Alfonso Reyes - Mexico Brasil

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Texto sobre ensaísta mexicano, relações Brasil Mexico.

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    ALFoNSo REYES: MXICo E BRASIL ENTRE A NoZ E A CASTANHA

    Paulo Moreira

    reconhecida a importncia, pelo menos em nvel simblico, da gerao de escritores, artistas, arquitetos e filsofos que participaram do Ateneo de la Juventud, uma sociedade de estudo e palestras funda-da aps um ciclo de conferncias em 1907 e 1908 e em atividade at 1914. Seus membros mais importantes continuariam a participar ati-vamente da vida cultural, artstica e poltica do Mxico, especialmente Jos Vasconcelos (1882-1959) e Alfonso Reyes (1889-1959).1 O ques-tionamento que o grupo fez aos princpios positivistas da faco pol-tica conhecida como cientficos na Escuela Nacional Preparatoria e a defesa da educao laica contra conservadores catlicos praticamente coincidiu com a revoluo que ps fim ao domnio de Porfirio Daz, que governou o Mxico de 1884 a 1911. Essa coincidncia de eventos fez com que o Ateneo de la Juventud acabasse simbolizando (em grande medida pelas prprias palavras de seus membros) o novo pas que nascia com o triunfo da Revoluo Mexicana, ainda que as suas relaes tanto com o velho como com o novo regime sejam muito mais complexas.2

    Vasconcelos e Reyes deixaram marcas concretas no tecido urbano do Rio de Janeiro, e o Brasil deixou marcas na trajetria intelectual dos dois intelectuais tambm. Vasconcelos visitou o Brasil na Feira Inter-nacional que comemorava o centenrio da independncia em 1922.3 Como chefe da maior delegao estrangeira, Vasconcelos trouxe con-sigo como presente para a cidade uma imponente esttua do ltimo imperador asteca Cuauhtmoc que ainda hoje est na praa de mesmo nome no Aterro do Flamengo.4 O entusiasmado relato dessa viagem de Vasconcelos ao Brasil e Argentina forma o ncleo de seu famo-so La raza csmica misin de la raza ibero americana, cujo prlogo anunciava a chegada da quinta raa (uma mistura das raas branca,

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    negra, amarela e vermelha) destinada a fundar uma Nova Roma na Amrica Latina.5 Oito anos mais tarde, seis meses antes da ecloso da Revoluo de 1930, Alfonso Reyes chegou ao Rio de Janeiro como em-baixador mexicano. Reyes permaneceu no pas at 1936 e participou intensamente da sua vida intelectual: Portinari ilustrou seus textos; Ceclia Meireles consultou-o sobre as polticas de educao do Mxi-co; gente de todas as tendncias polticas, de Carlos Lacerda a Alceu Amoroso Lima, frequentava a casa de Reyes nas Laranjeiras e Manuel Bandeira citou-o em Rond dos cavalinhos, poema escrito durante o banquete de despedida de Reyes no Jockey Club. Tal era a integrao de Alfonso Reyes nos crculos intelectuais da cidade que ele foi o nico estrangeiro convidado para a famosa comemorao do 50o aniversrio de Manuel Bandeira.6 Enquanto vivia no Rio de Janeiro, Reyes escreveu parte importante da sua obra: treze dos catorze nmeros de uma espcie de revista literria de um autor chamada Monterrey, Correo literario;7 alguns dos seus contos mais importantes foram escritos e/ou se passam na cidade; um de seus melhores livros de poemas, Romances de Ro de Enero, todo dedicado ao Rio de Janeiro; uma coleo de ensaios curtos, Historia natural das Laranjeiras, ilustrada pelo prprio Reyes, e vrios artigos para peridicos, como a revista Literatura, de Augusto Frederico Schmidt.8 Reyes tambm deixaria sua marca no tecido urbano do Rio de Janeiro na forma de um presente mais modesto e mais pessoal ao Jardim Botnico: uma pequena esttua de Xochipilli, a deusa asteca das flores e da primavera.9

    Vou me concentrar agora em dois ensaios curtos de Alfonso Reyes. Um deles, Mxico en una nuez, bastante conhecido;10 foi escrito no Brasil e lido no Teatro Cine Rivadavia, em Buenos Aires, durante um festival patrocinado pelo grupo Amigos de la Repblica Espaola, em 1937. O outro, Brasil en una castaa, foi publicado no Mxico, no jornal El Nacional,11 em 1942. Os nomes sugerem a comparao, parte de um projeto a que Reyes se referia como a criao de uma Gramtica comparada entre las naciones: hemos comenzado apenas a compa-rarnos unos con otros y () de semejante comparacin ha de nacer un conocimiento ms exacto del proprio ser nacional (Reyes, Palabras sobre la nacin argentina, p. 28).

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    No por acidente que o comparativismo de Reyes seja justifica-do por motivos nacionalistas; Mxico en una nuez e Brasil en una castaa tambm fazem parte de um corpus escrito principalmente na primeira metade do sculo XX, cujo trao definidor uma explorao constante da nao como tema, su historia, su cultura, sus problemas econmicos y sociales, sus creaciones literarias y artsticas, su pasado y su presente (Martnez, p.17), como diz Jos Luis Martinez com res-peito ao ensaio mexicano. Esses ensaios so exerccios intelectuais de reinveno atravs do autoexame, com vistas a forjar novas identidades para os principais pases latino-americanos, agora como naes moder-nas em vias de industrializao. Essa busca de redefinio da identidade nacional variava grandemente em termos de estilo, abordagem ou ideo-logia, mas, em geral, se distanciava do pessimismo da gerao anterior para quem todo lo que vala la pena vena de fuera y a todo lo autcto-no, fuera nativo o criollo, se le tena por atrasado (Brading, p. 9).

    O estilo refinado de Alfonso Reyes une engenho ao compromisso estrito com a clareza de expresso, e um tom tranquilo de conversa amistosa com o leitor d erudio e inventividade formal de Reyes um enganoso carter de leitura despretensiosa. Esse esforo por comunicar-se com o leitor j foi descrito como o ideal de compromisso social para Reyes: uma disposio constante por parte do escritor para o dilogo com o leitor sem abrir mo da complexidade como a pedra fundamen-tal de uma atitude democrtica no mundo das letras, um antiautorita-rismo en la forma (Monsivis, p. 49). Outro ponto fundamental dos ensaios de Reyes que, ainda que o mexicano busque conhecimento em diferentes campos (histria, geografia, filosofia, antropologia etc.), sua abordagem , em suas prprias palavras, em ltima instncia literria: cada uno mira el mundo desde su ventana. La ma es la literatura (1959, p. 29). Nesse sentido, os argumentos de Reyes quase sempre se centram em imagens evocativas, a partir das quais suas ideias principais surgem por analogia, algo que j foi descrito como poesa y saber unifi-cados a travs de un acercamiento basado en la reminiscencia y la evoca-cin (Leal, p. 15). Sendo Reyes um classicista dedicado a uma revalori-zao moderna da cultura greco-romana contra o materialismo rasteiro dos positivistas e da retrica vazia do academicismo,12 essas imagens so

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    frequentemente derivadas dos gregos ou romanos. Esse apoiar-se em imagens evocativas-iluminadoras especialmente importante em textos como Mxico en una nuez e Brasil en una castaa, que, como indi-cam seus nomes, tentam encapsular em umas poucas pginas as carac-tersticas essenciais do carter nacional. Um ltimo trao importante da ensastica de Reyes que ele frequentemente se recusa a tomar partido em vrios debates ideolgicos proeminentes em seu tempo, algo que tem sido interpretado, na minha opinio, erroneamente, como sinal de sua omisso ou desinteresse pelas questes polticas.13 O fato que, alm da posio de membro do corpo diplomtico mexicano durante muito tempo, Reyes tinha uma noo idealista do conhecimento que, livre de dogmas rgidos ou subservincias indevidas a fins polticos, poderia afirmar-se ao desmantelar todos os esteretipos e mistificaes demag-gicas. Na prtica, essa postura levou Reyes, s vezes, a uma espcie de equanimidade intelectual, tentando uma sntese conciliatria, s vezes forada, entre linhas de pensamento antagonistas, por exemplo, entre os defensores do cosmopolitismo e do nacionalismo ou do engajamento poltico e de preocupaes estticas.

    A abertura de Mxico en una nuez exemplar do uso que Reyes faz da imagem em seus ensaios: o encontro dos povos americanos com os espanhis que marca o nascimento do Mxico descrito como el choque del jarro contra el caldero. El jarro poda ser muy fino y muy hermoso, pero era el ms quebradizo (p. 42). Classicista convicto, Reyes evoca a Ilada para interpretar a Conquista simultaneamente como tra-gdia (para a populao indgena) e pico (para a Espanha e a Igreja). Os povos americanos, para Reyes dotados de estupenda sensibilidade artstica, esto condenados derrota por sua fragilidade militar; os espa-nhis, com sua imensa capacidade para a intriga e o logro, so capazes da faanha de conquistar populaes e territrios vrias vezes maiores que os seus. Essa simultaneidade trgico-pica possibilita Alfonso Reyes abster-se de assumir uma das duas bandeiras levantadas no Mxico: os hispanistas, que defendiam a centralidade da herana espanhola colo-nial para o Mxico moderno, e os indianistas, que defendiam a centra-lidade das culturas indgenas para a originalidade da cultura mexicana. Reyes repete de certa maneira em Mxico en una nuez o procedimen-

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    to chave de seu ensaio mais famoso, Visin de Anhuac, quando evoca a experincia comum da natureza do planalto de Anhuac, base bruta de la historia, como aquilo que une passado indgena e passado colonial espanhol no Mxico, afirmando no soy de los que suean en perpetua-ciones absurdas de la tradicin indgena, y ni siquiera fo demasiado en perpetuaciones de la espaola (p. 102). Fugindo das duas posies antagnicas, Reyes busca estabelecer uma interpretao contempornea da histria nacional que transcende as duas posies como insuficientes para entender a identidade mexicana.

    Reyes abre Brasil en una castaa dando conta da magnitude da paisagem brasileira como resultado do trabalho de um jovem demiur-go, o agente mediador encargado de gobernar la obra, artista que usa-ba demasiados materiales y tena la fuerza de la inexperiencia (p. 187). Mais uma vez vemos um efeito dramtico derivado de uma imagem clssica (a fonte dessa vez Hesodo), mas, nesse caso, com uma indica-o forte da centralidade da natureza na construo de uma viso idea-lizada do Brasil. Essa fixao na natureza fica mais clara quando Reyes atribui essa mesma exuberncia criativa do demiurgo como origem dos habitantes desse pas de superlativos, descritos como el diplomtico nato, y el mejor negociador que ha conocido la historia humana (p. 188). Assim sendo, s os brasileiros podem desahacer, sin cortarlo, el Nudo Gordiano. Sem qualquer referncia a La raza csmica, Reyes su-gere que os brasileiros so de fato uma espcie de raza csmica, talvez apenas um pouco menos grandiloquente e belicosa do que os messini-cos novos romanos de Vasconcelos.

    Um contraste parecido surge quando Reyes escreve sobre as popu-laes indgenas dos dois pases. Enquanto os astecas pr-colombinos so ferozes opressores dos outros igualmente orgulhosos povos do vale central do Mxico, os ndios brasileiros vivem em perfeita simbiose com o ambiente luxuriante, servindo de inspirao ao bom selvagem de Rousseau, tendo sua poesia traduzida por Montaigne e depois Goe-the.14 Os portugueses rompem essa simbiose perfeita e aceleram as mu-danas na ecologia do Brasil (o termo usado com notvel acurcia por Reyes), transformando o pas em assunto para os historiadores. Tanto Mxico en una nuez como Brasil en una castaa exploram esses

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    contrastes entre geografia e histria com base na ideia de que la historia es mucho ms veloz que la geografa (p. 51). Mas a histria no Brasil de Reyes continua a mover-se com a robustez y lentitud de las erosions geolgicas (p. 188), num ritmo gracioso que contrasta radicalmente com os vaivenes colricos y algo improvisados con que se suceden las etapas en las dems naciones americanas (p. 188). A explicao para essa violncia e velocidade instvel da Amrica Latina espanhola que a Repblica Liberal implantada nesses pases logo aps a independncia um regime que demanda maturidade poltica de naes ainda em sua primeira infncia. Para Reyes, as dimenses gigantescas do Brasil natu-ralmente demandam transies histricas lentas e suaves, e a monarquia d Amrica portuguesa tempo para amadurecer politicamente antes da chegada da repblica. De novo uma imagem forte esclarece a inter-pretao de Reyes para as mudanas histricas no caso brasileiro: la historia es la piedra que cae en el lago dormido (p. 189).

    No Mxico, o caldeiro de metal e o frgil jarro de barro entram em coliso; no Brasil, a dura pedra mergulha no lago adormecido: duas fortes imagens para os encontros entre os povos europeus e americanos no Novo Mundo. Ambos evocam a coliso entre algo duro e algo mole e resultados inexorveis, mas o primeiro encontro se d entre artefa-tos humanos, enquanto o segundo envolve elementos da natureza. No Brasil esta intrusin [da pedra na gua do lago, dos portugueses no continente] no es necesariamente violenta (p. 189): a gua em ltima instncia engole a pedra e readquire pelo menos um pouco da sua ma-jestosa calma. Portanto, no de se admirar que para Reyes a histria do Brasil seja primordialmente a histria do homem contra uma natu-reza cheia de tesouros, mas praticamente indomvel, numa sucesso de ciclos econmicos regionais relacionados com a explorao de recursos naturais (o pau-brasil, a cana, o ouro, o caf, a borracha, o algodo etc). No Mxico, a colonizao acontece entre realidades cruis (la reparticin de la tierra) e eufemismos sangrentos (la encomienda de almas) (p. 44), desde os conflitos entre Coroa, colonizadores, Igreja e indgenas durante o perodo colonial at as guerras sangrentas entre caudilhos, liberais e conservadores aps a independncia, passando pelo longo sono da paz do Porfiriato at o doloroso despertar da Revoluo.

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    A histria mexicana , portanto, uma tragdia de sangue que faz Reyes afirmar que a la majestad de la Historia no siempre conviene el que los grandes conflictos encuentren soluciones fciles (p. 45) e o carter na-cional descrito em mais uma imagem impactante: la cara del nuevo pueblo se va dibujando a cuchilladas (p. 49).

    Mxico en una nuez, texto lido na Argentina, termina com uma eloquente defesa da Revoluo Mexicana. A revoluo para Reyes mar-ca o sbito fim de anos de autoalienao em que a herana cultural hispnica e indgena eram uma fonte de embarao para a fantasia de uma pacfica repblica liberal moda francesa sob a mo de ferro de Porfi-rio Daz. um momento precioso de autodescoberta, uma chance de fazer valer o verdadeiro potencial do Mxico e recuperar os tesouros, espanhis ou indgenas, do passado. As ltimas palavras de Reyes em Mxico en una nuez misturam orgulho e um pedido de confiana para a Revoluo mexicana num contexto em que a reforma agrria e os esforos de laicizao do Mxico eram para alguns crticos estrangei-ros perigosos excessos vistos com desconfiana por outros governos latino-americanos menos ousados: Algunos nos han compadecido con cierta conmiseracin. Ha llegado la hora de compadecerlos a nuestro turno. Ay de los que no ha osado descubrirse a s mismos, porque an ignoran los dolores de este alumbramiento! (p. 56).

    A eloquncia tambm marca o fim de Brasil en una castaa, mas, no caso, Reyes ressalta seu entusiasmado panegrico a uma nao de beleza natural extasiante e infinita generosidade e felicidade:

    Y de todo ello resulta una hermosa y grande nacin que nunca perdi la sonrisa ni la generosidad en medio del sufrimiento, ejemplar a un tiempo en el coraje y en la prudencia, orgullo de la raza humana, promesa de felicidad en los das aciagos que vivimos, fantstico espetculo de humanidad y naturaleza, cuya con-templacin obliga a repetir con Aquiles Tacio: Ojos mos, estamos vencidos!.

    Achilles Tatius o autor do romance grego Las aventuras de Leuci-pa y Clitofonte, do sculo II d.C., e Reyes faz referncia aqui passagem em que Clitofonte expressa o quo maravilhado fica com a cidade de Alexandria, espetculo urbano e natural da civilizao helenstica.15

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    Para Alfonso Reyes, Mxico e Brasil so dois frutos de origem eu-ropeia em solo americano: uma, o Mxico, uma noz, seca, enrugada, dura e amarga; a outra, o Brasil, uma castanha mida, lisa, macia e suave. Entre a leitura de Mxico en una nuez na Argentina e a publi-cao de Brasil en una castaa no Mxico, Reyes escreveu, em 1932, El ruido y el eco, um poema em que os dois pases aparecem em contraste direto em um intrincado de imagens em torno de um terceiro fruto. Agora temos um par de cocos:

    Si aqu el coco de Alagoaslabrado en encaje, allla nuez de San Juan de Ula,calada con el pual.

    Essa pequena estrofe um prodgio da imaginao potica sinttica de Reyes, na qual o poeta toma mximo partido dos mltiplos senti-dos dos verbos labrar (que significa esculpir, mas tambm bordar) e calar (que significa perfurar, mas tambm tecer). Aqui est feito mais uma vez o contraste entre Brasil e Mxico, tendo como ponto de com-parao duas formas completamente diferentes de artesanato que usam o mesmo material, o coco. Do Brasil vm os delicados bordados feitos com a fibra de coco em Alagoas trabalho tradicionalmente domstico e feminino. Do Mxico vm as elaboradas esculturas em baixo relevo feitas em cocos lavrados trabalho que exige grande fora fsica devido dureza da casca e que era tradicionalmente feito por prisioneiros do no-trio forte-priso de San Juan de Ula, a Alcatraz mexicana, constru-do pelos espanhis no comeo do sculo XVI em Veracruz, no Golfo do Mxico.16 Para Reyes, Brasil e Mxico so pases latino-americanos exemplares na sua capacidade de sintetizar esteticamente as culturas eu-ropeias e no europeias, mas, enquanto no Brasil essa sntese feita en encaje, no Mxico ela feita con el pual.

    Uma possvel explicao para esse olhar idlico que Reyes lana so-bre o Brasil estaria na sua histria de vida. Em 1913, seu pai um dos mais prestigiados generais do Porfiriato foi morto a tiros em frente ao Palacio Nacional, em meio a uma tentativa fracassada de golpe contra o

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    governo revolucionrio. Logo aps, outro golpe, liderado por Victoria-no Huerta, obteve sucesso e, quando o filho mais novo do general Reyes recusa um convite para ser o secretrio particular do novo presidente, aconselhado a deixar o pas. Reyes ento entra no servio diplomtico e foge das agitaes do seu pas por dezessete anos.

    Depois de deixar Paris com a Primeira Guerra Mundial, passar di-ficuldades financeiras na Espanha e conviver com os nimos exaltados dos aguerridos crculos intelectuais argentinos, Reyes se impressiona com a capacidade de Getlio Vargas de construir coalizes de amplo espectro poltico com tenentes, outros militares, oligarquias dissidentes, catlicos conservadores, classes mdias urbanas, sindicatos postos sob a sombra da burocracia estatal e outros. A capacidade de Getlio Vargas para manobrar politicamente da direita para a esquerda, seduzindo an-tigos inimigos e colocando no ostracismo velhos aliados sem se desgas-tar, chamava a ateno do jovem diplomata, que o comparava com os lderes polticos mexicanos nos anos de instabilidade violenta de uma nao que, nas palavras do prprio Reyes, llevaba diez aos de buscarse a s propia (p. 55).17

    Creio, entretanto, que essa explicao de fundo biogrfico no d conta de como Brasil en una castaa reflete pontos de vista que ti-nham ampla aceitao em vrios crculos intelectuais brasileiros da po-ca. Ao contrrio de Jos Vasconcelos, que fantasiava livremente sobre o Brasil de Epitcio Pessoa e Arthur Bernardes como um dnamo benevo-lente rumo a desafiar a hegemonia anglo-sax no continente, Reyes era um vido leitor, com grande curiosidade pela cultura brasileira e que cultivou relacionamentos com intelectuais de todos os matizes e portes, como Graa Aranha e Gilberto Freyre, durante os anos em que viveu no Rio de Janeiro.

    Na medida em que o sculo XX avana, um nmero crescente de intelectuais brasileiros e mexicanos se sente pouco vontade, no ape-nas com os princpios do positivismo e do naturalismo, mas tambm (e talvez de forma mais decisiva) com o liberalismo clssico em sua feio particular latino-americana. O movimento contra esses princpios ideo-lgicos e estticos que haviam sido elevados a dogmas vazios no Mxico e no Brasil ganha momentum simblico e concreto com agudas crises

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    institucionais e polticas nos dois pases. No Mxico, essa crise ganha a velocidade alucinante de uma revoluo, com a queda de Porfirio Daz em 1911, at que o pas recobre uma certa estabilidade nos anos 30. No Brasil, essa crise tem uma primeira exploso durante a campanha eleitoral de Arthur Bernardes, em 1922, e a partir da se intensifica at chegar revoluo que d incio aos turbulentos anos 30. Tanto o Por-firiato como a Primeira Repblica so identificados, pelo menos simbo-licamente, com a hegemonia cultural do positivismo, do liberalismo e, no campo literrio, do parnasianismo no Brasil e do seu equivalente em espanhol, chamado de modernismo no Mxico. A derrocada desses dois regimes foi determinante para a direo das ideias e da vida dos intelec-tuais e artistas que tiveram um papel definidor da identidade moderna nos dois pases nas dcadas seguintes. Essa diferena de mais ou menos dez anos entre essas duas geraes do centenrio (1910 e 1922)18 ex-plica o papel mais proeminente do vanguardismo no Brasil do que no Mxico, embora essa relevncia naquela poca talvez tenha sido exa-gerada retrospectivamente. Os atenestas como Alfonso Reyes e Jos Vasconcelos homens da gerao de Manuel Bandeira tiveram no Mxico o papel influente dos modernistas brasileiros, em geral homens mais jovens como Mrio de Andrade e Gustavo Capanema. Vasconce-los exerceu influncia considervel e deu extraordinrias oportunidades de trabalho aos muralistas, e ainda fundou a UNAM seu o lema da universidade, por mi raza hablar el espiritu. Reyes aconselhou e aju-dou as geraes mais jovens de escritores mexicanos, dos contemporneos at Octavio Paz, e tambm fundou e presidiu o Colegio de Mxico. Essas instituies (UNAM e Colegio de Mxico) e artistas (muralistas e contemporneos) deram a cara da cultura mexicana na primeira metade do sculo e ainda so, de certa forma, paradigmticos.

    No deveria surpreender que a refutao da esttica modernista (no custa lembrar, o equivalente espanhol da esttica com grande influncia francesa com acento parnasiano e simbolista do fim do sculo XIX) apa-rea num soneto de Enrique Gonzlez Martinez, Turcele el cuello al cisne, enquanto a refutao dessa mesma esttica no Brasil venha com os escndalos vanguardistas da Semana de Arte Moderna. Estariam os brasileiros compensando a mudana poltica, para usar um termo infame,

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    sempre lenta, gradual e segura com uma retrica literria incendiria e radical? Seria o to propalado classicismo mexicano, o tal apego introspeco da pica en surdina, uma forma de preservar-se durante anos de violncia revolucionria? Em vez de pensar em excepcionalismos mutuamente exclusivos, poderamos pensar nessas duas reaes como fa-cetas do modernismo, entendido aqui em seu sentido em portugus e na sua acepo mais ampla, englobando, mas no se restringindo a qualquer vanguarda, inclusive aquela chamada de Modernismo nos anos 20.

    Nesse sentido, Mxico en una nuez e Brasil en una castaa so ensaios em que Alfonso Reyes resume os desejos e as necessidades, as qualidades e os limites, a viso e a cegueira de muitos companheiros dessas geraes que desenharam, por bem ou por mal, uma imagem que Mxico e Brasil tiveram de si mesmos por muito tempo. Curiosamente, tanto o mito da Revoluo Mexicana redentora como o do pas cordial das solues diplomticas e transies suaves cairiam juntos, em 1968, com o massacre de Tlatelolco, no Mxico, e o AI-5, no Brasil.

    notas

    Alm de Vasconcelos e Reyes, vale a pena mencionar Pedro Henrquez Urea (1884-1946), Antonio Caso (1883-1946), Julio Torri (1889-1970), Martn Luis Guzmn (1887-1977), Enri-que Gonzlez Martnez (1871-1952), Jsus T. Acevedo (1882-1918), Manuel M. Ponce (1882-1948) e Diego Rivera (1886-1957). 2 Por exemplo, Justo Sierra, ministro da Educao de Porfirio Daz, teve forte ascendncia no incio do grupo e mesmo o prprio Don Porfrio foi convidado a um dos atos do grupo. Ver Carlos Monsivis, Prlogo, Mxico Alfonso Reyes (Mxico: FCE, 2005, pp. 32-42).3 Um reencontro interessante da viagem de Vasconcelos aparece em artigo de Mauricio Tenrio, A Tropical Cuauhtemoc Celebrating the Cosmic Race at the Guanabara Bay, em Anales del Instituto de Investigaciones Estticas, 1994, vol. XVI, n. 65, pp. 93-137.4 Ironicamente, a esttua era uma rplica do Cuauhtmoc do Paseo de la Reforma na capital mexicana, documento da longa relao entre Porfirio Daz com a Tifanny e exemplo de arte indigenista, que desagradavam o antiamericanismo e ardente hispanismo de Vasconcelos. Em Las estatuas y el pueblo, Alfonso Reyes j indica que a populao da cidade havia adotado o Cuauhtmoc, fazendo dele un inmenso amuleto, una mascota, una imagen propiciatoria de la Buena suerte (p. 64), de acordo com anedota contada a ele por Murilo Mendes.5 Vasconcelos visitou Salvador, So Paulo, Campinas, Santos, Belo Horizonte, Ouro Preto, Bar-bacena e Juiz de Fora e insistiu em ir do Rio de Janeiro ao Uruguai de trem para ver el pas, no las olas, que son iguales en su multiplicidad inumerable (La raza csmica, pp. 131-132).

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    6 A melhor fonte de referncias sobre esses anos da vida de Reyes o livro de Fred P. Ellison, Alfonso Reyes e o Brasil (Rio de Janeiro: Topbooks, 2002).7 Jos Emilio Pacheco considera Monterrey uma espcie de precursor dos blogues, antes da inter-net, e uma das mais importantes iniciativas de contatos interamericanos nos anos 30. 8 Histria natural das Laranjeiras apareceu pela primeira vez em 1955 no nono volume de Obras Completas de Reyes, onde se encontra grande parte dos escritos brasileiros do autor.9 O discurso Ofrenda al Jardin Botnico de Rio de Janeiro (Obras Completas IX, pp. 89-92), na inaugurao da esttua, dedicado a Paulo Campos Porto, diretor do Jardim Botnico de 1931 a 1938, com quem Reyes cooperou na montagem do jardim de cactus do Jardim Botnico, trazendo sementes de peyote do Mxico, e no jardim em volta da esttua do Cuauhtmoc, no Flamengo. 10 Mxico en una nuez foi publicado em livro em 1959, no Obras Completas, e j apareceu em vrias coletneas de texto de Reyes. Por exemplo, em 1996, o Fondo de Cultura Econmica intitulou o tomo dedicado a Reyes na coleo de livros de bolso de baixo custo Cultura para todos de Mxico en una nuez y otras nueces. 11 Inicialmente chamado El Nacional Revolucionario, o jornal foi criado em 1929, durante a conveno nacional do recm fundado PRN (que se transformaria em PRM em 1938 e, final-mente, PRI em 1945) e tornou-se tambm porta-voz oficial do governo mexicano. 12 Essa ambio era central nos projetos desenvolvidos pelos atenestas em suas vidas como agitadores culturais. Um dos pontos principais dos ambiciosos planos educacionais do ministro Jos Vasconcelos era a criao de bibliotecas escolares com uma coleo de clssicos (Homero, squilo, Eurpides, Plato, Dante, Goethe, Cervantes etc.) cuidadosamente retraduzidos e pu-blicados em edies de vinte a cinquenta mil volumes. 13 Mario Vargas Llosa recentemente escreveu um artigo (Un hombre de letras) sobre as obras completas de Reyes, em que deixa clara sua impacincia com esse intelectual pblico de sim-patias liberais, mas que parece ter orientado sua vida no sentido oposto a de Vargas Llosa, que j foi at mesmo candidato a presidente do Peru e conhecido pela defesa veemente de suas crenas liberais. 14 Reyes publicou, em 1933, no livro El libro y el pueblo, suas tradues para esses fragmentos de poesia indgena pr-colonial que haviam sido traduzidos para o francs e portugus. Ver Poesa indgena brasilea (Reyes, 1959, pp. 86-88).15 O trecho completo em espanhol diz: Miraba esto, iba a ver lo otro, corra a contemplar lo del ms all y me atraa lo que an me quedaba por ver. Y as recorriendo todas las calles, cautivo de un anhelo insaciado ante tanto espectculo, exclam extenuado: Ojos mos, estamos vencidos!.16 Ainda no perodo colonial, os cocos maduros eram lavrados e depois recebiam apliques de prata para a confeco de taas usadas para o consumo de chocolate, hbito nativo adotado e depois adaptado pelos colonizadores europeus. No sculo XIX, comearam a confeccionar cofres de moedas esculpindo os cocos em forma de peixes ou felinos (Rivero, p. 256). 17 Nesse sentido, o segundo volume de Misin diplomtica, que contm relatrios e outras co-municaes do embaixador ao governo mexicano, um notvel documento do conhecimento que tinha Reyes do contexto poltico brasileiro no comeo dos anos 30. 18 O grupo de Reyes e Vasconcelos seria renomeado como Ateneo de Mxico em 1912 e essa gerao tambm tem sido chamada de la generacin del centenario por causa das festividades do centenrio da independncia mexicana em 1910.

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    Referncias bibliogrficas

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  • ALFonso reyes: Mxico e BrAsiL entre A noz e A cAstAnhA

    86 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 23 p. 73-86 julho/dezembro 2010

    Resumo O artigo discute dois ensaios de Alfonso Reyes que comparam Brasil e Mxico. Os en-saios so vistos como exerccios intelectuais de reinveno desses pases como naes moder-nas em vias de industrializao.

    Palavras-chaveEnsaio; identidades; Amrica Latina; histria.

    Recebido para publicao em25/08/2010

    AbstractThe article is focused on two essays by Alfonso Reyes comparing Brasil and Mexico. The texts are interpretated as intelectual exercises of rein-vention of these countries as modern nations in the process of industrialization.

    Keywords Essays; identities; Latin America; History.

    Aceito em17/10/2010