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Blanchot, Benjamin, Derrida
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Coli, Anna L. A. A linguagem e a experincia da experincia
96 | Pensando Revista de Filosofia Vol. 5, N 9, 2014 ISSN 2178-843X
A LINGUAGEM E A EXPERINCIA DA EXPERINCIA: BLANCHOT E BENJAMIN ENTRE O PRIMEIRO ROMANTISMO ALEMO E O
SURREALISMO FRANCS
The language and the experience of experience: Blanchot and Benjamin between the first romanticism German and French surrealism
Anna Luiza Andrade Coli Bergische Universitt Wuppertal
Resumo: O presente trabalho tem o objetivo de trazer para o debate filosfico aquilo que movimentos literrios como o primeiro romantismo alemo e o surrealismo francs, atravs de seus diferentes mtodos de escrita e de compreenso da realidade, tomaram como a experincia capaz de fundar uma nova atitude literria e de levar a noo tradicional de experincia ao seu limite. Para tanto, recorremos s reflexes de Maurice Blanchot e Walter Benjamin como forma no apenas de legitimar essa aproximao mas tambm de propor, juntamente com Derrida, uma espcie de reflexo poltica sobre essa experincia-limite tomada como linguagem. Palavras-Chave: Experincia literria, absoluto, linguagem, reflexo, surrealismo, romantismo alemo. Abstract: The present paper intends to bring up to a philosophical debate what literary movements like the first German Romanticism and the French Surrealism, through its different writing and reality comprehending methods, which they called as the experience, capable both of founding a new literary attitude as taking the traditional notion of experience to its limits. Therefore, we appeal to Maurice Blanchots and Walter Benjamins reflections about the literary experience not merely to legitimize this approach but also to propose, along with Derrida, a way to a possible political reflection on the limit-experience taken as language. Keywords: literary experience, absolute, language, reflection, Surrealism, German Romanticism.
Introduo
Para alm de todas as questes que nos coloca a difcil obra de Maurice
Blanchot, seja no que se refere essncia da obra de arte, seja sua reflexo sobre
seu estatuto e suas funes, o presente artigo tem por objetivo partir das intuies
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fundamentais de Blanchot sobre a atividade literria a fim de aproximar o romantismo
alemo que no apenas influenciou sua escrita, mas igualmente sua concepo de
literatura enquanto experincia da totalidade e o surrealismo francs. Na segunda
parte do artigo, partimos dessa aproximao inicial, que tambm feita por Walter
Benjamin em seu pensamento fronteirio entre a Alemanha e a Frana, para
mencionar o texto no qual Jacques Derrida discute o carter central da linguagem
como meio de acesso a uma experincia diferenciada capaz de nos transportar ao
mbito de um pensamento poltico.
Ademais, essa discusso que passa aqui por Benjamin, tem o objetivo mais
especfico de fornecer um exemplo da possvel influncia no apenas dos movimentos
romntico e surrealista sobre o pensamento francs contemporneo, mas
principalmente da aproximao frutfera que esses movimentos se permitem, e que
to bem exposto por Benjamin e por Blanchot, e de sua importncia para a filosofia
francesa do sculo XX.
Maurice Blanchot e o romantismo alemo
No artigo dedicado ao 100 aniversrio do nascimento de Blanchot, Jean-Luc
Nancy escreve: Blanchot soube reconhecer assim o acontecimento da modernidade:
a evaporao dos alm-mundos e com eles a evaporao de uma diviso assegurada
entre a literatura e a experincia ou a verdade. Ele encontra na escrita a tarefa de dar
voz quilo que permanece mudo1. Esta frase nos aqui de grande utilidade porque
ela nos fornece a chave fundamental da compreenso da ligao que Blanchot observa
entre o primeiro romantismo alemo e o surrealismo francs, qual seja, a concepo
de uma literatura e de um fazer literrio que se apresentam como experincia, como
forma de estar no mundo e de criar mundos, ou seja, de uma literatura que ultrapassa
1 Nota redigida por demanda do Alto Comit das Celebraes Nacionais (Haut Comit des Clbrations Nationales) para a edio de 2007, texto disponvel em Espace Maurice Blanchot [www.blanchot.fr], acesso em 10.06.2014. As tradues dos textos em francs, salvo indicao, so de minha autoria.
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a mera condio de gnero literrio. Vejamos como essa ideia aparece no primeiro
romantismo de Iena2.
Enquanto herdeiros tanto do pensamento kantiano quanto do idealismo que a
ele se apresentou como resposta, e nesse aspecto pela via da filosofia de Fichte, os
romnticos presenciaram a reviravolta que a Terceira Crtica protagonizou ao
introduzir a ideia da reflexo. Segundo Schlegel, Kant descobriu o fim da metafsica
nas trs Ideias: Deus, Liberdade e Imortalidade , mas Fichte o incio, no porm, no
eu e no no-eu, mas na liberdade interna da reflexo3. No contexto da obra dos
romnticos, dentre os quais se destaca a figura de Friedrich Schlegel, a reflexo surge
como a forma que expressa o procedimento especfico do pensar. Assim, ao pensar, o
pensamento pode voltar-se sobre sua forma para toma-la como seu contedo, ou seja,
aquilo sobre o que ele se ocupar. O pensar da prpria forma do pensamento
desencadeia um processo infinito que dirige o conhecimento para o eu, para o si
mesmo, e o conhecimento, de uma atividade prpria de um sujeito sobre um objeto
torna-se autoconhecimento. Em seu exemplar estudo sobre os romnticos de Iena,
Walter Benjamin escreve: Como possvel conhecimento fora do autoconhecimento,
i.e., como possvel conhecimento do objeto? Ele de fato no possvel4. Para os
romnticos o germe de todo conhecimento do mundo se encontra na reflexo infinita
e, portanto, na si-mesmidade e no autoconhecimento. O pensamento que reflete
sobre si mesmo pensado em estreita unificao com o mundo, o que faz do conhecer
a si mesmo um processo equivalente ao do conhecer o mundo.
2 E aqui tomo sobretudo a tese de doutorado que Walter Benjamin apresenta Universidade de Berna (Sua) em 1919 como a base a partir da qual o romantismo alemo ser tematizado. Isso se justifica, em primeiro lugar, por sua reconhecida importncia no contexto dos estudos sobre o Romantismo alemo; em segundo lugar, pela abordagem sistemtica que a obra alcana no somente da produo de Friedrich Schlegel, mas do perodo romntico de Iena e dos seus principais nomes como um todo, podendo ser ento considerada como uma fonte representativa para o objetivo ao qual se prope este trabalho. 3 SCHLEGEL, F. apud SUZUKI, Mrcio. O gnio romntico Crtica e histria da filosofia em Friedrich Schlegel. Editora Iluminuras, FAPESP: So Paulo, 1998, p.16 4 BENJAMIN, W. O conceito de crtica de arte no romantismo alemo. Trad. Mrcio Seligmann-Silva. Ed. Iluminuras: So Paulo, 2002, p.61 Doravante citado como WB, O conceito de..., 2002, seguido pela paginao correspondente.
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Onde o pensamento do Eu no est unificado com o conceito de mundo, pode-se dizer que este pensar puro do pensamento do Eu s conduz a um eterno espelhar-se-a-si-mesmo, a uma srie infinita de imagens-reflexo que contm sempre o mesmo e nunca algo novo. Da porque precisa-se do conceito de mundo: Auto-intuio e intuio do universo so conceitos intercambiveis5.
Aqui, portanto, dada a tarefa suprema da reflexo: por exercer-se sobre
uma essncia pensante que j contm em si todo o contedo da realidade de forma
condensada e obscura, a reflexo deve desdobrar infinitamente esse contedo para
que o conhecimento da realidade atinja seu ponto mximo de clareza o absoluto.
O grande desafio que os romnticos parecem trazer tona o de pensar uma
forma de conhecimento independente da estrutura sujeito-objeto que se consolidou
na epistemologia moderna. A separao categrica entre um sujeito que se define em
contraste com o objeto que se d sua percepo apenas como fenmeno limita a
parcela do mundo que pode dar-se a conhecer ao sujeito. O sujeito no tem qualquer
privilgio epistemolgico em relao ao objeto, que se d como fenmeno e no como
coisa-em-si, e todo o conhecimento possvel est apenas nesse mbito parcial em que
o mundo se mostra. Mas a grande questo para os romnticos, na esteira do idealismo
alemo, a certeza de que h uma outra forma de abordar o mundo diferente do
impulso lgico-cognitivo que quer conhecer o mundo tal como ele em si mesmo.
Essa relao diferenciada com o mundo possibilitada pela duplicao que o conceito
kantiano de reflexo opera na realidade libertada da tarefa estrita do conhecimento
lgico, este duplo da realidade que se d atravs do sujeito abre uma via de total
liberdade entre o sujeito e o objeto, entre o indivduo e o mundo. No contexto da
teoria romntica do conhecimento a reflexo , portanto, guiada pela tarefa de
descobrir o conhecimento do mundo no autoconhecimento, bem como o
autoconhecimento no conhecimento do mundo. A unificao idealista entre o eu e o
mundo que abre a possibilidade de buscar o mundo no mais fora do eu mas dentro
5 WB, O conceito de..., 2002, p.42
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dele, em sua prpria experincia com este mundo mesmo que lhe pertence, cria uma
rede infinita de novas possibilidades de significao. O impulso criativo do romantismo
se funda nessa infinitude de conexes que cada indivduo pode estabelecer com o
mundo que lhe dado em estreita relao6.
Mas por que que podemos dizer que h efetivamente uma teoria do
conhecimento romntica ao invs de afirmar simplesmente um subjetivismo radical e
um solipsismo decorrentes desse esforo de eliminao da coisa-em-si? E nesse ponto
tocamos o aspecto mstico do romantismo que se relaciona intimamente com a
questo do absoluto.
A realidade no forma um agregado de mnadas fechadas em si que no podem ter nenhuma relao real umas com as outras. Pelo contrrio, todas as unidades no real, fora o absoluto, so apenas relativas. Elas esto to pouco fechadas em si e privadas de ligao que, antes, podem via intensificao de sua reflexo, incorporar mais e mais ao prprio autoconhecimento outras essncias, outros centros de reflexo. Nomeadamente, a coisa, na medida em que aumenta a reflexo em si mesma e abrange em seu autoconhecimento outras essncias, irradia sobre estas seu autoconhecimento originrio. Desta maneira, o homem pode tornar-se partcipe daquele autoconhecimento de outras essncias. Portanto, tudo aquilo que se apresenta ao homem como seu conhecer de uma essncia o reflexo nele do autoconhecimento do pensar nesta mesma essncia7.
H uma terminologia mstica que se evidencia no mbito da teoria romntica
da traduo e da concepo do mundo como Escritura8, ou seja, h uma ancoragem
do absoluto em uma viso mgica da linguagem e da lngua em que a linguagem
original relacionava o homem diretamente com um conhecimento total e com a
natureza. A queda equivale ao incio da confuso, do caos, da no-compreenso e,
portanto, da necessidade de se interpretar e traduzir o mundo e as palavras9. A
6 No por acaso surgem nessa poca diversas teorias acerca do gnio original, da afirmao da subjetividade e as recorrentes questes acerca dos absurdos originais. Cf. SSSEKIND, P. Shakespeare. O gnio original. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. 7 WB, O conceito de..., 2002, p.62. 8 Como muito bem fundamentado por Mrcio Seligmann-Silva, 1999, p.23 seq. 9 SELIGMANN-SILVA, M. Ler o livro do mundo. Walter Benjamin: romantismo e critica potica. So Paulo: FAPESP: Iluminuras, 1999, p.24.
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ideia subjacente a todo o esforo infinito do procedimento reflexivo de buscar
restaurar a mxima significao das coisas pela possibilidade infinita de conexes
poderia ser dita, portanto, como sendo a de se aproximar a um ideal de compreenso
do mundo que foi absolutamente interditado ao pensamento quando da Queda. Essa
seria a linguagem originria sobre a qual os romnticos sempre se voltam, e a
reconquista desse acesso direto essncia da coisa e, mais que isso, a recuperao da
harmonia entre homem e mundo, seria o grande ponto motivador para o
estabelecimento disso que os romnticos chamam de linguagem artificial, que pela
ambiguidade do termo alemo knstlich nos permite ainda chama-la de linguagem
artstica, a lngua e a linguagem prprias poesia e prosa. Essa linguagem recriada
torna-se necessria justamente porque a linguagem natural que nos garantiria um
acesso ao mundo em si tornou-se depois da Queda uma linguagem meramente
comunicativa e instrumentalizada.
O essencial desta concepo do conhecimento como restaurao de um
acesso privilegiado que a linguagem originria nos daria ao ncleo significativo do
mundo a conscincia, dela advinda, de que a nossa relao com a verdade e com o
conhecimento inteiramente dependente de um esforo de construo do sentido. O
sentido no dado, ele se perdeu e pode ser revelado somente pelo uso
artificial/artstico da linguagem, que por sua vez deve marcar sua absoluta diferena
em relao linguagem instrumentalizada.
Com o pressuposto idealista de que tudo o que existe fora de ns no no-eu, mas a prpria egoidade (Ichheit), o proto-eu (Ur-Ich), fundo obscuro do qual o eu finito se descola, mas do qual tambm continua sendo parte (Stck), o mundo deixa finalmente de ser uma paisagem erma, mero campo de foras mecnicas estreis atuando sem nenhuma finalidade, para se tornar um texto que no pode ser mais soletrado a partir de alguns poucos conceitos filosficos, mas requer uma leitura mais densa, inteiramente simblica10.
10 SUZUKI, M. O gnio romntico Crtica e histria da filosofia em Friedrich Schlegel. Editora Iluminuras, FAPESP: So Paulo, 1998, p.148.
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Uma vez que a natureza passou a falar em uma linguagem distante,
enigmtica, incapaz de ser decodificada pelos conceitos instrumentais da cincia da
natureza, o cientista da natureza, ou seja, aquele que se dispe a abord-la, deve
transformar-se em um crtico, para o qual a natureza transforma-se em um texto, que
ele interpela [...] com o [mesmo] sentido que o crtico [interpela] o autor.11. Schlegel
escreve ainda:
A matria nada na intuio. Aquilo unicamente que lhe d realidade a essncia, a significao [Bedeutung], o sentido [Sinn] dela, a linguagem [Sprache] que nos interpela [anspricht] obscuramente ali onde o tu se nos quer fazer inteligvel. A essncia interna e a natureza das plantas e animais so como que as palavras e a lngua com que o eu distante, mudo, fala conosco. Desta maneira, pela significao, aquilo que de resto matria insignificante se torna palavra e imagem de um esprito profundamente oculto, mas aparentado conosco12.
Os romnticos querem buscar aquilo que est escondido no mundo, prestes a
ser revelado, o mistrio da prpria linguagem originria que se esconde na linguagem
ordinria. Ao dar ao que comum um sentido elevado, ao que usual uma aparncia
misteriosa, ao conhecido a nobreza do desconhecido, ao que pode perecer a aparncia
do infinito, assim que eu os romantizo13. A vida tem de ser infiltrada pela poesia, e
Schlegel expressa esse ideal no conceito de Poesia universal progressiva, que segundo
ele deve eliminar a separao entre a lgica da vida cotidiana e as atividades livres e
criativas do esprito, como a poesia. Mas como isso deve ser feito? Schlegel provoca:
Fichte passa livros inteiros sempre dizendo s pessoas que, na verdade, no quer nem
pode falar com elas14, e nessa provocao nos d a dica para essa resposta: o mundo,
entendido como escrita, como texto a ser lido, deve ser transformado em poesia, em
11 SCHLEGEL, F. Philosophische Lehrjahre (PhL) - Kritische Ausgabe (KA), Vol. XVIII, p.165. As passagens de Schlegel citadas diretamente da Kritische Ausgabe so, salvo indicao, retiradas do estudo Walter Benjamin sobre o romantismo [BENJAMIN, W. O conceito de crtica de arte no romantismo alemo. Trad. Mrcio Seligmann-Silva. Ed. Iluminuras: So Paulo, 2002], traduzidas por Mrcio Seligman-Silva e cotejadas com o original alemo. 12 SCHLEGEL, F. Philosophische Lehrjahre (PhL) - Kritische Ausgabe (KA), Vol. XII pp. 338-9. 13 NOVALIS apud SAFRANSKI, R. Romantik. Eine deutsche Affaire. Carl Hanser Verlag, 2007, p.54. As tradues desta obra aqui citadas so de minha autoria. 14 SCHLEGEL, F. Philosophische Lehrjahre (PhL) - Kritische Ausgabe (KA), Vol. XVIII, p.37.
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linguagem artstica capaz de resgatar sua significao perdida para a superfcie lgica
da realidade. A crtica e a ironia romnticas aparecem como mtodos da
fragmentao sistemtica do mundo, como forma de destruir a totalidade lgica e
aparente da realidade cotidiana para buscar a totalidade mais profunda, infinita, a face
romntica da vida (uma forma de sur-realismo? poderamos nos perguntar). Pois esse
o comeo de toda poesia, anular todos os movimentos e as leis da razo que pensa
de modo sensato e nos transportar de novo para a bela confuso da fantasia, no caos
original da natureza humana, para o qual eu no conheo nenhum smbolo mais
bonito do que o redemoinho colorido dos antigos deuses15.
A ironia uma espcie de ponto de indiferena entre o real e o irreal no
sentido de que inteiramente uma coisa que, ao mesmo tempo, se refere a algo
inteiramente outro, ela o entre-dois que diz finitamente do infinito.
O sentido da socrcia [e aqui Schlegel cria um termo que o conecta ironia socrtica], que a filosofia est por toda parte ou em lugar nenhum e que com leve fadiga possvel orientar-se pelo primeiro, pelo melhor em toda parte e encontrar aquilo que se procura. Socrcia a arte de a partir de qualquer lugar dado, encontrar a localizao da verdade e assim determinar com exatido as relaes do dado com a verdade16.
A ideia central da ironia parece ser a de estabelecer o infinito na finitude
aparente de todas as coisas, de buscar um sentido que no esgotvel, dado que a
inteligibilidade do mundo e de todas as coisas deve ser percebida ao mesmo tempo
como desejvel mas inatingvel, necessria mas impossvel. A ironia exige
comunicabilidade e comunicao incondicionadas, ou seja, enquanto fundamento
do discurso e condio do seu sentido, comunicabilidade e comunicao no devem
poder se esgotar em nenhuma fala, em nenhum discurso nem significao
determinada. A ironia permite o dilogo porque evita o ponto morto da compreenso
absoluta17. Um escrito clssico jamais tem de poder ser totalmente entendido.
15 SCHLEGEL, F. apud F. SAFRANSKI, R. Romantik. Eine deutsche Affaire. Carl Hanser Verlag, 2007, p. 58. 16 SCHLEGEL, F. Dialeto dos Fragmentos. Trad. Mrcio Suzuki. Ed. Iluminuras: So Paulo, 1997, p.67. 17 SAFRANSKI, R. Romantik. Eine deutsche Affaire. Carl Hanser Verlag, 2007, p.61.
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Aqueles que so cultos e se cultivam tm, no entanto, de querer aprender sempre
mais com ele18.
A crtica, por sua vez, nada mais propriamente que a comparao do
esprito e da letra de uma obra, que tratada como infinito, como absoluto, e como
indivduo Criticar quer dizer entender um autor melhor do que ele mesmo se
entendeu19. A crtica se funda numa Ideia compreendida como antecipao
divinatria de um todo orgnico ainda no realizado, mas cuja realizao s pode ser
pensada no interior de um processo infinito. A atividade da crtica romntica
pressupe, portanto, uma totalidade, um sistema a partir do qual ela critica aquilo que
est fora desse sistema e dessa totalidade ao criticar a si mesma. Nesse sentido, a
crtica s completa se for inteiramente uma coisa ao ser inteiramente outra, ou seja,
se for inteiramente filosofia ao ser inteiramente poesia. A comparao com a ironia
inevitvel. A crtica romntica est no seio do projeto epistemolgico romntico por
operar a juno entre parte e todo, indivduo e mundo, filosofia e poesia. Somente o
filsofo crtico pode conhecer corretamente a si mesmo no todo e por partes.
Somente ele pode reunir em si mais esprito de cincia [Wissenschaftsgeist] que Fichte
e mais sentido artstico [Kunstsinn] que Goethe. Do filsofo crtico se pode dizer tudo
o que os estoicos afirmavam do sbio20. A crtica romntica no deve ser confundida
com um mero cnon para julgar conhecimentos que podem fazer parte do sistema da
filosofia ou obras que pertencem esfera da arte. A atividade crtica constitui o pice
da formao do filsofo e do artista, o acabamento ideal do esprito cientfico e do
senso artstico e, diferentemente do que em geral se compreende por crtica, a saber,
o exame e anlise do que j existe, no romantismo a crtica ser pensada como
instrumento que possibilita a descoberta e a inveno de coisas futuras. Exatamente
por isso que a crtica, no contexto romntico, surge como genial, proftica,
divinatria, procedimento que no tem meramente uma funo negativa mas, antes,
18 SCHLEGEL, F. Lyceum, Kritische Ausgabe (KA) Doravante citada apenas como KA, seguida da indicao do volume e pgina Vol. II, p. 240. 19 SCHLEGEL, F. KA, XVI, p. 168. 20 SCHLEGEL, F. KA, Vol. II, p.84.
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positiva, progressiva, cujo esprito no skepsis, mas divinao21. Para Schlegel a
crtica torna-se o lugar da inveno e do gnio, e deste ponto de vista no h mais
distino possvel entre crtica e poesia, juzo esttico e criao. Poesia s pode ser
criticada por poesia. Um juzo artstico que no ele mesmo uma obra de arte na
matria, como exposio da impresso necessria em seu devir, ou mediante uma
bela forma e um tom liberal no esprito da antiga stira romana, no tem
absolutamente direito de cidadania no reino da arte22. Ele escreve ainda: Filosofia da
filosofia = arte da inveno e do chiste combinatrio ou fundao de uma arte e
cincia profticas. Orculos combinatrios. Princpios profticos 23. Se a tarefa da
criao, antes deixada lgica, pode agora ser assumida pela crtica, isso se deve
justamente a esta coincidncia com a poesia, com o talento irnico e proftico de
buscar totalidades perdidas e inexistentes nos fragmentos, nas partes. O fragmento
como projeto e semente (Plen) significa um desenvolvimento constante, um
desdobrar infinito do todo contido potencialmente em cada parte, e, por fim, um
conectar infinitamente os fragmentos. Assim o chiste definido como genialidade
fragmentria24, e este princpio de inventividade compreendido como o talento da
fragmentao, pois os produtos naturais do chiste interrompem a ordem e as leis da
razo, fazendo aflorar novamente o caos originrio da fantasia. Os fragmentos e,
dentre eles, os chistes, apontam para a dimenso catica da imaginao criativa que a
todo o momento est prestes a romper o limiar da finitude e da limitao de sentidos.
Um achado chistoso uma desagregao de elementos espirituais que, portanto, tinham de estar intimamente misturados antes da sbita separao. A imaginao tem de estar primeiro provida, at a saturao, de toda espcie de vida, para que possa chegar o tempo de a eletrizar de tal modo pela frico da livre sociabilidade, que a excitao do mais leve contato amigo ou inimigo possa lhe arrancar fascas fulgurantes e raios luminosos, ou choques estridentes 25.
21 SCHLEGEL, F. KA, Vol. XVIII, pp.49. 22 SCHLEGEL, F. KA, Vol. II, p. 162. 23 SCHLEGEL, F. KA, Vol. XVIII, p. 352. 24 SCHLEGEL, F, KA, Vol II, p. 148. 25 SCHLEGEL, F. KA, Vol. II p.150.
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Este contato de ideias que vivifica a mente interrompe a rotina montona e
entorpecida da conscincia. Mas o carter fragmentrio do chiste s pode ser
compreendido se localizado na conscincia finita, porque o modo de funcionamento
desta conscincia que a humana, segundo Schlegel, ele mesmo fragmentrio. Os
cursos de Colnia tem uma seo inteira dedicada explicao de que o chiste a
forma prpria, especfica da conscincia humana, como conscincia derivada,
racional ou como a forma da conscincia derivada, fragmentria26. justamente
pelo fato de que o chiste se manifesta na conscincia finita que ele s pode ter a
forma do fragmento, como indcio do seu pertencimento a um mundo inconsciente e
no inteiramente disponvel.
Mesmo as obras ldicas da imaginao ainda mantm sempre uma conexo entre si, mas o chiste surge isoladamente, de maneira totalmente inesperada e sbita, sem nenhuma relao com o que veio antes, tal como, por assim dizer, um trnsfuga, ou antes, como um relmpago do mundo inconsciente [ein Blitz aus der unbewuten Welt], que sempre subsiste para ns junto [neben] ao mundo consciente, e dessa maneira expe notavelmente o estado fragmentrio de nossa conscincia. um vnculo e mescla de consciente e inconsciente [des Bewuten und Unbewuten]. Sem nenhuma inteno e sem conscincia, subitamente se descobre algo que no tem conexo alguma com o precedente; aquilo, porm, que nos consciente nisso, est vinculado maior clareza e lucidez 27.
Pela sua caracterstica de estabelecer uma ponte, um vnculo entre domnios
distintos da mente, entre o consciente e o inconsciente que o chiste considerado
por Schlegel como o princpio e rgo da filosofia universal, justamente por sua
capacidade de restaurar essa passagem da conscincia finita conscincia infinita,
originria, ou seja, passagem do eu-fragmento da parte ou do pedao do eu
(Bruchstck), para o eu-totalidade. desta forma que o chiste preserva o jogo entre
razo e fantasia, consciente e inconsciente, pois o eu absoluto s possvel pela
determinao recproca entre eu inteligvel e eu emprico.
26 SCHLEGEL, F. KA, Vol. XII pp. 392-392. 27 SCHLEGEL, F. KA, Vol. XII pp. 392-392.
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Maurice Blanchot e o surrealismo
Em La part du feu28 Blanchot faz importantes consideraes sobre o
surrealismo e, no quadro geral da literatura, aproxima o movimento surrealista do
romantismo alemo do ponto de vista do significado que a atividade literria exerceu
para ambos os movimentos. Bem mais do que um gnero literrio, o romantismo,
tanto quanto o surrealismo, so formas do fazer literrio, formas de uma experincia
excepcional que se abre ao artista na forma do poder de criar uma vida diferente
daquela que o criou na potncia da liberdade e da fico que, diferentemente do
impulso de experimentar a prpria vida, o poder de testar a si mesmo, de se ariscar
nessa experincia vitalmente perigosa que seria a arte para o artista, o romance para
o romancista e, de uma forma mais geral, o ato de escrever para aquele que
escreve29. Enquanto expresso de uma experincia absolutamente pessoal e singular,
o romantismo considerado por Blanchot como a origem da literatura, cujo apelo ao
status de experincia literria retomado pelo surrealismo dos anos 20. Enquanto
experincia visceral e radicalmente peculiar de si e do mundo, a literatura tal como
compreendida e exercida pelos romnticos e pelos surrealistas aparece no texto de
Blanchot como uma forma de transformao daquele que passa pela experincia da
escrita, pois na experincia literria j h uma ao que se d de forma imediata.
A literatura uma atividade pela qual aquele que se dedica no tende apenas a produzir obras belas, interessantes, instrutivas, mas pe a si mesmo inteiramente prova, tende a no se encontrar, a se exprimir, nem mesmo a se descobrir, mas a perseguir uma experincia em que ser descoberta, em relao a ele e mundo que o seu, o sentido da condio humana em sua totalidade. simples repetir: escrever tem para aquele que escreve um valor de experincia fundamental30.
28 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949 H uma traduo recente da obra para o portugus, intitulado A parte do fogo, publicada pela Editora Rocco. 29 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 210. 30 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 211.
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Entre abril de 1941 e agosto de 1944, Maurice Blanchot publicou mais de 170
artigos de crtica literria no Journal des dbats, que foram posteriormente publicados
em forma de coletneas, dentre as quais La part du feu de 1949 e LEntretien infini de
1969. Mas em um artigo inicialmente no publicado no Faux pas de fevereiro de
1944 que Blanchot faz uma aproximao entre o romntico Jean Paul e o francs
Giraudoux exatamente pelo ponto de vista da literatura como experincia. Como
salienta Christophe Bident, o editor da coletnea que em 2007 publicou as crticas
literrias ausentes nas edies anteriores, o romantismo alemo como um todo no
cessar de reter sua ateno: a prova disso o livro de Philippe Lacoue-Labarthe e
Jean-Luc Nancy, Labsolu littraire, no qual o lugar de Blanchot decisivo.
(Apresentao traduo brasileira de De Jean-Paul Giraudoux e Lexprience
magique de Henri Michaux). Nesse texto afirma Blanchot:
Na aurora do romantismo, Jean-Paul representa certas tomadas de posio cujo valor no foi percebido pelos romnticos franceses, mas que, depois deles ou para alm deles, penetraram profundamente nosso tempo. A principal o carter de experincia que se reconhece na literatura; a literatura torna-se uma manifestao espiritual; ela introduz aquele que a busca em um novo modo de existncia; uma espcie de ascese que nos permite o acesso a uma vida mais autntica: em uma palavra, ela tem para o escritor uma significao mstica31.
Sobre os romnticos alemes, acrescenta Blanchot, a literatura tem um valor
de engajamento: ela no exprime, ela abala; ela a um s tempo meio de
conhecimento e poder de metamorfose; viver, escrever, um mesmo ato. A poesia
uma experincia mgica32.
O artigo publicado em 1949 sob a coletnea La part du feu em que Blanchot
apresenta algumas reflexes sobre o surrealismo parecem de fato identificar no
movimento surrealista vrias daquelas caractersticas j identificadas no romantismo
31 BLANCHOT, M. De Jean-Paul Giraudoux. Trad. Marcelo Jacques de Moraes, in Revista ALEA: Rio de Janeiro. Vol. 12, n. 1, pp.169-172, jan./jul. 2010, p.169. 32 BLANCHOT, M. De Jean-Paul Giraudoux. Trad. Marcelo Jacques de Moraes, in Revista ALEA: Rio de Janeiro. Vol. 12, n. 1, pp.169-172, jan./jul. 2010, p.170.
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alemo. Com efeito, Blanchot se pergunta pela herana deixada pelo surrealismo, uma
vez que No h mais uma escola, mas subsiste um estado de esprito, e h em toda
pessoa que escreve uma vocao surrealista33. E ento ele nos d a chave da
resposta, aproximando as intuies e mtodos surrealistas daqueles que podemos
atribuir prpria literatura, e afirma que o fato de que Breton se fez sempre presente
com uma perseverana infatigvel, que ele tentou se salvar de todos os naufrgios e
mesmo de suas prprias dvidas [...] mostra suficientemente que esse mtodo no era
uma inveno factcia e que ela respondia a uma das principais aspiraes da
literatura34. Quais seriam as aspiraes da literatura e, portanto, tambm de Breton e
do movimento surrealista? Uma relao imediata do indivduo com si mesmo, uma
espcie de vida imediata que nos permita afirmar que h, que deve existir na
constituio do homem um momento em que todas as dificuldades se amenizam, em
que as antinomias perdem o sentido, em que o conhecimento toma inteiramente
posse das coisas, em que a linguagem no o discurso mas a prpria realidade sem,
no entanto, deixar de ser a realidade prpria linguagem, em que, enfim, o homem
toca o absoluto35.
Blanchot reconhece no surrealismo este mpeto de forar a conscincia a
incluir em si tambm elementos do inconsciente como forma de alargar o mbito
prprio da experincia, que se realiza pelo uso expandido da linguagem, atravs da
tcnica da escrita automtica. Esta tcnica de produo literria, detalhadamente
descrita por Breton no Manifesto Surrealista de 1924, trapaceia a legislao rigorosa
da conscincia, suspende o hbito de deduzir os fatos da realidade para nos levar alm
da experincia cotidiana, para alcanar uma forma de percepo pura que escape ao
crivo lgico e coerncia do sentido e da razo para buscar as manifestaes do
inconsciente:
33 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 90. 34 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 91. 35 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 91.
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Se a razo, como o caso, abandona terrivelmente aquele que a convoca, no seria conveniente fazer abstrao dessas categorias? [...] Vivemos ainda sob o imprio da lgica, eis a, naturalmente, onde eu queria chegar. [...] O racionalismo absoluto que continua em voga s nos permite considerar os fatos trazidos tona estritamente por nossa experincia. Os fins lgicos, ao contrrio, nos escapam. Sob o pretexto de civilizao, sob o pretexto de progresso, conseguiu-se banir do esprito tudo aquilo que se pode taxar, com ou sem razo, de superstio, de miragem; conseguiu-se suprimir todo modo de busca da verdade que no seja conforme ao costume36.
Uma frase automaticamente constituda revela uma formulao feita por uma
imaginao passivamente disposta, que capta os diversos elementos do mundo numa
espcie de suspenso da lgica consciente, do funcionamento consciente e coerente
do mundo. Sobre o mtodo surrealista, Blanchot afirma que a escritura automtica
uma mquina de guerra contra a reflexo e a linguagem. [...] A eficcia e a importncia
da escrita automtica consistem no fato de que ela revela a prodigiosa continuidade
entre meu sofrimento, meu sentimento de sofrer e a escrita do sentimento desse
sofrimento37.
A linguagem para Breton deve ser humilhada, sacrificada, deve ser explorada
de forma a poder nos levar muito alm da nossa experincia cotidiana e habitual.
Devemos fazer uma verdadeira violncia linguagem para que ela nos sirva de
transporte. O uso surrealista da linguagem no a pressupe como um mero
instrumento, mas justamente como algo cujo fim dado em si mesmo. A linguagem
deve ser pressuposta como livre, como substancial em si mesma. O reconhecimento da
linguagem enquanto livre implica o reconhecimento de um sujeito igualmente livre, e
nesse sentido, h uma evidente analogia entre a linguagem e o sujeito. O mtodo da
escrita automtica deve transformar a linguagem numa extenso do prprio sujeito, ou
seja, a linguagem deve ser pensada como o sujeito, como aquilo que o sujeito
enquanto ele comunica. Na escrita automtica as palavras se tornam livres e tm
vontade prpria. Elas fazem amor, se conectam e se separam como bem querem.
36 BRETON, A. Manifeste du Surralisme (1924). Ed. Gallimard: Paris, 1966, pp.11-64. Disponvel em http://inventin.lautre.net/livres/Manifeste-du-surrealisme-1924.pdf. Acessado em 12.09.2013, pp. 1,2. 37 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 91,92.
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Para Blanchot, o primeiro surrealismo tinha essa ideia da linguagem como
acesso direito letra, palavra e, como tal, ao absoluto. Nesse sentido, a linguagem
estaria no fundamento, no comeo fundacional do pensamento e da criao livres. O
resultado que as palavras livres se tornam os centros da atividade mgica, mais que
isso, as coisas se tornam impenetrveis e opacas a todo e qualquer objeto humano
retirado de sua significao utilitria.38. O maravilhoso, a criao mgica abrem-se
linguagem que se humilha e se liberta do sujeito para torna-se ela prpria o sujeito
agente. As palavras so livres, e talvez elas possam nos liberar; suficiente segui-las,
abandonar-se a elas, coloca-las ao servio de todos os recursos da inveno e da
memria.39. Com efeito, Breton relata no primeiro manifesto de 1924:
Escreva rpido e sem um assunto preconcebido, rpido o suficiente por no se reter nem ser tentado a se reler. A primeira frase vir por si mesma, tanto verdade que a cada segundo h uma frase estranha ao nosso pensamento consciente que pede para ser exteriorizada. [...] Continue enquanto isso lhe apraz. Confie no carter inesgotvel do murmrio. [...] Em seguida a uma palavra cuja origem lhe parea suspeita, coloque uma letra qualquer, a letra l por exemplo, sempre a letra l, e evoque o arbitrrio ao impor essa letra como a inicial da palavra que vir a seguir 40.
Para o surrealismo h uma limitao na vida real em funo de ela ser
sempre enquadrada em exigncias que so da ordem da vida prtica, do
conhecimento lgico, etc. E por isso que h uma necessidade de ir alm da
conscincia meramente imediata do real e da prpria vida. O surrealismo seria esta
forma de ir alm e elevar a conscincia a essa realidade superior, a esse
suprarrealismo. O alcance desta realidade aparece quando alcanamos o que Breton
chama de funcionamento real da conscincia, ou seja, um funcionamento no
domesticado, no adestrado para o funcionamento real e para as exigncias prticas
da vida.
38 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 94. 39 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 95. 40 BRETON, A. Manifeste du Surralisme (1924). Ed. Gallimard: Paris, 1966, pp.11-64. Disponvel em http://inventin.lautre.net/livres/Manifeste-du-surrealisme-1924.pdf. Acessado em 12.09.2013, p. 11.
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H uma crtica fundamental aqui que se aplica a uma teoria da representao
e, consequentemente, a uma teoria em que a clivagem entre sujeito e objeto assume
uma caracterstica ontolgica na qual o real e o irreal so compreendidos como
momentos contnuos da experincia do sujeito, separado do seu objeto-mundo. No
h uma separao ou um rompimento entre sujeito e o mundo, nem entre o mundo
real e os mundos possveis experimentados pelo sujeito. A alegada contradio entre o
real e o irreal nada mais seria que uma limitao da conscincia em termos do mbito
de suas experincias possveis.
No segundo manifesto do Surrealismo, Breton caracteriza essa diviso
insupervel do pensamento entre o real e o irreal, o que existe e o que no existe
como o cncer do pensamento, uma vez que essa posio ontolgica o que torna o
homem absolutamente triste e desamparado. por isso que Breton prope todos os
meios de resgatar aquilo que est para alm dessa diviso como forma de resgatar a
prpria experincia da totalidade.
A poesia que ao mesmo tempo tomada de conscincia dessa superao sem fim e tambm sem meio, e ainda essa prpria superao, no dada jamais ela no tem nada a ver com o mundo de coisas feitas. [...] A poesia e a vida esto em outro lugar, (...), mas outro lugar no designa uma regio espiritual ou temporal: outro lugar no est em parte alguma; ele no o alm; ele significa que a existncia no est jamais onde ela . O surrealismo uma dessas tentativas pelas quais o homem pretende se descobrir como totalidade41.
Tal como o romantismo alemo, o surrealismo alimenta-se da ideia de que o
homem deve buscar compreender-se em sua totalidade, totalidade esta sempre
reprimida e ameaada pela ditadura da razo e da lgica, quando no da exigncia
prtica e funcional da vida. Ambos os movimentos partem dessa concepo de que
isto que chamamos realidade deve ser superado, deve ser destrudo a favor de uma
realidade em que a experincia de um sujeito livre e liberto de exigncias diversas
pode ter lugar. Ambos, finalmente, apostam que na linguagem e, mais
especificamente, no uso artstico do fazer potico, da prpria literatura, que esta 41 BLANCHOT, M. La part du feu. ditions Gallimard: Paris, 1949, p. 97.
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experincia e esta abertura a um outro mundo e uma outra realidade uma sur-
realidade devem ser buscados.
Concluso ou notas sobre Derrida e a linguagem
Uma de nossas ideias que na verdade se impe por si mesma seria a de reservar uma seo desses cadernos questo poltica. O que seria algo inteiramente diferente do dossi (mais ou menos bem) esboado h alguns anos pela revista Gamma, e que consideramos antes como uma ocasio, para ns mesmos (nossa gerao), de colocar, atravs do senhor, a questo do poltico nesse sculo, bem como da responsabilidade poltica da escrita. Seu exemplo h tempos nos persuadiu da necessidade de submeter essa questo em geral a um reexame radical. Hesitei h algumas semanas a propor Libration algumas pginas a respeito do lanamento em francs do livro do Jeffrey Mehlman (cuja argumentao, no que concerne ao senhor e ao seu itinerrio, me parece falsa, talvez pelo fato de que em momento algum ela considerou a diferena que Mehlman o primeiro a conhecer: a diferena entre aquilo que surge do discurso e aquilo que da ordem da escrita, no sentido pelo qual Derrida, por exemplo, pde distinguir esses termos, sem considerar, naturalmente, a cegueira completa em relao ao que pode ser uma experincia poltica, uma conscincia poltica, uma converso poltica, ou seja, uma converso tout court; isso para no dizer nada da ignorncia na qual ela manifestamente se encontra em relao ao que pde representar, do ponto de vista do romantismo, na Europa, o radicalismo nacionalista mas seu propsito ele prprio romntico) 42.
Esta carta no poderia antecipar de forma mais clara a guinada guisa de
concluso a que esta ltima parte do trabalho pretende. Se de fato o movimento
surrealista foi inspirado no romantismo alemo de Schlegel, uma questo que pouco
importa no quadro geral em que podemos especular os efeitos que essa aproximao,
essa retomada e ou re-interpretao de Blanchot pode ter tido no contexto da filosofia
francesa contempornea. Se no h uma influncia essencial ou determinante de
Blanchot sobre Derrida, podemos ao menos buscar neste ltimo consequncias
frutferas de uma ideia que, de uma forma ou de outra, se encontra enraizada nas
intuies de Blanchot.
42 LACOUE-LABARTHE, Philippe. Agonie termine, agonie interminable. Sur Maurice Blanchot. ditions Galile: Paris, 2011, p. 16. Trata-se de um trecho da carta que Philippe Lacoue-Labarthe envia a Maurice Blanchot em 6 de julho de 1984, citada na apresentao do livro.
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Proponho ento uma rpida abordagem de um pequeno texto de Derrida,
intitulado Des tours de Babel, no qual ele no apenas tematiza diretamente a questo
da linguagem, trabalhando j elementos diversos que figuram em sua formulao do
conceito de escritura, como ainda estabelece um dilogo direto com outro grande
filsofo Walter Benjamin que, a despeito da nacionalidade alem, adotou a Frana
como ptria e em muitos aspectos se aproximou mais desta cultura do que de sua
prpria e, ademais, foi outro pensador importante a relacionar os movimentos
romntico e surrealista, buscando em ambos vrias das intuies fundamentais de sua
prpria filosofia.
Nesse pequeno texto intitulado Torres de Babel, parte integrante da obra
Psych: Inventions de lautre, Derrida retorna ao texto bblico sobre a construo da
torre de Babel para propor uma reflexo sobre a traduo, sobre seus limites e,
finalmente, sobre lnguas e a linguagem. Para tanto, Derrida compara a traduo da
Bblia feita por Louis Segond em 1910 com aquela feita por seu conterrneo, Andr
Chouraqui que, assim como ele prprio, tem a experincia de abandonar o rabe como
lngua materna tornando-a por isso estrangeira, e da adoo do francs como lngua
estrangeira, tornando-a por isso sua lngua materna.43 A traduo de Chouraqui
baseada na Bblia hebraica e se insere na tradio da massor, ou seja, dos
comentrios e estudos que tm por objetivo manter a pureza do texto original e evitar
todo tipo de acrscimo ou alterao que inevitavelmente trazem consigo as
interpretaes e as tradues. diferena manifesta entre as duas tradues, Derrida
opta pela segunda para buscar um sentido que as alteraes e interpretaes da
primeira traduo o que ele, com certo humor, comenta: transmutao dos
materiais, o tijolo que se torna pedra e o betume que serve de argamassa44 ocultam
a manifestao lmpida do sentido primeiro das palavras e funcionam, nas palavras de
43 Sobre a apropriao da lngua interditaria e interdita. Cf. DERRIDA, J. Le monolinguisme de lautre - ou la prothse dorigine. ditions Galile : Paris, 1996, p. 60 et. seq. 44 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 196.
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Derrida, como uma traduo da traduo.45 Assim traduz Chouraqui a passagem
bblica sobre Babel, citada por Derrida:
So estes os filhos de Sem / segundo suas famlias, segundo suas lnguas / em suas terras, por seus povos. / So estas as famlias dos filhos de No por seus gestos, em seus povos: / destes se dispersaram os povos sobre a terra, aps o dilvio. / E assim toda a terra: um nico lbio, nicas palavras. / E assim em sua partida do oriente: eles encontram um desfiladeiro / em terra de Sinear. / Ali eles se estabelecem. / E dizem, cada qual ao seu semelhante: / Vinde, faamos os tijolos, / flamemo-los nas chamas./ O tijolo se torna para eles em pedra, o betume, morteiro. / Eles dizem: / Vinde, edifiquemo-nos uma cidade e uma torre. / Sua cabea: aos cus. / Faamo-nos um nome, / para que no nos dispersemos sobre a face da terra. / YHWH desce para ver a cidade e a torre / que edificaram os filhos do homem. / YHWH diz: / Sim, um nico povo, um nico lbio para todos: / eis o que eles se puseram a fazer! / [...] Vinde! Desamos! Confundamos ali seus lbios, / o homem no mais reconhecer o lbio do seu prximo. YHWM os dispersa dali pela face da terra. / Eles cessam de edificar a cidade. / Da ele chama-la pelo nome: Babel, Confuso, / porque ali YHWH confunde o lbio de toda a terra, / e dali YHWH os dispersa pela face da terra46.
No comentrio que se segue a essa passagem, Derrida chama a ateno para
um elemento bastante intrigante, inexistente na traduo tradicional da Bblia:
Pelo qu Deus os pune ao dar-lhes seu nome, ou melhor, uma vez que ele no o d a nada nem a ningum, ao chama-la pelo nome, o nome prprio de Confuso, que ser sua marca e seu selo? Ele os pune por ter querido construir altura dos cus? por ter querido atingir o mais alto, at o Altssimo? Talvez, sem dvida tambm por isso, mas incontestavelmente por ter querido fazer um nome, dar-se a si prprio o nome, construir para si mesmo o prprio nome, reunir-se ali (para que no nos dispersemos...) como na unidade de um lugar que ao mesmo tempo uma lngua e uma torre, tanto uma quanto outra. Ele os pune por ter querido, por si mesmos, assegurar uma genealogia nica e universal47.
Isso que podemos identificar como um cimes de Deus parece ter sido
causado no pela inteno dos homens de construir uma grande torre capaz de
alcanar os cus e o Altssimo mas, antes, pela pretenso em dar a si mesmo um 45 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 196. 46 BIBLE, Trad. Andr Chouraqui. Apud DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 196. 47 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 197-8.
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nome. Podemos pensar aqui que precisamente em funo dessa pretenso inaceitvel
que Deus impe, como punio, seu prprio nome, seu nome de pai. No sei por
que se diz no Gnese que Babel significa confuso; pois Ba significa pai nas lnguas
orientais, e Bel significa Deus; Babel significa a cidade de Deus, a cidade santa. Os
antigos davam esse nome a todas as suas capitais.48, escreve Voltaire em seu
Dictionnaire Philosophique. A imposio violenta do seu nome de pai a ao pela
qual Deus consegue interromper a construo da torre. E isso acontece porque a
palavra divina criadora, como encontramos na abertura do Evangelho de Joo: No
princpio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. / Ele estava no
princpio com Deus. / Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem
ele49. Quando a palavra divina se impe sobre a palavra humana, efetua-se o
rompimento que as afasta violentamente e cria-se o domnio agora inacessvel da
lngua divina, domnio este ao qual a palavra humana se dirige a fim de recuperar o
sentido perdido na ruptura e na interdio. Atravs dessa imposio do seu nome de
pai, segundo Derrida, Deus dispensa a filiao genealgica, rompe a linha. Ele impe a
traduo ao mesmo tempo em que a torna impossvel50. As lnguas se dispersam
porque elas no podem mais dizer aquilo que a lngua criadora de Deus dizia de modo
imediato, e a traduo ndice dessa incapacidade:
A traduo torna-se necessria e impossvel como efeito de uma luta pela apropriao do nome, necessrio e interdito no intervalo entre dois nomes absolutamente prprios. E assim o nome prprio de Deus se divide o bastante na lngua, j, e para significar igual e confusamente, confuso. E a guerra que ele declara inflamou-se j de incio no interior do seu nome: divido, bipartido, ambivalente, polissmico. Deus desconstri51.
48 VOLTAIRE, Dictionnaire Philosophique, artculo Babel, apud DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 192. 49 Joo 1:1-3 50 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 196. 51 expdier.
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E aqui eu gostaria de abrir um parntese conclusivo que nos permite no
apenas evidenciar o dilogo que Derrida claramente estabelece com Walter Benjamin,
mas tambm salientar a proximidade das questes que conectam os autores que nos
trouxeram at aqui. Derrida se refere diretamente ao famoso texto A tarefa do
tradutor, que por sua vez baseado nas consideraes sobre a linguagem que
Benjamin fizera num texto de sua juventude, que malgrado sua precocidade,
permaneceu como uma das grandes referncias em toda sua obra, a saber, Sobre a
linguagem em geral e a linguagem humana.
Benjamin prope nesse texto uma leitura muito peculiar do Gnesis, mais
interessada em pensar a dimenso significativa da linguagem, em contraste com a
linguagem reduzida dimenso comunicativa do que propriamente em propor algo
como uma origem histrica das lnguas. Segundo a interpretao que Benjamin, por
seu turno, confere ao relato bblico, a lngua criadora de Deus cria o mundo e em
seguida cria Ado, antes de dar nome s coisas do mundo e a Ado, porque cabe a este
terminar a criao divina ao herdar de deus a lngua com a qual nomearia a si e ao
mundo. Concedida ao homem, a palavra divina perde seu carter de criao e se
conserva como o conhecimento puro. Ao nomear uma coisa qualquer, esta se abriria
plenamente ao conhecimento pelo homem, e assim, conhecendo inteiramente tudo
aquilo que agora trazia a marca divina do nome, ao homem foi concedida a tarefa de
concluir a criao divina e ao mesmo tempo o privilgio de reconhecer-se imagem e
semelhana de Deus. Nesse contexto, portanto, o pecado original se realizou quando
o homem comeu o fruto proibido da rvore do conhecimento, sendo a punio a
irrevogvel necessidade de julgar todas as coisas como verdadeiras ou falsas. A Queda
significou, assim, a introduo do falso num mundo no qual ele no existia, no qual a
lngua que se falava era a lngua divina que concedia o conhecimento pleno e imediato
a todas as coisas. A possibilidade do falso e a necessidade da palavra judicativa indicam
essa ruptura com a palavra divina para a qual j apontava Derrida. O mundo se torna
estranho ao homem, e ele no compreende mais a linguagem das coisas do mundo. A
Queda o incio da confuso Babel? do caos, da no compreenso e da
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necessidade de interpretar e de traduzir o mundo numa linguagem sempre imperfeita,
deficiente, insuficiente. O diagnstico aparece aqui mais uma vez: a traduo to
necessria quanto impossvel.
No conjunto da obra de Benjamin, este pode ser apontado como o
fundamento do pensamento segundo o qual o mundo pode e deve ser concebido
como um livro a ser lido, traduzido, interpretado, como uma Escritura sagrada, para
evidenciar ainda mais a forte presena dos primeiros romnticos no alicerce do
pensamento de Benjamin. Esta sem dvida uma pista interessante para se
compreender a razo pela qual ele confere um espao especial ao nome prprio: em
cada nome se esconde um vestgio dessa conexo imediata com aquilo que ele
nomeia, como se atravs do nome algo da prpria essncia do nomeado pudesse se
revelar. Lembremo-nos de Derrida: A traduo torna-se necessria e impossvel como
efeito de uma luta pela apropriao do nome, necessrio e interdito no intervalo entre
dois nomes absolutamente prprios, e que adiante afirma: Ora, um nome prprio
enquanto tal permanece sempre intraduzvel, fato a partir do qual podemos
considerar que ele no pertence rigorosamente, da mesma forma que as outras
palavras, lngua e ao sistema da lngua, seja ela traduzida ou tradutora52.
Eis aqui o motivo pelo qual Derrida defende que a traduo permanece uma
tarefa impossvel, ainda que necessria. A necessidade da traduo propriamente
sua impossibilidade. Quando Deus impe o nome Babel torre, ele rompe a mesma
transparncia racional que conectava e referia a coisa ao seu nome, como a torre seria
referida pelo nome com o qual a linhagem de No pretendia chama-la, e assim Deus os
condena traduo. A traduo torna-se, portanto, a lei, o dever e a dvida, dvida que
no entanto no poder jamais ser paga. E por que essa dvida impagvel, essa tarefa
impossvel, afirma-se acima de tudo como necessria? Derrida ento recorre a
Benjamin e responde:
52 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 197.
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O tradutor endividado, ele se revela como tradutor na situao de dvida; e sua tarefa a de devolver, de devolver aquilo que deve ter sido dado. Dentre as palavras que respondem ao ttulo de Benjamin (Aufgabe, o dever, a misso, a tarefa, o problema, aquilo que atribudo, dado a fazer, dado a ser devolvido), desde o incio Wiedergabe, Sinnwiedergabe, restituio, restituio do sentido. Como possvel ouvir tal restituio, ver tal pagamento? E que sentido? Quanto aufgeben, ela tambm dar, enviar (emisso, misso) e abandonar53.
Mas a que exatamente o tradutor deve renunciar, o que ele deve abandonar?
Derrida nos d aqui uma dica atravs das palavras de Mallarm: As lnguas,
imperfeitas porque plurais, falta a suprema: sendo pensar escrever sem acessrios
nem murmrio mas tcita ainda a palavra imortal, a diversidade, na terra, dos idiomas,
impede que se profiram as palavras que, seno haveriam de se encontrar por um ato
nico de cunhagem, ela mesma materialmente, a verdade54. Ento, se isso que o
tradutor deve devolver ao fazer uma traduo a prpria verdade isso que deve ter
sido anteriormente dado ela agora aparece como inalcanvel, impossvel, uma vez
que estamos condenados ao domnio das lnguas imperfeitas, finitas, peas
insuficientes da lngua pura da verdade. Mas podemos insistir e perguntar: mas por
que, ainda, ela se impe como necessria? Ou seja, se traduo a tarefa de devolver
ou de restituir o sentido pleno do texto original condenada desde o incio ao
fracasso, por que ela deve ser, todavia, realizada? E aqui que Benjamin mais uma vez
nos ajuda a encontrar o fio condutor do nosso problema. Ele escreve, em seu texto A
tarefa do tradutor:
Da mesma forma que as manifestaes vitais esto intimamente ligadas ao ser vivo, sem significarem nada para ele, a traduo provm do original. Na verdade, ela no deriva tanto de sua vida quanto de sua sobrevivncia (berleben). Pois a traduo posterior ao original e assinala, no caso de obras importantes, que jamais encontram poca de sua criao seu tradutor de eleio, o estgio da continuao de sua vida (Fortleben). A ideia da vida e da continuao da vida de obras de arte deve ser entendida
53 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 201. 54 MALLARM, Crise de Vers, apud DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 202.
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em sentido inteiramente objetivo, no metafrico [in vllig unmetaphorischer Sachlichkeit]55.
O original aqui de grande importncia porque pertence a ele a exigncia da
sobrevivncia da obra. Nisso assente Derrida: Essa sobrevivncia garante mais vida,
mais que uma sobrevida. A obra no vive apenas mais tempo, ela vive mais e melhor,
em situao superior quela do seu autor56. E como que tal exigncia pela
sobrevivncia da obra pode ser realizada? Aqui que podemos situar o papel que cabe
ao tradutor. Todas as obras, ao exigir sua sobrevivncia, a exigem exatamente sob a
forma da traduo. Podemos compreender finalmente a frmula de Derrida segundo a
qual a traduo uma forma57. Ele afirma ainda:
Se a estrutura da obra a sobrevivncia, a dvida no se compromete com um suposto sujeito-autor do texto original o morto ou o mortal, o morto do texto mas com algo outro que representa a lei formal da imanncia do texto original. Em seguida, a dvida no se compromete a restituir uma cpia ou uma boa imagem, uma representao fiel do original: este aqui, o sobrevivente, est ele prprio em processo de transformao. O original se d modificando-se, este no , portanto, um objeto dado, ele vive e sobrevive em mutao. Pois nessa sobrevida, que no merece esse nome, se ela no for mutao e renovao do vivente, ento o original que se modifica. Mesmo para as palavras solidificadas h ainda uma ps-maturao58.
Essa estrutura original que exige a traduo a mesma que estabelece a
relao entre vida post-mortem e a sobrevida da obra. Essa estrutura no se altera se
a obra no encontra seu tradutor, e por essa razo que ela um a priori da obra
original. A dimenso sobrevivente da obra , dessa forma, a priori, embora ela s
possa ser realizada por um outro necessariamente fora dela o tradutor. Por essa
55 BENJAMIN, W. A tarefa do tradutor de Walter Benjamin quatro tradues para o portugus. Ed. UFMG: Belo Horizonte, 2008 Traduo de Susana Kampff Lages, p.66. 56 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 204. 57 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 206. 58 DERRIDA, J. Des tours de Babel in : Psych : Inventions de lautre, Tomos I e II. ditions Galile : Paris, 2003 - pp.191-225, p. 207.
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abertura essencial ao outro e, por consequncia, produo de diffrance no interior
do mesmo que esse pequeno comentrio a Benjamin e sua teoria da traduo pode
ser de grande relevncia na abordagem do conceito de escritura em Derrida. Em
Gramatoologia Derrida escreve:
... o fonocentrismo se confunde com a determinao historial do sentido do ser em geral como presena, com todas as subdeterminaes que dependem desta forma geral e que nela organizam seu sistema e seu encadeamento historial (presena da coisa ao olhar como eidos, presena como substncia/ essncia/ existncia (ousia), presena temporal como ponta (stigm) do agora ou do instante (nun), presena a si do cogito, conscincia, subjetividade, ...59
Essa proximidade absoluta da voz e do ser, da voz e do sentido do ser, da voz
e da idealidade do sentido significa que, imprudentemente, deixamos a tradio
logocntrica se perpetuar. Para afirmar, ainda uma vez como prova da conscincia de
ser para si mesmo (quando, por exemplo, ele ouve a si mesmo e sua prpria palavra)
e, portanto, tambm da presena, essa palavra se torna a expresso da significao do
ser. Nesse sentido, a escrita geralmente compreendida apenas como uma virada
(dtournement) ou como a lacuna da presena sem um intermedirio.
por causa desse privilgio que toda a tradio filosfica sempre conferiu
voz e ao discurso oral como meio de, ao fim, conceder todo o privilgio prpria
presena, que as estruturas lingusticas so sistematicamente concebidas e designadas
cobrir todas as diferenas que o uso espacial e temporal da linguagem possa vir a
produzir. O jogo da diffrance (e no por acaso que Derrida cria uma marca que
assinala a palavra escrita [a] mas que no pode ser percebido na fala oral) apagado
ou oculto pelos imperativos logocntricos e fonocntricos da economia da linguagem,
o que representa enfim a economia das palavras, dos conceitos e, portanto, do prprio
pensamento. talvez justamente nesse sentido que Derrida insiste sobre o conceito
de escritura, no apenas para se opor ao privilgio concedido pela tradio voz e 59 DERRIDA, J. De la Grammatologie. Les ditions de Minuit : Paris, 1967, p.23 Edio brasileira: DERRIDA, J. Gramatologia. Trad. Miriam Schneiderman e Renato Janine Ribeiro. Ed. Perspectiva: So Paulo, 1973, p. 15.
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presena do locutor no momento do discurso mas sobretudo pelo fato de que o ato de
escrita pode ser concebido atravs do verbo suplantar, suplementar60
Uma escritura que completa a outra, que acrescenta e paradoxalmente a
substitui, e isso cria um processo sem fim, que renovado pelos signos suplementares,
que diferem tanto dos demais signos quanto de si mesmos, e isso sucessivamente. A
escritura suplantada, suplementada acrescenta no instante no qual ela expe uma
semelhana insuficiente (pois que no h presena que seja plena e inteira), enquanto
ela substitui o que tomado aqui por insubstituvel, agora, o Hic et Nunc do discurso:
O que que permite a presena seno a prpria ausncia?, e a esta estrutura que
Derrida d o nome de Escritura.
Referncias
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60 DERRIDA, J. De la Grammatologie. Les ditions de Minuit : Paris, 1967, p.280
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Doutoranda em Filosofia (Bergische Universitt Wuppertal)
E-mail: [email protected]