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Algumas anotações de “Hume, Freud, Skinner” de Bento Prado Jr. Tanto em Freud quanto em Skinner e Hume há um retorno ao/do senso-comum, mas que se faz para desmascarar as suas ilusões, para dessacralizar o homem. Algumas conclusões gerais da primeira parte: (i) o princípio da associação é o que caracteriza a psicologia humeana; (ii) Hume, Freud, Skinner, eles desmitificam o senso-comum, mas as suas teorias são um retorno radical ao mesmo. A questão da prática terapêutica para Freud e Skinner: de um lado, uma distância infinita entre analista e analisado (nesse caso, interpretação); de outro, modificação do comportamento (aqui, o autor parece não compreender a diferença), o analisado é manipulandum do analista. Quando o autor diferencia o método de análise da psicanálise e da análise do comportamento, dizendo que esta última não alcança o domínio profundo, do latente, mas somente o público, a superfície, parece-me que ele incorre em erro. Afinal, a análise do comportamento vê o “profundo” de outro modo. Não se trata, para essa teoria, de um profundo nos topoi da “mente”, como já foi visto, mas, sim, do profundo da função (que não se dá na superfície amostral do comportamento), diferente da topografia (a superfície; descrição do comportamento conforme sua forma ou estrutura). O autor também diz o seguinte: “Nenhuma compreensão profunda e total pode substituir a decomposição do comportamento na pluralidade de seus registros locais” (pp. 14-15). Mas de onde tira essa relação entre profundidade e totalidade, que aparece então como necessária devido a sua oposição com a “decomposição”, com as “partes” ou “registros locais” que implica? Para a esquizoanálise como para a análise experimental do comportamento não há origem como não há fundo profundo, mas só superfície e a eficácia da

Algumas anotações de Hume, Freud, Skinner (bento prado jr)

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Algumas anotações de “Hume, Freud, Skinner” de Bento Prado Jr.

Tanto em Freud quanto em Skinner e Hume há um retorno ao/do senso-comum, mas que se faz para desmascarar as suas ilusões, para dessacralizar o homem.

Algumas conclusões gerais da primeira parte: (i) o princípio da associação é o que caracteriza a psicologia humeana; (ii) Hume, Freud, Skinner, eles desmitificam o senso-comum, mas as suas teorias são um retorno radical ao mesmo.

A questão da prática terapêutica para Freud e Skinner: de um lado, uma distância infinita entre analista e analisado (nesse caso, interpretação); de outro, modificação do comportamento (aqui, o autor parece não compreender a diferença), o analisado é manipulandum do analista.

Quando o autor diferencia o método de análise da psicanálise e da análise do comportamento, dizendo que esta última não alcança o domínio profundo, do latente, mas somente o público, a superfície, parece-me que ele incorre em erro. Afinal, a análise do comportamento vê o “profundo” de outro modo. Não se trata, para essa teoria, de um profundo nos topoi da “mente”, como já foi visto, mas, sim, do profundo da função (que não se dá na superfície amostral do comportamento), diferente da topografia (a superfície; descrição do comportamento conforme sua forma ou estrutura). O autor também diz o seguinte: “Nenhuma compreensão profunda e total pode substituir a decomposição do comportamento na pluralidade de seus registros locais” (pp. 14-15). Mas de onde tira essa relação entre profundidade e totalidade, que aparece então como necessária devido a sua oposição com a “decomposição”, com as “partes” ou “registros locais” que implica?

Para a esquizoanálise como para a análise experimental do comportamento não há origem como não há fundo profundo, mas só superfície e a eficácia da terapêutica é mais próxima da prática humildade da topografia do que da tecnologia sofisticada da prospecção do subsolo. (p. 15).

A ênfase na dimensão pragmática do sintoma (ao contrário da estrutural, de origem) feita por Guattari, diz B. Prado Jr., “oblitera a pergunta pelo sentido, e [...] reduz o inconsciente à sua dimensão econômica [...]” (p. 16).

Por que a psicologia de Hume não é a associacionista?[...] sem a presença de um princípio ativo, a vida psicológica jamais se constituiria temporalmente, e se reduziria à sucessão descontínua de presentes puncutais. E, nesse caso, todo comportamento [...] seria da natureza da resposta ou do reflexo. É a noção de hábito que desempenha essa função de princípio ativo que fixa e desdobra as sínteses passivas da associação. Como princípio, ele transcende os estímulos ou as impressões e, como instância diferente delas, empresta-lhes, retrospectivamente, sua coesão (p. 20).

O que é importante notar aqui, com Deleuze, é que, ao contrário do que pensa o senso-comum – e toda a tradição da psicologia intelectualista –, Hume não pensa

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o hábito como um efeito da repetição das impressões ou das associações entre os estímulos. Pelo contrário, as associações são fruto do hábito que as precede como “princípio da natureza humana”. (p. 21).

Depois, Prado Jr. diz que as noções de hábito, em Hume, e reforço, em Skinner, têm papel importante “na formação do operante ou do comportamento dos organismos” (p. 21). Se o hábito é um “princípio da natureza humana”, seríamos levados a dizer que também o reforço o é?

Sobre a lógica do delírio em Hume (no que tange à imaginação, eis um ponto importante):

O que nos interessa é essa idéia paradoxal de uma lógica do delírio. [...] mesmo no sonho, a imaginação já se acha por assim dizer domesticada pelos mecanismos de associação. Mas, deste ponto de vista, só percebemos um aspecto – que não é o mais revelador – da questão. Com efeito, se, no sonho, a razão domestica a imaginação, por outro lado, é certo que toda forma de racionalidade pressupõe como solo e matéria-prima o dado originário do delírio ou do fluxo anárquico das imagens. Ou, para retomar a frase de Deleuze, em sua interpretação de Hume: a loucura é o fundo do espírito. (p. 22).

Voltando à interpretação que Deleuze faz de Hume:Ainda seguindo a interpretação de Deleuze, poderíamos dizer que o espírito, como caos originário de representações, é a base sobre a qual se edifica, pelo funcionamento de certos princípios, a natureza humana, como racionalidade e como moralidade. Em si mesmo o espírito, chão da razão, nada mais é do que fluidez e errância, fantasia. (p. 22).

Outro:Todo o problema da psicologia de Hume – repitamos outra vez a tese de Deleuze –, é o de mostrar o processo através do qual o espírito, que em si mesmo é puro delírio, pode transformar-se em natureza humana, isto é, numa subjetividade regulada por princípios e comandada por uma regularidade. Serão, como ninguém ignora, os princípios de associação que deverão facilitar conexões privilegiadas entre idéias, excluindo infinitas outras associações possíveis. Mas não será também um mecanismo associativo que permitirá mais tarde a Freud retraçar no campo puramente fluido do inconsciente (definido simultaneamente como campo de “representações” e de “pulsões”) uma espécie de “lógica do delírio”? Por trás dos mecanismos de condensação e de deslocamento não podemos encontrar algo de semelhante, em sua função, aos princípios associativos que, em Hume, transformam a imaginação em sujeito? [...] (p. 23).

Bem, um ponto interessante sobre esse trecho é que “natureza humana”, de algum modo, é aí tomada como um a posteriori, um produto – o qual é, no caso, comandado por uma regularidade e regulado por princípios, que nada mais são do que, no caso de Hume, a experiência e o hábito. No que se segue, podemos notar que Merleau-Ponty dirá que os princípios de associação freudianos são os “princípios eróticos do entendimento” (sem, no entanto, dar valor maior ou único a eles). E diz adiante:

É de se notar que a síntese passiva do entendimento é oposta ao intelecto, à consciência, que realiza as sínteses ativas (ativas porque com participação do sujeito consciente).

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O autor termina dizendo que a teoria de Deleuze é toda guiada pelo fio humeano que estabelece já em uma das suas primeiras obras: Empirismo e Subjetividade. Ademais, chega a aproximar Skinner e Deleuze (& Guattari) através desse mesmo fio – o da teoria de D. Hume. Fora desse círculo, tem-se apenas Freud, a qual possui uma dimensão hermenêutica, conforme o autor.

Enquanto a epistemologia das ciências naturais parece ter-se libertado dos fantasmas da ontologia, a epistemologia da psicologia (senão das ciências sociais em geral) persiste fascinada pelo ser da psique: com todas as alternativas clássicas da metafísica, liberdade/causalidade, sentido/força etc. etc. Persistência só compreensível pelo fato de que no domínio das quase-ciências as idéias de causalidade e de verdade guardam o sabor arcaico que perderam nas ciências avançadas. (p. 26).