaica, os fellahs expulsos. So criadas colnias agrcolas e instalam-se os famosos kibboutz, o primeiro dos quais em 1910, em Degania. Em 1920 fundada a Haganah, uma organizao de milcias judaicas, o embrio do futuro exrcito israelita.

    O Yishouv impe a lngua hebraica, em detrimento do yiddish falado pela maioria dos imigrantes da Europa de Leste, e cria a sua organizao poltica. Os britnicos autorizam, a partir de 1920, a eleio de uma espcie de Parlamento, como o seu prprio organismo executivo, o Vaad Leumi (Conselho Nacional). Enquanto nos anos 20 o centro de deciso do movimento sionista estava ainda no exterior, a partir do incio dos anos 30 passa para o Yishouv. Todas estas instituies, bem organizadas, beneficiam de apoio da potncia colonial. quase naturalmente que se iro transformar, em 1948, num Estado moderno e eficaz.

    A corrente socialista registra um crescimento constante nas eleies (mais de 40% dos votos nos anos 30) e o seu dirigente, David Ben Gourion, torna-se o presidente da Agncia judaica em 1935. Em 1925 criada uma oposio por Zeev Jabotinsky. considerada como revisionista porque pediu a reviso do mandato para abarcar as duas margens do rio Jordo, ou seja, os judeus teriam o direito de dominar tambm a Transjordnia. Em que se distinguem correntes socialista e revisionista? Para alm do discursos antagnicos sobre a questo social e importantes divergncias no que diz respeito tctica a primeira mais pragmtica, defende um entendimento com a Gr-Bretanha , os socialistas aceitam o princpio da partilha da Palestina enquanto os revisionistas afirmam que territrio inalienvel, exigindo tambm, mais abertamente, a expulso dos palestinianos.

    Face ao Yishouv, os palestinianos no dispem de grandes hipteses, a no ser o seu peso numrico. Mas, ao invs do que se passa noutras colnias, a imigrao vai paulatinamente priv-los desta sua nica vantagem. A unidade dos palestinianos na rejeio do mandato e da promessa de Balfour no dura muito. Os britnicos atiam os desentendimentos entre as grandes famlias palestinianas, nomeadamente os Nashashibi, que lhes esto mais prximos, e os Husseini Amine El Husseini vir a ser o grande mufti6 de Jerusalm. Estas contradies conduzem ao desmantelamento das estruturas unitrias palestinianas e a uma paralisia no plano estratgico. Por um lado, as organizaes palestinianas recusam as propostas da potncia mandatria de constituio de uma assembleia que no reflectiria os equilbrios demogrficos; rejeitam igualmente a criao de uma Agncia rabe ( imagem da Agncia judaica), que viria legitimar o direito poltico dos judeus sobre a Palestina. Por outro lado, no conseguem chegar a acordo em relao a uma orientao,

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    5 - Massacres de judeus; massacre de uma comunidade tnica ou religiosa (N. da T.).6- Intrprete oficial da lei muulmana (N. da T.).

  • hesitam em enfrentar abertamente a poltica dplice da Gr-Bretanha, e assim se perdem. Mas como poderia ter sido de outra forma no quadro da diplomacia internacional dominada pelos ocidentais? No entanto, a frustrao das massas palestinianas exprime-se em motins, uma mistura de jacqueries camponesas, pogroms e golpes contra os britnicos tal como os que rebentam em Agosto de 1929 em Jerusalm, j ento em torno do controlo dos lugares santos. Alastram depois pelo pas, nomeadamente a Hebron, onde cerca de oitenta judeus so massacrados de forma atroz. Mas durante esse pogrom que, como lembra o historiador israelita Tom Segev, numerosos judeus so salvos por muulmanos: A histria dos judeus sublinha inclui poucas aces de salvao colectiva deste gnero.

    Um fosso separa, entretanto, autctones e colonos. Para os rabes, a chegada de imigrantes armados de um projecto poltico coerente sentida como uma ameaa a sua prpria sobrevivncia. Estes estrangeiros expulsam-nos das suas terras e pretendem criar um Estado judaico. Para os imigrantes judeus, frequentemente convencido de que desembarcam numa terra sem povo, os rabe so, no mnimo, selvagens margem da civilizao. Tendo fugido dos pogroms, encaram os seus ataques com a continuao das perseguies de que foram vtimas no Velho Continente.

    UMA LONGA REVOLTA (1936-1939)

    A acelerao da imigrao na sequncia da subida de Hitler ao poder radicaliza posies. neste contexto que se desencadeia a grande revolta de 1936-1939, que coincide com o desenvolvimento do movimento nacionalista antibritnico e antifrancs no mundo rabe. Um homem encarna esta revolta: filho de camponeses, muulmano convicto, pregador numa mesquita de Haifa, chama-se Ezzedine El Qassam. Condena a cega violncia de 1929, prepara a luta armada. Obedecei a Deus e ao Seu profeta, mas no ao alto comissrio britnico, prega. O seu funeral (foi morto em 1935, na resistncia) deu lugar a grandes manifestaes. Somos os filhos de Qassam, proclamava um dos primeiros comunicados da revolta das pedras que rebenta na Palestina em Dezembro de 1987. Na continuidade da Histria...

    Em 1936 criado o Alto Comit rabe que, pela primeira vez, rene o conjunto das tendncias e dos partidos palestinianos. Ser presidido por Amine El Husseini. A 15 de Abril de 1936, deflagra por todo o pas uma greve geral. Os revoltosos exigem nomeadamente a suspenso da imigrao judaica. Desobedincia civil, recusa de pagamento de impostos, manifestaes, marcam este movimento, enquanto se multiplicam as aces de guerrilha. A greve dura 170 dias. Chaim Weizmann, presidente da organizao sionista desde 1920 e futuro primeiro presidente de Israel, escreveu: De um lado erguem-se as foras da destruio, as foras do deserto, de outro resistem firmemente as foras da civilizao, as foras construtivas. a velha guerra do deserto contra a civilizao, mas no vamos ceder. A civilizao contra a barbrie, o repisado discurso do colonialismo...

    O movimento suspenso na sequncia de um apelo comum dos soberanos da Arbia Saudita, da Transjordnia e do Iraque a confiar nas boas intenes da nossa amiga Gr-Bretanha. Londres envia para o terreno uma comisso de inqurito que, a 7 de Julho de 1937, remete o seu relatrio, conhecido como Relatrio Peel. O texto prope a diviso da Palestina em dois Estados, um judeu, outro rabe, devendo ambos aceder independncia mas mantendo-se Jerusalm e a regio limtrofe sob mandato britnico. Aconselha igualmente, pela primeira vez, uma troca de populaes, para garantir a homogeneidade de ambas as entidades: 225.000 rabes passariam da entidade judaica para a rabe, enquanto 1250 judeus fariam o percurso inverso! Se esta generosa proposta no for aceite pelos rabes, ser-lhes- imposta...

    Indignados, os palestinianos relanam o seu movimento em Setembro de 1937. Desta vez, uma verdadeira revolta popular armada, com centenas de grupos que desenvolvem aces quer contra as foras britnicas quer contra os colonatos judeus. Apesar da inexistncia de um direco centralizada, apesar das divises, apesar da falta de armas, a resistncia ir prolongar-se at 1939 e mobilizar muitos milhares de soldados de Sua Majestade. E depois de Outubro de 1938 e dos

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  • acordos de Munique, que afastam por uns tempos a ameaa de uma guerra na Europa, que Londres pode enviar tropas suficientes para liquidar os rebeldes. Esta revolta ter uma influncia profunda sobre todas as partes em conflito palestiniano, judeus e britnicos.

    Nas fileiras rabes o balano foi trgico: entre trs mil, seis mil mortos e milhares de prises e deportaes contam-se nove mil presos em 1939. Entre 1936 e 1940, duas mil casas so destrudas pelas autoridades, uma prtica que ser retomada pelo governo israelita a partir de 1967 nos territrios ocupados. Os palestinianos encontram-se privados de qualquer forma de direco. Os dios e rancores nascidos dos confrontos internos iro perdurar por muitos anos. Para o melhor, mas em geral para o pior, os pases rabes iro assumir a causa palestiniana, fazendo passar em primeiro lugar os seus prprios interesses.

    Do lado dos colonos judeus, a revolta refora, paradoxalmente, a estrutura criada na Palestina e as bases j bem estabelecidas de um Estado em gestao. Leva tambm a um reforo da colaborao entre a Agncia judaica e os britnicos. Milhares de polcias judeus so recrutados. Assiste-se ao desenvolvimento da Haganah7 e criao de novas unidades armadas com maior mobilidade, por vezes treinadas por oficiais britnicos. So criadas fbricas clandestinas de armamento. Ainda que limitada, a imigrao prossegue, com cerca de cinquenta mil recm-chegados vindos durante estes trs anos agitados. Por outro lado, e pela primeira vez, grupos sionistas utilizam a arma do terrorismo cego. O Irgoun, a organizao militar ligada ao movimento revisionista, passa aco em 11 de Novembro de 1937, fazendo explodir bombas em locais pblicos. A 6 de Julho de 1938, em Haifa, uma bomba mata 21 pessoas no mercado rabe; a 25 de Julho de 1938, outra bomba faz cerca de 40 mortos.

    O LIVRO BRANCO

    Finalmente, a Gr-Bretanha inflecte a sua estratgia. A guerra com a Alemanha, inevitvel, ser longa e global. Torna-se assim indispensvel garantir as bases do imprio no Mdio Oriente onde se infiltra uma perniciosa propaganda nazis antibritnica, apoiando-se na convico de que os inimigos dos nossos inimigos nossos amigos so. Convencida de que pode contar com o apoio dos judeus contra Hitler, Londres prope-se conseguir o dos rabes adoptando, em 17 de Maio de 1939, um Livro Branco, que define a sua nova politica: A declarao de Balfour l-se no documento no pode, em caso algum, significar a transformao da Palestina num Estado judaico, contra a vontade da populao rabe. Por outro lado, os compromissos assumidos pelos britnicos durante a Grande Guerra no podem constituir uma base justa para a exigncia de uma Palestina transformada em Estado rabe. Ser assim necessrio prever, num prazo de cinco anos, a criao de um Estado palestiniano independente no qual rabes e judeus partilharo o governo de forma a que sejam salvaguardados os interesses fundamentais de ambos. Mais importante ainda, a imigrao ser mantida durante cinco anos a um nvel que permita que a populaao judaica constitua um tero da populao total (ou seja, um acrscimo de cerca de 75 000 pessoas), aps o que s poder ser autorizada com o acordo dos rabes da Palestina. Enfim, o alto comissrio britnico investido de todos os poderes para regulamentar as transferncias de terra, ou seja, restringir a sua compra pelos judeus. Vitria parcial para os palestinianos, mas o mufti Amine El Hussemi rejeita o Livro Branco, demonstrando uma vez mais o seu fraco sentido poltico. Em contrapartida, este texto leva a um eriar de defesas da parte das organizaes sionistas, de que as mais extremistas passam mesmo a preconizar a luta armada contra o colonialismo britnico. Mas a Agncia judaica no tem outra alternativa seno declarar o seu apoio a Londres no conflito que se inicia. Esta guerra, declara a 3 de Setembro de 1939, a nossa guerra e ns desejamos a vitria do imprio britnico. Est-se no limiar de uma prova terrvel para a humanidade e para os judeus.

    177 - Organizao de milcias judias, o embrio do futuro exrcito israelista (N. da T.).

  • CAPTULO III

    DO JUDASMO AO SIONISMO

    Faamos uma pausa neste sobrevoo sobre a Histria. Falei, no captulo anterior, dos judeus e do incio do movimento sionista. Para ir mais longe, preciso dar resposta a duas questes muito simples, pelo menos a uma primeira vista. O que significa o termo judeu? Por outro lado, os judeus formam uma nao?

    QUEM JUDEU?

    A 5 de Julho de 1950, o Parlamento israelita adoptou a lei de retorno. Esta lei estipulava que qualquer judeu tem o direito de imigrar para o pas. David Ben Gourion, o primeiro-ministro, afirma: No o Estado que concede aos judeus do estrangeiro o direito a instalar-se, mas este direito pertence a cada judeu pelo facto de o ser. Mas como medir a dimenso de judeu? Foi preciso esperar at 1970 para que o Supremo Tribunal propusesse uma definio: judeu aquele que nasceu de me judia, ou se converteu ao judasmo e no pertence a nenhuma outra religio. Esta deciso no ps fim s controvrsias: as converses colocam alguns problemas, pois as efectuadas por rabinos conservadores ou liberais no so reconhecidas pelos rabinos ortodoxos de Israel. Por outro lado, como classificar os ateus? E como definir uma me judia? H uma anedota em que se diz que, para se tornar uma me judia, no necessrio nem ser me, nem ser judia... Mas falando a srio, sabe-se que, em centenas de milhares de ex-cidados da Unio Sovitica instalados em Israel desde 1980, cerca de um tero no tem qualquer relao com o judasmo. De nacionalidade israelita, servem no entanto no exrcito, mesmo que os rabinos, como aconteceu quando do atentado contra a discoteca de Telavive (Junho de 2001), possam recusar a alguns destes judeus duvidosos o enterro em terra santa.

    Os anti-semitas no foram mais felizes nas suas tentativas de definir judasmo. Em Setembro de 1935, os nazis adoptam as leis de Nuremberga, expresso da sua viso racista e delirante da humanidade. Essas leis definiam como judeu quem tivesse trs ou quatro avs judeus. Eram designados como mestios judeus de primeiro grau os que tivessem dois avs de sangue alemo e dois de sangue judeu; se pertencessem religio judaica ou estivessem integrados na comunidade judaica, nomeadamente pelo casamento, eram considerados como judeus. Os mestios de segundo grau tinham trs avs alemes e um de sangue judeu; poderiam tornar-se cidados do Reich. Mas como detectar o sangue judeu? Na prtica os nazis, defensores das teorias racistas, oscilam na sua busca de sinais distintivos, privilegiando umas vezes o factor religioso, outras vezes tendo em conta a circunciso, outras o nome, etc. A verso francesa desta lei (estatuto dos judeus de 3 de Outubro de 1940) afirma que so de raa judaica os que tiverem pertencido religio judaica.

    Hannah Arendt, filsofa alem, ela prpria judaica, em carta de 1961 dirigida a seu marido, estabelece um paralelo devastador que alis a pe em confronto com alguns dos seus amigos israelitas entre as leis de Nuremberga e as do Estado judaico. Descreve um jantar com Golda Meir, ministra dos Negcios Estrangeiros israelita: Discutimos at uma da manh (...). No fundo, e sobretudo, questes como a Constituio, a separao entre Igreja e Estado, os casamentos mistos ou mais concretamente essas leis de Nuremberga que existem actualmente e que de certa forma so verdadeiramente monstruosas. Do perigo de traar uma linha de demarcao entre os judeus e os outros, de fazer dos judeus uma entidade parte...

    Enquanto eu escrevia estas linhas, soube da morte de um amigo muito querido: Chehata Haroun. Era egpcio e judeu. Muito jovem ainda, em 1940, este jovem advogado juntou-se luta dos comunistas. Recusava obstinadamente emigrar para Israel ou para a Europa, como o fizeram a maioria dos seus camaradas. Na sua sepultura lem-se estas linhas da sua autoria: Cada ser humano tem vrias identidades. Sou um ser humano. Sou egpcio quando os egpcios so

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  • oprimidos. Sou negro quando os negros so oprimidos. Sou judeu quando os judeus so oprimidos e sou palestiniano quando os palestinianos so oprimidos. Recusou qualquer pertena estreita, qualquer identidade rgida, excluidora. Travou no seu pas uma luta dura, por vezes dolorosa. Foi preso vrias vezes como comunista, mas tambm como judeu, e como tal um potencial agente de Israel. Suscitou mesmo por vezes a desconfiana de alguns dos seus camaradas de esquerda, incapazes de distinguir entre judeu e sionista.

    Assim, evitemos quaisquer classificaes e as teorias filosficas que as alimentam. Maxime Rodinson, eminente orientalista, tentou dissipar as trevas do obscurantismo na introduo da sua obra Peuple juif ou problme juif? Nela descreve os quatro grupos distintos que o termo judeu recobre. Antes do mais, os fiis de uma religio claramente definida diz-se judeu como se pode dizer muulmano ou cristo. O segundo grupo constitudo pelos descendentes dos membros desta religio que so actualmente ateus ou crentes mas se consideram como pertencendo a uma espcie de comunidade tnico-nacional, ou seja, um povo. A terceira categoria constituda pelos que rejeitaram tanto os Laos religiosos como comunitrios, mas que os outros consideram, pelo menos em determinadas alturas, como judeus. A ltima categoria, a mais inslita, a que o escritor Roger Peyrefitte apelidava ironicamente de judeus desconhecidos, inclui aqueles cuja ascendncia judaica ignorada pelos outros e pelos prprios.

    O QUE UMA NAO?

    Os judeus constituem assim um conjunto heterogneo, que no fcil apreender. Diferem em parte do conjunto cristo ou muulmano, e no apenas porque sempre foram voltarei a este assunto por toda a parte minoritrios. Formam por isso uma nao? Para o movimento sionista a resposta bvia: os judeus so inassimilveis pelos outros povos entre os quais vivem, anseiam h dois mil anos por regressar Palestina de onde foram expulsos. Ento por que que esta ambio no se manifestou em termos polticos antes do sculo XIX? O sionismo ilude a questo, que tem no entanto o mrito de incluir os judeus na histria concreta e no no mundo etreo das idias.

    Durante a Idade Mdia, o termo nao era entendido a partir da sua etimologia, nasci (nascer): uma nao um conjunto de indivduos nascidos num mesmo lugar e aos quais se atribui uma origem comum. Esta palavra, explica a historiadora Suzanne Citron, podia tambm designar uma comunidade religiosa. At Revoluo falava-se, em Frana, da nao judaica. (...) A lngua, a religio so, entre outros, elementos da identidade colectiva que os antroplogos designam actualmente pela palavra cultura. A nao, no seu antigo sentido, era assim antes do mais cultural. Esta dimenso tnico-religiosa subsiste ainda na Europa de Leste e balcnica ou no Mdio Oriente.

    A Revoluo Francesa marca o nascimento da nao moderna, baseada num conjunto de dados permanentes e estveis ao longo dos sculos: comunidade de territrio, de lngua, de histria, de cultura. Ernest Renan, um dos mais brilhantes intelectuais da III Repblica, numa clebre conferncia realizada na Sorbonne a 26 de Maro de 1882 e intitulada O que uma nao?, dizia: Uma nao uma alma, um princpio espiritual. o coroar de um longo passado de esforos, de sacrifcios e de dedicao; ter glrias comuns no passado, uma vontade comum no presente, ter feito em conjunto grandes obras, querer continuar a faz-las, eis as condies essenciais para ser um povo. Esta vontade comum exprime-se na participao poltica dos cidados num quadro nico, o Estado.

    Nenhum critrio cientifico permite definir se uma comunidade de pessoas constitui ou no uma nao. Que dizer dos corsos? Ou dos bretes? Ou dos bascos? No nos possvel definir nao, assinala o historiador britnico Eric Hobsbawm, mas podemos acompanhar os movimentos nacionalistas. Alguns destes movimentos resultam outros falham. No primeiro caso, a nao consolida-se em torno do Estado; no segundo, dissolve-se, integra-se num conjunto dominante, ou por vezes resiste, como no caso curdo.

    Porque, o mais frequente a nao ter tido necessidade do Estado para se realizar plenamente, esse Estado que unifica o mercado nacional, erradica os particularismos assegura a lealdade dos

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  • seus cidados. Para consolidar o apoio desses cidados, partida em geral frgil, o Estado impe tambm uma histria oficial que remonta s origens. Vercingtorix foi inventado pela III Repblica no seu esforo de legitimao; a Romnia de Nicolae Ceausescu assumia-se como descendente dos daces, uma populao indo-europeia; os dirigentes da ex-Iugoslvia justificaram as suas loucas ambies com mitos histricos frequentemente absurdos. Apesar das suas pretenses eternidade, as naes so, vale a pena repeti-lo, criaes modernas, cuja pr-histria mais frequentemente imaginria do que real.

    Existe ento uma comunidade judaica coerente que tenha atravessado a histria? H alguma relao entre os judeus do reino de Salomo no sculo X antes de Cristo, o da Palestina nos tempos do Imprio Romano, os dos guetos do imprio czarista, os de Israel de hoje? No decurso dos dois ltimos milnios, os judeus no estiveram ligados nem pelo territrio, nem pela lngua a maioria adoptou a lngua local, tendo o hebreu ficado limitado s cerimnias religiosas , nem pela Histria as trajectrias dos judeus em Marrocos ou em Frana no tm qualquer paralelismo , nem pelos costumes os judeus aderiram aos costumes locais (no Iro, ainda hoje, se descalam quando entram nas sinagogas). Em contrapartida, na Europa de Leste e na Rssia, nos sculos XVIII e XIX, adquiriram, como iremos ver, caractersticas quase nacionais.

    OS HEBREUS: LENDA E HISTRIA

    Na origem da histria dos judeus est um dos textos mais sagrados da humanidade, a Bblia, o Antigo Testamento para os cristos. Ele descreve a lenda dos hebreus e do seu antepassado, Abrao, um pastor nmada da Mesopotmia.

    O Senhor diz a Abrao: deixa o teu pas, a tua famlia e a casa de teu pai e parte para o pas que te indicarei. A partir de ti farei uma grande nao e abenoar-te-ei (Gnesis). Abrao instala-se em Siqum, uma localidade hoje conhecida como Napluse. Depois os judeus so conduzidos para o Egipto, onde so reduzidos escravatura. Moiss, salvo das guas pelo filho do fara e prncipe do Egipto, salva-os do seu jugo. Eles fogem por volta do sculo XIV antes de Cristo, errando pelo Sinai, onde Moiss recebe de Deus os Dez Mandamentos. Alguns estudos consideram, como alis Sigmund Freud em vrios dos seus textos sobre Moiss, que os seus seguidores mais no eram que os fiis a Akhenaton, o fara que instaurou o culto de Aton, o Deus nico. perceptvel uma semelhana entre o hino de Akhenaton ao deus Sol e o Salmo 104 da Bblia, que comea por: Abenoai, Senhor, a minha alma, ambos falando das mercs da divindade.

    Depois de ter errado pelo deserto, os hebreus instalam-se na Palestina, a terra prometida por Deus. Edificam-se reinos, nomeadamente os de Saul, de David e de Salomo por volta do sculo X antes de Cristo. Na nova capital, Jerusalm, eleva-se o Templo, um majestoso santurio glria de Deus. Em 597 antes de Cristo, Nabucodonosor soberano da Babilnia, conquista-a e destri o Templo; muitos judeus so expulsos e reduzidos escravido, antes de serem autorizados, em 537, no reinado de Ciro, a regressar e a reconstruir o Templo. At a, mergulhai profundamente na lenda, ainda que esta seja considerada como palavra sagrada no ensino em Israel. Segundo dos mais eminentes arquelogos israelitas, Israel Finstein, os hebreus nunca estiveram no Egipto, no vaguearam pelo deserto, no conquistaram a Terra prometida. Os reinos de David e de Salomo descritos na Bblia como potncias regionais no passavam de pequenos reinos bais.

    Os romanos conquistaram a Palestina no sculo I antes de Cristo. Em 70 depois de Cristo, Tito dirige uma campanha para esmagar a revolta dos judeus contra Roma que ocupa Jerusalm. Tenta opor-se destruio, mas as 5 ordens no so acatadas, como foi registado por Flavius Josefo, historiador judeu ligado a Tito, em A Guerra Judeus: Nem a exortao, nem a ameaa retiveram mpeto das legies que avanavam; deixaram-se todos arrastar exclusivamente pela sua clera. Na sequncia de uma outra insurreio esmagada por Hadrien, sessenta anos mais tarde, Jerusalm foi interdita aos judeus, que entretanto no foram expulsos da Palestina; o seu exlio, sua dispora, comeou bem mais cedo. A partir do sculo I antes de Cristo, encontramo-los em todos os centros mercantis do Mediterrneo ocidental. Eles representam tero da populao de Alexandria. Muitas destas comunidades iro desaparecer ao longo da histria, fundindo-se com as populaes locais.

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  • O triunfo do cristianismo no incio uma simples faco judaica , e posteriormente a converso do imperador, e como tal do imprio romano, inauguram uma nova era. Os judeus so por todo o lado minoritrios, a no ser entre o Cucaso e o Volga, no imprio dos khazares, povo de origem incerta cuja classe dirigente abraa o judasmo no sculo VIII ou IX.

    A condio dos judeus varia atravs dos sculos, em funo dos pases, das circunstncias, das alianas; a fobia dos judeus tambm: no nem permanente nem universal. Na Europa, at ao sculo XI, os judeus vivem no seio da populao, sem segregao e sem limitaes a nvel profissional. S a partir das Cruzadas que um certo nmero de profisses, da mesma forma que a posse de terras, lhes so progressivamente interditas. Alguns dedicaram-se ento aos emprstimos de dinheiro e ao comrcio internacional, favorecido pelos contactos entre os membros da dispora. Esta especializao de funes, susceptvel de atiar dios e invejas, fez deles bodes expiatrios fceis para os governos. O reforo de um fundamentalismo religioso catlico alimenta um clima persecutrio. A partir de 1492, depois da reconquista dos reinos muulmanos de Espanha, os judeus so expulsos da Pennsula Ibrica. Muitos deles refugiam-se no imprio otomano, nomeadamente em Constantinopla. Porque o Islo muitas vezes mais tolerante com eles. Mas no sempre: os poderes muulmanos podem tambm, em perodos turbulentos, fazer deles bodes expiatrios, como aconteceu em Granada em 1066 ou em Marrocos em 1790. Encontram-se no Coro numerosas referncias aos judeus.

    Dizem respeito s alianas que o profeta Maom, exilado em Medina, estabelece com as tribos rabes judaicas (sim, existem rabes judeus) da cidade, inicialmente favorveis, estas referncias adquirem um tom cada vez mais negativo medida que Maom consolida o seu poder e entra em confronto com essas tribos, que recusam converter-se nova f. As autoridades muulmanas adoptam, conforme os perodos, uma interpretao aberta ou fechada dos textos sagrados. Com um balano global bem mais positivo, pelo menos at ao sculo XVIII, do que o dos imprios cristos.

    Por que que estas to diversas entidades judaicas resistem ao longo de sculos? Por que que a maioria dos judeus no foi assimilada pela sociedade dominante? Maxime Rodinson insiste na importncia do carcter pluralista destas sociedades, na insuficincia das foras unificadoras, na falta de um verdadeiro incentivo da ideologia preponderante no Estado para levar o totalitarismo at destruio das ideologias rivais. Sobretudo se essas minorias no constituem, como o protestantismo em Frana no sculo XVI, uma ameaa poltica ao poder estabelecido. O relativo quietismo dos judeus jogou assim a favor da sua preservao enquanto grupo. At criao do estado-nao moderno, numerosos particularismos, tanto regionais como lingusticos ou religiosos, mantm-se.

    A Revoluo Francesa vai alterar esta situao. A unificao das naes acelera-se com a criao de um Estado forte e de uma economia integrada, com a afirmao de um nacionalismo moderno. Doravante, pelo menos na Europa Ocidental, as comunidades, religiosas ou regionais, tendem a dissolver-se, a perder as suas caractersticas o que, at hoje, no acontece no mundo muulmano, onde o indivduo definido pela sua pertena a uma comunidade religiosa. A emancipao dos judeus franceses pela Assembleia Constituinte, em 27 de Setembro de 1791, favorece esta evoluo. A Frana a nossa Palestina, escreve um deles, as suas montanhas so o nosso Sio, os seus rios so o nosso Jordo. Bebamos a gua das suas fontes, a gua da liberdade. Persiste entretanto uma hostilidade dos catlicos contra o povo que matou Deus (aquele que teria crucificado Jesus Cristo).

    O SCULO XIX INVENTA AS RAAS

    A tendncia para a assimilao ser contrariada pela emergncia de uma nova forma de hostilidade em relao aos judeus, o anti-semitismo (o termo foi inventado em 1873), e pelo desenvolvimento paralelo do movimento sionista. No sculo XIX, esta hostilidade ser alimentada pela inveno de uma nova cincia, a das raas. Um frenesim de classificao dos povos apodera-se do mundo cientfico e intelectual; e quem diz classificao diz em geral hierarquizao.

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  • Ela serve de justificao aventura colonial e ao necessrio domnio dos brancos. Jules Ferry explicava em 1885: Repito que h para as classes superiores um direito, porque para elas h tambm um dever. Elas tm o direito de civilizar as raas inferiores. At aos anos 1930, na Frana republicana e na Europa, os zoos humanos so uma atraco com procura: a so exibidos os povos primitivos. Os bons cidados acorrem para ver com os seus prprios olhos o que a grande imprensa qualificava ento de bando de animais exticos, acompanhados por alguns indivduos no menos singulares.

    Entre 1877 e 1912, uma trintena de exposies etnolgicas deste tipo teve lugar no Jardim Zoolgico de Paris, com permanente sucesso.

    Os judeus sero tambm vtimas destas mesmas doutrinas, da mesma cincia das raas: assim, os arianos e os semitas constituiriam dois grupos de povos que teriam estado na origem da civilizao e que depois teriam iniciado uma luta feroz. sobre esta viso que o anti-semitismo se apia, mas ele tem tambm as suas razes no renascer do nacionalismo que varre a Europa nesse fim do sculo XIX e acompanhado de uma crescente hostilidade em relao aos estrangeiros, tanto de fora como de dentro. O anti-semitismo, observa o historiador Henry Laurents, vem juntar-se ao antijudasmo tradicional (...), incomodidade dos cristos face afirmao da sociedade laica, emergncia dos nacionalismos e generalizao de uma interpretao racial da histria. Este movimento coincide, na Europa Ocidental, com os pogroms anti-semitas promovidos pelo poder na Rssia czarista a partir de 1881.

    Uma imagem dos judeus como um poder na sombra, omnipotente e riqussimo os banqueiros judeus ocultam a grande pobreza das massas judaicas que, nomeadamente na Europa de Leste, vivem numa misria indescritvel , alimenta tambm o anti-semitismo. Ela partilhada por muitos responsveis polticos. Foi popularizada atravs de um clebre texto intitulado Protocolos dos Sbios do Sio que inclua, nomeadamente, o balano das decises tomadas por um pretenso congresso judeu, para garantir o controlo do mundo. Este documento apcrifo foi fabricado pela polcia poltica czarista em 1903, mas continua ainda hoje a ser levado a srio por alguns e a ser difundido.

    THEODOR HERZEL E O SIONISMO

    O sionismo poltico surge na segunda metade do sculo XIX, em resposta a esta nova forma de fobia contra os judeus. Inscreve-se no quadro dos movimentos nacionalistas modernos que abalam o conjunto da Europa de Leste e os imprios czarista, otomano e austro-hngaro; blgaros e srvios, hngaros e polacos, ucranianos e estonianos, por todo o lado as elites anseiam criar estados-nao segundo o modelo europeu ocidental.

    A designao de sionista vem de Sio, colina de Jerusalm. Ela o smbolo do regresso terra prometida. Em todos os tempos, os religiosos judeus iam em peregrinao a Jerusalm, alguns para l morrer. Mas o projecto do sionismo outro: dar aos judeus de todo o mundo um centro espiritual e estatal. So os Amantes do Sio quem organiza, a partir de 1881, a primeira vaga de imigrao moderna, a alya, a subida para a Palestina. At 1903, junta 20.000 a 30.000 pessoas. O testemunho foi ento tomado pelo sionismo poltico, que defende a criao de um Estado judaico. Este projecto alimenta-se de duas fontes. Por um lado, entre 1881 e 1884, na sequncia do assassinato do czar Alexandre II, multiplicam-se os pogroms antijudeus no imprio czarista. Este atentado serve de justificao para a adopo de leis antijudaicas: numerus clausus nas universidades, restries liberdade de circulao, expulses de judeus de Moscovo, integrao forada no exrcito em qualquer idade, etc. Por outro lado, em Frana, nos anos 1890, o caso Dreyfus gera uma vaga generalizada de anti-semitismo, o que choca um jovem jornalista chamado Theodor Herzl (1860-1904). Nascido em Budapeste, falando correntemente alemo e francs, cresceu numa famlia austraca judaica bem integrada. Faz a cobertura do processo do capito como correspondente do dirio austraco Neue Freie Presse. Escandalizado pelo persistente anti-semitismo que se fazia sentir na Repblica, publica, em 1896, Ltat des juifs.

    Os judeus, considera, formam um povo e como tal precisam de um Estado algumas 22

  • pessoas prximas de Herzl defendiam a sua implantao no Uganda ou na Argentina. Tanto mais, prossegue, que o anti-semitismo eterno, independentemente das flutuaes da Histria. Assimilao? O nosso carcter nacional demasiado conhecido historicamente e o seu valor ainda demasiado elevado (...) para que o seu desaparecimento seja desejvel, responde Herzl. No passando esta opo de puro engano, os judeus devem voltar a ser um povo normal e como tal ocupar um territrio, no caso a Palestina. O primeiro congresso sionista tem lugar em Ble a 29 de Agosto de 1897. A sada da reunio, Herzl escreve estas frases premonitrias: Se eu tivesse que sintetizar o Congresso de Ble numa palavra, diria: Em Ble, lancei as bases do Estado judaico (...). Talvez nos prximos cinco anos e sem dvida nos prximos 50 anos, ser um facto. Falhou apenas por um ano: o Estado de Israel nasceu em 15 de Maio de 1948.

    Na Rssia, a nova vaga de pogroms de 1903-1906 coincide com a revoluo de 1905. Um deles, em Kichinev, em Abril de 1903, provoca uma forte indignao internacional: no total foram mortas 49 pessoas; luz dos massacres que se seguiriam, ainda se estava numa fase artesanal. Estas perseguies alimentam a segunda alya. Doravante, o movimento sionista vai de vento em poupa, nomeadamente a Leste, l onde os judeus esto cada vez mais perto de formar o que se poder chamar uma comunidade nacional tnico-religiosa. Obrigados a fixar residncia, na Rssia, no incio do sculo XVIII, num territrio de cerca de um milho de quilmetros quadrados, do mar Bltico ao mar Negro, entre Yalta e Vilna e nas margens ocidentais e meridionais desta zona, em Galicie, em Bukovine e na Romnia , falam a mesma lngua (o yiddish), professam a mesma religio e partilham o que designaramos como um destino comum. Aps o fim da Primeira Guerra Mundial, acabam por ficar divididos entre diferentes estados-nao em vias de construo: Polnia, Romnia, Estados Blticos, etc. Uma nacionalidade como as outras? interroga-se ento o historiador Pierre Vidal-Naquet. A sua dimenso transnacional salvaguardava-a quer das vantagens quer dos inconvenientes das estruturas de um Estado nacional, responde. A criao, a leste, de Estados nacionais que os excluem, tal como aos ciganos, confirma a idia de que os judeus esto simultaneamente dentro das naes e fora das naes. Esta dimenso confere ao conjunto de judeus na Europa caractersticas prprias e explica nomeadamente o seu envolvimento em movimentos internacionalistas.

    Porque o sionismo foi apenas uma das respostas possveis, durante muito tempo claramente minoritria, questo judaica. No fim do sculo XIX e antes da Primeira Guerra Mundial, a grande maioria dos judeus da Europa Central e da Rssia volta com os ps, emigrando em massa para Ocidente, e nomeadamente para os Estados Unidos, a terra prometida de tantos deserdados... Muitos outros, apostam na integrao. A partir de 1880, e apesar do anti-semitismo, o nmero de casamentos mistos entre os judeus e alemes no cessa de crescer: entre 1901 1929, a proporo passa de 16,9% para 59%. Tambm em Frana, esta assimilao acelera-se. A participao activa dos judeus nos movimentos revolucionrios internacionais, nomeadamente socialistas e comunistas, que defendem a fraternidade universal, pode ser considerada como outra forma de reaco s discriminaes de que so objecto. Quanto aos religiosos, na sua maioria rejeitam o sionismo: o Estado judaico no pode renascer e o Templo no pode ser reerguido seno com a vinda do Messias.

    O sionismo no o nico movimento organizado especfico dos judeus de Leste. Em 1897 criado o Bund, a Unio Geral dos Operrios Judeus da Litunia, Polnia e Rssia. Ser um concorrente do sionismo mesmo at aos anos 30. Afirma-se nacionalista e socialista, baseia-se em princpios de classe, preconiza o yiddish como lngua nacional e uma autonomia poltico-cultural de acordo com as teorias defendidas pelos que so designados de austro-marxistas. Os bundistas apelam emancipao, no local, das massas judaicas, afirmando: As palmeiras e os vinhedos da Palestina so-me estranhos. Defendem a solidariedade dos operrios judeus com a classe operria internacional e opem o patriotismo da galout (o exlio) ao patriotismo sionista. Cado no esquecimento, este movimento ir escrever pginas gloriosas da histria da Europa central, nomeadamente pelo seu papel na insurreio do gueto de Varsvia em 1943. Ser por fim esmagado na Polnia pelos nazis e na Unio Sovitica pelos comunistas, cujas posies em relao questo judaica flutuaro ao sabor dos acontecimentos e das reviravoltas doutrinrias. Para concorrer com o sionismo, a URSS ir at ao ponto de arquitectar uma repblica autnoma judaica, a Birobidjan,

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  • no extremo oriental da Sibria.A criao do Estado de Israel consagra a vitria do movimento sionista, vitria tornada

    possvel pelo anti-semitismo hitleriano e o genocdio. Este Estado reagrupa um nmero crescente de judeus do mundo qualquer que seja a definio que se d a este termo mas inferior a 40%. Centenas de milhares de judeus preferiram a integrao, nos Estados Unidos ou na Europa, apesar de Israel ter conseguido entretanto mobilizar muitos a favor das suas opes. Muito naturalmente, sentem-se mais seguros em Nova Iorque ou Paris do que em Telavive ou Jerusalm. Deveramos ficar felizes com o triunfo deste nacionalismo estreito, em torno de um Estado? Albert Einstein escreveu: A minha concepo da essncia do judasmo ope-se idia de um Estado judaico, com fronteiras, um exrcito e uma qualquer forma de poder temporal, mesmo que limitado. Receio o desgaste interno que isso acarretar para o judasmo e sobretudo o crescimento de um nacionalismo estreito nas nossas prprias fileiras (...). Um regresso a uma nao, no sentido poltico do termo, equivale a afastarmo-nos da espiritualidade da nossa comunidade, espiritualidade qual devemos o gnio dos nossos profetas.

    O sionismo no o corolrio obrigatrio, fatal, da continuidade de uma identidade judaica assinala Maxime Rodinson ; apenas uma das opes possveis. E esta opo criticvel, no apenas como qualquer ideologia nacionalista, mas tambm porque a sua concretizao a criao de um Estado judaico no possvel sem o desapossamento dos palestinianos. O sionismo inscreveu-se plenamente e foi esta uma das condies fundamentais da sua vitria numa aventura colonial. Esta foi e continua a ser a sua principal falta.

    UMA DIMENSO COLONIAL

    No est em causa o devotamento ou o idealismo de muitos militantes sionistas. Um jovem judeu desembarcado na Terra Prometida em 1926 escrevia: Posso estar orgulhoso porque nest