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Recife
2013
ALEXANDRE HENRIQUE SALEMA FERREIRA
TRIBUTAO E REALIDADE SOCIOECONMICA: UMA PERSPECTIVA
SISTMICA ACERCA DA QUESTO DOS CONTEDOS
CONSTITUCIONAIS ANTAGNICOS
Tese de doutorado
Recife
2013
ALEXANDRE HENRIQUE SALEMA FERREIRA
TRIBUTAO E REALIDADE SOCIOECONMICA: UMA PERSPECTIVA
SISTMICA ACERCA DA QUESTO DOS CONTEDOS
CONSTITUCIONAIS ANTAGNICOS
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em
Direito do Centro de Cincias Jurdicas/Faculdade de
Direito do Recife da Universidade Federal de
Pernambuco como requisito para obteno do ttulo
de doutor em Direito.
rea de concentrao: Teoria e Dogmtica do Direito
Linha de Pesquisa: Estado, Constitucionalizao e
Direitos Humanos
Orientador: Prof. Dr Gustavo Ferreira Santos
Catalogao na fonte Bibliotecria Eliane Ferreira Ribas CRB/4-832
F383t Ferreira, Alexandre Henrique Salema Tributao e realidade socioeconmica: uma perspectiva sistmica acerca da
questo dos contedos constitucionais antagnicos / Alexandre Henrique Salema Ferreira. Recife: O Autor, 2013.
253 f. Orientador: Gustavo Ferreira Santos. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Programa de
Ps-Graduao em Direito, 2013. Inclui bibliografia. 1. Direitos humanos. 2. Direito constitucional. 3. Direito social - Brasil. 4. Brasil.
[Constituio (1988)]. 5. Luhmann, Niklas, 1927-1998. 6. Sociologia jurdica. 7. Processo tributrio - Brasil. 8. Pobres - Brasil. 9. Renda - Brasil. 10. Imposto - Brasil. I. Santos, Gustavo Ferreira (Orientador). II. Ttulo.
344.03CDD (22. ed.) UFPE (BSCCJ2013-029)
http://catalogos.bn.br/scripts/odwp032k3.dll?t=bs&pr=catalogo_digitalizado_pr&db=catalogo_digitalizado&use=sh&disp=list&sort=off&ss=NEW&arg=direito|constitucionalhttp://catalogos.bn.br/scripts/odwp032k3.dll?t=bs&pr=catalogo_digitalizado_pr&db=catalogo_digitalizado&use=sh&disp=list&sort=off&ss=NEW&arg=pobres|-|brasil
Dedico a EDUARDO, meu neto.
AGRADECIMENTOS
A ANA MARIA DA PAIXO DUARTE, pelo incentivo e pacincia;
Ao corpo docente do Programa de Ps-graduao em Direito da Universidade Federal
de Pernambuco, pelos ensinamentos atualizados e abnegados que nos foram ministrados;
s amigas CARMINHA E GILKA, pela pacincia no trato comigo e incentivo na
concluso do curso;
Universidade Estadual da Paraba e Secretaria de Receita do Estado da Paraba,
por possibilitarem minha qualificao acadmica.
FERREIRA, Alexandre Henrique Salema. Tributao e realidade socioeconmica: uma
perspectiva sistmica acerca da questo dos contedos constitucionais antagnicos. 2013.
254f. Tese (Doutorado em Direito) Programa de Ps-Graduao em Direito, Centro de
Cincias Jurdicas / FDR, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013.
Palavras-chave: constitucionalismo, tributao, realidade socioeconmica.
RESUMO
O processo de constitucionalizao dos direitos fundamentais apresenta-se, a partir da
modernidade, como uma importante resposta elevao da complexidade social. Esse
processo, contudo, no se obrigou a produzir um resultado socioeconmico especfico. As
constituies dos Estados social e de bem-estar portam contedos antagnicos, que resultam
em um descompasso entre as projees constitucionais dos direitos fundamentais e a realidade
socioeconmica dos indivduos. Esse descompasso potencialmente ampliado quando a
sociedade se defronta com os encargos financeiros decorrentes da efetivao dos direitos
fundamentais. A presente tese tem o objetivo geral de descrever as relaes que o modelo de
financiamento estatal albergado na Constituio Federal de 1988 mantm com o
desenvolvimento socioeconmico. A fim de descrever essa relao propomos um modelo
emprico de investigao qualitativa com base no mtodo descritivo-funcionalista de
Luhmann. As constituies so descritas como um acoplamento estrutural entre os
subsistemas da poltica e do direito, sugerindo que a constitucionalizao dos direitos
fundamentais simplesmente representa operaes controladas por esses subsistemas. No
perodo de 1990 a 2009, a carga tributria teve um incremento real acumulado acima do PIB.
Os indicadores sociais relacionados rea temtica renda demonstram que ainda persiste o
problema da concentrao de renda e da pobreza. A estrutura de apropriao da renda no pas
manteve-se praticamente inalterada. No existe qualquer evidncia de que a elevao da carga
tributria tenha sido destinada a socorrer o passivo social brasileiro.
FERREIRA, Alexandre Henrique Salema. Taxation and economic reality: a systemic
perspective on the issue of constitutional antagonistic content. 2013. 254f. Thesis (Doctor of
Law) - Postgraduate Program in Law, Center for Legal Sciences / FDR, Federal University of
Pernambuco, Recife, 2013.
Keywords: constitutionalization, taxation, socioeconomic reality.
ABSTRACT
The process of constitutionalization of fundamental rights emerges in modernity as an
important response to the increasing of social complexity. However, this process is not
obligated to produce a specific socioeconomic result. The constitutions of social and welfare
States may hold antagonic contents that result in a mismatch between constitutional
projections of fundamental rights and individuals socioeconomic reality. This mismatch
potentially increases when society faces financial charges from the enforcement of
fundamental rights. The main objective of the present thesis is to describe the relationship
between the financing model contained in the Constitution and the socioeconomic
development. Aiming to describe this relationship we propose an empiric model of qualitative
investigation based on Luhmanns functionalist-descriptive method. The theoretical-
systematic research enabled to describe the constitutions as a structural coupling between
political and legal subsystems, suggesting that the constitutionalization of fundamental rights
just represents the operations controlled by these subsystems. The tax burden cumulatively
rose over GDP from 1990 to 2009. Social indicators related to the income thematic area have
demonstrated that problems of income concentration and poverty prevail. The structure of
revenue appropriation has been almost the same in the country. There has been no evidence
that the increase in tax burden has been designed to aid Brazilian social liability.
FERREIRA, Alexandre Henrique Salema. Tassazione e realt socioeconomica: una
prospettiva sistemica sulla questione dei contenuti costituzionali antagoniste. 2013. 254F. Tesi
(Dottore in Legge) - Programma di laurea in Giurisprudenza, Centro per le Scienze giuridiche
/ FDR, Universit Federale di Pernambuco, Recife, 2013.
Parole-chiave: costituzionalismo, tassazione, realt socioeconomica.
RIASSUNTO
Il processo di costituzionalizzazione dei diritti fondamentali viene presentato, a partire dalla
modernit, come una risposta importante alla crescita della complessit sociale. Questo
processo, tuttavia, non destinato a produrre un determinato esito socioeconomico. Le
costituzioni degli stati sociali e del benessere possiedono contenuti antagonista, causando una
mancata corrispondenza tra le proiezioni costituzionali dei diritti fondamentali della persona e
la realt economica. Questa discrepanza potenzialmente amplificata quando la societ si
trova ad affrontare l'onere finanziario derivante dall'effettivazione dei diritti fondamentali.
Questa tesi ha come obiettivo generale quello di descrivere le relazioni che il modello di
finanziamento alloggiata nella Costituzione federale del 1988 mantengono con lo sviluppo
socio-economico. Per descrivere questo rapporto, proponiamo una ricerca empirica di base
qualitativa con metodo descrittivo - funzionalista di Luhmann. Le costituzioni sono descritte
come un accoppiamento strutturale tra i sottosistemi di politica e diritto, il che suggerisce che
la costituzionalizzazione dei diritti fondamentali rappresenta operazioni controllate da questi
sottosistemi. Nel periodo dal 1990 al 2009, la pressione fiscale ha avuto un incremento reale
cumulativo al di sopra del PIB. Gli indicatori sociali legati all'area tematica reddito
dimostrano che c' ancora il problema della concentrazione del reddito e della povert. La
struttura di propriet del reddito nazionale rimasto pressoch invariato. Non ci sono prove
che l'aumento delle tasse abbia contribuito al passivo sociale brasiliano.
LISTA DE GRFICOS
Grfico 1 Variao real acumulada da carga tributria, do PIB e dos Salrios e
Remuneraes ......................................................................................................................... 188
Grfico 2 Variao real acumulada dos tributos diretos, incidentes sobre as pessoas fsica e
jurdica, e dos tributos indiretos ............................................................................................. 190
Grfico 3 Composio da carga tributria brasileira ........................................................... 190
Grfico 4 ndices relacionais da carga tributria ................................................................. 191
Grfico 5 Renda mdia ........................................................................................................ 204
Grfico 6 Apropriao da renda .......................................................................................... 205
Grfico 7 Coeficiente de Gini .............................................................................................. 207
Grfico 8 Linhas de pobreza e de extrema pobreza............................................................. 208
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Incidncia jurdica e econmica dos tributos ...................................................... 194
Quadro 2 ndices da carga tributria.................................................................................... 247
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Valores nominais da CTB, do PIB e dos Salrios e Rendimentos ....................... 245
Tabela 2 Classificao econmica dos tributos ................................................................... 246
Tabela 3 Valores nominais da carga tributria brasileira .................................................... 246
Tabela 4 Valores dos ndices da carga tributria ................................................................. 248
SUMRIO
1 INTRODUO .................................................................................................................. 14
2 A TEORIA DOS SISTEMAS E O ESFORO TERICO DESCRITIVO DA SOCIEDADE CONTEMPORNEA .................................................................................... 29
2.1 O RECONHECIMENTO DA ORDEM SOCIAL COMO UM DADO REAL E A
QUESTO DE SUA EXISTNCIA AUTNOMA ............................................................... 30
2.1.1 Elemento constitutivo e identidade da ordem social ............................................... 31
2.1.1.1 As relaes de continncia e pertencimento entre ordem social e indivduo ............. 32
2.1.1.2 As relaes que ressaltam a diferenciao entre ordem social e indivduo................ 33
2.1.1.2.1 O problema da ausncia de critrios de delimitao da identidade da ordem
social......................... ................................................................................................................ 33
2.1.1.2.2 A questo da preservao da identidade da ordem social ...................................... 34
2.1.2 A inevitvel (mas, pertinente) questo das estruturas sistmicas .......................... 35
2.1.2.1 O estruturalismo e a questo da subjetividade individual .......................................... 36
2.2 A SUPERAO DO ORGANICISMO E DO ESTRUTURALISMO CLSSICO ..... 37
2.2.1 A teoria dos sistemas abertos ..................................................................................... 38
2.2.1.1 Operao que d identidade ao sistema social (a ao individual) ............................ 39
2.2.1.1.1 O significado social da ao individual e as estruturas sociais .............................. 40
2.2.1.2 As dificuldades enfrentadas pela teoria dos sistemas abertos .................................... 41
2.2.2 A teoria dos sistemas fechados ................................................................................... 43
2.2.2.1 A identidade sistmica a partir do encerramento operativo ....................................... 43
2.2.2.1.1 A capacidade de o sistema auto-observar-se ........................................................... 45
2.2.2.2 Os conceitos tericos da autorreferncia e da autopoiesis ......................................... 45
2.2.2.3 O paradoxo da unidade sistmica ............................................................................... 47
2.2.2.3.1 O acoplamento estrutural ........................................................................................ 48
2.2.2.3.2 A ressonncia no sistema das perturbaes do meio .............................................. 50
3 A TEORIA GERAL DA SOCIEDADE DE LUHMANN .............................................. 52
3.1 A OPERAO QUE D IDENTIDADE AO SISTEMA SOCIAL (A
COMUNICAO) ................................................................................................................... 52
3.1.1 A diferenciao operativa entre sociedade e indivduo ........................................... 54
3.1.2 O indivduo como fonte de instabilidade do sistema social ..................................... 55
3.1.2.1 A questo da insensibilidade sistmica ...................................................................... 56
3.1.2.2 A possibilidade de reduo da complexidade pelo prprio meio ............................... 58
3.1.3 Os elementos da comunicao ................................................................................... 59
3.2 AS REFERNCIAS DA LINGUAGEM ........................................................................ 62
3.2.1 Os signos da linguagem e os mecanismos adicionais linguagem ......................... 63
3.2.1.1 O problema da improbabilidade da comunicao ...................................................... 65
3.2.1.2 A resposta da linguagem destinada a elevar o xito da comunicao ........................ 67
3.2.2 Os cdigos simbolicamente generalizados dos meios de comunicao .................. 68
3.2.2.1 As bases restritas de aceitao da comunicao ......................................................... 71
3.2.2.2 O efeito catalisador e a funo de incentivo dos meios de comunicao ................... 71
3.2.3 Os cdigos binrios e a questo da objetivao da vida .......................................... 74
3.3 A MEDIAO TEMPORAL DA COMUNICAO E A ESTABILIZAO
SOCIAL... ................................................................................................................................. 77
3.3.1 Complexidade social e resoluo no-violenta de conflitos ..................................... 79
3.3.1.1 A formao dos subsistemas sociais .......................................................................... 80
3.3.1.2 A diferenciao sistmica e a resoluo no-violenta de conflitos ............................ 84
3.3.2 O subsistema da poltica e as decises coletivas vinculantes ................................... 85
3.3.2.1 O poder como processo comunicacional .................................................................... 86
3.3.2.2 A regulao poltica como decises que os indivduos desejam evitar ...................... 88
3.3.2.2.1 A diferenciao entre poder e coero .................................................................... 90
3.3.2.3 A efetivao do poder e a preservao da seletividade individual ............................. 91
3.3.2.4 A questo da transmisso da ao atravs da comunicao ....................................... 93
3.3.3 O subsistema do direito e a estabilizao das relaes sociais ................................ 95
3.3.3.1 O direito como processo comunicacional .................................................................. 96
3.3.3.2 A regulao jurdica dos conflitos entre expectativas normativas ............................. 98
3.3.3.3 A diferenciao entre normalidade e normatividade ................................................ 100
3.3.3.3.1 A norma com qualidade jurdica ........................................................................... 101
3.3.4 O subsistema da economia e a alocao de recursos escassos .............................. 103
3.3.4.1 A tentativa de disciplinamento jurdico da escassez ................................................ 104
3.3.4.1.1 A diferenciao operativa do subsistema da economia em relao ao subsistema do
direito...................................................................................................................................... 106
3.3.4.2 A economia como processo comunicacional ........................................................... 107
3.3.4.3 A regulao econmica da escassez ......................................................................... 110
3.3.4.3.1 A perspectiva sistmica da racionalidade econmica ........................................... 111
4 O CONSTITUCIONALISMO COMO RESPOSTA SISTMICA NO ENFRENTAMENTO DA COMPLEXIDADE SOCIAL .................................................. 114
4.1 DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO DE BEM-ESTAR ......................................... 114
4.1.1 A questo da sustentabilidade fiscal ....................................................................... 120
4.2 A RESPOSTA SISTMICA DO CONSTITUCIONALISMO .................................... 126
4.2.1 A constituio como processo comunicacional ....................................................... 129
4.2.1.1 A questo da concretizao normativa constitucional ............................................. 131
4.2.1.2 A institucionalizao concorrente dos direitos ......................................................... 133
4.2.2 A questo da efetivao material dos direitos fundamentais ................................ 139
4.2.2.1 A concorrncia dos direitos clssicos com os direitos sociais ................................. 142
4.2.2.2 A associao poltica nos Estados social e de bem-estar: o novo-velho projeto de
associao poltica entre indivduos atomizados .................................................................... 143
4.3 A MEDIAO PRISMTICA .................................................................................... 145
4.3.1 As estratgias sistmicas ........................................................................................... 149
4.3.1.1 A procedimentalizao da democracia ..................................................................... 150
4.3.1.1.1 O desapego s questes materiais ......................................................................... 151
4.3.1.1.2 O procedimento democrtico e o problema da vinculao formal e
material................................................................................................................... ................ 152
4.3.1.2 A tecnizao do direito ............................................................................................. 155
4.3.1.2.1 O universalismo jurdico da isonomia ................................................................... 156
4.3.1.3 A tutela funcional do mercado ................................................................................. 161
4.3.1.3.1 Os mercados imperfeitos e a interveno estatal .................................................. 164
4.3.1.3.2 A interveno estatal e o paradoxo da unidade pblico-privada .......................... 165
4.3.1.3.3 A interveno estatal e questo da fluncia de mercado ....................................... 167
4.4 A QUESTO DA EXPANSO DO CDIGO DO SUBSISTEMA DA
ECONOMIA..... ...................................................................................................................... 169
4.4.1 O projeto poltico-econmico totalizante do neoliberalismo ................................ 171
4.4.1.1 O constitucionalismo e o enfrentamento da complexidade social decorrente da
prevalncia do cdigo do subsistema da economia ................................................................ 173
4.4.1.2 O papel do Estado social .......................................................................................... 175
5 A EMERGNCIA DA CONSTITUIO FEDERAL DE 1988 EM UM CONTEXTO DE FORTE RESSURGIMENTO DO LIBERALISMO ECONMICO ........................ 179
5.1 O MODELO TRIBUTRIO ALBERGADO NA CONSTITUIO FEDERAL DE
1988 E OS RESULTADOS MATERIAIS DAS DCADAS SUBSEQUENTES ................ 184
5.2 OS RESULTADOS MATERIAIS NAS DCADAS SUBSEQUENTES
PROMULGAO DA CONSTITUIO FEDERAL DE 1988 .......................................... 187
5.2.1 A realidade material-tributria ............................................................................... 188
5.2.1.1 As decises polticas e seus desdobramentos socioeconmicos .............................. 192
5.2.1.1.1 O desapego repercusso econmica dos tributos ............................................... 193
5.2.1.1.2 O desrespeito ao princpio da capacidade econmica .......................................... 196
5.2.1.2 Os discursos da troca compensatria........................................................................ 198
5.2.2 A realidade socioeconmica ..................................................................................... 202
5.2.2.1 Trs tentativas de elucidao da realidade socioeconmica subsequente
promulgao da Constituio Federal de 1988....................................................................... 210
5.2.2.1.1 A finitude das receitas pblicas e a questo da apropriao dos recursos
pblicos................................................................................................................... ................ 211
5.2.2.1.2 O risco de vulnerabilidade social na contemporaneidade .................................... 216
5.2.2.1.3 A imposio fiscal e a questo do "socialism within one class" ............................ 220
6 CONSIDERAES FINAIS .......................................................................................... 224
REFERNCIAS ................................................................................................................... 235
APNDICE ........................................................................................................................... 241
1 INTRODUO
A multiplicidade de indivduos e de relaes entre ausentes impe s teorias sociais o
desafio de enfrentar a questo da complexidade social1 e da escassa possibilidade de relaes
diretas e imediatas entre esses indivduos. E exatamente sobre a questo do excesso de
possibilidades nas sociedades contemporneas2 de relaes indiretas e mediatas entre
indivduos que emerge o impulso terico destinado a ultrapassar os conceitos iluministas, tais
como o culto razo, ao humanismo, ao indivduo etc., que j no oferecem as condies
descritivas da realidade social atual (LUHMANN, 2009a).
No mbito do direito, uma importante resposta complexidade social pode ser
evidenciada atravs do fenmeno da constitucionalizao de temas juridicamente relevantes.
A partir das revolues liberais do sculo XVIII, a gradual e progressiva ampliao da
participao poltica (universalizao do sufrgio) e a consequente emergncia das novas
demandas coletivas determinaram a crescente constitucionalizao3 dos direitos
fundamentais: primeiro, os civis; em seguida, os polticos e, por fim, os sociais4 (BOBBIO,
2005; DAHL, 2009; MACPHERSON, 2009; SARTORI, 2008). O processo de
constitucionalizao dos direitos fundamentais encontra correspondncia em trs distintos
tipos-ideais de Estados que emergiram a partir da modernidade: o Estado liberal, o Estado
social e, enquanto derivao desse ltimo, o Estado de bem-estar.
Como tipos-ideais, os Estados liberal, social e de bem-estar devem se diferenciar.
Como em toda tipificao, as caractersticas que do identidade aos trs modelos de Estado
devem ser entendidos como meras referncias demarcatrias que impem limites (tericos,
polticos, jurdicos e econmicos, dentre outros) entre um tipo e outro. Por isso, muitas vezes
surge dificuldade de relacionar precisamente um determinado Estado com os tipos-ideais, em
especial porque as caractersticas especficas dos tipos-ideais terminam realisticamente
convivendo. Apesar disso, possvel indicar que o Estado liberal se prende ideia da garantia
formal da "igualdade na liberdade", traduzida atravs dos princpios da "igualdade perante a
lei" e da "igualdade de direitos" (BOBBIO, 2005, p. 39). Para isso, so impostas restries
1 Luhmann (1990, p. 69) define a complexidade como "[] un conjunto interrelacionado de elementos cuando ya no es posible que cada
elemento se relacione en cualquier momento con todos los dems, debido a limitaciones inmanentes a la capacidad de interconectarlos". 2 Essas sociedades so incompatveis com os modelos de associao humana fundamentados na diferenciao segmentria (hierarquizada) das sociedades tradicionais ou na diferenciao estratificada (dos estratos e classes sociais) das sociedades modernas. Claro que as
sociedades estratificadas tambm se caracterizam pela associao poltica de indivduos atomizados, mas o fato de os indivduos estarem
desprovidos da condio de livres e iguais faz com que este modelo seja inapropriado para caracterizar as sociedades contemporneas. 3 Segundo Santori (2008) a histria do constitucionalismo encontra uma primeira referncia na Magna Charta, de 1215. Contudo, em seu
sentido moderno, ou seja, do governo das leis, a constituio tem uma primeira referncia na Revoluo Americana de 1776 e, em
contiguidade, na Revoluo Francesa (Declarao Francesa de 1789). 4 Segundo Macpherson (1991, p. 40) os direitos civis e polticos "[...] remontam aos sculos XVII e XVIII: foram os principais objetivos das
revolues inglesa, francesa e americana daqueles sculos", enquanto os direitos sociais e proteo socioeconmica do indivduo emergiram
durante e principalmente aps a segunda grande guerra.
15
constitucionais ao poder estatal, a fim de garantir a liberdade da atuao individual. Por sua
vez, o Estado social, inaugurado pela Constituio de Weimar de 1917, evidencia a
constitucionalizao de limites aos poderes econmico e social em outras palavras, limites
atuao privada individual , anteriormente desprezados pelo liberalismo poltico-econmico
clssico, enquanto o Estado de bem-estar5 se destina a "limitar o alcance das foras de
mercado" (SCHARPF, 2002), na tentativa de proporcionar ampla proteo socioeconmica ao
indivduo. Contudo, no propriamente a essa diferenciao que desejamos nos prender. Por
isso, a discusso acima devemos reconhecer, passageira e imprudente porque merecedora de
mais ateno apenas serve de subsdio para acentuar a caracterstica que d unicidade aos
Estados liberal, social e de bem-estar.
Apesar da diferenciao entre os tipos-ideais, a ideia moderna do Estado
constitucional, em qualquer caso, porta aquilo que Nabais (2007) denominou de "estatuto
constitucional do indivduo", ou seja, na insero em sede constitucional de dispositivos que
tratam da "liberdade e dos direitos que a concretizam" (NABAIS, 2007, p. 163). Assim,
enquanto no plano retrico podem ser ressaltadas as diferenciaes, no plano formal os trs
tipos-ideais de Estados modernos esto assentados no estatuto constitucional que d
centralidade ao indivduo. Para Nabais (2007) todas as constituies modernas, a partir do fim
do sculo XVIII, tiveram por fundamento a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado,
de 1789. Por isso, todos os textos constitucionais "[...] no deixam de ser expresso duma
evoluo que comeou justamente nessas declaraes de direitos" (NABAIS, 2007, p. 166).
Assim, apesar de os Estados social e de bem-estar representarem relevantes etapas evolutivas
da associao poltica entre indivduos livres e iguais, necessrio reconhecer que ambos, tal
qual o Estado liberal6, no deixam de ser o reflexo das sociedades compostas por indivduos
atomizados, maximizadores, portanto, de seus interesses individuais, conforme preconizado
por Macpherson (2005) em sua teoria do individualismo possessivo. A diferena entre um e
outro reside, em essncia, no fato de, no Estado social, a prevalncia do indivduo atomizado
ser mitigada pela constitucionalizao de limites atuao individual e, no Estado de bem-
estar, a prevalncia das regras de mercado ser mitigada pela constitucionalizao de ampla
proteo socioeconmica do indivduo.
De qualquer forma, os princpios inauguradores tanto do Estado social como do
Estado de bem-estar sempre conviveram no plano constitucional com os fundamentos do
liberalismo econmico clssico. Parece natural, ento, que o fenmeno de insero em sede
5 Scharpf (2000a) tipifica trs modelos distintos de Estados de Bem-estar: o escandinavo, o continental e o anglo-saxo, conforme ser
tratado no item 4.1. 6 Para Bobbio (2005), a diferena entre um e outro no se encontra no liberalismo poltico, mas, sim, no liberalismo econmico.
16
constitucional de dispositivos (em seus diversos contedos civis, polticos e sociais) que
tratam da liberdade do indivduo e dos direitos que os garantem estivesse sujeito aos mais
diversos influxos e que, por isso, terminasse refletindo, no plano formal-constitucional, os
mesmos antagonismos presentes na sociedade, ou seja, terminasse reproduzindo as mesmas
diferenas polticas, econmicas e sociais.
A questo da capacidade de as constituies portarem contedos antagnicos ainda
mais ampliada com a emergncia do Estado social e, principalmente, com a emergncia do
Estado de bem-estar, no final do sculo XIX e incio do sculo XX, o qual atingiu seu apogeu
no ps-segunda guerra sob condies de forte protecionismo e restries aos mercados
internacionais de capital e de produtos (SCHARPF, 1999). As constituies dos Estados
social e de bem-estar explicitam extenso rol de liberdade ao indivduo e amplas garantidas
individuais inclusive enumerando os instrumentos e os aparatos estatais necessrios ao
exerccio dessa liberdade e dessas garantias , enquanto deixam de traar tipos mnimos de
direitos, exigveis concreta e imediatamente7, necessrios existncia humana digna. Isso no
que dizer que deva ser atribudo um menor protagonismo ao estatuto constitucional do
indivduo, mas apenas reconhecer que suas projees possuem alcance limitado, e que,
mesmo nos Estados social e de bem-estar, torna-se previsvel o descompasso entre projees
constitucionais dos direitos fundamentais e realidade material8. Por exemplo, em relao
socialdemocracia europeia, Scharpf (2002) descreve a concorrncia entre contedos que
adquirem o mesmo nvel constitucional, mas que se diferenciam quanto efetivao, tal como
possvel inferir a partir da assimetria entre polticas de promoo da eficincia de mercado e
polticas de promoo da proteo e da igualdade social. Compreender esse descompasso se
torna, ento, um grande desafio (BARCELLONA; NABAIS; NEVES), em especial porque a
mera previso no plano constitucional de inmeros direitos (tais como, por exemplo, direito
sade, educao, ao desenvolvimento, ou a um meio ambiente equilibrado, dentre outros)
pode se tornar um acinte quando sequer se garante, no plano material, o direito (concreta e
imediatamente exigvel) a uma existncia humana digna maioria dos indivduos. Esse
problema potencialmente ampliado quando o direito se prende, quase que de forma
exclusiva, s comemoraes relativas emergncia de novos direitos que jamais sero
7 De alguma forma o constitucionalismo equiparou os direitos sociais aos direitos clssicos e, com isso, produziu diferenciaes importantes.
Por exemplo, os instrumentos processuais disponveis so incuos ao exerccio dos direitos sociais. Concretamente, apesar da ampla previso constitucional de direitos sociais, na atualidade ainda convivemos com a precariedade do emprego e da renda, da sade, da educao, da
segurana, do transporte coletivo, dentre outros. Por outro lado, as recentes crises financeiras de 2008 e 2011, que assolaram a Amrica do
Norte e a Europa, respectivamente, trouxeram tona discusses acerca da necessidade de "flexibilizar" alguns direitos sociais previstos em sede constitucional. A justificativa para isso que diante da eminncia de uma catstrofe a dimenso econmica, concretamente, tem
prevalncia em relao dimenso poltico-jurdica. 8 De forma especfica, Neves (2007) coloca essa questo em termos da constitucionalizao simblica.
17
efetivados concretamente, dando ocasio quilo que Nabais (2007, p. 168) chamou de mero
"[...] discurso quantitativo dos direitos fundamentais [...]".
A discusso acerca do descompasso entre projees constitucionais dos direitos
fundamentais e realidade material, da forma como foi acima colocada, deixa de ressaltar a
diferenciao que Nabais (2007, p. 164-165) afirma existir entre "[...] a constituio do
indivduo ou dos direitos fundamentais, a constituio poltica ou da organizao poltica e a
constituio econmica ou da organizao econmica". Essa diferenciao adquire relevncia
porque a ideia da centralidade do indivduo nos Estados social e de bem-estar termina por
sobrecarregar os estatutos constitucionais da poltica e da economia. De fato, o estatuto
constitucional do indivduo ocupa-se em projetar as mais diversas expectativas de direitos
fundamentais que, para se efetivarem, demandariam decises polticas e econmicas
decises externas, que no so prprias, portanto, do estatuto constitucional do indivduo. Isso
corresponde a dizer que o estatuto constitucional do indivduo no tem o condo de produzir,
por si s, um determinado resultado material. Pelo contrrio, sempre estar na dependncia de
os estatutos constitucionais da poltica e da economia proporcionarem as condies sob as
quais os direitos fundamentais podero se efetivar. E aqui vem tona o problema de o estatuto
constitucional do indivduo no encontrar correspondncia nos estatutos constitucionais da
poltica e da economia. Por exemplo, enquanto o estatuto constitucional do indivduo atribui
direitos fundamentais, o estatuto constitucional da poltica colocado sob presso9 por no
conseguir atender concretamente a todas as demandas por efetivao dos direitos (devemos
lembrar que as receitas pblicas so sempre finitas).
Por sua vez, o estatuto constitucional da economia, em uma economia de mercado, no
pode, claro, obrigar-se a afetar a organizao econmica a fim de produzir uma melhor
distribuio da riqueza entre os indivduos livres e iguais de uma determinada associao
poltica. Os direitos fundamentais, portanto, encontram realisticamente seus limites nas
condies polticas e econmicas sob as quais podero se efetivar10
. E uma dessas condies
diz respeito ao financiamento desses direitos. Neste ponto, o estatuto constitucional do
indivduo coloca para os estatutos da poltica e da economia a complexa tarefa de determinar
quais agentes econmicos (consumidores, assalariados, empresas etc.) devero assumir os
encargos financeiros do Estado destinados efetivao dos direitos fundamentais. Em outras
palavras, quais agentes econmicos devero ter suas riquezas individuais afetadas pela
9 Bobbio (2005, p. 93) aponta que "[...] os regimes democrticos so caracterizados por uma desproporo crescente entre o nmero de
demandas provenientes da sociedade civil e a capacidade de resposta do sistema poltico [...]" 10 Acreditamos que a superdimensionamento valorativo da poltica e do direito em relao aos contedos socioeconmicos protetivos
previstos no estatuto constitucional do indivduo tem o condo de desprezar a relevncia que possui a economia na efetivao dos direitos
fundamentais sociais.
18
tributao, a fim de proporcionar receitas pblicas destinadas a custear os direitos
fundamentais. E, claro, os desdobramentos concretos terminam por revelar que a efetivao
dos direitos fundamentais (qualquer um deles, sejam os civis, os polticos ou os sociais) se d
custa do sacrifcio financeiro dos indivduos (SCHARPF, 1991), eles prprios objeto do
estatuto constitucional protetivo.
Por tudo isso, a evoluo do Estado liberal na direo do Estado social, e, em especial,
a derivao desse ltimo para o Estado de bem-estar, termina por revelar que a expanso dos
direitos fundamentais sempre se apresenta concorrente porquanto direitos, qualquer um deles,
nunca so gratuitos (NABAIS, 2007). E aqui o caso at mesmo de ressaltar que o estatuto
constitucional do indivduo se ocupa de distribuir direitos fundamentais, sem revelar, contudo,
os correspondentes encargos financeiros decorrentes desses direitos. Como bem diz Nabais
(2007, p. 163), essa "[...] a face oculta do estatuto constitucional do indivduo"11
. Por isso,
os modelos de financiamento dos Estados social e de bem-estar fornecem uma boa sntese do
descompasso entre projees constitucionais dos direitos fundamentais e realidade material,
em especial quanto questo da equalizao entre sacrifcio individual na manuteno
financeira do Estado e contraprestaes sociais (presena social) do Estado, em outros termos,
a relao entre aquilo que o Estado retira da riqueza individual e aquilo que, como Estados
social e/ou de bem-estar, obrigam-se a proporcionar (proteo socioeconmica do indivduo).
A relao entre a distribuio dos encargos da manuteno financeira do Estado (quem
suporta o nus tributrio) e destinao dos recursos pblicos (quem se apropria dos recursos
pblicos) ganha um protagonismo tal que a partir dela possvel, inclusive, revelar o modelo
de associao poltica entronizado em sede constitucional.
De qualquer forma, a discusso ainda atual acerca do Estado de bem-estar, tal como o
conhecemos no ps-segunda guerra, deixa de revelar que, a partir da dcada de 1970, os
Estados de bem-estar das democracias avanadas se deparam com a impossibilidade ftica de
financiar a proteo socioeconmica do indivduo (SCHARPF, 1991), apesar da
institucionalizao, no plano constitucional, de amplos direitos fundamentais sociais. A
questo do financiamento dos direitos fundamentais se agudiza com o fenmeno da
internacionalizao dos mercados de capital e de produtos, a partir dos anos 1980
(SCHARPF, 1999), uma vez que a mobilidade dos agentes econmicos (liberalizao da
economia) causa a interdependncia das escolhas polticas nacionais:
11 Ou seja, "[...] a face oculta da liberdade e dos direitos, que o mesmo dizer da responsabilidade e dos deveres e custos que a materializam
[...]" (NABAIS, 2007, p. 163).
19
Como consequncia da mobilidade em potencial dos atores e fatores econmicos h
agora um grau muito elevado de interdependncia no apenas entre as economias
nacionais anteriormente setorizadas, mas tambm entre escolhas de poltica nacional
que afetam a economia. Se um governo corta as contribuies da seguridade social,
isso reduz a competitividade internacional dos produtos provenientes de outros
pases que no agiram da mesma forma; e se um pas reduz seu ndice de tributao
sobre a empresa, isso criar incentivos para que as empresas reloquem suas sedes.
Por isso, , de fato, errado pensar que somente as empresas esto em competio
umas com as outras. A interdependncia econmica cria uma constelao em que os
Estados-nao se encontram competindo uns com os outros por parcelas nos
mercados de produtos, por capital de investimento e por fontes de rendimentos
tributveis, e em que essa competio restringe as suas escolhas entre opes de
polticas macroeconmicas, regulatrias e fiscais.12
(SCHARPF, 1998).
A partir das discusses acima se insere a presente investigao de tese a fim de
compreender se os amplos direitos fundamentais, em especial os socioeconmicos, projetados
a partir da Constituio Federal de 1988 encontram correspondncia na realidade material
brasileira no perodo subsequente a sua promulgao. E aqui, claro, necessrio ressaltar que,
em relao ao estatuto constitucional do indivduo, a referida Constituio no deixa de
espelhar "[...] a conjuntura poltica, social e cultural do segundo ps-guerra [...]" (NABAIS,
2007, p. 166), conjuntura esta, claro, que norteou a elaborao das mais diversas constituies
a partir do final do segundo quartil do sculo XX:
[...] basta-nos recordar a preocupao dominante nessa poca, visando a instituio
ou fundao de regimes constitucionais fortes no respeitante proteco dos direitos
e liberdades fundamentais. Isto , de regimes que se opusessem duma maneira
plenamente eficaz a todas e quaisquer tentativa de regresso ao passado totalitrio ou
autoritrio. Era, pois, necessrio exorcizar um passado dominado por deveres, ou
melhor, por deveres sem direitos.
Foi isto o que aconteceu no sculo vinte. Mais precisamente nos finais dos anos
quarenta em Itlia e na ento Repblica Federal da Alemanha, depois nos anos
setenta na Grcia, Portugal e Espanha, e j nos anos oitenta no Brasil. (NABAIS,
2007, p. 166).
Apesar de o estatuto constitucional do indivduo albergado na Constituio Federal de
1988 ressaltar de forma muito ntida o vis protetivo das liberdades individuais e dos direitos
(fundamentais) que as garantem, no plano econmico, evidentemente, a conjuntura brasileira
emblemtica e tem muito a revelar. Nao ainda com severo grau de subdesenvolvimento
regional; setor produtivo com extrema dependncia de estmulos estatais (incentivos fiscais,
subsdios, proteo do mercado interno etc.); mercado de trabalho com evidentes limitaes e
12 Traduo livre do texto original: "As a consequence of the potential mobility of economic actors and factors there is now a much greater
degree of interdependence not only between the formerly compartmentalized national economies, but also between national policy choices that have an effect on the economy. If one government cuts its social security contributions, that reduces the international competitiveness of
products from other countries that have not done so; and if one country cuts its rate of corporate taxation, that will create incentives for firms
to relocate their company headquarters. Hence it is indeed wrong to think that only firms are in competition with each other. Economic interdependence creates a constellation in which nation states find themselves competing with each other for market shares in product
markets, for investment capital, and for taxable revenues, and in which that competition constrains their choices among macroeconomic,
regulatory and tax policy options." (SCHARPF, 1998).
20
com elevada dependncia do consumo externo; incipiente aumento do consumo interno e
notveis restries oramentrias (SANTOS, 2004). De fato, a conjuntura econmica nacional
e internacional na qual a Constituio Federal de 1988 foi elaborada era muito distinta
daquela em que os Estados de bem-estar das democracias avanadas conseguiram distribuir
ampla proteo socioeconmica aos indivduos. O Brasil, por exemplo, no dispunha nem de
capacidade econmica nem das condies inflacionrias necessrias13
para implementar
polticas de estmulo ao crescimento econmico associado ao pleno emprego (nos moldes
keynesianos); no dispunha de mecanismos restritivos internacionalizao dos mercados de
capital e de produtos, nem da possibilidade de exercer forte protecionismo tendo em vista seu
isolamento econmico e tecnolgico nas dcadas anteriores.
Diferentemente dos Estados de bem-estar do ps-segunda guerra, o Brasil no
dispunha de liberdade poltica para correo de mercado e de mecanismos protetivos
(polticas monetria, cambial e fiscal) que possibilitassem economia nacional conviver com
as crises econmicas recorrentes. Apesar de tudo isso, a Constituio Federal de 1988 no se
intimidou e projetou amplos direitos sociais. Mas, afinal de contas, o que isso tudo tem a ver
com a questo do financiamento dos direitos fundamentais? Embora o Brasil ainda hoje se
encontre distante de ser reconhecido como um Estado que proporcione uma ampla rede de
segurana social, a partir do incio dos anos 1990 assiste-se forte elevao da carga
tributria. E exatamente aqui relevante contextualizar a ordem poltico-jurdico-econmico-
social inaugurada pela Constituio Federal de 1988 com o forte fenmeno do ressurgimento
do liberalismo econmico. Se, por um lado, os discursos polticos e jurdicos festejavam a
emergncia de uma nova carta poltica que restabeleceu as liberdades individuais, os direitos
polticos e garantiu, pelo menos no plano formal, amplos direitos sociais populao
brasileira, por outro, os discursos econmicos exigiam ampla tutela da economia, com forte
estmulo estatal ao crescimento econmico (poltica econmica conservadora dos anos 1980).
Evidentemente os contextos em que se procedeu elaborao e promulgao da
Constituio Federal de 1988 e os que dela derivaram no podem estar, de toda forma,
desassociados. Como pice poltico-jurdico-econmico-social conformador da ordem
social14
, a Constituio deve portar, obviamente, a propriedade da contiguidade, no sentido de
que o contexto contemporneo sua elaborao vincula-se ao contexto antecedente e ao
futuro. Por isso, compreender a Constituio Federal de 1988 requer investig-la no como
13 A inflao em fins do regime militar j era demasiadamente elevada. 14 A inclusos os estatutos constitucionais do indivduo, da organizao poltica entre indivduos livre e iguais e, ainda, da organizao
econmica nacional.
21
um fato isolado, mas inserida nos contextos em que ela foi produzida e nos que dela
derivaram (subsequente sua promulgao).
Em relao aos contextos antecedentes e contemporneos elaborao da Constituio
Federal de 1988, j se percebiam, a partir da dcada de 1970, determinadas regularidades
poltico-econmicas mundiais (a internacionalizao dos mercados de capital e de produtos,
seguida a poltica econmica conservadora do anos 1980, cominando com o neoliberalismo na
dcada de 1990) capazes de afetar o modelo de financiamento estatal (por exemplo, a fuga de
relevantes bases econmicas de incidncia tributria e a consequente translao dos encargos
pblicos para os trabalhadores), bem como a efetivao material da proteo socioeconmica
do indivduo nos Estados de bem-estar das democracias avanadas (SCHARPF, 1991; 1999).
dentro desse quadro que se coloca a seguinte questo-problema: que relaes o modelo de
financiamento dos direitos fundamentais albergado na Constituio Federal de 1988 mantm
com o desenvolvimento socioeconmico nas duas dcadas subsequentes?
A questo-problema da presente investigao de tese surge da sensao comum acerca
da desproporcionalidade entre elevao da carga tributria e mitigao do passivo social
brasileiro no perodo posterior promulgao da Constituio Federal de 1988. Voltamos
aqui, ento, quela discusso anterior acerca do descompasso entre projees constitucionais
dos direitos fundamentais e realidade material. A fim de responder questo-problema,
partimos do pressuposto de que as constituies se encontram abertas a todos os contedos,
inclusive aos antagnicos, sem, contudo, obrigar-se a produzir um resultado socioeconmico
concreto.
A presente investigao de tese tem o objetivo geral de descrever as relaes que o
modelo de financiamento dos direitos fundamentais albergado na Constituio Federal de
1988 mantm com o desenvolvimento socioeconmico nas duas dcadas subsequentes. A fim
de alcanar esse objetivo, foi necessrio cumprir os seguintes objetivos especficos: i)
descrever as sociedades contemporneas a partir da perspectiva emprica da sociedade, em
especial a sistmica de Luhmann; ii) explicar por que as constituies, mesmo as
(auto)proclamadas sociais e de bem-estar, no se obrigam a um resultado socioeconmico
especfico; iii) discorrer sobre as constituies como mero processo comunicacional; iv)
descrever a emergncia da Constituio Federal de 1988 em um contexto de sobreposio do
cdigo do subsistema da economia, correspondente ao forte fenmeno do ressurgimento do
liberalismo econmico; v) descrever os desdobramentos materiais posteriores promulgao
da Constituio Federal de 1988, correspondentes ao confronto da evoluo da carga
tributria com indicadores socioeconmicos.
22
A presente investigao de tese encontra justificativa na imperiosa necessidade de
compreender o direito no como foi idealizado, mas como, de fato, ele se concretiza. Sua
relevncia cientfica advm, ento, da juno de um referencial terico-emprico da sociedade
possibilidade de mensurao da realidade socioeconmica, capaz de apreender o contexto
poltico-econmico dos anos 1980 em que se deu o processo de elaborao da Constituio
Federal de 1988, assim como o contexto socioeconmico brasileiro posterior sua
promulgao. Certamente, isso exige o afastamento das anlises meramente retricas do
direito, as quais, no plano dos direitos fundamentais, em especial os sociais, prendem-se ao
discurso jurdico que d privilgio mera enumerao quantitativa desses direitos. Em sentido
oposto, em uma perspectiva empirista, compreender o direito significa compreender os
resultados socioeconmicos (re)produzidos a partir dele. Essa mudana de perspectiva, com
certeza em nada altera o objeto a ser investigado: o direito. Apesar de desnecessrio,
desejamos ressaltar que o objeto da presente investigao de tese (qual seja, o modelo de
financiamento dos direitos fundamentais albergados na Constituio Federal de 1988 e os
desdobramentos socioeconmicos nas dcadas subsequentes) no poderia ser outro que no o
direito, associado, claro, ao contexto em que ele foi produzido e ao contexto que dele derivou.
Mas, isso no significa um grande passo, porque sobre um mesmo objeto podem incidir
diversas perspectivas tericas, muitas vezes, incomunicveis. Luhmann (2005a), por exemplo,
descreve duas perspectivas distintas para abordar os limites do direito, conforme sejam postos
pelo observador (perspectiva analtica) ou pelo prprio objeto (perspectiva concreta). Na
perspectiva analtica, os limites so delimitados pelo observador, que carrega, claro, sua
prpria objetividade15
e, com isso, possibilita traar tantas perspectivas tericas quanto so os
observadores. Por sua vez, na perspectiva concreta o "[...] prprio direito determina quais so
os limites do direito. O prprio direito determina, portanto, o que que pertence ao direito e o
que que no."16
(LUHMANN, 2005a, p. 68). Evidentemente que essa perspectiva tambm
tem de enfrentar a figura do observador, mais especificamente daquele indivduo que observa
o objeto separado de si, em outras palavras, que observa o objeto a partir dos limites impostos
pelo prprio objeto. Nessa perspectiva, o observador apenas pode enxergar o direito a partir
dos limites fixados pelo prprio direito, ou seja, a partir de uma observao externa. Antes
que a discusso se alongue, faz-se necessrio reconhecer que apenas nessa ltima perspectiva
15 Se no fossemos cair em uma redundncia, talvez fosse melhor dizer nesse caso que o observador carrega sua prpria subjetividade. Talvez por isso as cincias sociais se deparem com a inata dificuldade acerca da fixao de uma pretensa objetividade universal. 16 Traduo livre do texto original: "[...] derecho mismo determina cules son los lmites del derecho. El derecho mismo determina, por lo
tanto, qu es l que pertenece al derecho y qu es lo que no. (LUHMANN, 2005a, p. 68).
23
possvel descrever o direito como sistema social, integrado a outros sistemas operativos da
sociedade.
A questo dos limites do direito torna-se relevante porque permite identificar como se
processam as relaes entre observador/objeto. Por exemplo, quando os limites so colocados
pelo observador (em outras palavras, quando o observador se situa no interior do objeto), por
um lado, a observao interna impede que os resultados externos ao direito sejam
apreendidos, porque o observador interno apenas dispe de instrumentos de observao
especializados (jurdicos); e, por outro, a observao externa no pode se comunicar com o
direito, porque foi excluda dos seus limites. Em ambas as situaes, o observador no dispe
de recursos hbeis a observar os desdobramentos exteriores ao direito. A prevalncia das
discusses acerca do controle formal do direito, por exemplo, evidencia com muita preciso
essa questo: o controle da constitucionalidade e da legalidade nem sempre apresenta as
melhores respostas s complexas sociedades contemporneas. Com isso, desejamos ressaltar o
afastamento da presente investigao daquelas questes adstritas coerncia interna do
direito, tais como, por exemplo, o controle da constitucionalidade e da legalidade, questes
que, evidentemente, no conseguem na verdade, nunca conseguiram e nunca conseguiro
dar respostas aptas complexa realidade social das sociedades contemporneas. Esse
afastamento, por evidente, traz transtornos irremediveis. Por exemplo, uma observao
interna ao direito possibilita afirmar que os direitos fundamentais foram estendidos a todos os
indivduos. Apesar disso, a observao interna no proporciona ao direito recursos
especializados (no-jurdicos) que possibilitem a um observador interno apreender como esses
direitos se efetivam: se os indivduos se reconhecem como portadores desses direitos; como
eles so exercidos e em que medida; se so suficientes para atender s expectativas humanas
(materiais e simblicas), dentre outros. Assim, quando os limites do direito so postos a partir
do observador (perspectiva analtica) a realidade social (externa ao direito) torna-se
imperceptvel linguagem especializada do direito (linguagem jurdica). Em sentido
contrrio, a perspectiva concreta apenas pode reconhecer os limites do objeto a partir de fora
do objeto, ou seja, apenas possvel reconhecer os limites do direito enxergando-o de fora
(LUHMANN, 2005a). Essa perspectiva permite o dilogo entre as diversas cincias sociais
que se debruam sobre o objeto direito. Com isso, disponibiliza elementos no-jurdicos
(sociolgicos, polticos, econmicos, histricos, estatsticos etc.) aptos a descrever o processo
conformador do direito (em especial, o positivado) a partir de contextos externos ao direito
(polticos, econmicos e culturais, dentre outros). S a partir da observao externa do direito
24
possvel adotar uma abordagem sociolgica e, especialmente, desvencilhar-se da retrica, da
mera autorrepresentao lingustica do direito.
A fim de descrever o modelo tributrio albergado na Constituio Federal de 1988,
no como foi idealizado pelo constituinte (como um fato isolado), mas como ele, de fato, se
concretiza (inserida em contextos), propomos um modelo emprico de investigao qualitativa
com base no mtodo descritivo-funcionalista de Luhmann (1998). Neste particular
necessrio indicar que a proposta metodolgica de Luhmann vai de encontro propalada
lgica objetiva cientfica, porquanto descarta a existncia de pressupostos axiolgicos a partir
dos quais possvel fundamentar uma descrio da realidade social. Nesse sentido, Luhmann
(2007, p. 43) aponta que "[...] o sistema da sociedade transforma profundamente seu prprio
ambiente [meio] e modifica assim os pressupostos sobre os quais se assenta sua prpria
diferenciao"17
. Em sentido contrrio, Luhmann (2007) prope uma teoria social cuja lgica
est fundada em muitos centros (policntrica)18
, assentada, na verdade, em uma lgica cujas
respostas esto fundamentadas em problemas j resolvidos (autorreferncia). Isso corresponde
a dizer que Luhmann assume uma lgica cientfica baseada na circularidade que a prpria
lgica capaz de produzir. Dinamismo e relativismo so, portanto, caractersticas inerentes
teoria social de Luhmann.
Na perspectiva terica de Luhmann (1992), os fenmenos (por exemplo, as
constituies) apenas adquirem significado quando associados realidade social em que
foram produzidos. Em outras palavras, possvel dizer que os fenmenos apenas adquirem
significado quando associados aos contextos em que foram produzidos. Assim, o fenmeno
investigado na presente tese (qual seja, o modelo de financiamento dos direitos fundamentais
albergados na Constituio Federal de 1988 e os desdobramentos socioeconmicos nas
dcadas subsequentes) no pode ser compreendido de forma apartada da realidade social. E
aqui adquire relevncia o fato de a constitucionalizao dos direitos fundamentais sociais ter
evidente analogia com os direitos clssicos civis e polticos. Com isso, o enfrentamento (a
partir da emergncia do Estado social) questo de os poderes social e econmico serem
potencialmente capazes de afetar a liberdade de terceiros encontra fundamento em respostas
j consolidadas nos mbitos civil e poltico (Estado liberal). Este, claro, um processo
nitidamente autorreferente, haja vista que a resoluo dos problemas socioeconmicos
encontra fundamento em problemas j resolvidos (especificamente os civis e polticos).
17 Traduo livre do texto original: "[...] el sistema de la sociedad transforma profundamente su propio ambiente y modifica as los presupuestos sobre los que descansa su propia diferenciacin." (LUHMANN, 2007, p. 43). 18 Para Luhmann (2007, p. 43) "[...] una sociedad organizada en subsistemas no dispone de ningn rgano central. Es una sociedad sin
vrtice ni centro. Na sociedad no se representa a s misma por uno de sus, por as decir, propios subsistemas genuinos".
25
A proposta de investigar a Constituio Federal de 1988 atrelada aos contextos,
contudo, extremamente dilatada, pois inmeras so as suas dimenses: formal, social,
poltica, jurdica, econmica, histrica, desenvolvimentista, dentre outras. Para fugir dessa
indeterminao, um segundo recorte faz-se necessrio, a fim de restringir o objeto da presente
investigao de tese dimenso poltico-econmica (estatutos constitucionais da poltica e da
economia) da Constituio Federal de 1988. A partir dessa delimitao possvel especificar
com nitidez o contexto antecedente sua promulgao: no plano nacional, fortes demandas
por liberdades polticas e individuais e, no plano internacional, a consolidao da poltica
econmica conservadora dos anos 1980. O contexto antecedente, portanto, indica a
confluncia de dois fenmenos distintos: a i) redemocratizao do pas em um ii) ambiente
internacional de forte ressurgimento do liberalismo econmico, denominado mais tarde, na
dcada de 1990, de neoliberalismo.
Evidentemente a dimenso escolhida ainda cobre uma vasta possibilidade de
investigaes. Por exemplo, poderamos investigar como a Constituio Federal de 1988 trata
da relao entre capital/trabalho, direitos clssicos/direitos sociais e crescimento
econmico/desenvolvimento socioeconmico, dentre outras. Por isso, faz-se necessrio
proceder, no interior da dimenso poltico-econmica, a um terceiro recorte, a fim de
delimitar a investigao ao modelo de financiamento dos direitos fundamentais, singularizado
atravs do modelo tributrio albergado na Constituio Federal de 1988. Uma vez delimitada
a investigao dimenso poltico-econmica da Constituio Federal de 1988, torna-se
necessrio apontar as variveis a serem investigadas e suas diversas medidas, tanto
qualitativas como quantitativas.
Apesar de as escolhas da dimenso e das variveis (consequentemente, tambm das
medidas) se encontrarem na esfera de deciso do investigador, elas no so arbitrrias. o
caso, ento, de indicar que na presente investigao foram eleitas duas variveis: a primeira,
na esfera tributria, a incidncia econmica dos tributos, desdobrando-se em fenmenos
(medidas) tais como nus tributrio e capacidade contributiva individual; e, a segunda, na
esfera socioeconmica, est relacionada aos desdobramentos materiais que recaram sobre a
sociedade brasileira, posteriores promulgao da Constituio, particularizada rea
temtica renda, desdobrando-se em fenmenos (medidas) tais como apropriao da renda,
pobreza, extrema pobreza e concentrao de renda. Evidentemente a escolha dos indicadores
sociais demarca a realidade de parcela considervel da sociedade brasileira. Alm disso, essa
escolha levou em considerao a possibilidade de apreender as tendncias relacionais (jamais
26
relao de causa e efeito!) entre carga tributria e realidade material no perodo posterior
promulgao da Constituio Federal de 1988.
Neste ponto, acreditamos ser pertinente apontar que, em uma investigao meramente
descritiva, os dados, sejam eles qualitativos (no-numricos) ou quantitativos (numricos),
no se prestam a indicar relaes de causa e efeito, a descobrir leis sociais ou padres de
resposta que regem os fenmenos sociais. A complexa realidade social, evidentemente, no
passvel de ser revelada de forma objetiva. Pelo contrrio, os dados so achados pelo
investigador para auxili-lo na construo da descrio do fenmeno objeto de sua
investigao. Isso significa dizer que o processo de escolha dos dados, necessariamente,
subjetivo. Por isso, a pertinncia de colocar a questo da impossibilidade da neutralidade na
investigao qualitativa, seja porque o investigador afetado pela prpria realidade social que
investiga, seja porque elege os dados mais adequados ao seu constructo (DEMO, 1995;
MARCONI e LAKATOS, 2005).
Em consonncia com as duas variveis indicadas anteriormente, a coleta de dados
qualitativos (no-numricos) e quantitativos (numricos) da presente investigao foi
realizada por meio de pesquisa bibliogrfica (fontes secundrias) e documental (fontes
primrias). Os dados qualitativos encontravam-se disponveis na extensa bibliografia acerca
do tema, ou seja, em livros e artigos cientficos, enquanto a coleta dos dados quantitativos
prende-se a documentos e fontes estatsticas oficiais. Em relao tributao, a pesquisa
documental teve fundamento em relatrios e levantamentos da Secretria do Tesouro
Nacional, Secretaria da Receita Federal, IBGE e IPEA. Quanto aos indicadores sociais
necessrios s discusses acerca da realidade socioeconmica posterior promulgao da
Constituio Federal de 1988, esses foram levantados pelo IBGE e disponibilizados em sries
histricas pelo IPEA. Esses indicadores so: i) renda mdia; ii) apropriao da renda; iii)
pobreza e extrema pobreza e iv) coeficiente de Gini.
A coleta de dados quantitativos se restringiu ao recorte temporal que abrange o
perodo de 1990 a 2009, de forma a apreender o comportamento tendencial da carga tributria
e dos resultados socioeconmicos posteriores promulgao da Constituio Federal de 1988.
Nesta escolha tambm foi levado em considerao o fato de os dados primrios necessitarem
refletir realidades econmicas, polticas e sociais semelhantes, sem desvirtuar os resultados
obtidos. Nesse sentido, o perodo descrito coincide com o incio de nossa abertura econmica,
no governo de Fernando Collor de Melo, e se estende at meados do segundo mandato do
presidente Lus Incio Lula da Silva. Saliente-se, tambm, que, nesse perodo grandes
esforos foram consagrados ao controle inflacionrio, em especial, ao Plano Real e seus
27
desdobramentos, permitindo o confronto de valores econmicos sem possveis erros de
valorao no perodo de 1994 a 2009 a moeda Real se manteve sob forte controle
inflacionrio.
Em especial pela relevncia que acreditamos ter o captulo 1, faz-se necessrio
aprofundar as discusses em relao pesquisa documental e, consequentemente,
manipulao de dados quantitativos em uma pesquisa meramente descritiva (qualitativa).
Particularmente nas investigaes jurdicas, a utilizao de medidas quantificveis sempre
uma questo delicada. Por isso, desejamos indicar que a pretenso no estabelecer relaes
de causa e efeito ou generalizaes a partir de levantamentos meramente quantitativos. O
dado quantitativo, por si s, no permite a compreenso de fenmenos sociais. H que ter uma
referncia terica que justifique os resultados numricos obtidos. Nesta perspectiva, com
muita propriedade, Demo (1995, p. 141-142) afirma que Toda sensao de evidncia no
provm [...] do dado, mas do quadro terico em que colhido. Para quem estiver mal
aparelhado em termos de referencial tcnico ou deste falto se isto fosse possvel qualquer
dado nada diz. Assim, a proposta da presente investigao de tese descrever o fenmeno19
conjuntamente com os dados quantitativos que o prprio fenmeno deixa evidenciar. Esses
dados, compem o fenmeno, integram-no. So, portanto, parte dele. Fenmeno e dados
integram uma mesma realidade e se entrelaam de maneira indissocivel, de tal forma que o
segundo no pode ser descrito sem o primeiro. Assim, os dados quantitativos nada mais so
do que a exteriorizao (daquela parcela que se pode, de alguma forma, capturar) do
fenmeno. De qualquer forma, eles so secundrios em relao ao fenmeno e em uma
investigao qualitativa tm a mera funo de subsidiar a descrio e a compreenso do
prprio fenmeno. A questo da funo dos dados quantitativos torna-se relevante porque
permite nos distanciarmos do paradigma positivista, mesmo a presente investigao fazendo
uso deles.
Diferentemente do positivismo, na abordagem qualitativa inexistem preocupaes com
a representatividade da amostra investigada e com a questo da generalizao dos resultados.
Na verdade, "A vida cotidiana tem pouco a ver com quantidades determinadas com exatido e
com a forma de as manipular" (LUHMANN, 1992, p. 80). Por isso, na presente investigao
qualitativa, os dados quantitativos no se destinam a produzir medidas quantificveis de uma
amostra estatstica para posteriores generalizaes para toda a populao. Ao contrrio, as
tendncias que esses dados apresentam serviro, apenas, para descrever e compreender o
19 No caso especfico da presente investigao de tese, o fenmeno investigado o modelo de financiamento dos direitos fundamentais
albergados na Constituio Federal de 1988 e os desdobramentos socioeconmicos nas dcadas subsequentes.
28
fenmeno. De qualquer forma, necessrio apontar que a pesquisa documental se depara com
o problema da preocupao ideolgica que os dados oficiais, em si mesmos, carregam. Este
problema capaz, inclusive, de falsear a prpria compreenso da realidade associada ao
fenmeno investigado. A esse respeito, Demo destaca:
[...] o dado muito mais um produto do que um achado. Nos dados do IBGE no
est pura e simplesmente a realidade brasileira, mas uma forma de interpret-la,
certamente mais oficial do que real. Isto explica por que do mesmo dado se pode
fazer interpretaes diferentes e mesmo contraditrias. (DEMO, 1995, p. 141).
Tambm possvel afirmar que dados no-oficiais padecem do mesmo mal: esto
eivados de tendncias ideolgicas. Talvez no seja mesmo possvel fugir dessa armadilha.
Tambm importante salientar que, especificamente em relao tributao, existe o
problema da falta de transparncia da atividade tributria no perodo posterior promulgao
da Constituio Federal de 1988, evidenciado pela falta de critrios oficiais de classificao
econmica dos tributos, pela ausncia de dados consolidados e de sries histricas, e,
principalmente, dos montantes de tributos renunciados pela Unio, Estados-membros, Distrito
Federal e Municpios (poltica de transferncia de riqueza da sociedade para a atividade
econmica privada). Apesar de tudo isso, a partir de dados oficiais, tanto foi possvel
apreender os valores agregados sobre a varivel incidncia econmica dos tributos,
permitindo, assim, a construo de sries histricas da incidncia direta e indireta e sobre o
nus tributrio suportado pela pessoa fsica e pela pessoa jurdica; como mostrar os
indicadores da varivel socioeconmica, que esto classificados na rea temtica renda e
pobreza, disponibilizados em sries histricas pelo IBGE.
2 A TEORIA DOS SISTEMAS E O ESFORO TERICO DESCRITIVO DA
SOCIEDADE CONTEMPORNEA
Compreender as sociedades contemporneas um grande desafio (LUHMANN, 1990;
1998; HABERMAS, 2003a; 2003b). A multiplicidade de indivduos e de relaes entre
ausentes e a consequente escassa possibilidade de relaes diretas e imediatas entre esses
indivduos indicam que as circunstncias (condies de possibilidade) sob as quais a ordem
social emerge e preservada j no encontram respostas hbeis em modelos explicativos
heterorreferentes, baseados em conhecimentos no referidos realidade social20
. Para
Luhmann (2009a), a heterorreferncia expe as teorias sociais a dificuldades muitas vezes
intransponveis. Por exemplo, a epistemologia, enquanto conhecimento produzido de forma
heterorreferente pela cincia21
, no dispe de recursos aptos a fixar as condies de
possibilidade da ordem social. A teoria dos sistemas22
, ento, prope uma alterao radical no
sentido de ressaltar que a ordem social deve incluir suas prprias condies de possibilidade:
A unidade, a universalidade e a delimitao do problema exigem um estilo especial
de reflexo que a remeta a si mesma. Deve incluir as suas prprias condies de
possibilidade, deve problematizar sua prpria possibilidade. [...]. Entre outras coisas,
isso significa que a delimitao de problemas constituintes sempre se refere a
problemas j resolvidos, caso contrrio, eles prprios no seriam possveis.
(LUHMANN, 2009a, p. 18).
A autorreferncia, portanto, se prende a observao da prpria sociedade de forma a
compreend-la tal como, de fato, ela . a partir dessa guinada terica que so habilitados
modelos explicativos da ordem social baseados em conhecimentos referidos realidade
social, gerados no transcorrer dos processos de socializao e de organizao da sociedade23
,
produzidos nos mais distintos mbitos, tais como a poltica, o direito, a economia, a cincia, a
famlia e a religio, dentre outros. Com isso, desponta a concreta possibilidade terico-
descritiva da ordem social contempornea sem fazer remio a 'conceitos' (petitio principii),
tais como a existncia de um grupo e de uma comunidade24
; a 'metforas', tais como a fuso
20 Em outras palavras, em conhecimentos produzidos de forma heterorreferente. 21 Segundo Luhmann (2009a, p. 19), "[...] La ciencia se estableci como un subsistema social que produce teora sobre s mismo, por tanto,
un sistema que contiene la teora del sistema como parte de s mismo; un sistema que reflexiona con la ayuda de una diferenciacin interna, de un subsistema.". Como subsistema da sociedade, a cincia produz conhecimento sobre a sociedade. Contudo, em si mesma, no pode ser
confundida com seu prprio objeto (a sociedade). 22 O termo genrico 'teoria dos sistemas' inclui, na verdade, diversas teorias empricas da sociedade. 23 Processos que so, na verdade, especficos de cada sociedade. 24 Para Luhmann (2009a, p. 35) "Esta tcnica de conceptualizacin presupone que tales conceptos tienen tanta plausabilidad que se puede
prescindir de preguntas ulteriores. Es difcil controlar, en todo caso, que un concepto como ste rena las mismas ideas".
30
de conscincias (conscincia coletiva) e a intersubjetividade25
; ou, ainda, a 'modelos' sociais
previamente conhecidos, tal como o contrato26
(LUHMANN, 2009a).
2.1 O RECONHECIMENTO DA ORDEM SOCIAL COMO UM DADO REAL E A
QUESTO DE SUA EXISTNCIA AUTNOMA
A teoria dos sistemas se prende s condies de possibilidade da ordem social e, com
isso, evade-se de discutir, por exemplo, se a ordem social existe ou no (LUHMANN, 2009a).
Essa simplificao carrega, evidentemente, o pressuposto de que a ordem social existe.
Assim, tal qual a existncia dos seres vivos, a sociedade est posta, um dado cuja
possibilidade de questionamento, quer queiram quer no, mostra-se implausvel27
. Mas,
concomitantemente ao reconhecimento da ordem social como um dado real, surge a pertinente
indagao acerca de sua existncia autnoma em relao ao indivduo. Aqui adquire
relevncia a percepo de que sociedade e indivduo se apresentam como ordens que possuem
naturezas distintas28
. Isso corresponde a dizer que as condies de possibilidade da ordem
social (por exemplo, do seu surgimento, de sua preservao etc.) no podem ser idnticas s
condies de possibilidade do indivduo (do seu surgimento com vida, de sua preservao
biolgica, de sua conscincia individual etc.). Portanto, existem condies de possibilidade
especficas da ordem social que, de maneira alguma, assemelham-se s dos indivduos.
O fato de a ordem social ter condies de possibilidade distintas da vida e/ou da
conscincia no indica, contudo, que a ordem social esteja dissociada do indivduo. Pelo
contrrio, a ordem social carrega de forma imanente a relao que a sociedade mantm com o
indivduo e vice-versa (em termos sistmicos, a relao que o sistema mantm com o meio).
Por isso, as condies de possibilidade sob as quais a ordem social emerge e preservada
terminam por revelar o modo como a sociedade se relaciona com o indivduo. Evidentemente
a ordem social no se restringe relao sociedade/indivduo. A ordem social porta as
interaes sociais que os indivduos mantm entre si. Nesse sentido, Luhmann (2009a, p. 34)
aponta que " As relaes sociais entre as pessoas devem ser diferenciadas analiticamente das
25 Para Luhmann (2009a, p. 35) "[...] en la utilizacin de una metfora que resulte convincente por su plasticidad y haga innecesario el
anlisis posterior al no tener que justificarse como aporte conceptual". 26 Para Luhmann (2009a, p. 36) "[...] porque los contratos vinculan personas segn modelos conocidos. En conexin con ello se puede decir
que la sociedad se constituye mediante un contrato o, inclusive, ella es un contrato. Se piensa as el contrato como una unidad de la diferencia
y el consenso como modo de la unificacin". 27 A probabilidade de desconstruo do que se convencionou denominar 'sociedade' muito escassa. 28 A ordem social no se confunde com o indivduo. Mas esta no uma caracterstica distintiva da teoria dos sistemas, porquanto
'conceitos'28, 'metforas'28 ou 'modelos' sociais previamente conhecidos28 promovem a distino entre coletividade (associao de indivduos) e individualidade e, por isso mesmo, portam, de alguma maneira, a diferenciao entre sociedade e indivduo. Como visto acima, a
caracterstica distintiva da teoria dos sistemas em relao s perspectivas tericas heterorreferentes se prende ao fato de a ordem social ter de
portar suas prprias condies de possibilidade e no mera diferenciao entre sociedade e indivduo.
31
relaes entre o indivduo e a ordem social.29
. Portanto, as relaes entre indivduos no
interior da ordem social no se confundem com as relaes que os indivduos mantm com a
ordem social.
2.1.1 Elemento constitutivo e identidade da ordem social
A partir da discusso sobre a existncia autnoma da ordem social em relao ao
indivduo, a teoria dos sistemas tem de enfrentar questes extremamente polmicas, como,
por exemplo, a do elemento constitutivo e do atributo capaz de caracterizar a ordem social.
Neste sentido, emergem duas indagaes: o que constitui a ordem social e o que lhe d
identidade? Quanto primeira, a natural indicao do indivduo como elemento constitutivo
da ordem social poderia levar as cincias sociais a descrever a sociedade como uma mera
reunio de indivduos, independentemente das interaes (no meio social) entre esses
indivduos; ou, pior ainda, levar a admitir, em casos extremos, a existncia de sociedades
constitudas por apenas um indivduo. Afora isso, ainda impediria de estabelecer critrios de
delimitao da identidade da ordem social que a diferenciasse do indivduo, uma vez que a
primeira seria constituda do segundo. Por sua vez, na questo do atributo que d identidade
ordem social, a teoria dos sistemas se prende possibilidade de designao de um elemento,
operao, ou processo especfico que a caracterize. Evidentemente a designao de um
atributo que d identidade ordem social termina por estabelecer, por si s, a diferenciao
entre sociedade e indivduo. Por isso, deve ser ressaltado que o modo como um elemento,
uma operao ou um processo que d identidade ordem social produzido e reproduzido
no pode estar desatrelado do fato de a relao sociedade/indivduo carregar de forma
imanente diferenciao entre ambos.
As teorias sociais, portanto, no podem se furtar a discutir, por um lado, se a ordem
social constituda ou no de indivduos; e, por outro, qual atributo (por exemplo, um
elemento, uma operao, um processo, dentre outros) produzido e reproduzido no interior da
ordem social sob condies necessariamente controlveis30;31
(propriedade da recursividade),
que, por isso, lhe d identidade. De qualquer forma, at mesmo para amenizar as previsveis
crticas, devemos indicar que esses dois temas no so tratados exclusivamente pela teoria dos
sistemas. As perspectivas tericas heterorreferentes tambm tm de enfrent-los. Por
29 Traduo livre do texto original: "Las relaciones sociales entre las personas deben ser diferenciadas analticamente de las relaciones entre la persona particular y el orden social." (LUHMANN, 2009a, p. 34). 30 Do contrrio, no haveria a possibilidade de reproduo da operao, evento ou circunstncia produzida no interior da ordem social. 31 Sob pena de a ordem social se desdiferenciar, isto , de abrandar sua diferenciao em relao ao indivduo.
32
exemplo, o contrato social, por um lado, revela que a vontade coletiva constituda pela
associao de vontades individuais, indicando, assim, que o elemento constitutivo da vontade
coletiva a vontade individual; por outro, revela que a vontade individual se junge a um
acordo coletivo tcito, indicando que a primeira sofre restries ( controlada) por decorrncia
da vontade coletiva.
No caso especfico da teoria dos sistemas, o enfrentamento s questes do elemento
constitutivo da ordem social e do atributo que lhe d identidade encontram respostas no modo
como a ordem social se relaciona com o indivduo, isto , na relao que a sociedade mantm
com o indivduo (LUHMANN, 2009a). O desenvolvimento terico sistmico direcionado a
ressaltar tanto as identidades entre as distintas ordens (sociedade e indivduo), tal qual na
perspectiva terica do organicismo, como as diferenciaes entre essas ordens, tal qual nas
perspectivas tericas dos sistemas abertos (dualidade operativa sistema/meio) e dos sistemas
fechados (diferenciao operativa sistema/meio).
2.1.1.1 As relaes de continncia e pertencimento entre ordem social e indivduo
Em especial na questo do elemento constitutivo da ordem social, o direcionamento s
relaes de continncia (estar contido) e/ou de pertinncia (pertencimento) entre sociedade e
indivduo parece inevitvel. E, de fato, assim aconteceu com o desenvolvimento inicial da
teoria dos sistemas. Neste contexto, emerge a perspectiva organicista da sociedade em que o
todo autossuficiente composto de partes (LANGE, 1981). A ordem superior (o todo, a
sociedade), ento, exprime a reunio de ordens inferiores (as partes, os indivduos)32
.
Contudo, a transposio do organicismo teoria social no encontra respaldo na realidade
social. Pelo contrrio, a observao dessa realidade tem indicado que a sociedade (o todo ou a
ordem superior) no pode ser considerada apenas a reunio de indivduos (das partes ou das
ordens inferiores). Por isso, o enfoque analtico (ou reducionista) com a segmentao do
todo e a subsequente anlise das partes tem-se mostrado inapropriado a explicar realidades
mais complexas, nas quais os fenmenos no podem ser descritos a partir da mera
segmentao das partes, mas das relaes que se formam entre essas partes e o todo
(LUHMANN, 2009a).
Alm disso, o direcionamento investigativo das relaes de continncia e/ou
pertencimento entre a ordem social e o indivduo coloca a teoria dos sistemas diante da
32 Para Bobbio (2000, p. 147), um corpo orgnico aquele "[...] no qual cada parte est em funo de todas as outras e todas juntas em
funo do todo".
33
impossibilidade de diferenciar a sociedade do indivduo. Nesse caso, a indagao que se faz
se a sociedade contm o indivduo ou se o indivduo pertence a ela, como, ento, descrev-los
como ordens distintas? O fato de a ordem social no se confundir com o indivduo exige,
evidentemente, que a teoria dos sistemas avance no sentido de investigar outras possibilidades
de relacionamento (que no as de continncia e de pertencimento) entre ordens distintas.
Neste ponto, importante ressaltar que o fato de a ordem social e o indivduo se apresentarem
como ordens distintas no implica que sejam mutuamente excludentes. Pelo contrrio, a
ordem social no pode excluir o indivduo e vice-versa33
. Por isso, a relao que a ordem
social mantm com o indivduo (relao sociedade/indivduo) deve, sobretudo, confirmar o
pressuposto de que a sociedade e o indivduo se apresentam como ordens distintas.
2.1.1.2 As relaes que ressaltam a diferenciao entre ordem social e indivduo
A constatao de que o todo no apenas a reunio das partes, conforme propunha o
organicismo (LANGE, 1981), direciona o desenvolvimento posterior da teoria dos sistemas a
ressaltar que a relao sociedade/indivduo exterioriza, na verdade, as caractersticas que
diferenciam ordens distintas (LUHMANN, 2009a). A partir da a teoria dos sistemas tem de
enfrentar duas questes relevantes. A primeira diz respeito possibilidade de a sociedade se
distinguir do indivduo ou, em termos sistmicos, de o sistema se diferenciar do meio
(diferenciao sistema/meio); enquanto a segunda, diz respeito s condies de possibilidade
de preservao dessa diferena (preservao da diferenciao sistema/meio). Nesse contexto,
surge a seguinte indagao: o que, de fato, diferencia o sistema do meio? Ou ainda, que
caracterstica o sistema porta que no pode ser atribuda ao meio? Como visto anteriormente,
a sociedade (o sistema social) no se confunde com o indivduo (o meio). Pelo contrrio, o
sistema possui condies de possibilidades especficas, distintas, portanto, das do meio. A
principal dificuldade se prende eleio de um atributo de uma caracterstica especfica do
sistema que no possa ser atribuda ao meio que permita o sistema distinguir-se do meio.
2.1.1.2.1 O problema da ausncia de critrios de delimitao da identidade da ordem social
Diferentemente de outras cincias, tal como a biologia, que dispe de um evento
especfico que fixa os limites a morte pe termo (delimita) vida , a sociologia no
33 Aqui j se prenuncia o paradoxo da unidade sistmica: o indivduo nem est contido nem pertence ordem social. Em adio, a ordem
social e indivduo no so mutuamente excludentes. Este paradoxo indica que a unidade (sociedade) porta a diferena (sociedade/indivduo).
Essa questo ser tratada no item 12.2.2.3.
34
possui um critrio de delimitao (LUHMANN, 2009b, p. 38) que permita diferenciar o
sistema do meio34
, em outras palavras, que permita diferenciar a sociedade do indivduo. Por
isso, no campo das cincias sociais, a teoria dos sistemas se depara com o problema da
ausncia de critrios de delimitao da identidade sistmica35
. Essa questo remediada
atravs da operao produzida no sistema social, distinta, portanto, daquela que ocorre no
meio, ou seja, no indivduo (sistemas orgnico e psquico).
A operao que d identidade ao sistema certamente no pode ser idntica operao
do meio. Com isso, a questo da delimitao (da fixao dos limites) do sistema direcionada
diferenciao operativa entre sistema e meio. Mas, o que uma operao? No interior da
perspectiva sistmica, a operao entendida como a reproduo do elemento sistmico36
.
Por exemplo, os sistemas orgnicos reproduzem a vida e os sistemas psquicos, o pensamento
(LUHMANN, 1990; 2009b). No caso do sistema social, a operao que lhe d identidade
encontra distintas respostas nas perspectivas da teoria da ao de Parsons e na teoria da
comunicao de Luhmann37
, como se ver no item 2.2. Contudo, antes necessrio enfrentar
a questo da preservao da identidade do sistema social.
2.1.1.2.2 A questo da preservao da identidade da ordem social
Uma vez firmada a possibilidade de o sistema se diferenciar do meio a partir da sua
operao especfica, vem tona a questo da preservao da identidade sistmica. Essa
questo coloca em evidncia