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Ensaio de Allan Bloom
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J U S T IÇ A ;JO H N R A W L S V E R S U S A
t r a d i ç ã o d a f i l o s o f i a p o l í t i c a
.4 PROMESSA E O PROBLEMA
O L IX T O VMA TEORIA DAJfUSTlÇA. de John Rawls, tem atraído mais atenção no mundo anglo-saxão do que qualquer outro trabalho de seu gênero em uma geração. Duas são as razões desse sucesso: o livro é o projeto político mais ambicioso executado por um membro da escola atualmente dominante na filosofia acadêmica; não faz só uma defesa como também oferece uma nova base para uma interpretação radical igualitária da democracia liberal.
Em método e substância o livro se encaixa ao gosto da época. 0 professor Rawls acredita que pode enunciar princípios convincentes de justiça com a simplicidade e a força dos ensinamentos dos velhos contratos, que satisfazem a preocupação utilitária do maior número de pessoas sem esquecer do indivíduo. Acredita também que o livro contém toda a nobreza moral dos princípios de Kant, que resultará numa riqueza de vida parecida àquela proposta por Aristóteles, e que ele, Rawls, pode conseguir tudo isso sem se afiindar nos atoleiros da filosofia tradicional. Este é
grande livro não só pelo número de páginas como também magnitude de suas propostas, e merece ser medido por pa-
rigorosos comensuráveis com suas proporções.A democracia liberal necessita uma defesa ou um renascimen-
^ se quiser sobreviver. Os desafios práticos por ela enfrentados
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nos últimos quarenta anos têm sido extremos, enquanto o pensamento que lhe é peculiar tem se convertido numa coisa incrível para a maioria dos homens que vivem em democracias liberais. O historicismo, o relativismo cultural e a distinção do valor de fato têm erodido as bases da convicção de que este regime é bom ou justo, que a razão pode apoiar suas reinvidicações da nossa causa. Raras pessoas estariam dispostas a defender como verdadeiros os ensinamentos do direito natural dos fundadores da_de- mocracia liberal ou de seus mestres filosóficos, da mesma forma como muitas, por exemplo, drfendenam Marx.
O estado da natureza e os direitos naturais dele derivados tomaram assento ao lado dos direitos divinos dos reis no cemitério da história. São entendidos como mitos ou ideologias das classes governantes. Só precisamos lembrar da vitalidade do pensamento dos grandes oponentes da democracia liberal, Marx e Nietzsche, e refletir sobre a ausência de proponentes desse mesmo calibre para sentir a enormidade da crise. Uma renovação sob a luz desses desafios, teóricos e práticos, é, sem dúvida alguma, da maior importância.
Mas, infelizmente, Uma Teoria da Justiça não revela nenhuma percepção desta crise, e muito menos a ela responde. Apesar de seu igualitarismo radical, não é um livro radical. Seu horizonte não parece se estender aos abismos que temos experimentado em nossas próprias épocas; os horrores de Hitler e Stálin não representam para Rawls nenhum problema especial ou novo. Ao contrário, seu livro é uma correção do utilitarismo; a consciência de Rawls é americana ou, no máximo, anglo-saxônica. Os problemas que ele trata são aqueles das liberdades civis em nações que já são livres e a distribuição da riqueza naquelas nações que já são prósperas. A discussão tem o sabor daquela esperança e expectativa pelo futuro da democracia que caracterizava o fim do século 19 e 0 princípio do século 20, es.quecendo as duras ações que precederam a chegada da democracia e a tornaram possível, sem antecipação do barbarismo que viria depois.
Da mesma forma que a preocupação política que parece moti
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var Rawls é estreita e fína, assim também é sua visão dos problemas teóricos enfrentados por quem queira chegar aonde ele chega. Simplesmente o historicismo — seja aquele de Marx ou o de Nietzsche e os existencialistas — faz duvidar se a tarefa a que se propõe Rawls é possível; ainda assim, ele não se dirige a esses pensadores. Acredita que estejam errados, que devam ser julgados por seu tribunal, não o deles. Marx não é tratado, e Nietzsche é rapidamente despachado, improvavelmente, como um te- leológico. Sei que não é intenção de Rawls escrever uma história da filosofia política, e nem é sua obrigação apresentar uma crítica de Marx e Nietzsche. Mas os temas levantados por Marx e Nietzsche devem ser discutidos se Rawls quiser ser convincente. Se a democracia liberal é só uma etapa do caminho para outra sociedade, então Rawls é meramente um ideólogo efêmero. E se a determinação racional de valores é, no sentido decisivo, impossível, então Rawls não passa de um enganoso fazedor de mitos. Ele acredita que seu método traça um desvio em torno desses bloqueios da estrada, que não há necessidade de discutir a natureza e a história.
Ao longo de seu livro, imaginamos qual será o status do ensinamento de Rawls. Será uma afirmação permanente sobre a natureza das coisas políticas, ou só uma coleção de opiniões que ele considera satisfatórias e espera que agradem a outros? Não encontramos reflexões sobre como Rawls é capaz de romper com os laços do determinismo histórico ou cultural que parece aceitar, e nenhuma reflexão sobre como a filosofia é possível dentro de tais limites, ou o que significa ser um filósofo. Busca ele a verdade ou é só um porta-voz de certa consciência histórica?
O que Rawls explicitamente se propõe é dar princípios ao nosso senso moral preexistente, elaborar as implicações das nossas instituições ou convicções, nos dizer o que significa quando falamos de justiça, encontrar uma base de consenso entre nossos contemporâneos. Ele acredita que exista uma via media entre a subjetividade pura e a simples e em nos dizer como é o mundo de fato. Mas, outra vez, a questão sempre presente é se o senso moral
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é algo mais do que mera preferência, condicionada por nosso lem po e lugar. Rawls acredita que todos somos igualitários. Os ensi namentos aristocráticos são inadmissíveis, mas não fica claro sc é porque são baseados num entendimento falso ou porque já iiãti gostamos majg deles. Da mesma forma, não fica claro se o nosso igualitarismo é um resultado da revelação do fato de igualdatle do homem o u se é o que gostamos hoje.
Rawls acrecüta que seu procedimento é socrático. Sócrates, con tudo, não paftiu de sentimentos ou intuições, mas de opiniões; todas as opiniões são, assim entendidas por Sócrates, como pei cepções inadoquadas de ser; o exame das opiniões prova serei u elas autocontraditórias, e mostra uma visão não contraditória atk- quada ao ser ^ pode ser chamada de conhecimento. Se a ojii mão não podi^ ser convertida em conhecimento, então o exame racional das opiniões sobre a justiça, e muito menos os sentidos sobre a justiçg^ não serve para estabelecer princípios de aconlo com os quais devemos viver. É até mesmo discutível se tal exame tem alguma Utilidade. Rawls começa com nosso senso moral, de senvolve os pt'incípios de acordo com ele, e então verifica se eslii mos satisfeitos com os resultados. Os princípios dependem do nosso senso Utoral e aquele senso moral depende dos princípios, Não somos fot'çados a deixar nossas vidas convencionais nem com pelidos, pela p rópria força de ser, de nos movermos em direção a uma vida w^rdadeira e natural.
Começamosí de onde estamos agora e lá terminamos, pois não há nada além Je nós. Na melhor das hipóteses, Rawls nos aju dará a sermos niais consistentes — se isso é de fato uma vanta gem. As difeu^nças entre opinião e conhecimento, entre aparêii cia e realidadeíjj que tornaram a filosofia possível e necessária, tic saparece. Raw^ jg fala a um público de gente convicta, excluindo não só aqueles que têm sentimentos diferentes, mas também aquiles que não p*ç3dem se satisfazer só com sentimentos.
Assim aquelfes que se voltam para Rawls esperando encontrai uma afirmaçãcrj razoável da superioridade da democracia liberal em relação a Oixitras possibilidades ou a defesa da tradição racio
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iialista da filosofia política, não encontrarão o que procuram. Encontrarão, isso sim, a certeza de que seus sentimentos são suficientes, que não precisam entrar nas brigas dos filósofos; se sentirão bem à vontade, em casa, em vez de sonharem com mundos distantes; serão levados na direção de mais reforma e tolerância de acordo com a tendência predominante do nosso regime; e terão uma plataforma que atrairia os países liberais típicos em anglo-saxônicos: democracia mais welfare state — deixando a düvida se o capitalismo ou 0 socialismo é a forma econômica mais eficaz (assim, não precisamos entrar na Guerra Fria); máxima liberdade individual combinada com comunidade (justamente o que quer a Nova Esquerda); defesa da desobediência civil e objeção de consciência (os movimentos dos direitos civis e contra a guerra ficam felizes sob a proteção de Rawls); e até mesmo uma cláusula segundo a qual a liberdade pode ser revogada naqueles lugares onde as condições econômicas não permitem a democracia liberal (assim salvando as nações do Terceiro Mundo de serem chamadas de injustas).
Essa correspondência, única na história da filosofia política, entre 0 que é desejado por muitos para a prática política atual e as conclusões da filosofia política abstrata, rigorosa, seria admirável se não desconfiássemos que Rawls começou do que se quer aqui e agora e depois procurou os princípios que racionalizariam isso.
J U S T I Ç A E A P O S I Ç Ã O O R I G I N A L
Uma teoria da justiça deve mostrar o que é um regime decente e que deveres têm os cidadãos para com ele. O problema de Rawls é clássico: que tipo de sociedade civil um homem razoável escolheria para viver e por que deveria ele obedecer às ordens dessa sociedade quando elas contrariam seus princípios? Rawls imagina que exista uma forma de sociedade civil que pode reconciliar 0 interesse público com o privado, sendo portanto possível uma filosofia política verdadeira. _
Ele afirma que o princípio do utilitarismo — o maior bem pa-
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ra o maior número de pessoas — é aquele geralmente aceito Iki|' e que não é suficiente. Das muitas críticas àquele princípio i li escolhe a que não satisfaz as exigências dos poucos — em pai 11 cular dos poucos economicamente em desvantagem. Aceita a |tn sição utilitária de que a visão de cada indivíduo de seu bciii «' seu bem e que o negócio da sociedade é tentar satisfazer esse m divíduo até o ponto em que a realização de seus desejos não pic judique outros. Não é função da sociedade propor ou impor unni visão do bem sobre o indivíduo ou ter um fim coletivo.
A objeção ao utilitarismo é que não garante consideração ilr cada indivíduo e que, apesar de sua base individualista, os qiir estão em desvantagem são sacrificados no altar do coletivo. Rawln propõe um contrato de acordo com o qual cada homem dá siiii adesão à sociedade civil sob a condição de que terá garantido um mínimo que chamaremos de direitos. Tal contrato serve para dc terminar as metas e os limites da sociedade civil, para prescrevei deveres aos governantes e para motivar a adesão dos cidadãos, bem como definir suas justas reivindicações.
Embora Rawls volte atrás no tempo na busca de um modelo para sua teoria da justiça, ele produz um conjunto nítido de preo cupações em relação à doutrina do contrato. Este deve, de algii ma maneira, ser transformado para acomodar as sensibilidades que emergiram historicamente do utilitarismo e com ele a insa tisfação popular. Os homens devem ter direitos iguais não só à “ vida, à liberdade e a busca da felicidade” , mas também para o alcance da felicidade. As desigualdades, sejam elas de berço, sorte ou natureza, devem ser consideradas ofensivas a nós.
Assim, ao princípio familiar da democracia liberal de que cada pessoa deve ter desde um direito igual até a mais extensa liberdade básica compatível com uma liberdade similar para outros, Rawls acrescenta um segundo princípio; o de que bens devem ser distribuídos igualmente ou, se não distribuídos igualmente, essa distribuição desigual deve ser considerada a vantagem de todos medida pelos desejos dos membros menos favorecidos da sociedade. Rawls procura uma nova moralidade e que
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liirçará os mais favorecidos a admitir que a possessão ou o uso ilc suas vantagens dependem da permissão de uma sociedade igualitária, sociedade que convencerá os que não têm vantagem de i|iie, sejam quais forem as desigualdades, elas existem a seu favor.
A inovação de Rawls é incorporar as máximas do bem-estar contemporâneo aos princípios fundamentais da justiça política. Não só bens materiais devem ser dados a cada cidadão, como liimbém que um sentido igual de seu próprio valor venha a ser reconhecido pelos outros; pois, afinal, nem só de pão vive o liomem.
Os que não têm vantagem, ou, para significar o que Rawls quer de fato dizer, os pobres, devem ser ouvidos — não condescendidos ou instruídos de como devem viver; e a atenção a eles dada deve ser com base no direito mais fundamental que é anterior às instituições e de acordo com os quais estas são formadas. Um homem não tem, como disse Platão, um direito ao que pode usar bem; ou, como disse Locke, ao que misturou ao seu trabalho;/ ou até, como diz Marx, ao que necessita; ele tem um direito ao que pensa que precisa para realizar seu “ plano de vida” , seja lá qual for. Em relação aos fins, o governo, para Rawls, deve ser 0 de laisser-faire; com respeito aos meios para os fins, deve ser beaucoup faire.
Depois que Rawls determinou o que se quer, ele procura uma forma de derivar ou demonstrar seus dois princípios de justiça que serão convincentes e excluirão princípios conflitantes. Um contrato feito por todos os membros futuros da nova sociedade para que obedeçam a esses princípios completaria o quadro. Mas por que homens superiores concordariam com um contrato que lhes exige sacrifícios para o benefício dos pobres? Um terreno comum de vantagem, mais fundamental do que qualquer vantagem particular, deve ser encontrado de forma a ganhar um consenso geral. Essa necessidade de um terreno comum é a fonte da construção elaborada da “ posição original” , que é a atração deste livro excepcionalmente complexo.
Cada entendimento do homem deve ter alguma visão da situa-
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ção fundamental, livre dos acidentes e da trivia que nos distrai da coisa mais necessária, uma situação na qual o homem pode discernir o que realmente tem importância e com base na qual homens sérios orientam suas vidas. O Melhor Regime, de Platão e Aristóteles, A Cidade de Deus de Agostinho e O Estado da Natureza de Hobbes, Locke e Rousseau nos vêm à cabeça imediatamente como alternativas poderosas de acordo com as quais somos solicitados a tomar nossas posições. Agora vem a “ posição original” de Rawls que, se quisermos assumir, nos levará a aceitar seus dois princípios de justiça e sua versão da sociedade.
A “ posição original” é mais ou menos a seguinte; pergunte a um homem qualquer, qualquer homem, em que tipo de sociedade deseja viver, supondo que ele quer viver numa sociedade. Ele descreveria uma sociedade que realizasse sua idéia do bem, que 0 fizesse feliz. Mas ele sabe que os outros homens têm idéias diferentes do bem que conflitam com a sua, e assim é improvável que sua idéia predominará; e mesmo que isso acontecesse, aqueles outros homens seriam privados de sua felicidade. Se ele imaginasse que não tinha idéia de felicidade ou que “ plano de vida” teria, mas soubesse que teria um “ plano de vida” , que tipo de sociedade escolheria?
Nesse caso ele escolheria sob o que Rawls chama de “ o véu da ignorância” . Já que existem muitos “ planos de vida” possíveis, nenhum pertence ao homem como tal; portanto, não é fora de propósito imaginar que homens na posição original não conhecem sua meta, mas só sabem que devem ter uma. Os diferentes bens finais não podem ser reconciliados, e seria indesejável fazer isso. Inevitavelmente, de acordo com Rawls, um homem nessa situação escolheria uma sociedade liberal, pois ao menos poderia perseguir sua meta, desde que não prejudicasse a outros, quando então correria o risco de perder totalmente sua felicidade. Melhor ter um pouco do que nada — assim recomendaria a cautela bem pensada. Isso fornece um terreno para acordo entre os homens que estão na mesma situação. Eles aceitariam o primeiro princípio de justiça de Rawls.
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Mais adiante, embora este homem não conheça o bem, o fim final, sabe que existem certas coisas que contribuirão para a realização de seu plano de vida — não importa o seu conteúdo. A estas coisas podemos chamar de bens primários, bem porque serve a qualquer tipo de bem final. São coisas como direitos, liberdades, nascimento, talento, posição, riqueza, um sentido do próprio valor individual. Nosso homem típico certamente iria querer ter o máximo possível desses bens primários.
Alguns desses bens são naturais, outros são os efeitos dos arranjos sociais; mas tê-los depende de sorte. Ele iria querer uma sociedade que estimule o uso do que dá a natureza e garanta que consiga da sociedade tudo o que ela pode dar. Mas, se o véu da ignorância cair de novo sobre sua cabeça, ele optaria pela igualdade, já que, dada a relativa escassez dos bens primários, provavelmente teria menos do que mais de uma distribuição desigual. Os bens primários naturais que ele escolheria para usar e desenvolver só na medida em que contribuem para a felicidade de todos são aqueles utilizados pelas instituições para esse fim. Os bens primários sociais, como a riqueza, ele permitiria que fossem distribuídos desigualmente só na medida em que o membro menos favorecido da sociedade, que pode ser ele mesmo, ganharia dessa distribuição desigual e poderia, portanto, esperar que sua situação melhorasse.
Nesta condição de ignorância, homens calculistas concordarão com o segundo princípio de justiça de Rawls. Um contrato é feito para vantagem mútua com base na igualdade. Esse contrato determina as regras do jogo; a justiça num homem se mede por seus acordos, o respeito à palavra dada. Justiça é eqüidade no sentido de que é legal se cingir aos resultados de um jogo cujas regras parecem ser razoáveis e justas, embora quiséssemos eventualmente outro resultado e gostássemos até de alterar as regras para nossa própria vantagem.
A receita de Rawls contém medidas iguais de calculismo egoísta na posição original e no espírito público — é a forma do fair play — depois de começada a vida social. Não se espera que um ho-
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mem se integre a um grupo no qual sua felicidade não é igual mente promovida com a de outros. Uma sociedade que lhe ilii essa igualdade de tratamento merece sua adesão, la o logo os Im mens percebam a posição original, abandonarão suas ambiçoc:. desmedidas: admitirão que não existem reivindicações legítima , de privilégios especiais e serão dissuadidos de usar o poder dci i vado de qualquer possessão desigual dos bens primários para des frutar de tais privilégios.
A “ posição original” é uma base imaginária que Rawls quei colocar sob o edifício real da sociedade liberal de forma a justil i car aquela sociedade. É uma invenção, mais do que uma desco berta, e podemos duvidar se é suficientemente substanciosa paru apoiar tal estrutura.
A “ P O S I Ç Ã O O R I G I N A L ” V E R S U S O E S T A D O D A N A T U R E Z A
Para vermos as dificuldades inerentes, à “ posição original”, de vemos compará-las ao “ estado da natureza” nos ensinamentos do contrato de Hobbes, Locke e Rousseau, pois Rawls quer que sua invenção tenha o mesmo papel em sua apresentação da justiça que teve o estado da natureza na apresentação dos outros filósofos. E a mudança de nome é indicativa da diferença decisiva em substância. Rawls bane a natureza das coisas humanas e políticas. O estado da natureza foi o resultado de uma reflexão abrangente sobre a forma como todas as coisas de fato são. Hobbes, Locke e Rousseau não poderiam se satisfazer com um pedaço da imaginação como base de seus juízos morais. A natureza é o padrão permanente; o que são o bom homem e a boa natureza depende da natureza humana. O estado da natureza é o resultado de um entendimento específico da natureza baseado numa crítica e numa rejeição de um entendimento anterior da natureza e suas conseqüências políticas e morais.
Os teóricos do estado da natureza, portanto, concordavam com
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I’latão e Aristóteles que o problema decisivo é a natureza; discordavam sobre o que é natural. Não se pode evitar a metafísica. Se deve haver uma filosofia política, acreditavam eles, o homem deve ter uma natureza, e ela deve ser cognoscível. Rawls não quer se meter nesses problemas, cuja validade já foi, de uma vez por todas, refutada por sua escola. E suas metas políticas são levadas à frente pelos imperativos de seus métodos, pois ele não deseja aceitar os limites severos impostos pela natureza sobre as possibilidades de transformar a condição humana. Embora algumas vezes mostre um argumento sobre o que chama de natureza humana, seu pensamento é destinado não só a superar aquelas injustiças que são contra a natureza, como também a superar a própria natureza. Ele quer as vantagens do ensinamento do estado natural sem (para ele) suas desagradáveis conseqüências teóricas e práticas.
O estado da natureza apresentava um quadro do homem como ele de fato é, despojado de convenção, acidente e ilusão, quadro baseado e consistente com a nova ciência do homem. O homem, de acordo com os teóricos do contrato real, é um ser cuja preocupação natural primária é se preservar, que entra no contrato social porque sua vida é ameaçada e teme perdê-la. Este medo não é uma abstração, uma hipótese, uma imaginação, mas uma experiência, uma paixão poderosa que acompanha os homens ao longo de suas vidas.
Esta paixão é suficiente para fornecer uma razão egoísta, razão que os homens sempre usam como recurso na adesão a uma sociedade civü dedicada a preservá-los. Desaparece o conflito entre 0 interesse particular e o pübüco. A razão pela qual esta paixão não é normalmente eficaz para garantir um comportamento dentro da lei é que os homens na sociedade civil que os protege se esquecem o quanto é essencial essa proteção. Eles têm idéias de auto-suficiência, buscam a glória, infringem a lei por seus pra- zeres. E, acima de tudo, suas religiões os persuadem de que há coisas mais importantes que a vida ou que há outra vida, assim acalmando o medo de perder esta vida e encorajando a desobe
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diência à autoridade civil.O estado natural tem como intenção revelar a nulidade ou o
caráter secundário destas outras paixões e estas esperanças de evitar vulnerabilidade essencial e permanente do homem. A morte i- a sanção natural por romper o contrato, e o estado da natureza mostra que isso é assim e que os bens que possam conflitar com 0 desejo de viver não são substanciais.
A lei positiva é meramente um derivado desta sanção e recebe sua força da natureza. O estado da natureza demonstra que as metas positivas do homem, que variam muito, não devem ser levadas a sério em comparação com o fato negativo sobre o qual todos os homens sensíveis devem concordar; a morte é terrível e deve ser evitada. Os homens se integram à sociedade civil como proteção uns aos outros, sendo a única finalidade do governo estabelecer e manter a paz. Esta origem e fim da sociedade civil é comum nas teorias do contrato de Hobbes, Locke e Rousseau apesar de suas diferenças. E se eles acreditavam ou não na existência do estado da natureza, isso era para descrever a realidade sob a sociedade civü. A natureza anti-social do homem e o caráter egoísta da paixão que motiva sua adesão à sociedade civil limitam as funções possíveis e legítimas daquela sociedade.
Agora, a “ posição original” de Rawls fracassa ao não atingir 0 que 0 ensinamento do estado da natureza atingiu. Além do fato de que não há nada na posição original que corresponda à experiência real de qualquer homem, o medo da morte desaparece como motivo para se integrar à sociedade civü e aceitar suas regras. Rawls é muito vago sobre as razões para se integrar à sociedade civü e, por não querer ele assumir um compromisso com qualquer visão sobre a natureza do homem, não se pode determinar se a ligação à sociedade — ligação no sentido de obedecer às suas leis — é de fato tão importante para que um homem se realize.
Com o desaparecimento do medo da morte como o motivo primário, a punição por romper o contrato também desaparece. Na sociedade civil os contratos são protegidos pela lei positiva e cas
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tigo que ela pode infligir. Anterior à sociedade civil, deve haver uma punição natural ou nenhuma punição. Um homem cujos desejos ou visão da sociedade o forçam a romper um contrato que não tem sanções, nenhuma autoridade, seria tolo se não fizesse isso. Afinal, a vida não é um jogo. Ele, homem, existe naturalmente, enquanto a sociedade civil é meramente convencional. Ou há alguma harmonia essencial entre o bem público e o privado ou não há nenhuma harmonia. Se não há nenhuma, em que base podemos arbitrar entre os dois? Rawls não fornece uma base para a reconciliação ou qualquer coisa mais do que um argumento cheio de sermões pela nobreza do sacrifício ao bem público.
O que Rawls nos dá no lugar do medo é justiça. Mas isso é só a invenção de um princípio para suprir uma ligação que falta. Por que a justiça deve ter primazia sobre o desejo de auto- realização? Depois de deixarmos a “ posição original” e o “ véu da ignorância” cair, com este cai também o motivo para obedecer. Quando deixamos o estado da natureza, as paixões lá encontradas permanecem conosco e fornecem lembretes poderosos daquele estado anterior e nossas razões para preferir o estado civil.
Mas a “ posição original” é uma pálida abstração que não nos dá tal motivo permanente. Integridade é uma escolha razoável de auto-interesse esclarecido só na “ posição original” . Probidade como algo mais, como coisa valiosa em si, não pode ser derivada da “ posição original” . É um fragmento andrajoso de uma tradição anterior que dizia ser o homem naturalmente político e que a prática da justiça o fará feliz. O estado da natureza começa a partir do isolamento natural do homem e ensina que a sociedade e sua justiça são boas só como meios para um fim.
A sociabilidade natural do homem é inconsistente com individualismo ou qualquer coisa como a liberdade de escolha entre os fins que Rawls quer preservar, ou a idéia de que a relação do homem com a sociedade é de alguma forma contratual. Essa relação requer uma rigorosa subordinação do particular à comunidade e todas as mais duras virtudes de autodomínio sobre as quais
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Rawls nunca fala. Ele é um individualista, mas não deseja acci tar as ásperas conseqüências práticas e teóricas daquele indivi dualismo. Para colocar de forma clara esse problema, ele icria que confrontar visões opostas da natureza humana que sustcii tam o ensinamento do contrato e aquela que afirma ser o homem da natureza um animal político. Integridade simplesmente não é coerente com o indivíduo esperto, calculista de Rawls na “ po sição original” .
Da mesma forma, o igualitarismo de Rawls não tem base, pois ele não quer aceitar o denominador comum do verdadeiro esla do da teoria da natureza. Ele quer uma igualdade que se esteii da, além da vida comum, a todas as coisas que os homens so ciais dão importância. Todos os homens, não importam suas qualidades de corpo e mente, não importam suas virtudes ou suas contribuições, devem fazer uma reivindicação legítima de todos os bens naturais e sociais, e a preocupação básica da sociedade deve ser a de honrar essa reivindicação. Rawls deve portanto abstrair de todas as desigualdades evidentes nos talentos dos homens e de suas conquistas, mas não pode encontrar chão mais firme para esta abstração do que aquele que quer, do que é requerido para que sua “ posição original” funcione. Mas é longo o caminho dos direitos da natureza aos direitos da posição original. Estes últimos inspiram pouca admiração em quem se acredita superior. Os teóricos do contrato baixaram conscientemente as visões do homem e a visão de si próprio para a tornar a igualdade plausível e encontrar um interesse comum.
Não é numa situação neutra de “ equilíbrio reflexivo” que o homem escolhe a sociedade civil, mas sob as garras das poderosas paixões naturais que controlam e dirigem sua razão e o reduzem, indeciso, ao mvel de todos os outros homens. Rawls não quer seguir estas teorias a este respeito, embora queira ter todas as vantagens que vê nos seus ensinamentos. Os ensinamentos do estado da natureza são ligados a uma negação da nobreza do homem e portanto da nobreza, se não a utilidade da moralidade, e seus autores sabiam disso. Rawls não deseja descer mais baixo
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iiiiida para se beneficiar da solidez daqueles autores, mas o que líeles adota o impede de se elevar às alturas morais que aspira.
Ao contrário dos teóricos do contrato que ensinaram que a coisa mais forte no homem é seu desejo de evitar a morte e que assim iissumiram suas posições por aquele pólo negativo, Rawls insiste na meta positiva da felicidade. Os teóricos do contrato tomaram n caminho que tomaram porque negavam a existência de um bem mais alto e que portanto podia haver conhecimento de felicidade; só existem bens aparentes, e o que é felicidade muda com o desejo. Os homens sempre discordaram sobre o bem; de fato, esta tem sido a fonte de suas brigas, particularmente em assuntos de religião. Os teóricos do contrato tentaram mostrar que seu desacordo factual reflete uma impossibilidade teórica de acordo.
Desta situação sombria que parece fazer impossível a filosofia política, eles tiraram sua esperança. Se a importância de todas as visões particulares do bem podem ser depreciadas, enquanto todos os homens concordam sobre o mal e suas inclinações apóiam sua atitude em evitá-lo, então fundações sólidas podem ser atingidas. Deve-se porém enfatizar que uma pré-condição desse resultado é a diminuição da ligação do homem às suas visões de felicidade em favor da vida comum e a busca dos meios para manter a vida.
Rawls, ao mesmo tempo que adere aos pensamentos do moderno direito natural, abandonando a tentativa de estabelecer um único e objetivo padrão do bem válido para todos os homens, e admitindo uma variedade interminável de planos de vida valiosos e potencialmente conflitivos, ainda discute, como o fazem os pensadores do moderno direito natural, que o objetivo da sociedade é promover a felicidade. Assim, ele é incapaz de encontrar consenso sobre o conhecimento do bem, como fizeram os antigos, ou um acordo sobre o mal, como fizeram os modernos.
Ele é capaz de nos dizer apenas que a sociedade não pode existir sem um consenso, mas não dá nenhum motivo para obedecer esse consenso ao homem que está disposto a arriscar a rutpura da sociedade atual para atingir sua sociedade ideal — que é o
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que qualquer homem amante do bem deve fazei'. So u ignorância” na “ posição original” faz o consenso tão logo as escamas caem dos oüios de um homem, ele i viIhmiI verá que o plano de vida não se encaixa com a dei noi iiu Im liH|Ì' ral. Rawls pede apenas que aqueles planos de vida i|iii- coexistir sejam aceitos, mas não percebe bem como vai louait fl||J ta exigencia e como muitos planos de vida devem ser iv|ti|lrtt|H| ' com base neste argumento — e tudo pelo bem de urna piu t l||H valor não está provado.
A B O N D A D E D O S “ B E N S P R I M Á R I O S "
Porque Rawls não leva a sèrio o possível conflito de valia i n Ini portantes, porque pressupõe a existência de um consenso iiiir lu iii dita estar criando, porque prefere simplificar o problema Iniiiiii no e estreitar nossas alternativas em vez de enfrentar conlliiim Inii damentais que exigem uma reflexão filosófica, ele não pen riti» que os teóricos do contrato não poderiam estar satisfeitos lejol tando algumas visões do bem como meramente incompatíveis eiiiii 0 contrato, mas teve que encontrar bases para mostrar que elen, os teóricos, são falsos.
O entendimento da natureza desses teóricos era o requisiin ile seu ensinamento político, pois opor doutrinas às quais os home um
são apaixonadamente dedicados era negar o status autorizado du lei civil e 0 contrato dela derivado, bem como o valor da vídu que o contrato deve proteger. Rawls fala de forma condescendeiiie da afirmação de Rousseau de que homens que pensam que se um vizinhos estão condenados não podem com eles viver em paz. Sabemos melhor que Rousseau; nossa experiência mostra que o pluralismo das crenças religiosas funciona muito bem. Não pie cisamos nos preocupar, pois só uns poucos fanáticos que consi i tuem um perigo claro e presente devem ser contidos.
Rawls não sabe o que é fé. Ele olha os crentes ao nosso redor, sem saber que a religião tem sido completamente transformada,
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)iiMh como resultado da crítica dos teóricos do contrato, parteI Mino resultado da sociedade liberal da qual eles eram os inspira-
Mh Ao tipo de homens que fizeram as guerras de religião nãoIH iileria pedir que deixassem sua causa da salvação por uma
|Mi/ i|iie desprezavam; eles teriam que desaparecer. Ou estavam iimios em suas crenças, ou suas ações eram justificadas, lira intenção do estado da natureza funcionar como um subs-
IIIIlio do relato bíblico da origem do homem e da sociedade, um I lulo racional no lugar daquele fornecido pela revelação. Seus
irõricos não faziam objeção a uma fé tépida, uma fé que não levaria os homens a desafiar a autoridade civil. Mas para atingir „Nc resultado, o significado da fé precisava ser drasticamente re-
viNlo. Rawls, olhando os crentes de hoje na América, cujas religiões são 0 fruto do pensamento do Iluminismo, nos assegura queII Cé não ameaça o contrato social e que Locke e Rousseau eram iiilolerantes sem nenhuma necessidade disso.
Assim, ele, Rawls, lucra com o trabalho de Locke e Rousseau sem precisar assumir suas responsabüidades desagradáveis. Hobbes, Locke e Rousseau sabiam que seu ensinamento não poderia ser mantido se a revelação bíblica fosse verdadeira e que não havia forma de evitar a confrontação direta com ela. Contando com as frágeis crenças dos homens, Rawls simplesmente desdenha o desafio ao seu ensinamento colocado pelas asserções da religião.
Isso fica claro na discussão de Rawls do que ele chama de bens primários. A idéia de “ bem primário” tem o mesmo papel nos ensinamentos de Rawls que tem o “ poder” em Hobbes, sendo a lista de bens primários de Rawls igual à lista de poderes de Hobbes. Para Hobbes, contudo, os poderes não são simplesmente neutros. Dependem dos fins, e há alguns fins ou planos de vida para os quais todos os bens primários listados seriam maléficos.
O que é riqueza para ele, Rawls, que acredita ser mais fácil para um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um homem rico entrar no reino dos céus? O que é saúde para ele que acredita, como Pascal, que a doença é o estado verdadeiro do cristão? E como o sentido próprio de valor que temos de nós,
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em vez da humildade, se ajusta ao homem que se aciv.liln pecador? Tratar estas coisas como bens é o mesmo que iieg.ii la visão das coisas nas quais elas são o oposto.
E Hobbes nega de fato a validade das opiniões que são iiiniiii patíveis com os poderes em sua lista. Rawls evita negar 1;mm opl niões ao não dar atenção a elas. Só leva a sério opiniões qiir kn encaixam na sociedade que ele propõe. Por exemplo, a possibili dade da revelação foi um problema que exauriu as melhores enei gias de Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. Está claro não sei esln um problema que preocupa muito a Rawls. Hobbes no niiiiiiiin deve argumentar pela importância desta vida e negar que a lell cidade nesta vida pode ser atingida ou mantida sem esses laule res. Uma reflexão abrangente sobre a natureza das coisas esta ini plícita nesta lista de poderes.
Hobbes dizia que não podemos saber o que nos fará feliz (em bora devamos saber o que não poderá nos fazer feliz), mas poi limos conhecer os meios para a satisfação do desejo. Em seguida, portanto, devemos perseguir esses meios, devemos buscar poder. E assim segue também que, conseqüentemente à depreciação dos fins, o poder de certa forma se transforma no fim. O tom baixo, o filistinismo e a concentração na preservação e na riqueza qiit- encontramos em Hobbes são o resultado da primazia do poder em seus ensinamentos. A crítica popular do bourgeois é na verdade a crítica do homem de Hobbes. Mas aquele tom baixo vem logo em seguida, inevitalmente, se os grandes e nobres fins são meramente opiniões não substanciais, enquanto saúde e riqueza são 0 estofo de ser.
Além disso, no estabelecimento da política pública inevitavelmente nos encontramos no que é real e no que os cidadãos têm em comum. É por meio de Hobbes e Locke — que nesse sentido segue a Hobbes — que a economia vem ao centro da política, onde fica para Rawls.
A aquiescência de Rawls na emancipação dos meios dos fins 0 converte num colaborador involuntário na revolução moral de Hobbes. Ele certamente protestaria que seu interesse está na fe-
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Ill I i I i k Ic dos homens, mas tem pouco a nos dizer sobre isso. Quan- iln •.(• Irata dos bens primários, contudo, tem muito a dizer. Suas |ii(iposlas políticas não passam de um meio para sua distribui- 1,(10. Isso significa que sua sociedade promove os tipos de felici- ilmle dependente de seus bens primários. Ou, dito de outra forum, as finalidades de seu governo são alheias àquelas ressaltadas im lilosofia política clássica ou na revelação bíblica.
( ) governo, em vez de tornar os homens bons e fazedores de Itoas ações, como diria Aristóteles, tem como seu objetivo o que Aristóteles chamaria de equipamento ou bens externos. E os fins do governo quase inevitavelmente determinam o caráter dos homens. O ponto de partida de Rawls ou na verdade de Hobbes- I .ocke determina o resultado. Seu homem democrático pouco parece 0 clássico objeto de admiração. Sócrates, que nasceu e viveu na pobreza, foi o homem mais feliz de sua época. Até mesmo a forma como Rawls trata sua própria adesão ao esquema de Hobbes, 0 sentido do nosso próprio valor, compartilha desse método. O sentido do próprio valor, ele reitera sempre, depende muito da estima dos outros. Sócrates precisava só de seu próprio testemunho, mas o homem de Rawls não pode suportar uma opinião pública desfavorável. Rawls tenta dar-lhe estima, seja qual for seu plano de vida; o homem de Rawls é, em todos os sentidos, dependente, teleguiado. Hobbes determinava o valor de um homem com base na consideração que os outros tinham por ele; como dizia, em sua forma direta e vigorosa, um homem vale o seu preço. Rawls dele difere só por se envolver na fixação do preço.
Q U A L ID A D E V E R S U S I G U A L D A D E
Rawls, porque substitui o direito de igualdade à felicidade pelo direito de igualdade à vida, deve equalizar não só os bens primários convencionais como dinheiro, mas também os bens naturais. Estes últimos são difíceis de se ver (com exceção do trabalho salutar dos geneticistas que, acredita Rawls, devem um dia
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destes aprimorar toda nossa progènie). Lembramos aqui o n-litlii de Heródoto sobre a lei da Babilònia pela qual todas as iiih i, hii casadouras eram leiloadas; as bonitas compradas por preços nl tos pelos homens ricos e lascivos; a cidade usava o dinheiro ilei» sas vendas para fornecer dotes às moças feias, tornando assim atraente o naturalmente não atraente.
A injustiça da natureza com os não dotados é o que o ven In deiro igualitarismo deve corrigir. A redistribuição da riqueza qimse não é suficiente, pois, todos sabemos, as coisas mais importâmes são “ aquelas que o dinheiro não pode comprar” . As moças leias certamente ficarão gratas. E as bonitas, forçadas a sacrificar a sa tisfação para a qual estão equipadas pelo maior número de mu lheres que a natureza dotou menos generosamente mas cujos sn nhos são iguais, não ficarão descontentes, pois quando o véu da ignorância ainda cobria sua nudez na posição original, elas nitn tinham idéia de que seriam tão bonitas.
Rawls não concorda com Aristófanes que, na Assembléia de Mu lheres, diz que, quando a lei obrigar os belos a comandar a maio ria, não só a tirania resultará disso como o eros se rebelará. A posição original faz milagres, no sentido preciso da palavra, pois detém o curso da natureza.
Isso nos leva a outras questões sobre a relação da qualidade com a igualdade, problema que Rawls trata indiretamente. Em bora o desejo das pessoas menos favorecidas permaneça decisivo, Rawls nos garante que os menos afortunados não têm interesse em políticas que reduziriam o talento dos mais afortunados. Não só ele fracassa ao dar prova dessa sua afirmação, como também não parece perceber a possibilidade de que a maioria, com toda a boa vontade do mundo, talvez não aprecie o que são os nobres talentos e atividades e, portanto, talvez não queira dispor de recursos para eles ou organizar as “ estruturas” necessárias para encorajá-los.
Ficar no mesmo nível não parece a Rawls um perigo sério. Podemos desconfiar que ele não se dirige ao problema do grande homem por medo de que isso minaria a persuasão de seu argu-
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mento de que a sociedade civil pode reconciliar todos os interesses legítimos. Aristóteles, por exemplo, tratou desse problema e loncluiu que as cidades republicanas teriam de jogar no ostracismo 0 grande homem ou então renunciar a seus regimes não monárquicos e convertê-lo em seu governante. As duas alternativas são insatisfatórias, mas Aristóteles só as apresenta porque a natureza das coisas políticas o força a isso.
Rawls elimina o conflito. Mas a suspeita de que ele evita isso jiara tornar seu argumento mais forte é provavelmente injusta. Provavelmente não vê esse conflito. Se os “ planos de vida” são meramente uma questão de preferência e em princípio são iguais, então a distinção entre o grande homem e o homem comum desaparece. Se todo mundo deve ter um sentido do próprio valor, a superioridade não deve existir. O costume de tais crenças tem, receio dizer, o efeito de tornar um homem incapaz de distinguir 0 grande do medíocre. A própria distinção é vista como resultado da injustiça e do esnobismo.
Em Rawls não encontramos nenhuma das preocupações que inquietavam Tocquevüle, que, embora um democrata convicto da justiça do princípio da igualdade, dizia que a superioridade moral e intelectual não encontraria terreno fértil na sociedade moderna. Duras escolhas teriam que ser feitas, dizia Tocquevüle; era essencial aos democratas perceber o fato de que eles podem tentar amenizar a perda. Da mesma forma, embora Rawls admire John Stuart Mül, nunca saberíamos pelo seu relato que a intenção básica da obra Sobre a Liberdade era proteger a minoria de homens superiores da tirania da maioria, que Mül acreditava estar a humanidade ameaçada pela mediocridade universal.
Para Rawls, assim como para a maioria dos americanos que falam disso, a tirania da maioria é uma ameaça só para os menos favorecidos. Esperamos que o problema colocado por Tocquevüle e Mül não tenha sido resolvido pela perda da capacidade em reconhecer o grande e o belo — ou pelo próprio desaparecimento do grande e do belo.
Contudo, o tratamento que Rawls dá a Nietzsche não fornece
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muita base para aquela esperança. Ele acha que Nietzsclic lem um “ valor” subjetivo de preferência por homens como Goi ilu' e Sócrates e quer impor isso sobre a maioria que não é como < ior the e Sócrates. A leitura de Rawls parece ser leve e desinfomui da. Ele não percebe que Nietzsche na verdade trata dos prolilr mas que ele, Rawls, de seu próprio ponto de vista deveria tra lai ; como criar um “ plano de vida” ou horizonte quando não h;í inii bem objetivo, ou, o que é a mesma coisa, como são criados ort valores (Nietzsche foi o primeiro a usar “ valor” no sentido iiio derno. Rawls, sem perceber, adota a invenção de Nietzsche); o que é o self, se acreditarmos, como acredita Rawls, que exisie um self e que ele produz valores mais do que por eles é deternii nado; como a filosofia é possível, se o pensamento humano é his tórico.
Rawls discute só as pré-condições de fazer planos de vida e cria ção de valor, não as maneiras em que eles são na verdade feitos. Nietzsche ensina que só um certo tipo de homem é capaz de cria tividade, não querendo com isso basicamente significar a feitura de poemas ou de quadros, mas a produção de valores pelos quais o homem vive. Ele quer a própria coisa que Rawls também diz querer — a variedade de “ planos de vida” ricos e satisfatórios —, mas ele pensou bem como chegamos lá e tem alguma experiência interior do que são esses planos.
Vamos, contudo, imaginar que Rawls está certo e que Nietzsche tem uma mera preferência por “ cultura” no sentido atual do termo, já bem atenuado. Seja como for, certamente seria de- sanimador se não houvesse mais Goethes ou Sócrates. Teríamos que refletir sobre as condições de sua existência e tentar determinar se elas coincidem de alguma forma com as condições para a sociedade preconizada por Rawls. Mas, embora ele pareça acreditar que tais homens estarão presentes, os ensinamentos de Rawls dizem que não faz diferença se estão aqui ou não, pois coisas triviais são tão boas quanto poesia — a não ser que um ou outro atraia mais os menos favorecidos.
Todos os talentos não passam de recursos para a felicidade maior
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ill lodos e têm seu preço no mercado atual de felicidade. Ainda riüiin, Rawls tem uma solução, pois ele estabeleceu um setor do
g( ivci'no para intercâmbio, que distribui recursos para benefício I Mlblico. Nietzsche pode ir a esse setor oficial e solicitar uma bolsa I Ir estudo. Para caracterizar esta solução ao problema da grande- II na sociedade democrática, necessitaríamos do talento de um
gninde satirista.
O M A U U S O D E K A N T
Para completar sua reencarnação dos ensinamentos do contraio, Rawls tenta conferir a sua “ posição original” o brilho da nobreza moral de Kant. Como sempre, Rawls lê filósofos antigos só como apoio para seu pensamento muito mais estreito. Ele pega e escolhe, nunca realmente atraído pela necessidade de seus argumentos, como se estivesse olhando de cima para baixo para esses filósofos. Rawls não só não aceita a verdade da Crítica da Razão Pura e a Crítica da Razão Prática, que é a pré-condição para estabelecer a possibilidade de um terreno de liberdade pressuposto nos ensinamentos morais de Kant.
Mais importante, Rawls não entende o que Kant quer dizer com moralidade. Esta deve ser escolhida por seu próprio bem; deve ser um bem, ou melhor, o bem mais alto; a boa vontade é 0 único bem incondicional. Deve haver um interesse na moralidade como há um interesse no dinheiro ou no alimento, interesse esse que predomine sobre todos os outros interesses. Rawls nada fez para estabelecer tal interesse. Certamente não é o interesse na moralidade que motiva os homens na posição original, cujo objetivo é desfrutar a maior felicidade possível. Se a felicidade, concebida como for, é o fim, então a moralidade é um meio para aquele fim, instrumentalmente boa e não boa em si. A felicidade, para usar a linguagem de Kant, é um motivo heterôno- mo e não autônomo para obediência à lei moral.
A moralidade de Kant não é aquela do contrato social, pois
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OS ensinamentos do contrato social são todos heterônomos, A i ralidade neles é uma ferramenta construída por homens pttif I realização dos fins anteriores, não morais e naturais. Parli: ilo iQil sinamento político de Kant é de fato hipoteticamente cninpHtìi i metido, mas há uma relação problemática entre seus ensinaiiicnUH políticos e morais. A moralidade e a sociedade civil são ligudU por uma filosofia da história que é em si problemática para Kaat,
Os três postulados morais — Deus, liberdade e imortaliilml# — são suplementos necessários à moralidade, sem os quais oltt seria esmagada pela política e pela história. A moralidade nao olha as conseqüências, pois isso a tornaria contingente. A inot« de Rawls é o benefício social, enquanto a moralidade na visfln de Kant não precisa contribuir para o estabelecimento de iinui sociedade justa ou fazer um homem feliz. Kant diz, coercinc mente com seus princípios, que um homem moral nunca preei sarà infringir a lei. Rawls prega a legitimidade da desobediêncin civil e a objeção de consciência. A preservação da própria vida não deve, para Kant, ser considerada por um homem moral, ncin sua conduta ser afetada pela situação real. Rawls deixa claro qiic sacrifícios heróicos não são componentes necessários para seu ho mem social e que modificações prudentes de princípio são legí timas e desejáveis.
A imprevisão de Rawls sobre moralidade é resumida em sua execração da importância básica da generalidade ou universalidade do pensamento de Kant. Para ele, o elemento essencial do ensinamento moral de Kant é autonomia, ou seja, a combinação de liberdade e racionalidade. Rawls, contudo, fracassa ao não ver que 0 que Kant quer dizer por liberdade e racionalidade é universalidade. Um homem é autônomo se for capaz de agir de acordo com as leis criadas pela universalização das máximas de sua ação; somos livres e racionais quando assim universalizamos. Para agir livremente, um homem deve obedecer à lei que fez para si próprio, sem ser compelido por outros homens ou por circunstâncias particulares ou pela natureza.
Agir de acordo com nossos próprios desejos não é liberdade.
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I HUM ii!\o fazemos esses desejos; eles são dados. Um homem tal- VI ! ili-seje falar urna mentira, mas verá imediatamente que menili Hilo pode ser aceito como norma de conduta para todos os homi iis. Se for capaz de obedecer à norma possível para todos os liiimcns em oposição ao seu desejo particular, e se não for moti- \nilo por lucro futuro ou pelo medo do castigo, do ridículo, daII 111 reputação, ou qualquer coisa que não seja o respeito pelo prin- I ipio universal, então pode dizer que age livremente, indepen- ilciilc do contingente e do condicionado; do contrário é um es- I riivo do homem, das instituições, da natureza. Ele é livre por- i|iic ao princípio chega pelo exame do significado de seu próprio desejo. E é livre num sentido mais amplo em virtude de sua capacidade de superar seu próprio desejo a favor do princípio universal nele baseado. Isso prova sua capacidade de agir para o bem da moralidade somente.
Os homens de Rawls na posição original agem em termos de desejo individual; estão privados só do conhecimento de suas circunstâncias particulares, e assim escolherão aquelas regras que são as mais úteis para satisfazer qualquer desejo que venham a ter. Para Kant, o homem moral age com ampla percepção de suas circunstâncias particulares e decide obedecer à regra universal apesar daquelas circunstâncias. Desejo particular e lei universal são só coincidentemente harmoniosos, e assim o homem que sempre age de acordo com as leis mostra que é livre.
E, ao agir livremente, um homem também age racionalmente, pois universalização é a atividade da razão não condicionada, e universalidade é a forma da razão e de qualquer lei racional política, moral ou natural. O calculismo de um homem procurando satisfazer suas paixões (ou determinar princípios na “ posição original” ) é só um uso instrumental da razão para atingir fins nos quais a razão não teve papel importante. Mas se o seu fim não é a intenção substantiva de sua ação, mas a universalidade da máxima governando sua ação, ele é dedicado simplesmente à razão, à não contradição. O imperativo categórico de Kant é o imperativo da universalidade, e abrange tanto a razão como a racionali
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dade. Assim, uma verdadeira interpretação kantiana do hoim-m de Rawls na “ posição original” é que ele não é nem livre iicin racional.
A negativa de Rawls do significado crucial da generalização ir vela muito sobre o caráter de sua iniciativa. Rousseau, ao iiu-s mo tempo que aceitava a visão da natureza contida nos ensiiin mentos do estado da natureza, insistia que as inclinações naiu rais não podem fornecer uma base para uma comunidade decenic ou para qualquer outra coisa a não ser uma moral mercenária A natureza fornece, como um campo comum, preservação, pon CO egoísmo. Liberdade natural é agir de acordo com nossa prci pria inclinação sem preocupação com os outros. Se deve havoi essa preocupação, devemos encontrar outro campo comum mais alto. Rousseau encontrou aquele campo na vontade de generali zar os nossos desejos, de pensarmos em nós como cidadãos e não como homens (embora a motivação para fazer isso continue sendo 0 desejo natural de preservação).
Quando os homens pensam de forma genérica, eles são um. Hobbes e Locke juntaram os homens como passageiros num navio cujos interesses são particulares, mas que todos os homens querem manter navegando na superfície. Rousseau e Kant, ao seguirem Hobbes, juntam os homens ao dar-lhes os mesmos interesses. Esta é obviamente uma harmonia mais profunda, mas vai contra a natureza; esta liberdade moral exige o que Rousseau chama de desnaturação do homem. Esta desnaturação é feita por meio de uma severa moralidade, estabelecida em nome da liberdade, mas exigindo a superação da inclinação natural. O homem natural e o cidadão estão em pólos opostos. Generalizar em si é fácil; a vontade de generalizar é difícil de ser atingida, porque requer indiferença à nossa própria felicidade.
Ao contrário de Rawls, Kant é um moralista austero, porque admite as exigências da moralidade. Uma escolha deve ser feita entre a satisfação natural e a ação moral, entre o particular e o público, entre o particular e o universal. Estas tensões tornam impossível para o homem ser simplesmente um todo. Sentimen-
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lus lie justiça são tanto inclinações como são sentimentos de egoísmo e não têm um status mais alto. Rawls não gosta dessas escolhas; não gosta de restringir inclinações.
A batalha de se auto-superar não se encaixa bem na sua sociedade descontraída. Em resumo, seu pensamento nada tem a ver com 0 de íCant, para quem, no máximo, o homem moral pode 1er esperanças de felicidade e a chegada de uma sociedade justa, inas não pode alterar sua conduta para realizar esses objetivos. I^petindo, o ensinamento de Rawls é só utüitarismo tornado con- icmporâneo, e utilitarismo é, por sua vez, a modificação e a simplificação dos ensinamentos de Hobbes e Locke.
Aquela tradição não foi influenciada pela crítica moral de Rousseau e Kant. Concentrou-se então e é ainda satisfação de um desejo particular. O ensinamento de Rawls é quase inteiramente dentro daquela tradição. A meta de sua sociedade não pode, por nenhum lance de imaginação, ser considerada o cidadão de Rousseau ou 0 homem moral de Kant. Sua recusa em pensar sobre a natureza torna fácil para ele confundir o natural e a liberdade moral, bem como as duas alternativas e os campos opostos de comunidade no pensamento moderno. Não há uma casinha no meio do caminho entre Hobbes e Kant; e a interpretação kantiana de Rawls da “ posição original” só confere a essa posição uma dignidade moral espúria.
A R A Z Ã O E O B E M
A limitação de espaço torna impossível discutir os castelos institucionais construídos por Rawls sobre as areias da sua posição original. Esses castelos significam a reafirmação de arranjos constitucionais americanos, reinterpretados para incluir os imperativos do welfare state. É muito discutível se ele, ao chegar nas detalhadas conseqüências práticas, na verdade partiu de suas premissas. Constantemente volta aos nossos desejos comuns e experiências familiares para dar um ar convincente às suas conclu
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sões não demonstradas. Ele é persuasivo porque apoia i iiai contemporâneas familiares, não porque forneça bases nu loiint| para elas.
Devemos, contudo, nos voltar para a última e mais iiiii ihiiii|« parte do livro. É aqui que Rawls promete mostrar que exií.ir iiiiin forma racional de determinar o que é bom para nós e qiu- ,i pii) tica da justiça nos tornará felizes. Apesar de todo seu apuntiu, a primeira parte de Uma Teorìa da Justiça realmente só iios dl 0 óbvio: a sociedade precisa de regras, e só sobreviverá se a iiiiimi in dos homens obedecer a essas regras. Rawls não conseguiu, iil») este ponto, mostrar de forma convincente que o interesse indivi dual e o interesse público são idênticos. Conseqüentemenic, rh' se sente forçado a voltar à antiga questão na filosofia política, aquila colocada por Sócrates a Glauco e Adimanto em República-. ' ' l'í o homem justo o homem feliz?”
A resposta deve ser sim se a lei é para ser obedecida por um homem que busca a felicidade. Só abandonando a felicidade cu mo a meta final poderia Kant evitar responder a essa perguniii. Rawls, apesar de suas pretensões kantianas, é, na linguagem lic Kant, um eudemonista e tenta resolver o velho tema com a nova forma. A dificuldade é grande, pois seu liberalismo não lhe per mite excluir qualquer preferência; seu igualitarismo o impede dc dizer que alguns bens são mais razoáveis ou de mais alta qualidade que outros; e seu método não lhe deixa falar sobre a verdadeira natureza das coisas. Mas ele deve fazer uma tentativa se quiser evitar o relativismo e o niilismo.
Se deve haver uma filosofia política, a razão deve ser capaz de guiar nossas ações políticas fundamentais. Agora Hobbes, Locke e Rousseau diziam que o fato humano fundamental é o desejo de autopreservação. A razão não pode estabelecer a razoabilida- de daquela paixão ou demover os homens dela. A razão não estabelece 0 fim. Pode, contudo, encontrar os meios para o fim. A razão é crucial mas só instrumental. A comunidade é estabelecida pelo fato de que para os homens aquela paixão fornece o motivo mais importante. A razão não pode estabelecer sua ra-
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íihiliiliilade, mas pode estabelecer a falta desta nas visões do bem i|in 11 contradizem.
I'1'io é suficiente para a possibilidade de uma filosofia política. Muli II sociedade fundada nessa filosofia é limitada aos fins que II |iiiixão dá a ela, sociedade. Rawls, que quer que a sociedade liii.ii muito mais do que é legitimado pelos ensinamentos do conti m o, quer que a razão dê o que as paixões se recusam a dar. Neste I tipíliilo, ele se envolve numa empreitada mais característica da mitiga filosofia que achava que a razão pode estabelecer os fins lu-m como os meios. Assim, não é nada surpreendente que ele invoque não o nome de Kant, mas o de Aristóteles.
A última parte é intitulada Fins e contém três subseções: Bondade como Racionalidade, O Senso da Justiça e O Bem da Justiça. A estratégia de Rawls é primeiro mostrar que a razão é suficiente para determinar os fins, depois descrever o senso de justiça dentro de nós, e finalmente mostrar que a sociedade que encarna os princípios implícitos no senso de justiça e permite as atividades desse senso seria escolhida pela razão como boa, como 0 fim. Sua finalidade clara é mostrar que a atividade coletiva é boa; na verdade, ele quer mostrar que a atividade coletiva é a meta alta, incondicional.
A discussão de Rawls sobre a bondade como racionalidade logo de cara frustra as expectativas despertadas por seu título. Ele nem sequer mostra que é bom ser racional. Isso afinal fica a cargo de cada indivíduo. O que pensa mostrar é que a razão pode ser útil ao estabelecer um “ plano de vida” — se quisermos ter um plano racional de vida. Além disso, um plano racional de vida não é racional no sentido de que a razão tem algum papel na formulação do plano.
Desejos, gostos, preferências, valores, o que você quiser, são os fatores determinantes finais num plano de vida, e Rawls não nos diz de onde eles vêm. Aparentemente acredita que, sem determinar os desejos pela razão, pode desenvolver regras que vão limitar ou constranger a indeterminabilidade do desejo num grau suficiente para tomar uma comunidade possível. A isca que atrairá
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OS homens à aceitação daquelas normas é a promessa de que serão felizes se seguirem essas normas.
A felicidade, de acordo com Ralws, é a alegria puramente subjetiva que acompanha o sucesso na realização dos nossos planos e a expectativa de que o sucesso vai continuar. A razão instrumental pode, claro, ajudar a assegurar os meios de realização, mas a única forma que a razão poderia, na opinião de Rawls, contestar um plano de vida é mostrando que o plano não pode ter êxito. O sucesso se torna então o único critério. Se você tem planos de vida seguros, provavelmente será feliz, se a felicidade for apenas alegria.
Rawls nos fala que “ para Royce* um indivíduo diz quem é ao descrever suas metas e causas, o que pretende fazer em sua vida. Se este plano é racional, então devo dizer que a concepção que a pessoa tem de seu bem é também racional” (p. 408). Ele depois continua, por meio de um argumento tortuoso, a estabelecer as regras para determinar a racionalidade de um plano. Os meios para isso devem estar disponíveis. O sucesso da empreitada deve ser'provável. O plano deve ser comparado com outros possíveis planos de vida. A intensidade dos desejos precisa também ser considerada.
A compatibilidade do plano com os planos de outros deve ser considerada. Deve incluir o máximo possível de fins desejáveis. A probabilidade de sua continuidade deve ser avaliada. E então... precisamos decidir.
Essa decisão é um salto, e não há razão para acreditar que o abismo a ser transposto foi reduzido por esta maquinaria da “ racionalidade deliberativa” que Rawls fornece. Ele fala sobre a racionalidade nas decisões da vida, mas sua discussão sublinha a irracionalidade essencial dessas decisões. Um homem racional seria reduzido ao desespero niilista ou ao compromisso irracional. Só um homem irracionalmente ligado à segurança e à alegria pode-
Josiah Royce, filósofo americano (1855-1916), criador de um sistema de idealismo absoluto, mas nunca desprezando o indivíduo e as realidades da vida cotidiana. (N. do T.)
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ria continuar satisfeito com tal solução, pois segurança e alegria são meramente “ valores” como qualquer outro.
É louvável desejar avançar a causa da razão, mas para fazer isso devemos ter um tal entendimento do mundo que a razão possa ter um papel importante nesse mundo. Rawls não dá nenhuma atenção ao que emerge, embora inconscientemente, como o mais importante componente da felicidade — a formação irracional dos fins ou valores.
Mas vamos acompanhar Rawls na sua afirmação final sobre o assunto: “ Mas como em geral é possível escolher racionalmente os planos? Que procedimento pode um indivíduo seguir quando diante desse tipo de decisão? Quero agora voltar a essa questão. Antes eu disse que um plano racional é aquele que seria escolhido com racionalidade deliberativa entre os tipos de planos, todos os quais satisfazem os princípios de escolha racional e se prestam a certas formas de reflexão crítica. Chegaríamos a um ponto, contudo, no qual só devemos decidir que plano preferimos sem maiores auxílios do princípio (p. 64). Há, porém, um dispositivo de deliberação que ainda não mencionei, e este é analisar nossos objetivos. Ou seja, tentar encontrar um descrição mais detalhada ou mais clara do objeto de nossos desejos na esperança de que uma caracterização mais plena ou mais profunda do que queremos revele finalmente a existência de um plano’ ’. A única saída racional é combinar todos os encantos competitivos. Podemos quase sempre ter um bolo e comê-lo.
Rawls continua: “ Vamos considerar novamente o exemplo de planejamento de um feriado (p. 63)... Com freqüência, contudo, uma descrição mais refinada não consegue ser decisiva. Se queremos ver tanto a famosa igreja da Cristandade [em Roma] como 0 mais famoso museu [em Paris] talvez fiquemos no meio do caminho...” (p. 551). E assim estamos. Este eloqüente resumo da condição humana também sintetiza o pensamento de Rawls. É tão ridículo que provoca indignação. Como pode um homem que nos diz como viver usar um exemplo de um feriado para discutir a questão mais importante de todas as questões? Por
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que não razão versus revelação, amor versus dever para com o \ país, vida versus dedicação à verdade? Podemos pensar que imlii uma geração se afastou da razão quando este é o nível ile m-iii» mais eminentes representantes, quando este é o tipo de onciiiti ção que essa geração pode deles receber? Rawls fala a homriin com alma de turistas.
A razão do comportamento de Rawls é que essa irracionalidii de dos fíns não é um problema para ele. Está convencido, comn prova 0 peso de seu livro, de que sabemos o que é mais impoi tante — a sociedade, isto é, a preservação. Não se atormenta com esses problemas, que lhe são indiferentes. Podemos acreditar t- fazer o que quisermos, desde que isso não atrapalhe a democra cia Uberai. As regras racionais de Rawls, como possibilidade, s;io boas só para aquele homenzinho coxo, medroso dos riscos na po sição original. Essas regras determinam os tipos de fíns possíveis antes mesmo que se considerem esses fins.
A sinceridade, a dedicação à coisa mais importante, o enfrentar desafios impossíveis, tudo isso é agora irracional. Rawls conta com um público de homens cujos horizontes têm sido tão limitados que os grandes perigos nas grandes decisões já não lhes são visíveis. Ele não dá atenção àquelas expressões ricas e variadas de natureza individual que, promete, vão florescer na sua sociedade. Para fazer isso, ele teria que regar as raízes irracionais das quais crescem os valores em seu sistema. Ao serem alimentadas com razão, essas raízes murcham e perdem a cor, pois se trata só da razão da utilidade.
O tipo de diversidade que ele pensa é aquele encontrado nas seitas religiosas obscuras mas inofensivas e em práticas sexuais obscuras e inofensivas. O tipo de diversidade que produz grandes ações, grande arte, ou grandes civilizações novas está fora de seu alcance. Ele fornece um solo que não é próprio para o crescimento de uma diversidade que mereça esse nome. A coisa sólida é sobrevivência; num mundo onde as decisões de grande valor são parecidas com a escolha entre tirar férias em Paris ou Roma, onde não podem mudar o caráter fundamental da sociedade
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ni vil, não há razão para diferença. O homem vai ser igual ou di- Inviite por suas diferenças insignificantes de preferência ou suas perversidades insignificantes.
Kawls contra-ataca. “ O bem-humano é heterogêneo. Embora Niibordinar todos nossos objetivos a um fim não viole, no sentido eslrito, os princípios da escolha racional(...), isso ainda nos impressiona como irracional ou mais provavelmente louco. 0 self ê desfigurado e posto a serviço de um de seus fins para o bem ilo sistema” (p. 554). Se perseguimos fins contraditórios, não faz mal. Isso é a prova da nossa liberdade. O princípio da contradição, o fundamento da razão, impressiona nosso filósofo como irracional, melhor dizendo, louco. Essas fórmulas nos dão uma boa desculpa para não pensar sobre as questões importantes. Este racionalista, quando isso lhe convém, tira uma virtude do irracional. O barco que ele construiu com tanto cuidado afunda ao som de seu aplauso no momento em que desliza ao mar. Rawls pensa que o barco flutua.
Ele acrescenta que “ o self é anterior aos fins que por ele são afirmados” (p. 560), o que significa que o self cúa os fins e não é por eles determinado. Essa afirmação não tem mestres, a razão incluída, e não pode ser compreendida pela razão. O professor Rawls nos deve e a ele próprio uma explicação mais ampla do “ s e lf ’. Um pequeno estudo o ensinaria que essa idéia tem origem nos pensadores que não eram amigos da razão nem da democracia liberal, e isso é manifestamente inconsistente com seu projeto.
O M A U U S O D E A R I S T Ó T E L E S
Depois de ter estabelecido a bondade da racionalidade, isso de acordo com seu estilo, Rawls dá um novo instrumento à razão, para o julgamento da racionalidade de seus planos de vida — o “ princípio aristotélico” . Este princípio é inventado para mostrar que os homens querem usar as capacidades requeridas e encora-
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jadas pela sociedade de Rawls, e que assim dcwmnf, uulq mente escolher essa sociedade e sua forma dc jiisiïçn
Rawls trouxe Kant de volta para dar a bênção a iini.i 'uh de baseada no egoísmo. Agora Aristóteles, cujo ponto i i iilittl i<if seu ensinamento moral e político é a existência de uni In ni niiiltlt fato, segundo Rawls, já comprovado, é forçado a dar sna InMiçlH à idéia de felicidade baseada no que um homem aciviliir híU’ M expressão de seu valor.
O princípio aristotélico, que Rawls admite não ter siilo nnill ciado por Aristóteles, mas alega estar de acordo com as miiMi ções deste, diz que “ outras coisas iguais, os seres humanor. drn frutam o exercício de suas capacidades realizadas (suas htihilnln des inatas ou treinadas), e este desfrute aumenta à mediiia qiii' a capacidade é realizada ou maior seja sua complexidade” (p. -1,’fn
Rawls cita Ética a Nicômaco, VII, 11-14, e X , 1-5, apaivnir mente sem perceber que Aristóteles, nestes trechos, está nior, trando que há uma atividade maior que se ajusta à natureza lin mana e que produz a felicidade. Longe de elogiar a inclusibili dade e a complexidade, Aristóteles atribui qualquer carência qiii- delas tenhamos à fragüidade de nossa natureza, que devemos tentai superar. Ele conclui no Capítulo VII, 14, que “ Deus sempre apir cia um prazer simples e único” . Longe de elogiar a interdependência da vida social, Aristóteles ensina que os únicos prazeres reais são aqueles auto-sufícientes, ligados às coisas eternas, e que podem, em princípio, ser apreciados na solidão.
Em resumo, Aristóteles ensina que a filosofía é a única forma de vida que pode ser adequadamente chamada de feliz. Ele chega a essa conclusão depois de examinar tudo o que se diz sobre felicidade e mostrar que todos os outros argumentos além da filosofia não têm base e são autocontraditórios. O filósofo não é, como tal, um homem social; Aristóteles nunca sequer diz que as virtudes morais, a justiça incluída, são necessárias ao filósofo para que ele filosofe.
É verdade que Aristóteles ensina que a atividade de nossas faculdades é 0 que nos faz felizes. Mas com faculdade ele não quer
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I ........V liirtiiiM IMI ireinadas”. As factoldades de Aristóteles são componentes
' iiiiiiiiiiiN da nossa constituição, como a visão ou o intelecto. lem UHI dfiscnvolvimento apropriado e são exercitadas em objetos apro- |ii iiidos. Os homens podem possuir e exercitar essas faculdades I III iunior ou menor grau, mas são, na mesma proporção, mais iiii iiifiios homens. Há uma estrutura e uma hierarquia de facul- ilitdfs baseadas na sua contribuição à felicidade.
Aristóteles pode nos dizer, com detalhes e em termos preci- iint., no que consiste a felicidade. Mas Rawls, mesmo que use imiilo a palavra “ natureza” , não quer dizer nada com ela. A Iorina como um homem expressa suas capacidades, a forma como ele se acredita ser, ele é. Rawls acredita que o homem tem iiin self-, Aristóteles acredita que o homem tem uma alma. Es- ics termos são mutuamente exclusivos. O self é autodetermi- iiante; no máximo, é uma fonte misteriosa e enganosa, infinita em suas expressões. A alma tem uma natureza, pois tem um fim que a determina e do qual não é a causa; o self, porém, não tem natureza, é múltiplo. Rawls, para evitar ser incapaz de dizer qualquer coisa sobre os fins emanados do self, insiste que um homem deve primeiro deliberar e sugere que a atividade mais complexa de qualquer gênero deve ser a preferida (por exemplo, jogo de xadrez e não damas). Rawls tira a inspiração para essa sugestão, só Deus sabe como, de Aristóteles. Os critérios de Rawls para a realização das capacidades são puramente formais e externos, não ajudando a determinar se elas são expressões verdadeiras ou falsas da natureza de um homem ou para distinguir entre o arrombamento habilidoso de um cofre e a feitura de belas estátuas.
E, afinal, diz-nos Rawls, o homem que gosta de rolar na grama talvez esteja realizando sua natureza também. Aristóteles pode até concordar, mas insistiria que tal pessoa, outras coisas sendo iguais, era um homem inferior. Isso Rawls nunca fará. Ele simplesmente tentará encontrar um grupo de homens que apoiarão o sentido que este homem tem de seu próprio valor.
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o S E N S O D E J U S T I Ç A : N A T U R E Z A O U D O U T R I N A Ç Ã O ?
O princípio aristotélico nos permite atingir a última etiipn im nossa jornada em direção à sociedade prometida. Ê a elai<>i,i,,ni( do senso de justiça. Trata-se de urna daquelas “ capacidac(i ■. i Im bilidades inatas ou treinadas) de cujo exercício os seres húnimina gostam. O senso de justiça é a condição de sermos menibiiMi i mantermos uma boa sociedade, e a boa sociedade nos fart) Irh. i m porque satisfaz nosso senso de justiça. O senso de justiçji c iiiii princípio psicológico, e Rawls apresenta uma história em ti f s « m tágios de seu desenvolvimento.
Depois de desenvolvido o senso de justiça, temos uma lu i i i sidade psicológica inquebrantável de uma ligação com a socicil.i de. Isso se torna parte da nossa constituição psicológica coi nu qualquer outro sentimento. Somos sociais porque possuírnos n senso de justiça. A ambigüidade das “ habüidades inatas ou livi nadas” de Rawls nos deixa com uma dúvida estranha — se o sensi i de justiça é natural ou é apenas o resultado do hábito.
Seja como for, Rawls nos diz que, se este senso existir, e a so ciedade responder às suas exigências, a sociedade será estável. Isso nos deixa outra dúvida — a sociedade é verdadeiramente justa ou meramente satisfaz o senso de justiça.
Os três estágios são mais ou menos assim: Quando somos crianças, obedecemos por amor, confiança e respeito aos nossos pais. Esta é a moralidade de autoridade. E uma coisa infantil, mas está preservada em homens como Tomás de Aquino ou crentes de qualquer tipo. O segundo estágio é o da nossa juventude. Quando somos ligados com o nosso grupo nele vemos o nosso bem, e somos motivados por elogio e culpa. Isso também, embora útil, tem suas limitações evidentes. É a moralidade de George Washington e os patriotas. Finalmente há a moralidade baseada na adesão racional aos princípios, no reconhecimento de que nossa sociedade é razoável e justa, que segue os imperativos da “ posição original” . É a moralidade da fase adulta e é praticada por
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Httu I') f l ilósofos como ele, bem como por todos os membros da «•M ii ilmlc prometida.
Kiiwis não nos mostra que essas três moralidades sejam har- (itiMiiosus ou que a terceira é a síntese das duas primeiras. Para ()(/n isso, teríamos de estudar os regimes fundados na reverên- lii 011 na devoção e na lealdade, honra ou patriotismo, compará-
loN com aqueles fundados na razão, e determinar as várias vanta- Hciií. de cada um. Isso exigiria uma façanha comparável àquela
t I Icgel para mostrar que a sociedade fundada na razão contém iifi vantagens políticas e morais a serem encontradas no santo desini libramento diante do sagrado ou na lealdade generosa a amidos c no ódio mortal aos inimigos.
Não há reflexo aqui do que realmente constitui o enraizamen- 10. Só depois de completar tal tarefa podemos olhar aqueles princípios mais antigos como um adulto olha de cima para baixo uma i riança. Superficialmente, pareceria que a razão substitui motivações egoístas, baixas e certas pelas mais nobres. Será mesmo que essa razão vê grandes metas além do cálculo das vantagens? Rawls, como sempre, não tem disposição para examinar alternativas.
Mais importante ainda, Rawls não provou nem que aquela adesão aos princípios desenvolvidos na posição original é racional nem que a razão pode demonstrar a bondade da obediência estrita às leis de uma sociedade fundada de acordo com esses princípios. Na ausência de tais provas só podemos dizer que a moralidade dos princípios não se baseia em impulsos, feelings, ou instintos como se baseiam os dois outros tipos de moralidade e que ela, a primeira moralidade, envolve o uso da razão —■ embora possa culminar em racionalizações ou ideologias em vez de razões.
Essa doutrina de desenvolvimento moral em três estágios parece suspeitosamente perigosa, igual ao que hoje se chama socialização política, ou seja, uma forma de levar os homens a participar do grupo, seja ou não isso natural ou bom para eles. Rawls deve provar que esses estágios são parte do desenvolvimento dos homens no mesmo sentido que é a formação de seus órgãos, ou
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se arrisca a permitir um processo de doutrinação para benefício das finalidades sociais. Seu abandono da natureza não abre novas portas da liberdade humana tanto como abre caminho para a manipulação ilimitada do homem.
A O N I P O T Ê N C I A D A S O C IE D A D E
E, agora, por fim, chegamos à meta, “ a idéia da união social” , a comunidade que a razão escolhe e nos faz feliz ao mesmo tempo que une o interesse público ao privado. Não só a sociedade é necessária, não só nos dá satisfações que não teríamos sem ela; nos incorpora e dessa forma somos partes dela. Dos átomos do estado da natureza Rawls construiu um organismo social no qual nos sentimos com o todo e com ele ficamos alegres ou sofremos.
O paradoxo extremo e irônico de Sócrates é aqui apresentado na maior cara-de-pau. Nada fora da sociedade é bom; nada transcende a sociedade. Somos partes integrais dela, mas nem sabemos o que é essa sociedade. É bem aristotélico — ou seja, bem complexo — e assim tudo que pode ser contido no homem encontra sua expressão, e todos gostamos disso. Essa sociedade é baseada numa divisão moral e intelecmal do trabalho que aumenta a quantidade e os tipos de produção para proveito de todos, sem risco de deformação trazido pela especialização estreita ou alienação do nosso trabalho.
Recebemos tudo da sociedade, e a ela devemos total lealdade. Se 0 homem tivesse uma natureza, ela seria social. Somos sempre parciais; só a sociedade pode ter todas as perfeições, mas nós as temos por meio da sociedade. Não devemos tentar ser auto- suficientes, mas devemos aceitar nossa fraqueza, entrar no time e jogar direito, reconhecendo que todos fazemos uma contribuição igual para o resultado coletivo. O homem que não é sociável é radicalmente imperfeito e tem uma vida deficiente. Ele é o único homem que Rawls não quer tratar como igual. Para Aristóteles, 0 homem que não pertence à sociedade civil ou é um animal ou
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um deus. Para Rawls, ele é só um animal. Para Rousseau, o solitário é 0 único homem bom. Para Rawls, é o único homem mau. Toda a ambigüidade da vida social desaparece.
Rawls conseguiu a completa socialização do homem começando do indivíduo mais fraco e vulnerável e vislumbrando um arranjo social que o protegerá em sua debilidade, garantirá sua subsistência, lhe permitirá perseguir e realizar seus desejos e planos, e dar-lhe-á o mesmo sentido de valor que tem o cidadão honrado rico, bem-sucedido. Indo além das metas e esperanças mais modestas do pensamento mais antigo, Rawls propõe convertê-lo na finalidade da sociedade para realizar os homens, para fazê-los felizes, aceitando como felicidade o que cada um acredita ser a felicidade e dando a cada um o que Rawls acredita ser os elementos universais da felicidade, seja lá qual for sua forma.
Já que nem Deus nem a natureza realizam planos como esse e podem até ser contra, a sociedade deve assumir o peso de dar e distribuir os elementos da felicidade; a pessoa menos favorecida reconhece que é só a sociedade que considera seus interesses, batalha contra uma natureza hostil e procura o seu bem. A sociedade existe para ele, mas ele, no sentido mais decisivo, é sua criatura.
É fácil ganhar a adesão dos menos favorecidos a este esquema, da mesma forma como não é difícil obter a participação do pobre num plano para compartilhar a riqueza. O problema real é o mais forte ou o mais favorecido, pois eles podem querer assumir um risco num arranjo menos igual ou até tentar ser substancialmente auto-suficientes. Assim, em grande medida, o livro de Rawls é uma polêmica contra essa gente. Ele os socializa ao persuadi-los de que também são fracos; ao confundir igualdade natural com igualdade social; ao negar que pode haver auto- suficiência; ao criar o hábito e a proclamação da vergonha e da culpa; ao eliminar as alternativas; e acima de tudo por não parar de fazer sermões.
A harmonia entre os favorecidos e os não favorecidos não é natural e se realiza pela supressão da natureza. As pontas ásperas.
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OS conflitos fundamentais, sempre presentes na prática c na icd ria antigas, podem, então, ser entendidos por Rawls como resiil tados da mera perversidade. Já que o homem não tem natuivzn fíxa, 0 planejamento social e até mesmo o uso da genética, |io dem finalmente amaciar tudo isso para ele. A perspectiva origi nal de Rawls do ponto de vista dos menos favorecidos faz desti parecer as outras considerações. A conseqüência é o fechameiiio da saída da caverna. Não há saída e não há esconderijo. “ Taiiio na justiça como na eqüidade os homens concordam em compai- tilhar o destino de cada um” (p. 102).
O que Rawls cria é um governo enormemente ativo cuja finali dade é suprir os bens primários, incluindo o sentido do nosso prõ prio valor, e assim encorajar as atitudes que apóiam a produção e a distribuição igual desses bens. O que pode ser o futuro da liberdade num esquema como este? Liberdade é, claro, o primeiro princípio de justiça de Rawls, mas é qualificado ao dele se exigir que seja “ compatível com uma liberdade similar para os outros”.
Rawls não elabora a extensão daquela qualificação. Não existe, repetindo, ensinamento de direito natural em Rawls, nenhum limite absoluto de qualquer tipo.
Todos os planos de vida livremente escolhidos devem ser restringidos pelas exigências fundamentais da união social. O conflito será resolvido prática e teoricamente em favor da sociedade. De Rawls só temos a garantia que nada importante pode falhar na procura da aceitação dentro dos termos determinados pela posição original. A plasticidade do homem, tornada ainda maior pela ausência da natureza e seus limites, permite todos esses pequenos ajustes nos homens que tornarão possível a idéia da união social. A sociedade é o absoluto no pensamento de Rawls, embora não tenha base.
E qual é a finalidade de tudo isto? Uma felicidade artificial do homem artificial. A sociedade prometida de Rawls é um deserto. Alimenta-se de relatos falsos — histórias de que ela é o produto final da evolução e da história, relatos que fazem as coisas desiguais parecer iguais. A democracia, que vinha para nos li-
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I If I lar dos mitos que pervertiam a natureza, se torna a platafor-II III para uma propaganda estridente que nega a natureza em favor da igualdade, como os mitos das aristocracias convencionais iifgavam a natureza em favor da desigualdade.
A comunidade desejada é aquela sem tensão, sem culpa (exce- lo para aqueles que não concordam), sem anseios, sem grandes riscos ou sacrifícios, aquela feita para os desejos ociosos dos homens e para o bem do qual o homem foi refeito. A linguagem da liberdade máxima, diversidade e realização das capacidades é muita conversa mole, cuja única função é apoiar nossa tranqüila auto-satisfação.
C O N C L U S Ã O
A grande debüidade do livro Uma Teoria de Justiça não será encontrada nos princípios por ele propostos, ou no tipo de sociedade que preconiza, ou nas tendências políticas que estimula, mas sim na falta de educação que revela.
A “ posição original” de Rawls é baseada no desentendimento dos ensinamentos do estado da natureza de Hobbes, Locke e Rousseau. Sua “ interpretação kantiana” é baseada num desentendimento do ensinamento moral de Kant. Seu “ princípio aristotélico” é baseado num desentendimento de Aristóteles e seu ensinamento da felicidade.
E esses três desentendimentos constituem o cerne do livro. Um entendimento autêntico desses pensadores teria dado a Rawls uma percepção dos problemas por ele centrados e da natureza da importância filosófica. Não estamos em posição de levar adiante novas soluções dos problemas; pois, como demonstra este livro, esquecemos 0 que são esses problemas.
A coisa mais essencial de nossas liberdades, como homens e liberais democratas, a liberdade das nossas mentes, consiste na consciência das alternativas fundamentais. A preservação dessa consciência é tão importante quanto qualquer novo esquema para a sociedade. As alternativas estão contidas nos textos dos grandes homens na tradição filosófica.
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Com isso não quero dizer que a última palavra já foi dita, mas que qualquer mundo novo sério deve ser baseado num confronto profundo com os antigos. O confronto tem o efeito salutar extra de destruir nosso sentido do nosso próprio valor e nos dá aspirações mais novas. Rawls é o produto de uma escola que pensa que inventou a filosofia. Seus adeptos nunca se aproximaram de um Aristóteles ou um Kant na busca da verdade ou para abrir a possibilidade de que estes pensadores antigos podem ter sabido mais do que eles conhecem; e já que têm um monopólio virtual sobre o ensino da filosofia, o que vemos é uma perda desastrosa, talvez irreparável, do aprendizado e a extinção da luz que tem piscado, mas nunca se apagou ao longo de tantos séculos.
O livro de Rawls é um resultado dessa perda do aprendizado e para ele contribui. Seu método e o homem que ele deseja levam- me a pensar que Nietzsche — abusado por Rawls, embora este não seja culpado porque é ignorante — talvez nos dê um título mais apropriado para este livro: Uma Primeira Filosofia para o Ultimo Homem.
Os dois ensaios que se seguem sobre as universidades nos anos 60 foram escritos com um intervalo de três anos — o primeiro em 1966 e o segundo em 1969. Embora lidem com problemas permanentes, contêm comentários sobre eventos mutantes. Eu os apresento como foram escritos, para refletir meu pensamento como ele emergia então e para mostrar como os fatos me pareciam.
O primeiro revela que fui inocente e bom quando era jovem, cheio daquela paixão que se alimenta mais de ilusões, esperança. Na época do segundo ensaio, eu já abandonara a esperança e a substituíra pela clareza, filha da distância e do desapego, o começo da minha idade madura. Minha preocupação com o destino da leitura de bons livros na América tinha sido uma constante. A reforma que eu na verdade proponho no primeiro ensaio é quase a mesma modesta reforma que gostaria ainda de propor — a união de um pequeno grupo de professores que pensam igual contra a corrente. O Programa de Civilização Grega mencionado nele se tornou uma realidade — por um ano, depois do qual seus anima-
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dores foram embora de Cornell. Mas daquela dúzia e pouco de calouros, pelo menos seis se tornaram scholars com quem ainda tenho contato depois de mais de vinte anos.
No segundo ensaio não fiz previsões que a cena da reforma extremista sairia das ciências sociais e se mudaria para a área de humanidades e que os estudantes dos anos 60 seriam os professores dos anos 80. Henry Lewis Gates Jr. sugere que esta geração conseguiu progredir até chegar à posse total dos currículos. Agora os professores estão bem na frente dos estudantes. Na grande reforma de Stanford foram os professores que usaram os estudantes para avançar sua “ agenda pós-modernista” na batalha contra o eurocentrismo.
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