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Coleção Aventuras Grandiosas Jack London Adaptação de Ana Carolina Vieira Rodriguez 1 a edição Amor à vida

Amor A Vida

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Amor A Vida

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Coleção Aventuras Grandiosas

Jack London

Adaptação de Ana Carolina Vieira Rodriguez

1a edição

Amor à vida

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Capítulo 1

— Bill, meu tornozelo!

Caminhavam com dificuldade por dentro do rio e, certa hora, o primeiro

dos dois homens escorregou entre as pedras espalhadas no fundo. Estavam

cansados e fracos, e seus rostos tinham a expressão da paciência adquirida

com o longo trajeto de privação e sofrimento. Estavam muito carregados

com mochilas e cobertores amarrados aos ombros. Faixas que atravessavam a

testa ajudavam a suportar o peso da bagagem. Cada homem levava um rifle.

Eles andavam com a postura inclinada, os ombros bem para frente, a cabeça

ainda mais adiante, os olhos voltados para o chão.

— Que bom seria se tivéssemos dois desses cartuchos lá no nosso

esconderijo — disse o segundo homem.

Sua voz estava muito triste e sem expressão. Ele falava sem entusiasmo.

E o primeiro homem, caminhando com bastante dificuldade dentro do riacho

leitoso que fazia espuma sobre as pedras, não deu resposta alguma.

O outro homem o seguia. Mergulhavam seus calçados na água congelante

— tão fria que os tornozelos doíam e os pés estavam adormecidos. Em

alguns locais, a água batia nos joelhos e os dois cambaleavam em busca

de equilíbrio.

O homem que seguia escorregou em uma pedra lisa e arredondada,

quase caiu, mas se recompôs com um esforço violento, enquanto soltava uma

exclamação aguda de dor. Parecia tonto e abatido, e atirou a mão que estava

livre para o alto enquanto se equilibrava, como se estivesse buscando apoio

no ar. Quando conseguiu se erguer, deu um passo para frente, mas cambaleou

de novo e quase caiu. Então parou e olhou para o outro homem, que não tinha

se virado para trás nem uma vez.

privação: 2 falta de alguma coisa

cambaleavam: 2 caminhando sem firmeza, oscilando para os lados

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O homem ficou parado por um longo minuto, como se estivesse

refletindo. Então chamou:

— Bill, acho que torci o tornozelo!

Bill continuava seu trajeto pela água leitosa, sem olhar em volta. O homem

o viu seguir adiante e, embora seu rosto estivesse mais sem expressão do que

nunca, seus olhos pareciam os de um animal ferido.

O outro homem chegou à margem mais distante e continuou andando

sem olhar para trás. O homem no riacho o observava. Seus lábios tremiam um

pouco, de modo que o grosso bigode marrom que os cobria estava visivelmente

agitado. Sua língua até saía de vez em quando para umedecê-los.

— Bill! — gritou.

Era um forte grito de socorro de um homem em dificuldades, mas Bill não

se virou. O homem o viu se afastar caminhando, avançando com passos incertos

em direção à tênue linha do horizonte da colina próxima. Ele o viu cruzar o

topo e desaparecer. Então voltou o olhar para si e lentamente observou ao

redor o mundo que lhe restava, agora que Bill tinha partido.

Perto do horizonte o sol estava ofuscado, quase escurecido por névoas

e vapores sem formas, que davam uma impressão de massa e densidade sem

contorno ou noção de tangibilidade.

O homem consultou o relógio, enquanto descansava o peso em uma

das pernas. Eram quatro horas, e como estava próximo do final de julho, início

de agosto — fazia uma ou duas semanas que não sabia a data precisa —,

reconheceu que o sol apontava levemente para noroeste.

Olhou em direção ao sul; sabia que em algum lugar além daquelas colinas

geladas estava o Grande Lago do Urso e também que naquela direção o Círculo

Ártico cortava seu caminho proibido através das Planícies Canadenses. Aquele

riacho, no qual ele se encontrava, era um afluente do Rio Mina de Cobre, que,

por sua vez, corria para o norte e desaguava no Golfo da Coroação e no Oceano

tênue: 2 sutil, frágil

tangibilidade: 2 qualidade de tangível, que se pode apalpar, tocar

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Ártico. Ele nunca tinha estado lá, mas tinha visto tudo isso uma vez em um

mapa da empresa Baía de Hudson.

Mais uma vez, observou o mundo ao seu redor. Não era um espetáculo

encorajador. Tudo era linha do horizonte. Os morros eram todos baixos. Não

havia árvores, arbustos ou grama — nada além de uma desolação enorme

e terrível, que devagar levava medo para dentro de seus olhos.

— Bill! — murmurou uma ou duas vezes. — Bill!

Agachou-se no meio da água leitosa, como se a vastidão estivesse

fazendo pressão contra ele com uma força impressionante, esmagando-o

brutalmente. Começou a tremer com calafrios, até que a arma caiu da mão

para dentro da água. Isso serviu para despertá-lo. Ele lutou contra o medo e

se reergueu, apalpando a água até recuperar a arma.

Arrancou a mochila do ombro esquerdo, a fim de tirar uma parte do peso

do lado do tornozelo machucado. Então continuou, devagar e com cuidado,

tremendo de dor, em direção à margem, sem parar.

Capítulo 2

Guiado pela fome

Com um desespero louco, sem se importar com a dor, ele subiu depressa

ao topo da colina, atrás da qual Bill tinha desaparecido — de modo muito mais

grotesco e cômico do que seu desajeitado companheiro. Mas ao chegar ao

topo, avistou um pequeno vale, sem sinal de vida. Lutou contra seu medo de novo,

superou-o, afastou a mochila ainda mais do ombro esquerdo e desceu a ladeira.

O fundo do vale estava encharcado de água, e o musgo grosso,

parecido com uma esponja, ficava perto da superfície. Essa água esguichava

desolação: 2 desamparo, solidão, isolamento

grotesco: 2 ridículo

musgo: 2 tipo de vegetação em áreas úmidas, como troncos de

árvores e rochas

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debaixo de seus pés a cada passo, à medida que a lama esverdeada se soltava

com dificuldade. Ele seguiu as pegadas de Bill ao longo das rochas, que surgiam

como ilhotas dentro do mar de musgo.

Embora sozinho, não estava perdido. Sabia que mais adiante chegaria a

um lugar onde uma vegetação de abetos mortos, muito pequenos e murchos,

costeava um laguinho, o titchin-nichilie, na língua do país, a “terra de gravetos”.

Em direção àquele lago corria um pequeno riacho, cuja água não era leitosa.

Havia junco naquele riacho — disso ele se lembrava bem —, mas não havia

madeira — e ele o seguiria até que sua primeira corrente de água terminasse

em uma divisa.

Ele cruzaria essa divisa até a primeira corrente de outro riacho, que corria

para oeste, e o seguiria até que desaguasse no Rio Dease. Ali encontraria um

esconderijo sob uma canoa virada e coberta de pedras. E nesse esconderijo

haveria munição para sua arma descarregada, anzóis e linhas, uma pequena rede

— todos os apetrechos de que precisaria para conseguir comida. Além disso,

encontraria farinha — não em grande quantidade — e um pouco de feijão.

Bill estaria esperando naquele local e os dois desceriam o Rio Dease a

remo, em direção ao Grande Lago do Urso. E seguiriam para o sul, sempre para

o sul, até atingirem o Rio Mackenzie, enquanto o inverno correria atrás deles

em vão, o gelo se formando nos redemoinhos, os dias mais frios e secos. Ao

sul, encontrariam uma base aquecida da empresa Baía de Hudson, onde as

árvores eram altas, generosas e havia comida sem-fim.

Esses eram seus pensamentos, enquanto lutava para prosseguir. Da

mesma forma que com o corpo, ele lutava também com os pensamentos,

tentando pensar que Bill não o tinha abandonado, que ele certamente o estaria

aguardando no esconderijo. Sentia-se forçado a pensar assim, do contrário

não haveria por que lutar e ele teria se deitado para morrer. E enquanto a bola

abetos: 2 árvores altas da região da América do Norte e Europa

apetrechos: 2 objetos necessários para fazer alguma coisa

em 2 vão: inutilmente

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obscura do sol afundava a noroeste, percorria muitas e muitas vezes o caminho

que Bill e ele fariam para o sul antes de o inverno chegar.

Além disso, visualizava sem parar a comida do esconderijo e a comida

da base da empresa da Baía de Hudson. Não comia havia dois dias, e havia

um bom tempo não comia o suficiente para matar a fome.

Costumava pegar umas frutinhas típicas da região, colocava-as na boca,

mastigava e engolia. São frutas que têm uma sementinha dentro de uma pequena

baga de água. Na boca, a água se derrete e a semente mastigada torna-se amarga,

com gosto forte. O homem sabia que não eram nutritivas, mas ele as comia

pacientemente, com uma esperança maior que o conhecimento e a experiência.

Às nove horas, ele bateu o dedão do pé em uma rocha e, devido ao

mais puro cansaço e à fraqueza, desequilibrou-se e caiu. Ficou parado, sem

movimento, deitado de lado. Então deu um jeito de se livrar da bagagem

que levava nas costas e, de modo bastante desajeitado, conseguiu se sentar.

Ainda não estava escuro, então o homem aproveitou a fraca luz do pôr do sol

para tatear entre as pedras e coletar alguns gravetos e musgo seco. Quando

conseguiu juntar um punhado deles, fez uma fogueira — uma fogueira que

queimava sem labaredas — e colocou uma lata de água para ferver.

Ele abriu a mochila e a primeira coisa que fez foi contar os fósforos que

ainda tinha. Havia 67. Ele os contou três vezes para ter certeza. Dividiu-os em

vários pacotinhos, embrulhou cada um em papel encerado e os colocou em

lugares diferentes: um dentro de um estojo vazio para guardar tabaco, outro

na faixa de dentro de seu velho e amassado chapéu, outro ainda dentro da

camisa, próximo ao peito. Feito isso, um pânico invadiu a mente e ele os

desembrulhou e os contou novamente. Ainda havia 67.

O homem secou os pés molhados perto do fogo. Os mocassins

estavam ensopados. As meias feitas de malha estavam gastas em vários lugares,

tatear: 2 apalpar com cuidado

mocassins: 2 sapatos geralmente usados por indígenas e nativos

dos países frios

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e os pés estavam feridos e sangrando. Um dos tornozelos estava latejando e

ele o examinou. Tinha inchado até ficar do tamanho de seu joelho. Ele rasgou

uma longa tira de um de seus dois cobertores e a amarrou forte ao tornozelo.

Depois rasgou mais tiras e as amarrou aos pés, assim serviriam de meias e

sapatos. Então bebeu a lata cheia de água bem quente, deu corda no relógio

e se enrolou nos cobertores.

Dormiu como um homem morto. A breve escuridão perto da meia--

noite chegou e foi embora. O sol nasceu a nordeste — pelo menos o dia

nasceu naquele quadrante, pois o sol estava escondido entre as nuvens

acinzentadas.

Às seis horas, o homem despertou calmamente, deitado de costas.

Olhou direto para o dia cinza e percebeu que estava com fome. Enquanto

virava de lado e apoiava o cotovelo para se levantar, escutou um bufo muito

alto e viu um caribu olhando para ele com curiosidade. O animal estava muito

próximo e, sem pensar, agindo por um instinto de fome mais forte do que

o pensamento, o homem pegou a arma vazia e atirou em direção ao bicho.

O caribu bufou e correu para longe, deixando apenas um barulho de folhas

secas e cascalho se quebrando.

— Arma estúpida! — xingou o homem, jogando o rifle para o lado.

Depois resmungou e começou a se levantar. Era uma tarefa lenta e

difícil. Suas juntas pareciam dobradiças enferrujadas. Elas funcionavam mal,

era preciso muita fricção e cada dobra só era alcançada com muita força

de vontade. Quando finalmente ficou em pé, gastou mais um ou dois minutos

para se firmar.

O homem subiu em um monte próximo e verificou os arredores. Não

havia árvores, arbustos, nada a não ser um mar de musgo cinza diversificado

por pedras cinzas, laguinhos cinza e riachos cinza. Não havia sol, nem sinal de

caribu: 2 rena

fricção: 2 ato de esfregar, friccionar

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sol. Ele não tinha ideia de onde ficava o norte e tinha se esquecido de como

chegara àquele lugar na noite anterior. Mas não estava perdido, disso tinha

certeza. Logo chegaria à “terra de gravetos”. Sentiu que ela ficava em algum

lugar à esquerda, não muito longe dali — talvez logo depois da pequena

colina seguinte.

Começou a arrumar a mochila para continuar a viagem. Verificou se

tinha os três pacotes separados de fósforos, isso sem parar de contá-los. Mas

hesitou em relação a uma das sacolas, um tipo de saco feito de tecido. Não

era grande, poderia escondê-la sob as duas mãos, mas aquela bagagem o

preocupava. Colocou-a de lado e voltou a juntar as coisas. Olhou várias vezes

para ela. Quando finalmente se pôs de pé para começar o dia, o saco estava

incluído na mochila que levava nas costas.

Ele partiu para o lado esquerdo, parando de vez em quando para comer

aquelas frutinhas com semente dentro. Seu tornozelo estava mais rígido e ele

mancava com mais dificuldade, mas a dor na perna nem se comparava à dor

que sentia no estômago. As pontadas de fome eram agudas. Elas atormentavam

e atormentavam até que ele não conseguiu mais se concentrar no trajeto que

deveria fazer para alcançar a “terra de gravetos”. As frutinhas não acalmavam

a fome, em vez disso, deixavam a língua e o céu da boca machucados por

causa do amargor.

Ele chegou a um vale cheio de pássaros, uma espécie de galo silvestre.

“Quer-quer-quer”, faziam. Tentou acertar um com uma pedrada, mas falhou.

Colocou a mochila no chão e fez novas tentativas, deitando-se como se fosse

um gato espreitando um pardal. As rochas afiadas acabaram cortando as

calças na altura dos joelhos, deixando um rastro de sangue, mas a dor se perdia

na dor de sua fome. Ele se arrastou na lama, encharcou as roupas e esfriou a

temperatura do corpo, mas nem se deu conta disso, tamanho era seu desejo

por comida. E os galos silvestres continuaram seu “quer-quer-quer”, como se

espreitando: 2 observando escondido

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estivessem rindo da cara do homem. Ele os amaldiçoou e os xingou com

toda força, percebendo que não iria conseguir matar nenhum. Chegou a atingir

um deles, mas tudo o que conseguiu foi ver três penas voando e o galo fugindo

assustado. Então se deu por vencido e vestiu a mochila.

Ao longo do dia, ele chegou a vales e regiões mais abundantes. Um

bando de caribus passou, cerca de 20 animais bem esquisitos. Estavam a uma

distância fácil de atirar, mas dessa vez lembrou que não podia fazer nada com

o rifle descarregado. Sentiu uma vontade louca de correr atrás deles, como

se tivesse certeza de que poderia abatê-los na corrida. Uma raposa negra se

aproximou com um galo silvestre na boca. O homem gritou com toda força,

mas a raposa, correndo assustada, não largou o galo.

À tarde ele seguiu um riacho barrento, que corria através de esparsos

galhos de uma espécie de junco. Agarrando com força um desses galhos

bem perto da raiz, ele arrancou algo parecido com uma minúscula cebola, do

tamanho de uma unha. Era macia e seus dentes se fincaram nela com o desejo

de sentir um gosto maravilhoso de comida. Mas suas fibras eram duras. Eram

compostas de filamentos fibrosos com água, como as frutinhas, sem nenhum

valor nutritivo. Ele tirou sua mochila e se ajoelhou na beira do riacho arrancando

os juncos em desespero, mastigando-os na raiz como bois pastando.

O homem estava exausto, tinha vontade de descansar, de deitar e dormir,

mas continuava motivado nem tanto pelo desejo de chegar à “terra de gravetos”,

mas principalmente pela fome. Ele vasculhou pequenas lagoas em busca de

sapos e cavou a terra tentando encontrar minhocas, embora soubesse que nem

sapos nem minhocas vivem em uma região tão fria como aquela.

Ele procurou em vão em todas as poças e pequenas lagoas, até que

quando a longa hora do crepúsculo chegou, descobriu um peixe solitário, bem

pequeno, em uma delas. Enfiou o braço na água até o ombro, mas o perdeu.

amaldiçoou: 2 abominou, maldisse, lançou maldição

abundantes: 2 fartos

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Tentou pegá-lo com as duas mãos, mas agitou o barro do fundo da lagoa,

deixando a água suja. Na empolgação, escorregou, molhando-se até a altura da

cintura. Então a água ficou barrenta demais para que ele conseguisse ver o peixe,

obrigando-o a esperar até que a terra sedimentasse novamente no fundo.

A perseguição recomeçou, até que a água ficou suja de novo. Mas ele

não conseguia esperar. Desamarrou uma lata de sua mochila e começou a

esvaziar a pequena lagoa. No início esvaziava a lagoa quase como um louco,

espirrando água em si mesmo e jogando-a tão perto, que ela voltava para a

lagoa. Começou então a ter mais cuidado, esforçando-se para se acalmar,

embora seu coração batesse forte no peito e as mãos tremessem.

Meia hora se passou e a lagoa quase secou. Não havia mais nem um

copo cheio de água dentro dela. E não havia peixe nenhum. Ele encontrou

uma fenda escondida entre as rochas, pela qual o peixe escapara para uma

lagoa adjacente, bem maior — uma lagoa impossível de esvaziar em uma

noite e um dia. Se soubesse da existência da fenda, teria dado um jeito de

fechá-la com uma pedra desde o início, e o peixe seria seu.

Então o homem refletiu, franziu a testa e se deixou cair na terra molhada.

No começo chorou baixinho para si mesmo, então começou a chorar bem

alto, para atingir a implacável desolação que o rodeava; e por muito tempo

depois disso ouviram-se grandes soluços secos.

Capítulo 3

Um cavalo-urso?

Ele fez uma fogueira e se aqueceu bebendo goles de água quente,

depois arrumou onde dormir sobre uma rocha, parecido com o que tinha feito

sedimentasse: 2 ficasse estável

adjacente: 2 próximo, junto, contíguo

implacável: 2 que não perdoa

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na noite anterior. A última coisa que fez foi verificar que seus fósforos estavam

secos e dar corda no relógio. Os cobertores estavam molhados e pegajosos.

Seu tornozelo pulsava de dor. Mas ele só lembrava que estava com fome,

e durante o sono agitado que teve, sonhou com festas e banquetes e com

comida servida das formas mais diferentes possíveis.

Acordou com frio e doente. Não havia sol. O cinza da terra e do céu

tinha se tornado mais profundo, mais intenso. Um vento gelado estava soprando

e os primeiros flocos de neve branqueavam os topos das montanhas. O ar

ao redor ficou mais pesado e mais branco, e ele acendeu o fogo de novo e

ferveu mais água. Era neve molhada, metade chuva, e os flocos eram grandes

e encharcados. No início derretiam assim que entravam em contato com a

terra, mas à medida que foram caindo, começaram a cobrir o solo, apagar o

fogo e sujar sua bagagem.

Era um sinal para ele arrumar a mochila e seguir em frente, não sabia

para onde. Ele não estava preocupado com a “terra de gravetos” nem com Bill

ou com as comidas sob a canoa virada no Rio Dease. Naquele momento, era

comandado pelo verbo “comer”. Estava louco de fome. Não prestou atenção

ao caminho que deveria seguir, só queria saber de chegar onde pudesse

encontrar frutinhas amargas e brotos da suposta cebola que arrancara com a

raiz dos juncos. Mas eram alimentos sem gosto, que não satisfaziam. Encontrou

um capim com gosto azedo e comeu tudo o que conseguiu achar, o que não

era muito, pois se tratava de uma vegetação rasteira, escondida com facilidade

sob a neve que cobria o solo.

Não tinha fogueira nem água quente naquela noite, então se deitou

enrolado nos cobertores para dormir e se esquecer um pouco da fome. A neve

se transformou em uma chuva gelada. Ele acordou diversas vezes sentindo-a

bater no rosto. O dia chegou — um dia cinza, sem sol. Tinha parado de chover.

Sua fome desesperada tinha se abrandado. Estava exausto demais para sentir

abrandado: 2 acalmado

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fome. Havia uma dor chata e aguda no estômago, mas não o incomodava tanto.

Sentia-se mais racional e, mais uma vez, interessou-se em procurar a “terra de

gravetos” e as provisões da canoa no Rio Dease.

Rasgou o restante de um de seus cobertores em faixas e atou-as aos

pés, que sangravam. Além disso, apertou mais forte o tornozelo machucado

e se preparou para mais um dia de viagem. Quando olhou para a mochila,

deteve-se longamente diante daquele pequeno saco de tecido, mas acabou

levando-o consigo.

A neve tinha derretido com a chuva e só os topos das montanhas

estavam brancos. O sol saiu e ele conseguiu localizar os pontos cardeais,

embora soubesse agora que estava perdido. Talvez nos dias anteriores tivesse

caminhado demais para a esquerda, então resolveu seguir para a direita, assim

poderia compensar o possível desvio de sua verdadeira rota.

Embora as pontadas de fome não fossem mais tão fortes, ele percebeu

que estava fraco. Era obrigado a parar para descansar com frequência depois

de atacar as frutinhas amargas e as raízes do junco. Sua língua ficava seca e

grande, como se estivesse coberta por um cabelo bem fino, e tinha um gosto

amargo na boca.

Seu coração também começou a dar trabalho. Assim que caminhava

alguns minutos, ele começava a bater forte, tump, tump, tump, e então pular

dentro do peito em uma série de taquicardias doloridas que o faziam

engasgar, ficar tonto, quase desmaiar.

Na metade do dia, encontrou dois peixinhos em uma lagoa. Era grande

demais para esvaziar, mas ele estava mais calmo e conseguiu pegá-los com sua

lata. Eram do tamanho de seu dedo mindinho, mas ele não estava com fome.

A dor chata em seu estômago tinha aumentado. Parecia que o estômago estava

provisões: 2 alimentos

pontos 2 cardeais: marcações na rosa dos ventos que apontam

para norte, sul, leste e oeste

taquicardias: 2 aumentos no batimento do coração

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dormindo. Ele comeu os peixes crus, mastigando-os com muito cuidado, pois

comia impulsionado por pura racionalidade. Não tinha vontade de comer, mas

sabia que precisava se alimentar para viver.

À noite, pegou mais três peixinhos. Comeu dois e guardou o terceiro

para o café da manhã. O sol tinha secado alguns esparsos pedaços de musgo

e ele conseguiu se aquecer com água quente que ferveu. Naquele dia, tinha

percorrido cerca de 15 quilômetros, e no dia seguinte, sentindo o coração

mais cansado, conseguiu andar apenas oito. Mas o estômago não lhe dava

mais o menor desconforto. Tinha “adormecido”. Estava em um país estranho

também e os caribus começavam a ficar mais abundantes, assim como os

lobos. Escutava seus uivos pela imensidão com frequência, e certa vez viu três

deles seguindo seu rastro.

Mais uma noite se passou e, de manhã, sentindo-se mais racional, ele

desamarrou o saco de tecido que levava junto à mochila. De dentro dele saíram

um pó dourado e algumas pepitas de ouro. Ele dividiu o ouro mais ou menos

na metade, escondeu uma metade na fenda de uma rocha, envolta em um

pedaço de cobertor, e colocou a outra de volta no saco. Também começou a

usar tiras do cobertor que restava para amarrar aos pés. Não largava a arma de

jeito nenhum, pois havia munição no esconderijo do Rio Dease.

Era um dia nublado e a fome despertou novamente. Estava muito fraco e

aflito, com uma vertigem que por vezes chegava a cegá-lo. Escorregar e cair

era agora algo corriqueiro e, certa vez, ao escorregar, caiu bem perto do

ninho de galo silvestre. Havia quatro ovos dentro dele, os quais ele devorou

crus, de uma vez só, com casca e tudo. A galinha silvestre (mãe daqueles ovos)

apareceu aos berros e ele tentou caçá-la com pedradas, mas depois de uma

perseguição enlouquecida, a ave conseguiu fugir.

esparsos: 2 espalhados, dispersos

vertigem: 2 tontura, desmaio

corriqueiro: 2 comum

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Os ovos aguçaram ainda mais seu apetite. Ele saltava as pedras

do caminho e caminhava com dificuldade por causa do tornozelo ferido,

atirando pedras a esmo, gritando algumas vezes, outras andando em silêncio,

levantando pacientemente sempre que caía, ou esfregando os olhos quando

a tontura ameaçava tomar conta da cabeça.

A perseguição à mãe galinha conduziu-o a um vale de solo pantanoso

e ele enxergou pegadas no barro.

— Não são minhas, devem ser de Bill — disse a si mesmo.

Mas a fome falava mais alto, ele avistara rastros de pena da galinha um

pouco atrás e resolveu seguir atrás dela.

— Depois de pegá-la, volto aqui e investigo as pegadas — concluiu.

O homem deixou a galinha exausta, mas ele próprio também se exauriu.

Chegava a enxergá-la bem próximo, mas ao tentar alcançá-la, esborrachava-se

no chão. Quando conseguia se levantar, a ave partia em disparada e ele a

seguia, as mãos famintas à frente do corpo, mas era nessa hora que a galinha

recuperava as forças e corria mais forte, deixando-o no chão novamente.

A perseguição terminou. A noite chegou e ela escapou. Ele caiu de cansado,

deitando-se de bruços, a face junto ao chão e a mochila nas costas. Ficou sem

se mexer por bastante tempo, então se deitou de lado, deu corda no relógio

e ficou assim até a manhã seguinte.

Outro dia nublado. Metade de seu último cobertor tinha virado faixa

para amarrar os pés e ele perdera as pegadas de Bill.

— Não importa — disse em voz alta, pensando que o mais importante

era encontrar comida.

Depois refletiu mais um pouco e se perguntou:

— Será que Bill também está perdido?

aguçaram: 2 estimularam

a 2 esmo: sem rumo, ao acaso

pantanoso: 2 com pântano (área inundada, encharcada)

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Na metade do dia o peso da mochila começou a incomodá-lo. Mais

uma vez, ele dividiu o ouro que sobrara, dessa vez jogando metade dele

diretamente no chão. No final da tarde, jogou o restante todo fora, ficando

apenas com o cobertor, a lata e o rifle.

Uma alucinação começou a perturbá-lo. Tinha certeza de que ainda

tinha um cartucho.

— Está dentro da arma — falava baixinho. — Eu não percebi que estava lá.

Por outro lado, sabia, no fundo, que o rifle estava vazio. Mas a alucinação

persistiu. Ficou com essa dúvida por horas, até que resolveu abrir a arma e a

encontrou vazia. Ficou tão decepcionado, que chegou a derramar uma lágrima,

como se realmente esperasse encontrar a arma carregada.

Ele caminhou devagar e arrastado por cerca de meia hora, quando a

alucinação tomou conta da mente de novo. Mais uma vez precisou lutar contra

ela, embora os pensamentos persistissem até o momento em que ele abria a

arma e se convencia de que estava vazia. Por vezes, a mente viajava mais longe

ainda, e ele se deixava levar por estranhos conceitos, esquisitices corroendo o

cérebro como minhocas. Mas essas excursões para fora da realidade eram de

curta duração, pois sempre as pontadas de fome o chamavam de volta.

Por um momento foi arrancado abruptamente de uma excursão como

essas por uma visão que quase o fez desmaiar. Ele balançou e se agitou,

titubeando como se fosse um bêbado. Diante dele estava um cavalo. Um cavalo!

Quase não conseguia acreditar. A grossa neblina, intercalada com pontos de

luz piscando, o atrapalhavam. Ele esfregou os olhos com força para melhorar

a visão e enxergou não um cavalo, mas um enorme urso marrom. O animal o

estudava com uma curiosidade belicosa.

O homem chegou a puxar a arma quando se deu conta de que nada

adiantava. Abaixou o rifle e procurou a faca que levava amarrada à cintura.

Havia carne e vida diante dele. Passou o dedo no fio da faca. Estava afiada.

alucinação: 2 fantasia, ilusão

belicosa: 2 revoltada, agitada, que estimula a guerra

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Iria se atirar contra o urso e matá-lo. Mas o coração começou a dar sinais de

alerta, tump, tump, tump. Em seguida, vieram violentos pulos dentro do peito

e taquicardia, uma sensação de pressão, como se uma barra de ferro estivesse

sobre a cabeça, a arrepiante tontura dentro do cérebro.

A coragem desesperada deu espaço a uma grande onda de medo.

Diante de sua fraqueza, e se o animal o atacasse? Ele se levantou, assumindo

sua postura mais imponente, segurando a faca e olhando fixamente para o

urso. O urso avançou, todo desajeitado, alguns passos e ensaiou um rosnado.

Se o homem corresse, ele correria atrás, mas o homem não correu. Sentia-se

animado agora pela coragem do medo. Como o urso, ele também rosnou de

modo selvagem, terrível, colocando para fora o medo que se esconde nas

raízes mais profundas da vida.

O urso virou para o lado, rosnando ameaçado, ele próprio intimidado

pela misteriosa criatura destemida que se apresentava. Mas o homem não se

mexeu. Ficou como uma estátua até o perigo passar, quando foi tomado por um

acesso de tremedeira e caiu de fraqueza no chão cheio de musgo úmido.

Recompôs-se e continuou o trajeto, amedrontado agora de uma nova

maneira. Não era mais o medo de morrer passivamente da falta de comida,

mas de ser destruído violentamente antes de a fome exaurir a última partícula

de força que tinha para sobreviver.

Capítulo 4

O mar!

Lá estavam os lobos. Os uivos rasgavam a imensidão à frente e atrás,

transformando o próprio ar em uma fábrica de ameaças tão tangível, que ele

se viu com os braços para o alto, empurrando o vento como se fosse a lona

de uma barraca voando.

imponente: 2 que causa admiração, majestoso, forte

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Os lobos, aos pares ou trios, de vez em quando cruzavam seu caminho.

Mas se mantinham longe dele. Não estavam em número suficiente e, além disso,

estavam à caça do caribu, que não lutava, enquanto aquela estranha criatura

que andava ereta poderia arranhar e morder.

No fim da tarde, encontrou ossos espalhados no local onde os lobos

haviam caçado. A carcaça era de um filhote de caribu que, meia hora antes,

ele havia visto correndo, vivo, feliz. Olhou para os ossos limpos e polidos

pela boca dos lobos. Será que ele também acabaria daquele jeito antes do

final do dia? A vida era assim, vazia e transitória. Somente a vida doía. Não

havia dor na morte. Morrer era adormecer. Significava final, descanso. Então

por que não estava contente em morrer?

Não ficou parado refletindo por muito tempo. Logo se viu agachado na

lama, um osso na boca, chupando os resquícios de vida que ainda deixavam

a carcaça rosada. O gosto de carne que atingiu sua memória o deixou louco.

Às vezes era o osso que quebrava, às vezes eram seus dentes. Então ele

começou a quebrar os ossos com duas pedras, engolindo seu miolo. No

desespero, acabava batendo nos dedos também e se deu conta, surpreendido,

de que não sentia dor nos dedos feridos pelas pedras.

Chegaram os assustadores dias de neve e chuva. Ele já não sabia quando

iria acampar e quando sairia do acampamento. Viajava de noite tanto quanto

de dia. Descansava em qualquer lugar que caía, arrastava-se pelo chão sempre

que a chama da vida ardia com um pouquinho mais de força. Como homem, já

não lutava mais. Era a vida dentro dele, inconformada em morrer, que o levava

adiante. Também não sofria. Os nervos estavam entorpecidos, dormentes,

enquanto a mente era preenchida por visões estranhas e sonhos deliciosos.

ereta: 2 erguida, levantada

carcaça: 2 esqueleto, ossada

polidos: 2 lisos

transitória: 2 passageira

resquícios: 2 restos

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De vez em quando ele chupava e mascava os poucos ossos de caribu

que conseguira juntar e carregar junto. Não cruzou mais nenhum monte ou

divisa, mas seguia automaticamente um riacho largo, que corria através de um

amplo vale. Não via o riacho nem esse vale. Não enxergava nada, a não ser

visões. Alma e corpo andavam e se arrastavam lado a lado, embora separados,

tão tênue era a linha que os unia.

Ele despertou com lucidez naquele dia, deitado de costas sobre uma

rocha. O sol brilhava forte e quente. Ao longe, escutou o som de filhotes

de caribu. Tinha vagas memórias de chuva, vento e neve, mas não sabia se a

tempestade o atingira durante dois dias ou duas semanas.

Ficou deitado sem se mexer por um tempo, a genial luz do sol batendo

sobre ele e enchendo o corpo debilitado com calor.

— Um lindo dia — disse em voz alta. — Talvez eu consiga caminhar

um pouco.

Fazendo um esforço enorme, rolou para o lado. Logo abaixo corria um

rio amplo, de águas calmas. Assustou-se, conhecia aquele rio! Devagar seguiu o

curso com os olhos, percorrendo as montanhas baixas, vazias, mais desertas do

que qualquer montanha que já vira. Mais devagar ainda, sem ansiedade, seguiu

o curso do rio até a linha do horizonte e se deparou com algo impressionante:

ele desaguava no mar, um lindo e reluzente mar!

Continuava calmo. “Deve ser uma visão, um truque da minha cabeça”,

pensou. Sua ideia se confirmou quando avistou um navio ancorado no meio

daquele mar! Esfregou os olhos, piscando algumas vezes, depois os abriu.

Estranho, mas a visão persistia! “Não há mares ou navios nesta região”, refletiu.

Sabia disso, assim como sabia que não havia cartuchos no rifle vazio.

Escutou um som atrás dele — era alguém bufando, meio engasgando

ou tossindo. Bem devagar, por causa de sua extrema fraqueza, virou-se para o

reluzente: 2 que reluz, que brilha

bufando: 2 soltando o ar com força pelo nariz ou a boca

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outro lado. Não conseguia ver nada por perto, mas esperou pacientemente.

De novo veio o engasgo ou tosse e logo adiante, entre duas rochas bem

próximas, ele enxergou a cabeça acinzentada de um lobo. As orelhas pontudas

não estavam tão alertas como tinha visto em outros lobos, os olhos estavam

turvos e avermelhados, a cabeça pendia para o lado. O animal piscava sem

parar, parecia doente. Olhava para ele e bufava, tossia novamente.

— Isto, pelo menos, é real — disse baixinho.

E virou para o outro lado a fim de descobrir a realidade do mundo que

havia sido encoberta por sua visão momentos antes. Mas o mar ainda brilhava

ao longe e era possível distinguir o navio ancorado com perfeição.

— Será verdade? — perguntou-se.

Fechou os olhos por um bom tempo e, de repente, a resposta veio: ele

tinha caminhado para o norte pelo lado leste, longe da Divisa Dease e para

dentro do Vale Mina de Cobre. Aquele rio amplo e calmo era o Mina de Cobre.

O mar reluzente era o Oceano Ártico! Aquele navio era um baleeiro bem a

leste da boca do Rio Mackenzie e estava ancorado no Golfo da Coroação.

Lembrou-se do mapa que tinha visto na empresa Baía de Hudson muito tempo

atrás, e tudo pareceu claro e certo.

Resolveu sentar e observar as questões mais imediatas. As tiras de

cobertor em volta dos pés estavam completamente desgastadas e seus pés

eram puros pedaços sem forma de carne viva. Perdera o último cobertor, e o

rifle e a faca tinham desaparecido. Perdera também o chapéu em algum lugar,

com o punhado de fósforos dentro do elástico, mas os fósforos guardados no

peito, dentro do estojo para guardar tabaco, estavam secos e seguros. Olhou

para o relógio. Marcava onze horas e continuava funcionando. Com certeza

havia dado corda nele.

Estava calmo e controlado. Embora extremamente fraco, não tinha

sensação de dor. Não estava com fome. Pensar em comida não era nem

agradável e o fazia apenas por uma questão racional. Ele rasgou as calças até

a altura dos joelhos e amarrou as tiras de tecido aos pés. Não sabia como,

mas de alguma maneira sua lata ainda estava lá. Tomaria um pouco de água

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quente antes de empreender o que imaginara, pois seria uma terrível viagem

até o navio.

Seus movimentos eram lentos. Tremia como se sentisse algum tipo de

paralisia. Quando começou a coletar musgo seco para fazer fogo, percebeu

que não conseguia ficar de pé. Tentou diversas vezes, então se contentou em

se arrastar e engatinhar. Uma hora engatinhou perto do lobo doente. O animal

se afastou dele relutantemente, lambendo os beiços com uma língua que

parecia ter dificuldade em se movimentar. O homem notou que a língua não

era daquela cor avermelhada, sinal de saúde. Era marrom-amarelada e parecia

coberta de um muco grosso e meio seco.

Depois de beber alguns goles de água quente, o homem percebeu que

conseguia ficar de pé e até caminhar, muito devagar, como um moribundo.

A cada minuto ele era obrigado a parar e descansar. Seus passos eram fracos

e incertos, assim como os do lobo que seguiu seu rastro. E naquela noite,

quando o mar reluzente foi invadido pela negritude da escuridão, sabia que

estava a, no máximo, uns 6 quilômetros dele.

Durante a noite toda, escutou a tosse do lobo doente, e de vez em

quando o som dos filhotes de caribu ao fundo. Existia vida ao redor dele, mas

era vida forte, muito viva e bem disposta, e ele sabia que o lobo doente seguia

o rastro do homem doente, na esperança de que ele morresse primeiro.

De manhã, ao abrir os olhos, deu de cara com o animal, que lançava para

ele um olhar ávido e faminto. Estava agachado, o rabo entre as pernas, como

um cachorro abatido e debilitado. Chegou a tremer com o vento da manhã

e mostrou os dentes de modo bastante desanimado quando o homem falou

com ele em um tom de voz que parecia um sussurro rouco.

moribundo: 2 que está morrendo

ávido: 2 ansioso

debilitado: 2 enfraquecido

rouco: 2 com a voz áspera, com rouquidão

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O sol subiu brilhante e, durante toda a manhã, o homem caminhou e

caiu em direção ao mar reluzente. O tempo estava perfeito. Era o “veranico”

das altas latitudes. Talvez durasse uma semana. Talvez fosse embora no dia

seguinte ou no outro.

À tarde, o homem se deparou com um rastro. Era de outro homem,

que não caminhava, mas sim andava de quatro. “Talvez seja de Bill”, pensou,

porém sem qualquer entusiasmo ou curiosidade. Na verdade, já não tinha mais

sensações ou emoções. Também já não era mais suscetível à dor. O estômago

e os nervos estavam adormecidos. Apesar de tudo isso, a vida dentro dele o

empurrava adiante. Estava esgotado, mas se recusava a morrer. Por se recusar

a morrer, ainda comia frutinhas amargas e peixinhos que encontrava nas

minúsculas lagoas, bebia água quente e se mantinha alerta ao lobo doente.

Seguiu o rastro do homem que engatinhava e logo chegou ao final dele

— alguns poucos ossos ainda frescos, onde o chão úmido de lama estava

marcado por pegadas de muitos lobos. Viu um pequeno saco de tecido igual

ao dele, que tinha sido rasgado por dentes famintos. Pegou-o na mão, embora

o peso fosse quase demais para seus enfraquecidos dedos.

— Bill carregou o saco até o final. Ha! Ha! — falou, quase sem voz.

Tinha que rir de Bill. Ele sobreviveria e o carregaria até o mar reluzente.

Sua risada era rouca e assustadora, como o grasnido de um corvo, e o

lobo doente resolveu se juntar a ele, uivando com tristeza. O homem parou

de repente. Como podia rir de Bill, se aquele diante dele era o próprio Bill,

se aqueles ossos, tão limpos e rosados, eram de Bill? Resolveu virar de costas

e seguir. É verdade que Bill o tinha abandonado, mas ele não ia pegar o ouro

nem chupar os ossos de Bill. “Bill o teria feito, se fosse o contrário”, pensou,

enquanto se afastava.

Encontrou uma pequena lagoa. Ao procurar peixinhos, jogou a cabeça

para trás como se tivesse sido picado por alguma coisa. Tinha visto a imagem

veranico: 2 verão ameno, dias quentes antes do frio e da chuva

grasnido: 2 barulho feito por galinha ou pato

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de si mesmo refletida na água. Estava tão horrível, que ficou completamente

chocado. Havia três peixinhos na lagoa, que era grande demais para esvaziar.

Depois de várias tentativas frustradas de pegá-los com a lata, ele desistiu. Tinha

medo de cair e se afogar por causa da fraqueza. Era também por esse mesmo

medo que não teve coragem de deslizar nas águas do rio que corria ao lado

sobre um dos inúmeros troncos encalhados na areia.

Naquele dia a distância entre ele e o navio diminuiu cerca de 4,5

quilômetros, no dia seguinte mais 3 quilômetros — pois agora ele engatinhava

como Bill. Ao final do quinto dia, descobriu que o navio estava mais longe do

que imaginara e já não conseguia mais percorrer nem um quilômetro que fosse

por dia. Mesmo assim, o “veranico” se mantinha e ele continuava a engatinhar e a

desmaiar, a se virar e seguir adiante, com o lobo doente nos seus calcanhares.

Capítulo 5

Por um fio

Os joelhos estavam em carne viva, como os pés, e embora ele tivesse os

envolvido na própria camisa, deixava um rastro vermelho sobre o chão e as pedras

que ficavam para trás. Uma vez, olhando para trás, ele viu o lobo lambendo faminto

seu trilho de sangue, e percebeu qual seria seu fim — a menos que conseguisse

pegar o lobo. Então se deu o início de uma tragédia da existência das mais severas

que já houve na Terra — um homem doente que engatinhava, um lobo doente

que mancava, duas criaturas arrastando suas carcaças moribundas pelo mundo

de desolação e caçando a vida uma da outra.

Se fosse um lobo saudável, o homem não se importaria, mas a ideia de

ser deglutido pelo estômago daquela criatura toda destruída, quase morta,

era repugnante para ele. Sua mente começou a perambular novamente e

deglutido: 2 engolido

repugnante: 2 que causa nojo

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a ser surpreendida por alucinações, enquanto os intervalos de lucidez foram

ficando mais raros e curtos.

Um dia foi despertado por uma respiração ofegante perto do ouvido.

O lobo tinha pulado em direção a ele, mas caíra de fraqueza e mal conseguia

se mexer. Foi até divertido, mas ele não achou graça. Também não teve medo.

Estava longe demais para isso. Mas sua mente estava com certa clareza naquele

momento. Ele se sentou e observou: o navio estava no mais próximo agora.

Conseguia enxergá-lo bem quando esfregava os olhos e via também a vela

branca de uma pequena embarcação cortando a água do mar reluzente.

A questão é que ele nunca conseguiria engatinhar a distância que faltava.

Sabia disso e mesmo assim estava calmo. Sabia que não conseguiria engatinhar

mais nem meio quilômetro. E ainda assim queria viver. Não era justo morrer

depois de ter passado por tudo o que passou. O destino exigira demais dele.

E morrer... recusava-se a morrer. Era pura loucura, talvez, mas diante do poder

da Morte, desafiava a Morte e se recusava a morrer.

O homem fechou os olhos e se acalmou com infinita precaução.

Fortaleceu-se para se manter acima da languidez sufocante que tomava

conta de seu ser como uma maré que subia. Era muito parecida com o mar

essa languidez mortal, que subia e subia e afogava sua consciência pouco a

pouco. Às vezes se deixava submergir, nadando através de um esquecimento

com braçadas enfraquecidas. De repente, por alguma alquimia de sua alma, ele

achava outro sopro de vontade e nadava com mais força, subindo à tona.

Sem conseguir se mexer, deitado de costas, ele conseguia escutar, cada

vez mais próxima, a inspiração e expiração ofegante do lobo doente. Estava

perto, muito perto, e ele não se mexia. Estava em seu ouvido. A áspera língua

seca passava em seu rosto como lixa. Suas mãos partiram para cima — ou pelo

menos ele desejava que elas dessem um golpe. Os dedos estavam curvados

como garras, mas eles se fecharam no ar vazio. Um ataque veloz e certeiro

exigiria força e o homem não tinha essa força.

languidez: 2 fraqueza

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Por metade de um dia ele ficou imóvel, lutando contra a inconsciência

e esperando pelo ser que queria se alimentar dele e o qual ele próprio queria

comer. De vez em quando o lânguido mar tomava conta dele e vinham longos

sonhos à sua mente, mas mesmo sonhando e acordando, ele aguardava pela

respiração ofegante e o contato áspero da língua em sua face.

Certa hora, sem ter escutado a respiração, o homem saiu lentamente de

um sonho para sentir a língua em sua mão. Ele esperou. Os caninos apertaram

a mão devagar, a pressão aumentou, o lobo estava usando suas últimas forças

para fincar os dentes na comida pela qual tinha esperado tanto tempo.

O homem esperou tempo demais para agir e a mão lacerada se fechou

dentro das mandíbulas do animal. Devagar, enquanto o lobo lutava com muita

fragilidade, a outra mão do homem conseguiu atacar pelo lado. Cinco minutos

depois, todo o peso do corpo do homem estava sobre o lobo.

As mãos não tinham força suficiente para sufocar o lobo, mas o rosto

do homem estava comprimido, perto da garganta do animal, e a boca do

homem estava cheia de ar. Ao final de meia hora, o homem percebeu algumas

gotas quentes saindo de sua garganta. Não era nada agradável, uma sensação

pesada, como de chumbo derretido. Mais tarde, o homem rolou de costas

para o chão e adormeceu.

* * * *

Havia alguns membros de uma expedição científica no baleeiro Bedford.

Do deque do navio, avistaram um objeto estranho na costa. Estava se mexendo

na praia em direção à água. Não conseguiam identificar o que era e, como

eram cientistas, subiram no bote atrelado ao navio e foram até a costa verificar.

E então viram alguma coisa que tinha vida, mas que dificilmente poderia ser

chamada de “homem”. Estava cego, inconsciente. Contorcia-se no chão como

um verme monstruoso. A maior parte de seus esforços não adiantava nada,

mas ele era persistente, torcia o corpo e girava, conseguindo avançar talvez

alguns centímetros por hora.

lacerada: 2 destruída, ferida, rasgada

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* * * *

Três semanas depois disso, o homem, deitado sobre uma cama beliche

do baleeiro Bedford, com lágrimas nos olhos escorrendo sobre a face

desgastada, contou quem ele era e relatou tudo o que tinha passado. Ele

também balbuciou frases incoerentes sobre sua mãe, sobre o ensolarado

sudeste da Califórnia e sobre uma casa entre laranjeiras e flores.

Poucos dias depois disso, lá estava ele sentado à mesa com os cientistas

e os tripulantes do navio. Ficava exultante com o espetáculo de tanta comida,

observando-a com ansiedade à medida que entrava na boca dos outros. Com

o desaparecimento de cada bocado de alimento, uma expressão de profundo

pesar surgia em seus olhos. Estava bastante lúcido, mas ainda assim odiava

aqueles homens nas horas das refeições.

— A comida pode acabar — dizia. — Para que comer tanto?

Perguntou ao cozinheiro, ao responsável pelos camarotes e ao capitão

sobre os estoques de alimento.

— Há comida de sobra para toda a viagem — todos garantiam.

Mas ele não acreditava no que diziam e fazia a mesma pergunta dezenas

de vezes aos outros tripulantes.

Ao longo dos dias, o homem começou a engordar, a ficar cada vez

mais corpulento. Os cientistas balançavam a cabeça e traçavam teorias.

Começaram a dar menos comida a ele durante as refeições, mas sua camisa

continuava cada vez mais estufada.

Os marinheiros sorriram de leve, pois sabiam do que se tratava. E quando

os cientistas observaram melhor o homem, compreenderam também. Viram-no

caminhar curvado depois do café da manhã e, como um mendigo, a palma

da mão estendida, falar com um marinheiro. O marinheiro sorriu e deu a ele

um pedaço de biscoito. Ele o agarrou com avidez, olhou para o pedaço de

balbuciou: 2 gaguejou, disse com dificuldade

corpulento: 2 gordo, obeso

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biscoito como se fosse uma pepita de ouro e o escondeu dentro da camisa.

Conseguiu doações parecidas de outros marinheiros sorridentes.

Os cientistas foram discretos. Deixaram-no em paz. Mas, em segredo,

foram investigar sua cama beliche. Estava repleta de biscoitos; o colchão estava

lotado de biscoitos; cada cantinho, cada abertura tinha biscoitos. Mesmo

assim, o homem estava lúcido. Só queria se precaver contra outra possível

fome — nada mais do que isso.

— Ele vai se recuperar disso — disseram os cientistas.

E de fato se recuperou, assim que o Bedford ancorou na Baía de São

Francisco.

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Roteiro de Leitura

Quem são os personagens principais da história? Descreva suas 1)

características físicas e psicológicas.

Por que você acha que Bill abandonou seu companheiro de viagem? Pense 2)

em algumas possibilidades e troque ideias em grupos. Depois apresente

as ideias a toda a classe.

Como era a região onde se passa o livro? Descreva-a.3)

Que animais existiam por lá? 4)

No início da história, que itens o homem levava na bagagem? E no final?5)

E na sua mochila escolar, o que é realmente necessário e o que é supérfluo?6)

Quando já não tinha mais forças para caminhar, o homem descartou parte 7)

do ouro que carregava, depois acabou se desfazendo de tudo. Você teria

feito o mesmo?

Qual foi a decisão de Bill em relação ao ouro? O que aconteceu com ele?8)

O que o homem comia para sobreviver? Quais desses alimentos eram de 9)

origem vegetal e quais eram de origem animal?

O homem precisava comer qualquer coisa que pudesse a fim de 10)

sobreviver. O ser humano precisa de que tipo alimentos para ter

saúde? Faça uma pesquisa na Internet ou na biblioteca e escreva uma

lista dessas comidas.

O homem tentou matar animais para comer e conseguiu matar alguns. 11)

Quais deles?

Peça ao seu professor para dividir a classe em duas partes e realizem um 12)

debate. Um grupo deve apoiar o homem por ele ter matado ou tentado

matar para comer. O outro grupo deve ser contra. Antes de começar o

debate, escrevam os argumentos que pretendem usar.

Que semelhanças e diferenças você enxerga entre o lobo doente 13)

e o homem?

O que fazia o homem prosseguir, já que ele estava muito doente e ferido?14)

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Como o homem foi parar perto do mar, visto que no início da história 15)

ele estava em uma região montanhosa? Com a ajuda de seu professor de

geografia, localize o trajeto que o homem percorreu a pé.

Como o homem foi encontrado? Em que estado ele se encontrava?16)

Quem encontrou o homem e como ele foi salvo? 17)

Se os homens que estavam no navio 18) Bedford não fossem cientistas, você

acha que eles teriam ido até a praia? Por quê?

O 19) Bedford era um navio baleeiro, ou seja, que caçava baleias. No passado,

os homens caçavam as baleias (inclusive no Brasil) em busca do óleo que

extraíam de sua gordura. Em sua opinião, é certo ou errado caçar baleias?

Por quê?

Após séculos de matança, as baleias quase foram extintas. Hoje quase 20)

todos os países do mundo são contra a caça da baleia. Escreva uma

redação com o tema “Amor à Vida”, mas escreva imaginando que você é

um caribu, um galo ou galinha silvestre, um peixe ou, ainda, uma baleia.

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para fazer fogo

Jack London

BIOGRAFIA DO AUTOR

John Griffith, mais conhecido como Jack London, nasceu no dia 12 de

janeiro de 1876 em São Francisco, na Califórnia, filho de Flora Wellman. Seu pai

era, provavelmente, William Chaney, companheiro de Flora na época. Contudo,

eles não eram oficialmente casados e Chaney exigiu que ela fizesse um aborto.

Com a recusa da mulher, Chaney a abandonou, negando-se a reconhecer John

Griffith como filho. Flora logo se casou com John London, um veterano da

Guerra Civil, de quem Jack London adotou o sobrenome. Quando Jack tinha

13 anos, John London morreu e o menino precisou ir trabalhar em uma fábrica

de conservas. Acordava às 5 e meia da manhã e ia dormir à meia-noite para

ajudar no sustento da família.

Mesmo com tanto trabalho, Jack era apaixonado por livros. Lia qualquer

coisa que lhe caísse nas mãos. Entre uma leitura e outra, Jack deixou a fábrica de

conservas e virou ladrão de ostras no porto de Oakland. Depois se cansou da

pirataria e inverteu os papéis, indo trabalhar como policial. Ele era responsável

por prender os ladrões de ostras, os chineses que contrabandeavam camarões

e os gregos que roubavam salmão naquela área.

Por fim, resolveu virar marinheiro, influenciado pela grande obra de

Herman Melville, Moby Dick, que adorava. Passou três meses trabalhando no

veleiro Sophie Sutherland. Nessa viagem, conheceu a Coreia, o Japão e a Sibéria.

Depois voltou para São Francisco e conseguiu trabalho numa fábrica de juta.

Nessa época, sua mãe insistiu para que ele se inscrevesse em um concurso

literário, para o qual enviou um relato de suas aventuras a bordo do veleiro.

Jack venceu o concurso e ganhou 25 dólares pelo primeiro lugar.

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Ele tentou publicar alguns contos, mas nenhum foi aceito. Largou a fábrica

de juta e voltou à vida de ladrão e desocupado. Acabou preso nas Cataratas do

Niágara, no Canadá, de onde retornou aos Estados Unidos. Estava com 19 anos,

sem dinheiro, sem emprego e, ainda por cima, virara alcoólatra. Entrou para a

Universidade da Califórnia, onde permaneceu apenas um semestre porque não

tinha condições de pagar a mensalidade. Foi então que Jack London retornou

ao Canadá, dessa vez para Klondike, impulsionado pela corrida do ouro. Essa

viagem serviu de inspiração para o livro O Chamado da Selva.

Não conseguiu ouro e ficou doente na viagem. Voltou para São Francisco

e, finalmente, virou escritor profissional, escrevendo para a revista Overland

Monthly. Casou-se com Bessie Maddern, com quem teve duas filhas. Trabalhou

duro como escritor para manter a casa e a família, publicando diversos contos.

Viajou ainda para a Coreia como repórter para cobrir a guerra entre a Rússia e

o Japão.

Seu primeiro romance, O Filho do Lobo, foi publicado na virada do

século. Outros livros vieram em seguida: O Chamado da Selva, Martin Eden,

O Lobo do Mar, Antes de Adão, Caninos Brancos etc.

Jack London se apaixonou por sua editora Charmian Kittredge, com

quem viveu durante 11 anos, até sua morte em 22 de novembro de 1916. Ele

é considerado um dos maiores escritores norte-americanos. Influenciado por

grandes pensadores, como Darwin, Marx, Milton e Nietzsche, sua obra é vasta

e de qualidade. Seus livros contam com muita ação e também com descrições

precisas de suas experiências de vida e viagens.

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