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CENTRAL DO BRASIL, TERRA ESTRANGEIRA Alexandre Faria (Doutor em Letras pela PUC – Rio / Professor da UFJF) (Versão reformulada do texto originalmente publicado em Escrita: Revista dos Alunos do Programa de Mestrado e Doutorado em Letras da PUC-Rio, Rio de Janeiro, v.4, p.165-181, 1999) A ilha do Brasil, ou ilha de São Brandão, ou ainda Brasil de São Brandão, era uma das inúmeras ilhas que povoaram a imaginação e a cartografia européias da Idade Média, desde o alvorecer do século XI. Também chamada de "Hy Brazil", essa ilha mitológica, "ressonante de sinos sobre o velho mar", se "afastava no horizonte sempre que os marujos se aproximavam dela. Era, portanto, uma ilha "movediça", o que explica o fato de sua localização variar tanto de mapa para mapa. (...) O nome "Brazil" provem do celta bress, que deu origem ao verbo inglês to bless (abençoar). Hy Brazil, portanto, significa "Terra Abençoada". [Apud: BUENO, Eduardo, A viagem do descobrimento, p. 13] Bye bye Brasil (1979), filme de Carlos Diegues pode ser considerado um dos últimos suspiros do projeto fundamental do Cinema Novo – dar a ver o Brasil aos brasileiros - e já em seu discurso refere-se a uma terra "movediça", que se afasta dos que dela se aproximam, um Brasil que se descaracteriza em função da comunicação de massa, da indústria cultural e da urbanização acelerada. A proposta de Central do Brasil (1998), de Walter Salles, apresenta-se como uma retomada do ideal cinamanovista com alguma perspectiva para refixar marcas identitárias do país. Na apresentação ao roteiro do filme, o cineasta declara que houve o desejo explícito de homenagear os grandes criadores do

ALEXANDRE FARIA Central Do Brasil Terra Estrangeira

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CENTRAL DO BRASIL, TERRA ESTRANGEIRA

Alexandre Faria (Doutor em Letras pela PUC – Rio / Professor da UFJF)

(Versão reformulada do texto originalmente publicado em Escrita: Revista dos Alunos do

Programa de Mestrado e Doutorado em Letras da PUC-Rio, Rio de Janeiro, v.4, p.165-181, 1999)

A ilha do Brasil, ou ilha de São Brandão, ou ainda Brasil de São Brandão, era uma das inúmeras ilhas que povoaram a imaginação e a cartografia européias da Idade Média, desde o alvorecer do século XI. Também chamada de "Hy Brazil", essa ilha mitológica, "ressonante de sinos sobre o velho mar", se "afastava no horizonte sempre que os marujos se aproximavam dela. Era, portanto, uma ilha "movediça", o que explica o fato de sua localização variar tanto de mapa para mapa. (...) O nome "Brazil" provem do celta bress, que deu origem ao verbo inglês to bless (abençoar). Hy Brazil, portanto, significa "Terra Abençoada". [Apud: BUENO, Eduardo, A viagem do descobrimento, p. 13]

Bye bye Brasil (1979), filme de Carlos Diegues pode ser considerado um dos

últimos suspiros do projeto fundamental do Cinema Novo – dar a ver o Brasil aos

brasileiros - e já em seu discurso refere-se a uma terra "movediça", que se afasta dos que

dela se aproximam, um Brasil que se descaracteriza em função da comunicação de massa,

da indústria cultural e da urbanização acelerada. A proposta de Central do Brasil (1998),

de Walter Salles, apresenta-se como uma retomada do ideal cinamanovista com alguma

perspectiva para refixar marcas identitárias do país. Na apresentação ao roteiro do filme,

o cineasta declara que houve o desejo explícito de homenagear os grandes criadores do

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cinema novo, estes cineastas que colocaram pela primeira vez, de forma visceral, o rosto

do Brasil na tela [SALLES: 1998, p. 13].

E, sem dúvida, a despeito da trama ficcional, há, em Central do Brasil , fortes

marcas documentárias, conforme atestam várias reportagens sobre o filme:

No primeiro dia de filmagem, a mesinha da Dora foi posta na estação. No roteiro havia uma série de cartas já escritas, e os atores, na maioria estreantes, tinham sido preparados para ditá-las. O conteúdo da correspondência falava dos laços com regiões ou famili ares distantes e tentavam mostrar possíveis razões da migração interna brasileira. Só que, ao ver a mesinha, os próprios usuários da Central começaram a se sentar, a ditar as cartas e a pedir que fossem enviadas. Pouco a pouco fomos substituindo os depoimentos do roteiro pelos depoimentos espontâneos, que tinham uma carga afetiva, uma transparência de sentimentos sem dúvida responsáveis pela voltagem emocional do filme. [SALLES: 1998b]

Percebe-se, diante dessa persistência do aspecto documental, que o filme

também não idealiza a nação, mas parte da constatação, quase antropológica, do outro

que está neste Brasil eternamente redescoberto. No caso do filme, um Brasil místico que

tange o exótico, provinciano e redentor das mazelas produzidas na metrópole. A questão

que se impõe é saber se o Brasil que Walter Salles, numa pretensa homenagem ao

Cinema Novo registra em 1998 é o mesmo do qual Carlos Diegues se despedia em 1979.

Aceitar como verdadeira esta idéia lança por terra o prenúncio de modernização

e perda de raízes veementemente denunciado em Bye-bye Brasil e torna inócuo o apelo à

memória futura registrado na dedicatória do filme de 79: ao povo brasileiro do século

XXI, pois como lembrar de algo que não chegou a ser esquecido?

Negá-la, por outro lado, seria "tapar o sol com a peneira", não querer ver as

contradições nacionais, que, atualmente, a cena urbana amalgama e escamoteia. É

acreditar, ingenuamente, que o país se modernizou, mas não deu certo, que a ilha "Hy

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Brazil", como o jovem Josué, simplesmente perdeu os pais que a abençoavam e hoje

"toma a bênção a cachorro" nas sarjetas da estação central de um paraíso perdido.

Abordar a questão fica sendo, de antemão, uma necessidade de posicionamento

diante do fato. Não exatamente sobre o que falar, mas de onde falar. Uma perspectiva

evolucionista, racional e cartesiana não nos permitiria ver a "modernização" constatada

em Bye-bye Brasil de outra forma que não fosse uma feroz crítica ao anacronismo da

progresso promovido de forma autoritária pela dupla ditatura militar/televisiva e, neste

caso, adicionaria de bom grado, bem à maneira hollywoodiana, um subtítulo ao segundo

filme: Central do Brasil, o resgate, mecanismo ideológico que, através da dicotomia

centro/periferia, representaria um empenho para se recolocar as idéias (no lugar). A

segunda perspectiva parte exatamente da abolição dos conceitos rígidos de fonte e

influência, centro e periferia, numa linha desconstrutivista que vem sendo traçada desde

Foucault e Derrida, através do pensamento pós-estruturalista. Nesta linha a

fundamentação econômica perde espaço para a de base cultural, e imagens como a da

Caravana Rolidey seguindo em direção a Rondônia se redimensionam, passando a

representar a cena nacional de um entre-lugar que conjuga num mesmo tempo-espaço

discursivo os aspectos modernos e arcaicos do mesmo Brasil, possibili tando

temporalidades simultâneas.

Ainda, a abordagem dos dois filmes requer um posicionamento não só de quem

fala sobre, mas também uma compreensão do lugar de onde falam as imagens. Bye bye

Brasil situa-se no momento em que perspectivas utópicas e projetos coletivos já não

podiam ser pensados e assumidos como proposta transformadora, no entanto não exclui a

esperança, projetando para o próximo século as derrotas desta era pós-utópica que se

iniciava. Walter Salles, se tomarmos seus longas anteriores a Central, mantinha um

íntimo diálogo com tais questões - A grande arte, prenhe de referências ao gênero policial

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Figura 1 - Foto do filme Terra Estrangeira, por Walter Carvalho: a paisagem urbana, vista da janela do quar to de Paco, em que se destaca o out-door com anúncio de calcinhas Hope 90.

e à cultura de massa e Terra estrangeira, contribuindo para fixar não-lugares, manchar

fronteiras, estandardizando a esperança dos anos 90 na superfície de um out-door de

calcinhas Hope, que aparece através da janela em que Paco sonha tornar-se ator:

Por outro lado, o tema do resgate de raízes já podia ser vislumbrado em seu

segundo longa: o retorno a San Sebastian desejado por Manuela (e assumido por Paco no

momento da morte não apenas da mãe, mas de todos os seus sonhos, numa referência

política ao Plano Collor) representa o desejo de restauração de um passado, de uma

origem que só passa a fazer sentido na perspectiva linear causal.

Meter o pé na estrada like a rolli ng stone1, o sonho moderno encarnado pela

beat generation de se livrar do passado e colonizar o futuro [PAZ: 1984], não está pleno

nos road movies de Walter Salles. A própria canção "Vapor barato", ligada originalmente

ao sonho libertário da contracultura, é ressemantizada: assume o mesmo sentido de

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"Preciso me encontrar" de Cartola e Elton Medeiros, ao final de Central do Brasil . A

viagem não tem mais o risco de não ter volta, mas é, por definição, um retorno: à terra

natal da mãe, à terra dos descobridores da própria pátria, autores de um equívoco: Cruzar

este mar há 500 anos atrás... É que eles achavam que o paraíso estava ali , ó. Coitados

dos portugueses... acabaram descobrindo o Brasil , diz Alex para Paco no cabo Espichel,

ponto extremo ocidental da Europa [THOMAS: 1996, p. 67]. Descobrir o outro para

afirmar a si mesmo, reatar algum elo perdido na linha temporal, eis o sentido profundo da

viagem nos dois filmes de Salles.

O motivo das viagens é comumente associado à fixação do discurso que

pretenda descobrir ou fundar o ser nacional brasileiro. Na verdade afirmou-se como uma

das possíveis maneiras de se resolver a tensão estabelecida entre o universal e o

particular, o cosmopolita e o regional, que constitui um dos maiores problemas do

nacionalismo na cultura brasileira Há dois tipos da viagem: para o exterior, que tem como

modelo Joaquim Nabuco, de espírito eurocêntrico; e para o interior, cujo modelo é

Euclides, na minuciosa investigação dos aspectos físicos e humanos do sertão baiano, que

o leva à reformulação das teses positivistas importadas [cf. GOMES & CARDOSO:

2002] Este segundo tipo de viagem, diferente do de Terra estrangeira, encontram-se

representados em Bye-bye Brasil e Central do Brasil .

As viagens dessa espécie associam-se, cada uma à sua maneira, a diversas

redescobertas do Brasil, ao longo da trajetória da cultura nacional. A ida para o interior

culminará no ambíguo confronto com a alteridade, na medida em que se depara o

estranho famili ar, unheimlich, aquela categoria do assustador que remete ao que é

1 Verso da canção "Velha roupa colorida", de Belchior.

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conhecido, velho, e há muito famili ar [FREUD: 1980, p. 277]. Trata-se no caso

específico, do confronto entre cultura européia hegemônica na formação da

intelectualidade brasileira e os aspectos arcaicos do interior.

Porém, se este confronto durante muito tempo deu-se entre o novo e o arcaico,

com a intensificação das redes de comunicação de massa ao longo das últimas três

décadas do século, o novo passa a chegar via satélite. É isto que denuncia o filme de Cacá

Diagues: os índios sintonizando seus rádios e a população inteira de uma cidade

concentrada na praça diante de um capítulo de Dancin’days. Uma das partes do projeto

de modernização do Brasil durante a ditadura militar foi exatamente a interligação do

país; porém mais do que espacial (a construção da Tansamasônica ou o Projeto Rondon),

tal interligação foi ideológica, atuou fortemente sobre o imaginário através teledifusão,

contituindo a dimensão geográfica psíquica [SANTOS: 1997] (cf. discussão a esse

respeito na Introdução), cujo mapeamento necessariamente passa pela instâncias

culturais.

Três mapas estatísticos, com a porcentagem de domicílios com televisão por

municípios do Brasil em 1970, 1980 e 1991, são imagens que substituem quaisquer

palavras e explicam o surgimento de um novo modo de constituição de um imaginário

político-social:

A televisão, e a telenovela em particular, é emblemática no surgimento de um novo espaço público, na qual o controle da formação e dos repertórios disponíveis mudou de mãos, deixou de ser monopólio dos intelectuais, políticos e governantes titulares dos postos de comando nas diversas instituições estatais. [HAMBURGER: 1998, p. 442]

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Figura 2 – Percentagem de município com televisão por municípios, 1970. Fonte: Censo Demográfico de 1970 (IBGE) e Malha Municipal de 1970 (Papulation Researc Center – Austin). Apud: HAMBURGER, Esther. "Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas no cotidiano", In: Sevcenko, Nicolau (org). História da vida privada no Brasil . Vol. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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Figura 3 - Percentagem de município com televisão por municípios, 1980. Fonte: Censo Demográfico de 1980 (IBGE) e Malha Municipal de 1980 (Papulation Researc Center – Austin). Apud: HAMBURGER, Esther. "Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas no cotidiano", In: Sevcenko, Nicolau (org). História da vida privada no Brasil . Vol. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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Figura 4 - Percentagem de município com televisão por municípios, 1991. Fonte: Censo Demográfico de 1991 (IBGE) e Malha Municipal de 1991 (IBGE). Apud: HAMBURGER, Esther. "Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas no cotidiano", In: Sevcenko, Nicolau (org). História da vida privada no Brasil . Vol. 4. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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Creio que esta constatação visual seja suficiente para comprovar que o Brasil

de Walter Salles não é o mesmo do de Cacá Diegues, mas a viagem empreendida em

Central do Brasil deixa nítido que a interligação informacional não causou, como se

esperava, a superação dos espaços arcaicos.

Tomando toda e qualquer nação como um objeto derivado de discursos quer

geográfico, social ou literário que alicerçam o imaginário [ANDERSON: 1989] capaz de

unificar e estabelecer semelhanças sobre diferenças, esse objeto se constitui pela

linguagem. Nomear o outro é torná-lo o mesmo. O afã nomeador, classificatório da

civili zação ocidental valeu-lhe a própria condição de Civili zação, a partir do momento em

que os bárbaros puderam ser nomeados: fosse uma tarde de sol, os índios despiriam os

portugueses, lembra-nos Oswald.

O poder nomeador da câmara escura supera qualquer descrição antropológica

tradicional2. No entanto, conforme síntese de Glauber Rocha, cinema não é só uma

câmara na mão, mas também uma idéia na cabeça. Essa aspecto ideológico, que era

claramente afirmado e definiu os mecanismos estéticos do Cinema Novo, é que vão

distanciar os “brasis” narrados pelas câmaras antropológicas de Cacá Diegues e Walter

Salles.

É neste sentido que o cinema se incorpora à indústria cultural como um dos

principais elementos formadores de imaginários nacionais; interagindo com os

mecanismos de memória e esquecimento [ANDERSON: 1998] e contribuindo para a

fixação das semelhanças, que acabaram atingindo patamares globais, pondo em risco os

2 Ver discussão a este respeito no capítulo 2 A “A cidade não mora mais em mim” .

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limites de cada nação. Até o alargamento das fronteiras econômicas, em épocas de

globalização, esbarra com os inconvenientes da indústria cultural.

No mundo globalizado, as fronteiras nacionais vão, aos poucos, se redefinindo.

As nações tendem com mais facili dade à globalização econômica, mas resistem quando o

assunto é produção cultural, como demonstra Néstor Canclini, comentando uma reunião

do GATT, em dezembro de 1993, em Bruxelas, na qual 117 países aprovaram a maior

liberalização econômica da história. Este acordo esteve a ponto de fracassar por impasses

em três áreas: agrícola, têxtil e audiovisual; os desacordos nas duas primeiras se

resolveram através de concessões mútuas entre os Estados Unidos e os governos

europeus, mas com relação à terceira,

os Estados Unidos exigiram livre circulação para os produtos audiovisuais, enquanto os europeus buscaram proteger seus meios de comunicação, sobretudo o cinema. As divergências derivam de duas maneiras de conceber a cultura. Para os EUA, os entretenimentos devem ser tratados como um negócio: não só porque o são de fato, mas porque constituem para este país a segunda fonte de rendimentos entre todas as suas exportações, depois da indústria aeroespacial (...) As associações de trabalhadores do cinema europeu defendem seu emprego, mas também argumentam que os filmes não são unicamente um bem comercial. Constituem um investimento poderoso de registro e auto-afirmação da língua e da cultura próprias, de sua difusão para além das fronteiras. Fazem notar a contradição que existe no fato de os EUA reclamarem livre circulação de suas mensagens nos países estrangeiros, enquanto em seu próprio país impõem restrições aos produtos culturais importados. [CANCLINI: 1997, p.155].

No Brasil, também é possível observar este descompasso entre o discurso

político-econômico e o cultural. O país tornou-se palco de produções e atitudes que

refletem de forma mais direta as diferenças locais, mas não deixam de ser, também,

espaço de circulação de discursos de base unificadora e de auto-afirmação cultural,

originários da tradição literária, mas difundidos especialmente pelo cinema. Além disso,

como mais um item complicador, não deixa de ser também um dos subúrbios de

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Hollywood (como se refere Canclini aos países da América Latina e da Europa, no

mesmo artigo), especialmente pela TV, e pelas rádios. Pode-se constatar que essa espécie

tecnoesfera global, ou que Renato Ortiz nomeia o internacional popular [ORTIZ: 1994] é

fato consumado. No Tabariz, o som é que nem os Bee Gees, epigrafa a trilha de Bye bye,

Brasil .

Garantir um espaço para as produções locais acabou sendo uma tarefa política.

Para além das ações políticas mais pragmáticas, restariam duas alternativas como

resposta enquanto produção cultural. Uma vez que o exterior já está aparentemente

exteriorizado (só que a partir de um centro muito bem definido e de uma língua que o

nomeia), ao discurso da diferença restaria (além de exigir as politicamente corretas regras

de tolerância):

a) alargar o alcance de uma produção cultural para além das fronteiras

nacionais através de um padrão hollywoodiano, o que não deixa de ser uma atitude

política. Eis Central do Brasil , concorrente ao Oscar de melhor filme, estrangeiro, para

Ufanismo dos brasileiros que puderam assistir ao filme na tela quente da TV Globo,

porém, a imagem produzida na tecnoesfera global pode ser bem deprimente: na Home

Page da Sony Pictures, distribuidora do filme nos EUA, a empresa o apresenta como uma

produção surgida inesperadamente de um remoto canto do mundo. [apud Jornal do

Brasil , 22/10/1998]

b) tentar, numa espécie de subversão inerente à própria obra de arte, minar as

bases sempre superficiais dessa memória coletiva internacional cunhada pela cultura de

massa e resgatar valores que reatem o homem à sua condição demasiadamente humana,

num processo de desreificação pela assunção plena da precariedade do presente, uma vez

que os projetos para o futuro ou afundaram ou encalharam e apodreceram na praia:

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Paco: Eu nunca pensei que você fosse assim. Alex sorr i mais ainda, levanta os ombros. Alex: É, eu era assim... quer dizer, eu sou assim. Alex abre um vasto sorr iso e começa a cantarolar um hino dos anos 70: "Vapor Barato" (TERRA ESTRANGEIRA, p. 102-3.)

Esta segunda alternativa também foi a da Caravana Rolidey, em dimensão

nacional. É sintomático que, no espaço globalizado europeu, Lisboa seja a capital do

resgate das formas mais arcaizantes, como resposta ao esgotamento de pressupostos

modernos; Wim Wenders, em O céu de Lisboa, corrobora esta tese. Fixa-se não um lugar,

mas um percurso; e assim a tensão entre o global e o local resolve-se num entre-lugar

[SANTIAGO: 1978]. É justamente este espaço híbrido e intermediário, que parece não

ficar evidente na estrutura do filme, que acaba apresentando um visão binária do espaço

no Brasil.

A estrutura narrativa de Central do Brasil possui dois registros claramente

distintos. O da primeira parte, ambientado na estação ferroviária é, necessariamente

urbano, hiper-realista, nas tomadas, nos diálogos, na situação, até que um limite é

imposto: "Tudo tem limite", diz Irene para Dora, alertando para a possibili dade de Josué

ter sido vendido para que se lhe fossem retirados os órgãos. Este limite é uma fronteira

para a segunda parte: da aventura - o resgate de Josué, que se desdobra no auto-resgate

moral de Dora, e no da família do menino, metonímia de um Brasil possível, distante

daquele da Central, onde Josué perdeu a mãe e para onde, por risco de vida, eles não

podem retornar. Este segundo registro toma o plano realista apenas como suporte cênico

e passa, através das expectativas que cria, a atuar diretamente em regime simbólico no

plano do discurso da nação e meta-cinematográfico enquanto tentativa de um resgate que

é intencionalmente declarado pelo diretor:

Dora representa a cultura da indiferença que vem de mãos dadas com a impunidade. Sua perda de visão moral, no entanto, tem um preço que é a solidão, a incapacidade de se relacionar com o outro. O cinismo de suas condutas faz com que viva uma vida

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mesquinha, apequenada. A descoberta do menino e a culpabili dade que pouco a pouco começa a experimentar quebram sua couraça emocional e a levam a olhar o mundo de maneira diferente. "Central", como mencionei, é um filme sobre o olhar, o que, aliás, fica evidente em seu final. É um filme sobre a necessidade de vermos o outro e descobrirmos o afeto capaz de mudar nossa relação com a vida. (...). Esses valores pareciam totalmente ausentes dos personagens do cinema independente, sobretudo americano, dos anos 90. Veja "Pulp Fiction", do Tarantino. Há um momento no filme em que a arma do personagem feito pelo Travolta dispara acidentalmente, matando um garoto inocente. A reação dos outros personagens em cena é, primeiro, de rirem com o que acabara de acontecer e, em seguida, de se preocuparem com a questão cosmética da limpeza do sangue que se espalhara pelo automóvel. "Central" ia na direção contrária dessa série de "filhotes tarantinescos" dos anos 90, e era realmente possível que a receptividade ao filme fosse nula. Entretanto, ao chegar ao Sundance Festival e depois em Berlim, notamos que de vários lugares do mundo chegavam filmes com a mesma preocupação, ou seja, a questão da fraternidade, da descoberta do afeto, da redenção trazida pela presença significativa do outro. Isto talvez aponte para o ressurgimento de um cinema neo-humanista, como reação ao cinema cínico de Tarantino, de Roberto Rodriguez e de todos os que, nos anos 90, fizeram uma utili zação acrítica da violência. [SALLES: 1998 b ]

Resta saber como articular este neo-humanismo, enquanto redenção trazida

pela presença significativa do outro, com um mecanismo que não se limite a transformar

o outro no mesmo, ainda que através da estetização (que nada mais é do que outra forma

de nomeação). Antes de tudo, um exercício de tolerância para com o outro, que no plano

linear do drama filmado realiza-se plenamente e pode ser percebido no engrandecimento

de Dora, mas não em Josué, que passa a reintegrar a família, abençoada pela memória

(foto) de pai e mãe, com um novo nome - Geraldo [SALLES:1998, p. 91], como se a

estrada lhe permitisse trocar de vida, como ocorreu ao caminhoneiro César [IDEM,

IBIDEM, p. (56).

Este corte, esta troca de nome - e de vida - reproduz uma descontinuidade que está no âmago do limite estabelecido entre as duas partes do filme. Tudo tem um limite, exceto Dora e o Brasil que o filme descobre, que se apresenta violento e analfabeto, mas também redentor, mítico, religioso. Um Brasil do

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interior que ecoa de certa forma a ideologia do regionalismo romântico.

A identificação de um país possível, redentor, em Central do Brasil se dá pela

pureza do interior que as metrópoles já não podem proporcionar, reciclando, assim, no

dizer de Vera Follain,

os mitos que ao longo da nossa história serviram à construção de uma identidade nacional, para propor uma integridade constituída no âmbito individual, cujo núcleo estaria em cada cidadão brasileiro. Lança mão dos simbolismos tradicionais, imprimindo-lhes um sentido adequado aos impasses contemporâneos e talvez, por isso, tenha emocionado tanto o público. Retoma-se a imagem do Brasil menino e, ao contrário da leitura antropofágica ou da leitura do Cinema Novo, trata-se de um menino que não devora nem mata o pai, que sofre as conseqüências dos cortes que são feitos à sua revelia. [FIGUEIREDO: 1999, p. 82].

Não se pode negar a existência de uma ética na proposta de Walter Salles assim

entendida como a elaboração cinematográfica a partir de profundos valores afetivos

capazes de resgatar um sentimento de nacionalidade que responda à falência dos valores

nacionais diante de um processo de globalização neoliberal, iníquo e excludente. Obtém-

se, dessa forma, ainda seguindo a conclusão do artigo de Vera Follain, a lição de

autenticidade decorrente do fato de saber sobreviver ao desamparo, improvisando

soluções individuais e grupais sem esperar pelo apoio paterno [IDEM: IBIDEM].

Por outro lado, o resgate desta ética implicou a omissão do cenário político,

conforme leitura de Elias Thomé Saliba:

Central do Brasil fala dos excluídos e dos enraizados, mas não faz nenhuma menção aos gestos do poder que os excluíram. Daí uma persistente ambigüidade que está no núcleo do filme: este arcaísmo estetizado pelo movimento, que omite as condições reais, correndo o risco de passar ao largo das singularidades temporais, diluindo-as nas generalidades dramáticas, escamoteando os processos sociais, achatando a história. [SALIBA: 2001, p. 254]

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Esta leitura, no entanto, se demonstra tão comprometida com o processo

histórico, que não enxerga a dimensão mítica do filme, não se trata de mero resgate de

uma ética de fundo emotivo, como quer o autor do artigo, mas de fundo mítico.

No entanto, a questão que permanece e faz do interior do Brasil, em que se

resgata a ética da sobrevivência, uma outra terra estrangeira é a seguinte: se o caminho da

redenção e do encontro implica trocar o centro urbano, supostamente inviável, pelo

arcaísmo místico do interior, ou seja, voltar as costas para a cidade, se este é o caminho,

reforça-se a crença de que não se verá país nenhum. Por conta do misticismo, o

deslocamento espacial abole a temporalidade histórica, assim a verdadeira central do

Brasil fica sendo a estação de trem que foi deixada para trás, lugar híbrido, onde

transitam pessoas de todas as origens. E pode ser que, um dia, os trens cheguem a Bom

Jesus dos Perdões, conforme indicam os princípios de modernidade que se notam em sua

descrição pela tomada panorâmica:

As duzentas casas pré-fabicadas iguais, parecendo brinquedo, dão a impressão de um cenário construído no nada. Os dois caminham bem devagar como se não estivessem com pressa de chegar a lugar nenhum. [SALLES: 1998, p.87 - grifo meu]

O interior do Brasil, como revela esta passagem, é construído a partir de um

modelo moderno, racional, padronizado, asseado, funcionalista, construído no meio do

nada, como a Brasília onde o sanfoneiro Ciço chega e é amparado pela Casa do Ceará:

Pode ser, ainda, que os traficantes (de ógãos?) cheguem à cidade dos netos de

Geraldo (ex-Josué). E o que farão as crianças, buscarão o pai em outro território mítico,

ou enfrentarão a situação tentando responder a esta pergunta (que talvez seja a mais

produtiva do filme de Walter Sales, mas é deixada subliminarmente): não será possível

encontrar uma ética urbana?

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A cidade tem um limite, Irene tem um limite, César tem um limite, Josué tem

um limite. A tolerância parece também não ser uma característica desse neo-humanismo

que se recusa em sua demasiada humanidade e acaba por renegar os episódios iniciais do

filme (e cotidianos da Central do Brasil) e trocá-los por uma pátria possível, idealizada e

móvel. Inventando um país à flor da pele, sem disposição para voltar à Central do Brasil

(deixe-me ir, preciso andar, canta Cartola) ou para olhar-se de fora e por dentro, Walter

Salles desvia-se da Terra Móvel, figura bem produtiva, para a Ilha Bendita, em que se

plantando tudo dá, das naus que aqui aportaram, há quase 500 anos, conforme aponta

Ettore Finazzi-Agró:

Existem lugares que se encontram na confluência de dois espaços; existem tempos que se manifestam apenas no cruzamento de cronologias diferentes. Para essas dimensões, atravessando as outras e sendo por elas atravessadas, há só um nome possível e este nome é figuras (...) Uma delas poderá talvez se tornar útil na decifração do sentido histórico-cultural ou, mais ainda, na avaliação do impacto ideológico e mítico-simbólico das descobertas geográficas (a das Américas em particular): esse lugar é a Ilha. [FINAZZI-AGRÓ: 1993, p. 2]

O tempo-espaço das confluências é a viagem. Tanto Terra estrangeira quanto

Central do Brasil encerram-se com os personagens à-deriva; no caso do segundo filme,

Dora pode ser uma boa metáfora para o Brasil. Mas ao se deslocar este tropo para Josué,

lê-se um filme neo-romântico que volta a exteriorizar o interior e ignora o entre-lugar,

aquele velho navio encalhado na praia que, no entanto, ainda se move.

BIBLIOGRAFIA

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