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Alimentação e comensalidade em “O Banquete de Trimalchião”: a reverência aos deuses, aos mitos e à arte culinária Isabella Magalhães Callia * Pão carbonizado pela erupção do Vesúvio, em 79 EC, Pompeia (Ca), Itália. 1 Italianista, especialista em Gastronomia: História e Cultura (SENAC, 2015), pesquisadora das práticas alimentares da Roma Imperial. Mestranda em Língua, Literatura e Cultura Italianas, pela FFLCH/USP, sobre o receituário de Pellegrino Artusi (século XIX), sob orientação da Prof. a Dr. a Maria Cecilia Casini. [email protected]

Alimentação e comensalidade em O Banquete de Trimalchião · O banquete romano, como veremos, de fato, rico e complexo evento social, teve sua origem na cultura grega, e, para se

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Alimentação e comensalidade em “O Banquete de Trimalchião”:

a reverência aos deuses, aos mitos e à arte culinária

Isabella Magalhães Callia*

Pão carbonizado pela erupção do Vesúvio, em 79 EC, Pompeia (Ca), Itália.

1 Italianista, especialista em Gastronomia: História e Cultura (SENAC, 2015), pesquisadora das práticas

alimentares da Roma Imperial. Mestranda em Língua, Literatura e Cultura Italianas, pela FFLCH/USP, sobre o

receituário de Pellegrino Artusi (século XIX), sob orientação da Prof. a Dr. a Maria Cecilia Casini.

[email protected]

Introdução

A partir da análise de passagens de O Banquete de Trimalchião, capítulo de

Satiricon, sátira atribuída a Petrônio (século I EC), pretendemos fazer algumas

considerações introdutórias sobre a presença dos mitos e dos ritos que se configuram

na esfera da alimentação e da comensalidade.

No regimento do banquete privado greco-romano são explicitadas duas

principais fruições: a alimentar e a filosófica. O Canto VII da Odisseia de Homero

canonizou o simpósio como símbolo da hospitalidade grega e, desta forma, designou

este como espaço da memória, do conhecimento e da variedade. Enquanto para os

gregos o banquete era uma forma de reverência aos deuses e de convivialidade, e,

portanto, normatizador da esfera cívica, para os romanos o culto passará

progressivamente a dar maior ênfase aos prazeres gastronômicos (ALBERT, 2009).

Partindo destas premissas, observaremos sobre de que forma no texto de

Petrônio nos é possível identificar o lastro cultural deixado por Homero em dois planos:

na ritualística alimentar e comensal descrita e consolidada em seus versos, bem como

na sua presença no decorrer da ceia enquanto sinônimo de erudição, por parte do

anfitrião.

Como embasamento teórico, este trabalho se apoia nas reflexões de Jean-Marc

Albert (2009), Massimo Montanari (2004) e Jacques Derrida (1998). Foram escolhidas

as traduções de O Banquete de Trimalchião de Miguel Ruas2, e do Canto VII, da

2 Satiricon. Escala (1982).

Odisseia, de Messionia Rodrigues Gonçalvez3.

1. Petrônio e Satiricon

Pouco se sabe sobre Titus Petronius Niger (c. 27- 66 EC), também conhecido

por Petrônio Árbitro, a quem atribuem a autoria de Satiricon. O cortesão, escritor e

político, era um distinto frequentador da corte de Nero, como descreveu Tácito4 em

seus Anais5;

Petrônio consagrava o dia ao sono, e a noite aos deveres e aos

prazeres.[…] foi admitido entre os poucos íntimos de Nero e tornou-se

na corte o árbitro do bom gosto: nada mais delicado, nada mais

agradável do que aquilo que o sufrágio de Petrônio recomendava ao

príncipe, sempre embaraçado na escolha (TÁCITO, XVI:18, tradução

nossa).

Árbitro do bom gosto, Petrônio gozava de grande prestígio e ditava

comportamentos. Dado que não passará despercebido ao lermos algumas passagens

de sua obra de acurada crítica social, ridicularizando elegantemente seu entorno.

Satiricon é uma obra fragmentária, da qual a parte que se preservou

integralmente é a do Banquete de Trimalchião. Através dos trechos conservados

podemos acompanhar, ainda que de forma incompleta, a narrativa autobiográfica das

aventuras do jovem estudante de retórica, Encolpio.

3 Odisseia, 7: tradução e comentários. UFRJ (2010).

4 Historiador, orador e político romano, Publio Cornelio Tacito (55 – 120 EC).

5 Annali, XVI. La fine di Petronio, Arbiter Elegantiae.

Modernamente considerada um romance, o que faz desta obra única é sua

estrutura peculiar de alternância entre diálogos, prosa e poesia. Em seu ensaio de

análise comparativa, Carnavalização em “O Banquete de Trimalquião” e The Great

Gatsby6 (2013), Jassyara Fonseca aborda a atemporalidade do texto de Petrônio;

Considerado o primeiro romance realista da literatura universal, o

Satyricon apresenta características que antecipam o que no século XIX

comporia esta estética. No prefácio de Raymond Queneau [...] tem-se a

seguinte citação, a qual confirma as relações que o texto de Petrônio

estabelece com a modernidade: “De todos os escritores da Antiguidade,

não há nenhum mais ‘moderno’ que Petrônio. Ele poderia entrar, e com

o pé direito, na literatura contemporânea, e seria tomado como um de

nós.” (FONSECA, 2013:73, grifos da autora).

Devido a sua escrita inovadora, tanto em sua concepção quanto em sua

polifonia, a qual mescla oratória e gíria das ruas, o autor muito provavelmente seria

“tomado por um de nós” também pelo fato de seu protagonista ser um completo anti-

herói, como veremos.

Incerta a autoria, e incerto é também o nome da obra. Nos manuscritos não há

um consenso sobre o título, podendo variar entre Satiricon, Satyricon, Satíricos ou

Satyricos (livros), Satyri fragmenta e Satirarum libri. Tornou-se praxe referir-se à obra

por Satiricon, provavelmente forma de genitivo plural da palavra grega (na qual está

subentendida a palavra livros). Outro nome representativo é Saturae ou Satirae, que

pode ser entendido por “livros satíricos” e “livros de coisas de sátiros”, fazendo menção

ao sátiro, delimitando seu conteúdo cómico-satírico e licencioso7. A sátira, ou satura,

como veremos mais detalhadamente, evidencia e ridiculariza as paixões, os modos de 6 Revista Rónai (2013).

7 Satyricon. Enciclopedia Trecani. Tradução nossa.

vida e os comportamentos comuns de pessoas ou grupos sociais que “contrastem com

o ideal ético ou político do autor, de tom que pode ser ácido, cru, amargo ou mordaz8”.

Este gênero literário original da literatura latina inicialmente se caracterizava sob

forma de miscelânea poética sobre temas diversos, tais como fábulas, reflexões morais,

etc., para então, posteriormente, enveredar por dois caminhos; sob a métrica poética

literária de hexâmetros, nas vestes de uma linguagem quotidiana, explícita,

expressando forte agressividade política; ou então como sátira menipeia, a qual

combinava prosa e poesia, com a presença de trechos dialógicos. Satiricon se

enquadra nesta segunda tradição.

A raiz etimológica do nome satiricon vem do latim satura, do adjetivo satur

«pleno, saciado» e por extensão «variado, misto» (também, com valor negativo,

«confuso»), o termo goza de uma interpretação antiga, na qual estaria relacionado à

lanx satura, o prato de variadas delícias oferecido ritualisticamente aos deuses; algo

como um “virado” composto pelas melhores comidas misturadas num prato só, um

“tudo junto ao mesmo tempo”, aquilo que em italiano se chama de pasticcio, em francês

de pastiche, e em português pode ser entendido de forma bastante redutiva por

confusão. Já segundo outros, a palavra sátira estaria ligada ao etrusco satir «palavra,

discurso»; as variantes saty̆ra e depois satĭra, das quais deriva a forma do vocábulo, se

difundiram na época da Roma Imperial9.

De fato, o texto em questão retrata uma grande variedade, não apenas em sua

estilística, mas também, e, aqui sim, “uma variedade confusa”, nos próprios pratos

oferecidos por Trimalchião, compondo uma verdadeira lanx satura, como nos narrará o

protagonista Encolpio, logo no início da ceia: “realmente, parecia assistirmos a um coro

de pantomima e não a uma ceia no triclínio de uma pessoa de bem” (PETRÔNIO,

8 Idem.

9 Idem.

1980:40).

2. Mesmo à mesa os clássicos caem bem

Enquanto o narrador da obra, Encolpio, é um jovem letrado e culto, desprovido

de bens, o anfitrião do dantesco banquete, Trimalchião, é um liberto riquíssimo,

contudo, ignorante e privo de modos. No banquete em sua suntuosa residência, que

conta com escravos das mais variadas partes do Império Romano, serão servidos

excêntricos pratos, os quais orbitam entre o luxo do supérfluo, a abundância

espetacularizada e o desperdício ostentatório, e, como veremos, toda a comensalidade

presente na obra será permeada de uma ritualística bastante delimitada. Comecemos

pela análise do termo banquete.

Para o verbete banchetto na Enciclopedia Treccani resultam dezoito definições,

em que a palavra é sinônimo do latim convivio, convivium, estar junto. Outro sinônimo é

convito, de convitare, convidar, para um convivium. Em sua definição sobre a palavra

banchetto encontra-se:

BANQUETE (fr. festin, banquet; sp. banquete; ted. Bankett; ingl.

Banquet). A antiguidade clássica - Com o nome de banquete ou convito

entende-se que se refere à antiguidade clássica, a forma mais complexa

e rica da refeição em conjunto [...] (TRECCANI, s.p., tradução nossa).

O banquete romano, como veremos, de fato, rico e complexo evento social, teve

sua origem na cultura grega, e, para se falar em convito grego, é fundamental sublinhar

a importância das práticas sacrificiais. Os gregos estabeleceram ritos que evidenciavam

a “dimensão cultural estruturante do sacrifício para a coesão da comunidade cívica”

(ALBERT, 2009:23). Para os gregos antigos, os alimentos, e suas técnicas de

transformação, estavam intimamente ligados aos deuses, responsáveis por todo

conhecimento e, portanto, pela manutenção da vida na terra. A relação do homem com

os ritos sacrificiais estava presente em todas as esferas do cotidiano, uma vez que o

“sacrifício encontra-se no cerne das relações complexas que os humanos estabelecem

entre si e tornam a atualizar com os deuses” (ALBERT, 2009:24). Assim, o sacrifício,

acima de tudo, patenteia a distância em relação ao animal e, portanto, torna-se

sinônimo de civilização, como afirma Albert, pois,

O sacrifício antigo institui a comensalidade grega e faz as vezes de

memória por lembrar aos homens sua ruptura com os deuses. […] No

início, com efeito, homens e deuses frequentavam-se e partilhavam as

alegrias de um banquete permanente. Foi o roubo do fogo cometido por

Prometeu que induziu os deuses a infligir uma pena “alimentar” aos

homens: a partir de então, eles deveriam alimentar-se e alimentar os

deuses. O sacrifício deve oferecer as melhores partes aos deuses,

enquanto os homens se contentarão com os pedações mais modestos

(ALBERT, 2009:24).

Prometeu, herói da humanidade, assalta os deuses e cumpre o papel de fornecer

meios técnicos de cozimento e alimento sagrado aos homens, “fundamento de toda a

civilização” (CARNEIRO, 2003:13). Assim, o convito grego representava o centro da

instituição social, este era a manutenção da relação homem – divino. Os banquetes

públicos reuniam os cidadãos em torno de interesses comuns e favoreciam a gestão da

democracia. “O banquete grego encontra-se na origem de uma forma específica, mas

determinante, da sociabilidade política desenvolvida pelas cidades desde a época

heroica até a época helenística e romana” (ALBERT, 2009:21). Era à mesa que as

práticas cívicas, políticas e religiosas da sociedade grega se mantinham. O banquete

“determina o lugar dos homens face ao divino”, pois, nas cidades gregas, política e

religião “são confundidas em todos os domínios da sociedade e da prática do poder”

(ALBERT, 2009:23). Será a partir desta transversalidade do banquete que analisaremos

a obra de Petrônio.

Trimalchião, que hoje poderia ser tachado de “novo-rico”, oferece exorbitantes

banquetes visando consolidar alguma distinção social através de uma caricatural

ostentação de seu patrimônio, e ele o faz principalmente durante a ceia, momento de

espetáculo, cujo público é composto em sua grande maioria de libertos como ele. A

cena se desenrola entre joias espalhafatosas, vinhos raros e comidas exóticas, bens

decorativos preciosos e listas de propriedades anunciadas por escravos. Ao entrar na

residência, Encolpio se surpreende com o que vê nas paredes:

Havia ali pintado […] o próprio Trimalchião, que na figura de um jovem

de longos cabelos, com o caduceu na mão, entrava em Roma, guiado

por Minerva. […] E no pórtico, ao fundo, Mercúrio, levantando

Trimalchião pelo queixo, transportava-o a um trono celeste. […] - Pedi

explicações do lugar a cerca das pinturas que se viam no átrio: -

Representam, respondeu-me, a Ilíada e a Odisseia [...] (PETRÔNIO,

1980:39).

Para justificar tamanha fortuna, e, por temor da ira divina em não demonstrar

devidamente sua gratidão a seus benfeitores, Trimalchião mitifica a si mesmo, se

autorrepresentando iconograficamente nas paredes de sua villa, onde é retratado por

meio de afrescos e mosaicos, desempenhando o papel de escolhido dos deuses, parte

que cabe ao herói. “Mas não vá se pensar por isso que me seja inteiramente estranha a

arte oratória; mesmo a literatura sempre estudei de boa vontade. A prova disso é que

possuo três bibliotecas: uma de obras gregas e duas latinas” (PETRÔNIO, 1980:55).

Como explícita forma de compensação por sua falta de cultura, Trimalchião enaltecerá

o fato de possuir, no sentido material, muita cultura, e não se exime em criar tolos

aforismos ou em enaltecer o caráter erudito de seu convito se fazendo valer de suas

posses.

- Amigos, bebei sem cerimônia; pois, se não, como poderiam nadar os

peixes que comemos? E acreditai que toda a minha ceia consiste nos

pratos que vistes no interior daquela vasilha? Será isso conhecer

Ulisses? Certamente: a filologia é necessária em todos os lugares,

mesmo na mesa (PETRÔNIO, 1980:46, grifo do tradutor).

Nesta citação podemos vislumbrar o caráter grotesco que Petrônio confere ao

anfitrião, por meio de sua deselegante tentativa em se fazer espirituoso ao incitar que

seus convidados bebam vinho, afinal, “como poderiam nadar (em nossos estômagos)

os peixes que comemos?”. Trimalchião prossegue, e, em tom moralizante, indaga seu

público de incultos endinheirados se a espetaculosa ceia que ele promovia era

constituída apenas de comida, quando na verdade, seu triclínio oferecia, acima de tudo,

cultura. Em forma de arte parietal, música, encenação homérica, danças exóticas,

atrações com os cozinheiros, declamação de poesia, inúmeros pratos inusitados

acompanhados de charadas, e assim por diante. A autoafirmação em forma de

pergunta será seguida por uma citação erudita de Virgílio (Eneida II), será isso

conhecer Ulisses?, seguida pelo comentário de que mesmo à mesa os clássico caem

bem. Vejamos, então, o regimento que conduz a comensalidade no Banquete de

Trimalchião.

3. Hospitalidade e pão

No regimento do banquete privado greco-romano são explicitadas duas

principais fruições: a alimentar, denominada ceia, e a filosófica, denominada simpósio

(comissatio, para os romanos). A fim de identificar e interpretar como a presença dos

mitos e dos ritos se configuram na esfera da alimentação e da comensalidade no

Banquete de Trimalchião, analisaremos algumas passagens do Canto VII, da Odisseia.

Para um melhor entendimento de como se desenrolava o protocolo desta

comensalidade, é relevante tomarmos conhecimento do pacto ético da hospitalidade

mediterrânica. A xenia (também xènion) representava um sistema de valores que

agregava os preceitos da hospitalidade como forma de mediação com os deuses. O

vocábulo do grego arcaico, xenia é a antiga denominação de presentes dados aos

hóspedes, ou simplesmente de alimentos nas acomodações dos hóspedes, oferecidos

pelos anfitriões. Esta palavra é citada em ambos os sentidos desde Homero, e pode ser

entendida com um sentido geral de acolhimento de um estrangeiro ou da própria

hospitalidade10. Interessante observar que xenos significa estranho, estrangeiro,

forasteiro, e, posteriormente, hóspede11.

A partir das reflexões do filósofo Jacques Derrida12 sobre cosmopolitismo no que

tange a ética política da hospitalidade e o papel do outro (o estrangeiro), Fernanda

Bernardo em seu ensaio “A ética da hospitalidade ou o porvir do cosmopolitismo por

vir13”, analisa;

Entre os gregos, o pacto de hospitalidade (xenia) celebra, diz Derrida, o «direito

acordado ao estrangeiro enquanto tal, ao estrangeiro que continua estrangeiro, e

aos seus, à sua família, aos seus descendentes». [...] Em sede filosófica grega, o

10 Xenia. Enciclopedia Treccani (s/d). Tradução nossa.

11 Xenia. Behind the name (s/d). Tradução nossa.

12 De L’hospitalité. Revista Ecarts d'Identité (1998).

13 A ética da hospitalidade ou o porvir do cosmopolitismo por vir. Revista filosófica de Coimbra (2002).

estrangeiro (xenos) é acolhido como um sujeito de direito - é como tal e

enquanto tal que é acolhido. (BERNARDO, 2002:434, grifos da autora).

Assim, este pacto na Antiguidade se configurava dentro de alguns preceitos de

forma tal que, aquele que chegasse, independente das condições nas quais se

apresentasse, deveria ser acolhido e bem tratado, enquanto sujeito de direito.

O Canto VII da Odisseia, canoniza o conceito distintivo de homem e, portanto, de

hospitalidade como valor. “Este canto narra a chegada de Ulisses à ilha Esquéria, lugar

que representa a inserção do herói num dos espaços dos homens comedores de pão”

(GONÇALVEZ, 10:2010, grifos da autora). Homero diferencia o homem grego (sinônimo

de homem civilizado) do selvagem. Para nomear este sujeito, utilizará o termo “comedor

de pão” (sitofagoi). Segundo Massimo Montanari, em “Il cibo come cultura” (2004), o

domínio do homem sobre as técnicas de desenvolvimento agrícola, momento decisivo

de ruptura e inovação, organizou por completo a vida das sociedades consideradas

selvagens, que viviam da caça e da colheita. Como consequência surgem as cidades,

centros urbanos onde se estabelecem relações econômicas, formas de poder político, o

imaginário cultural e rituais religiosos, separando o homem, agora dono de si, da

Natureza. Ele agora a domina. Desta nova relação consolida-se o conceito da cidade

como o local por excelência da evolução civil, daí a coincidência semântica no latim

entre civitas e civilitas, città (cidade) e civiltà (civilização). O homem civil, civilizado, é

homem da cidade, que vive longe dos animais.

O pão, alimento criado artificialmente por este novo homem de saberes

tecnológicos e acumulador de bens, torna-se o ícone máximo desta transição do estado

chamado bestial para o civilizado. Como nos poemas Homéricos da Ilíada e da

Odisseia, o ato de comer pão distingue o homem das bestas. Da intersecção entre a

tradição, enquanto sabedoria, técnicas, valores orais transmitidos, e a inovação,

enquanto domínio de técnicas capaz de modificar a posição do homem em seu

ambiente gerando novas realidades, chega-se à cultura; o ponto onde tradição e

inovação se encontram. Mitos e lendas narrarão esta passagem. Voltemos à eles.

De forma bastante sucinta, após inúmeras desaventuras e encontros com

Ciclopes e Lestrigões, ambos “gigantes humanoides comedores de homens” (GANDRA,

2010:30), Ulisses encontrava-se à deriva ao mar em uma jangada com poucos

suprimentos, e então, exausto, finalmente chega à ilha de Esquéria, casa dos Feácios,

povo que Homero designará por sitofagòi. Encontrado num bosque de oliveiras próximo

ao mar, Ulisses é acudido com roupas, comida e bebida por Nausicaa, filha do Rei

Alcinoo, a qual havia sonhado com Minerva que lhe dizia para ir lavar roupas na praia,

propiciando, assim, a descoberta do herói náufrago. Ulisses, sob as vestes de um

estrangeiro anônimo, é guiado ao palácio. No caminho encontra Minerva, disfarçada

como uma menina pequena, e ela o orienta sobre como ter acesso ao rei. O herói,

oculto por uma nuvem criada pela deusa, atravessa os maciços sistemas de proteção

do palácio e adentra na câmara do rei Alcínoo. Ainda que surpreendidos ao verem um

forasteiro, o rei e sua corte oferecem hospitalidade e o convidam a libações; dão de comer e

beber a Ulisses, como narra o trecho a seguir:

Todos, tranquilos, ficaram em silêncio, até que, falou o velho herói,

Equeneu, que era o mais velho dos homens Feácios e suplantava a

todos nos discursos – sabedor de muitas e antigas coisas. Ele, que

falava nas assembleias, com bons sentimentos, disse-lhe: “Alcínoo, não

é belo, nem convém a ti, que um estrangeiro sente-se no chão, sobre a

lareira, nas cinzas. Eles aguardam ansiosos tua ordem. Vamos! Faze o

estrangeiro levantar-se e sentar-se numa poltrona de cravos de prata;

ordena aos arautos que misturem o vinho, para libarmos a Zeus,

fulminador, que acompanha os respeitosos pedintes; Que a despenseira

sirva a refeição ao estrangeiro, com o que há no palácio”. Mas, depois

que a força sagrada de Alcínoo ouviu isso, tendo tomado o prudente e

artificioso Ulisses pela mão, fê-lo levantar-se da lareira e sentar-se num

trono brilhante; Após ter mandado levantar-se seu filho viril,

Laodamonte, que estava sentado a seu lado – amava-o sobretudo. Uma

serva carregou água num belo jarro de ouro e despejou-a num vaso de

prata, vertendo-a para que lavasse as mãos. Junto dele, estende mesa

polida. A despenseira zelosa serve a mesa – trazendo pão, aproximou-

se agradável e pôs, na mesa, muitas iguarias. O divino e sofredor

Ulisses bebe e come (HOMERO, VII, v. 150 – 180).

Os preceitos da ética da hospitalidade presentes: acolher sem questionar; oferecer água

para lavar mãos e pés, e oferecer, em primeiro lugar, pão. Os Feácios, comedores de pão e

exímios navegadores, corresponderam à todos os princípios de homens civilizados, tal qual

Ulisses.

Segundo Bernardo, quanto à este valor helênico filosófico da hospitalidade explanado por

Derrida (1998), o forasteiro é visto como um outro, de fora dos muros da civitas, da cidade, o

qual se configura como este que

recém - chegado ou estrangeiro absoluto (tout autre) [...] deve ser bem ou

incondicionalmente acolhido, isto é, deve ser acolhido independentemente da

sua pertença e das suas qualidades: acolhido de modo imediato, urgente, sem

esperar. Sem saber e sem álibis. Sem condições, pois (BERNARDO, 2002:437,

grifos da autora).

Este entedimento de hospitalidade teria origens remotas, partindo de um costume

mediterrânico dos gregos antigos, nas áreas geográficas da Magna Grécia. Uma série de regras

preestabelecidas entre hóspede e hospedante de forma que o dono da casa acolha

incondicionalmente o estrangeiro para que ele possa recuperar suas forças, pois, sob as vestes de

um mendigo ou forasteiro poderia esconder-se um deus ou uma deusa, portanto, era sábio

receber bem e ser generoso de modo tal que não desencadeasse a ira divina, como

lemos “misturem o vinho, para libarmos a Zeus, fulminador, que acompanha os

respeitosos pedintes”, ou seja, brindemos à Zeus que pode estar disfarçado neste

pedinte e se o ofendermos nos fulminará!

A manutenção com o divino, como visto em Albert, se manifesta a todo

momento como forma de reverência. Vejamos então o desfecho desta cena:

Amanhã, quando a maior parte dos conselheiros for convocada receberemos o estrangeiro no palácio e aos deuses ofereceremos sacrifícios favoráveis. Depois, pensaremos em seu retorno, de modo que o estrangeiro, sob nossa proteção, sem tristeza ou aflição, chegue à sua terra natal, feliz e rapidamente, ainda que esteja muito longe. Nesse período, que ele não sofra mal algum ou prova, antes que pise em sua terra. Depois, então, ele experimentará tudo o que o destino e as pesadas Fiandeiras teceram desde o princípio, quando a mãe o pariu. Se é algum dos imortais que vem do alto do céu, é porque os deuses tramam alguma outra coisa. Os deuses sempre costumam aparecer para nós, quando fazemos hecatombes magníficas: celebram conosco, sentados ao nosso lado (HOMERO, VII, v. 185 - 205).

Neste trecho temos de forma bastante evidente como se configura o princípio da

xenia (receberemos o estrangeiro […] sob nossa proteção chegue ao seu destino […]

se é algum dos imortais que vem do alto céu), a devida reverência a ser paga (aos

deuses ofereceremos sacrifícios favoráveis […] os deuses sempre costumam aparecer

quando fazemos hecatombes magnificas: celebram conosco, sentados ao nosso lado) e

a forma com a qual esta manutenção se caracteriza, sempre através de sacrifícios e

oferendas alimentares. Interessante notar o temor não ao estrangeiro em si, mas sim

aos deuses, e em perpetuar sua ritualística mediadora. Quando Alcinoo afirma que se

“é alguns dos imortais que vem dos céu, é porque os deuses tramam alguma coisa”, ele

nos profetiza que devemos fazer nossos melhores ritos para um desfecho favorável à

todos, que o deuses celebrarão conosco (e não nos fulminarão). Uma hecatombe, o

sacrifício de cem bois, era algo de extrema magnificência, uma vez que o boi era a

carne mais nobre, por ser o animal fundamental para a agricultura, puxando o arado,

dentre outras funções vitais. Assim, num âmbito culinário, a comida do herói homérico

por excelência é a carne (e o vinho “mais doce”), melhor se a carne de boi, mais alto

símbolo sacrificial de distinção e prestígio.

4. O Banquete de Trimalchião

Retomando a obra de Petrônio, após uma leitura crítica deste trecho do Canto

VII, nos é possível compreender melhor duas passagens escolhidas para esta

investigação sobre o Banquete de Trimalchião nais quais figuram o princípio da xenia e

a perpetuação do rito sacrificial da carne, ainda que ambos estejam tremendamente

ridicularizados pela sátira de Petrônio.

Como percebido, toda a cena se configura numa miscelânea de estímulos e

provocações sensoriais, referências eruditas e de comidas mirabolantes, contexto no

qual o anfitrião exalta constantemente sua gratidão e reverência aos deuses,

perpetuando o princípio da hospitalidade. Encolpio narra, não sem ironia, o momento no

qual se estava prestes a adentrar na sala do banquete:

Maravilhados, íamos entrar no triclínio quando um menino, empregado

exclusivamente neste mister, gritou: - Com o pé direito! Receamos um

instante ali penetrar desrespeitando o cerimonial. […] tomamos enfim

nosso lugar à mesa e vieram logo pequenos escravos de Alexandria

com água gelada para as mãos, e em seguida, outros nos lavaram os

pés, limpando-nos as unhas com extrema delicadeza (PETRÔNIO,

1982:40).

Em tom de deboche, devido à forma exagerada com a qual o anfitrião executa os

ritos preconizados nos mitos homéricos, ao lermos a passagem um menino empregado

exclusivamente neste mister […] percebemos a superfluidade ostentatória do ato, e,

bem como na outra circunstância pelo excesso de zelo: limpando-nos as unhas com

extrema delicadeza, quando na verdade bastaria lavar as mãos e os pés para cumprir o

rito. Por trás destes deselegantes exageros, reconhecemos a perpetuação da ética da

hospitalidade de ambas as partes, pois, Encolpio, por sua vez, se preocupa em não

desrespeitar o cerimonial.

A questão do cerimonial dita cada ato da pantagruélica ceia, assim, o caricato

anfitrião transforma um dos momentos de servir a carne em um assustador espetáculo,

pois, como vimos, toda carne previa um rito sacrificial, aqui no caso, explicitamente

circense:

Mal havia acabado de falar Trimalchião, levantou-se um grande clamor

dos homeristas e, no meio da criadagem atarefada apareceu, sobre um

prato que pesava bem umas duzentas libras, um vitelo cozido, com um

elmo na cabeça. Atrás vinha Ajax14 que, com a espada desembainhada

e ares furiosos, começou a despedaçá-lo. E depois de muito gesticular,

com a ponta da espada recolheu os pedaços, distribuindo-os pelos

convidados maravilhados (PETRÔNIO, 1984:65).

Toda cena remete ao riso e ao horror. Segundo Albert (2009), desde a Grécia

arcaica, o rito sacrificial da carne era executado por um archimagirus, archimágiro.

14 Ajax, o Grande, era um dos mais fortes de habilidosos guerreiros gregos.

Archimágiro: do grego archi, princípio, e mageiros, cozinheiro, “aquele que preside a

cozinha15” (MARCHI, 1828:380). Termo que hoje poderia ser traduzido de forma

simplista por chefe de cozinha, mas que então desempenhava um papel cívico crucial,

de sacerdote e cozinheiro contemporaneamente. Dois exemplos que podem ilustrar

este ofício na atualidade podem ser verificados na comida halal, através do papel

desempenhado por um muçulmano treinado para o abate, seguindo as leis do Corão,

bem como na kosher, com a figura do shochet, um judeu treinado que obedece as leis

da Torá. Em ambos os casos há rígidos preceitos religiosos e higiênico, verdadeiras

regras éticas e morais a serem seguidas pelo responsável do abate.

Já na cena que nos é apresentada por Petrônio, o ato é um absoluto desrespeito

à sacralidade, um vulgar destroçamento de um novilho de elmo (possível representação

de um inofensivo guerreiro inimigo), sendo executado por um patético falso herói. Outra

passagem que denota a total deselegância e falta de gosto de Trimalchião se dá ao

servir uma galinha, considerada de pouca classe, bem como através de sua

prepotência em ditar ordens aos convidados, os quais se parecem mais com reféns

submetidos a seus caprichos;

Foram servidas, depois desta manifestação de boa vontade, iguarias

cuja lembrança, podeis acreditar-me, ainda me dá náuseas. A cada um

de nós serviram, como se fosse tordo, uma galinha gorda, e ovos de

patos recheados, insistindo muito Trimalchião para que engolíssemos

tudo, afirmando que as galinhas estavam desossadas (PETRÔNIO,

1980:69).

De fato, tão terrivelmente nauseante e oprimente era o banquete que eis como

15 Marco Aurelio Marchi. Dizionario tecnico-etimologico-filologico. Milão (1828). Tradução nossa.

se encerra para Encolpio o repasto oferecido pelo tirano anfitrião: com uma fuga.

A cousa chegava à extrema repugnância, quando Trimalchião,

embrutecido pela sua ignóbil embriaguez, quis um novo concerto,

fazendo entrar no triclínio tocadores de trompa. Sustentado por um

grande número de travesseiros, ele estendeu-se no leito, dizendo: -

Suponde que eu esteja morto. Tocai alguma cousa de belo. Os músicos

tocaram uma ária fúnebre, Mas um deles, servo do empresário de

enterros, - que do grupo parecia ser o mais decente – soprou com tal

força que acordou toda a vizinhança. Os guardas encarregados da

vigilância do quarteirão, persuadidos de que a casa de Trimalchião

ardia, arrombaram bruscamente a porta e, com seus baldes e

machadinhas, fizeram grande alarido, no exercício de suas funções.

Aproveitando esta excelente oportunidade, ali deixamos Agamenon, e

fugimos precipitadamente, como de um verdadeiro incêndio

(PETRÔNIO, 1980:81).

Considerações finais

Abandonamos aqui também nós a companhia do deselegante glutão, na

expectativa de termos compartilhado uma possível análise interpretativa sobre a

reverência aos deuses, aos mitos e à arte culinária no capítulo O Banquete de

Trimalchião. Tratou-se de um exercício investigativo a partir de abordagens críticas

sobre dois relevantes documentos literários, a Odisseia e Satiricon, ambos tendo por fio

condutor a atuação do simbólico, seja no convito, seja no alimento oferecido. Nas duas

narrativas a exaltação da ritualística alimentar enquanto fator de distinção entre o

civilizado e o selvagem exerce uma fundamental influência. Enquanto a primeira

patenteia esta distinção, a segunda satiriza. Desta forma, no que tange a irreverente

obra literária de Petrônio, na qual Encolpio vive e transita pela vulgaridade e

mediocridade, mantendo um aristocrático destaque, nos é possível constatar a

atualidade do texto de realismo cômico, o qual se prestaria da satirizar os arrivistas dos

dias de hoje nos mesmos moldes, como enfatizou Queneau ao frisar sua modernidade.

Fica-nos patente que a interdisciplinaridade emerge como condição para a

compreensão do papel transversal do alimento e suas significações nas práticas da

comensalidade, vital à manutenção social da existência humana, enquanto

normatizador da esfera cívica, a qual perpassa limitações geográficas, temporais e

disciplinares pois, um alimento pode simbolizar a ascensão social de alguém, e de um

determinado grupo, bem como seu declínio. Pode evocar uma benção a quem recebe,

ou transmitir uma maldição. Conduzir a um estado mais elevado de autoconhecimento

ou relegar à barbárie, sem nunca perder sua característica vital de nutriente.

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