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Revista Sociedade e Estado - Volume 28 Número 3 Setembro/Dezembro 2013 503 O tempo de trabalho: uma chave analíca Henrique Amorim* Resumo: O tempo de trabalho é uma noção central para a análise marxista da sociedade capitalista. De Karl Marx aos nossos dias, a discussão sobre a redução do tempo de trabalho ganhou várias in- terpretações. Entre elas está aquela que aponta para a progressiva redução do tempo de trabalho. Progressiva, nesse caso, não é entendida com base em sua própria contradição, isto é, como uma necessidade do capital para sua valorização, mas sim como um processo de redução crescente do tempo do trabalho que no limite colocaria a relação de capital em xeque. A parr dessa interpreta- ção, a tendência de redução do tempo de trabalho anunciaria à exnção das relações de produção capitalistas. Estaríamos, com isso, diante de uma perspecva que se fundamenta em um automa- smo social e, portanto, que pressupõe o fim do capitalismo de maneira determinista. Retomando as implicações mais centrais que a reestruturação produva, chamada de toyosta, proporcionou, sobretudo aquelas relavas à substuição massiva de trabalhadores por tecnologia informacionais e microeletrônicas, temos como objevo desse argo revisitar a noção de tempo de trabalho, tentan- do, com isso, demonstrar a fragilidade das teses que pressupõe um esgotamento estrutural da so- ciedade capitalista como fruto de um automasmo do movimento interno de reprodução do capital. Concluímos que estas teses, na práca, misficam o papel central da luta de classes, primeiro, como elemento determinante do processo de constuição das forças produvas capitalistas e, segundo, para a superação da subalternidade do trabalho em relação ao capital. Palavras-chave: tempo de trabalho, automasmo social, pós-grande indústria, trabalho produvo, trabalho improduvo, valor-trabalho. Introdução A discussão sobre o tempo de trabalho apresenta-se como um dos eixos analícos centrais para a fundamentação da teoria do valor-trabalho. É com base nesse eixo que Karl Marx observa a importância e a histórica necessidade de expansão do capital como uma relação social que visa à abertura connua de novas fronteiras, estejam elas dentro do processo de produção estrito senso, onde se arculam estra- tégias para o aumento da produvidade, com diminuição do tempo de trabalho, es- tejam elas vinculadas a estratégias que envolvam reconfigurações espaciais regionais, nacionais e internacionais da lógica da produção capitalista. A valorização do capital, com isso, absorve e, ao mesmo tempo, descarta novos connentes improduvos de trabalho e essa absorção passa pelo redimensionamento da ulização do tempo de trabalho (Marx, 1988; 2011). Não obstante, como se fundamentaria essa absorção do tempo de trabalho? Ela teria uma dimensão lógica no sendo em que opera de forma relavamente autônoma em relação aos interesses de classe? Ou esse tempo gasto na produção teria em si uma dinâmica políca e determinada pela luta de classes? Recebido: 01.10.13 Aprovado: 02.12.13 * Professor de sociologia do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unifesp. E-mail: henriqueamorim@ hotmail.com. Esse trabalho é fruto de pesquisa desenvolvida com o apoio da Fapesp e do CNPq.

AMORIM, O Tempo de Trabalho, Uma Chave Analítica

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AMORIM, O Tempo de Trabalho, Uma Chave Analítica Completo

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  • Revista Sociedade e Estado - Volume 28 Nmero 3 Setembro/Dezembro 2013 503

    O tempo de trabalho: uma chave analtica

    Henrique Amorim*

    Resumo: O tempo de trabalho uma noo central para a anlise marxista da sociedade capitalista. De Karl Marx aos nossos dias, a discusso sobre a reduo do tempo de trabalho ganhou vrias in-terpretaes. Entre elas est aquela que aponta para a progressiva reduo do tempo de trabalho. Progressiva, nesse caso, no entendida com base em sua prpria contradio, isto , como uma necessidade do capital para sua valorizao, mas sim como um processo de reduo crescente do tempo do trabalho que no limite colocaria a relao de capital em xeque. A partir dessa interpreta-o, a tendncia de reduo do tempo de trabalho anunciaria extino das relaes de produo capitalistas. Estaramos, com isso, diante de uma perspectiva que se fundamenta em um automa-tismo social e, portanto, que pressupe o fim do capitalismo de maneira determinista. Retomando as implicaes mais centrais que a reestruturao produtiva, chamada de toyotista, proporcionou, sobretudo aquelas relativas substituio massiva de trabalhadores por tecnologia informacionais e microeletrnicas, temos como objetivo desse artigo revisitar a noo de tempo de trabalho, tentan-do, com isso, demonstrar a fragilidade das teses que pressupe um esgotamento estrutural da so-ciedade capitalista como fruto de um automatismo do movimento interno de reproduo do capital. Conclumos que estas teses, na prtica, mistificam o papel central da luta de classes, primeiro, como elemento determinante do processo de constituio das foras produtivas capitalistas e, segundo, para a superao da subalternidade do trabalho em relao ao capital. Palavras-chave: tempo de trabalho, automatismo social, ps-grande indstria, trabalho produtivo, trabalho improdutivo, valor-trabalho.

    Introduo

    A discusso sobre o tempo de trabalho apresenta-se como um dos eixos analticos centrais para a fundamentao da teoria do valor-trabalho. com base nesse eixo que Karl Marx observa a importncia e a histrica necessidade de expanso do capital como uma relao social que visa abertura contnua de novas fronteiras, estejam elas dentro do processo de produo estrito senso, onde se articulam estra-tgias para o aumento da produtividade, com diminuio do tempo de trabalho, es-tejam elas vinculadas a estratgias que envolvam reconfiguraes espaciais regionais, nacionais e internacionais da lgica da produo capitalista. A valorizao do capital, com isso, absorve e, ao mesmo tempo, descarta novos continentes improdutivos de trabalho e essa absoro passa pelo redimensionamento da utilizao do tempo de trabalho (Marx, 1988; 2011). No obstante, como se fundamentaria essa absoro do tempo de trabalho? Ela teria uma dimenso lgica no sentido em que opera de forma relativamente autnoma em relao aos interesses de classe? Ou esse tempo gasto na produo teria em si uma dinmica poltica e determinada pela luta de classes?

    Recebido: 01.10.13Aprovado: 02.12.13

    * Professor de sociologia do Departamento de Cincias Sociais e do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Unifesp. E-mail: [email protected]. Esse trabalho fruto de pesquisa desenvolvida com o apoio da Fapesp e do CNPq.

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    Nesse processo de valorizao no qual o capital tem como fundamento de sua so-brevivncia a expanso, o tempo de trabalho apresenta-se de maneira contraditria. Ao mesmo tempo em que a valorizao do capital funciona no sentido de ampliar as fronteiras necessrias para reproduzir o capital como relao social hegemnica, se manifesta a diminuio do tempo de trabalho na produo e, como consequncia, a diminuio do trabalho vivo dentro dos processos de trabalho.

    Esta contradio social, constitutiva do modo de produo capitalista, gerou inmeras celeumas entre autores marxistas e no marxistas. A que nos interessa nesse artigo aquela que, com base na tendncia de dispensabilidade do trabalho vivo, qualifica a transformao e a superao da sociedade capitalista, como um processo automtico. A tese se resume no entendimento de que o prprio modo de produo capitalista chegaria a um limite de dispensabilidade do tempo de trabalho (de trabalho vivo) que o tornaria secundrio ou mesmo suprfluo. A libertao das amarras do capital seria apresentada, portanto, no como fruto de embates, lutas e confrontos entre classes sociais, mas com base em um automatismo social que se desenvolveria no interior do prprio capitalismo.1

    Essa interpretao nos remete diretamente aos Grundrisse (2011), texto escrito por Marx entre 1857 e 1858, onde o autor, entre tantas outras questes, estuda a forma valor, por vezes desdobrando-a em um exerccio lgico. Uma de suas indicaes cen-trais a de que haveria um distanciamento do processo de valorizao do capital de sua base material. Nesse exerccio lgico, Marx faz parecer que esse distanciamento se tornaria, em algum momento, absoluto e, de certa forma, libertaria o trabalho vivo da explorao e da dominao do capital. No entanto, como podemos observar em O capital (1988 [1867]), e mesmo em outras passagens dos Grundrisse, esse distan-ciamento no pode ser levado ao limite pelo capital, tendo em conta que esse levar ao limite implicaria na prpria dissoluo voluntria do capital como relao social hegemnica. A relao entre capital e trabalho apresenta-se, diversamente, como uma contradio em processo. Os capitalistas obstinam-se em reduzir ao mximo o trabalho necess-rio, fonte de criao de toda a riqueza, mas no podem se desprender dele por com-pleto. Ao mesmo tempo em que os interesses capitalistas de obteno de lucro tm na explorao do trabalho sua fonte de valor, anseiam, com o objetivo de baratear a fora de trabalho, reduzir o tempo de trabalho a um mnimo. Se, por um lado, os inte-resses capitalistas tendem a reduzir a presena do trabalho para melhor control-lo e barate-lo, por outro, a utilizao do trabalho vivo indispensvel para a produo de mais-valia. Alm disso, essa reduo no se d de forma uniforme e homognea nas sociedades capitalistas contemporneas. O fluxo de capitais permite que em determi-nados pases haja uma reduo da participao do trabalho vivo dentro dos processos

    1. Para uma anlise crtica dos automatismos sociais, cf.: Vincent (1993). Entre os autores que vislumbraram a transformao social com base em um automatismo econmico e ou tecnolgico, cf., entre outros: Schaff (1992) e Lojkine (1992). Entre aqueles que apontam para a no centralidade do trabalho nas sociedades contemporneas, cf., entre outros: Gorz (1987); Offe (1989) e Habermas (1987).

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    de produo de mercadorias, ao mesmo tempo em que em outros pases a utilizao da fora de trabalho aumenta vertiginosamente, garantindo a manuteno de taxas de lucro elevadas.

    Nos ltimos 40 anos, essa contradio tpica da sociedade capitalista, foi apontada como superada. Com as transformaes produtivas e polticas dos anos 1960 e 1970 nos pases de economia central, vislumbrou-se o incio de uma nova era: ps-indus-trial, ps-materialista, da informao, das atividades intelectuais, do conhecimento, de servios e, por fim, cognitiva.2 Essa nova era estaria supostamente fundada em uma sociabilidade no mais determinada pela produo tipicamente capitalista. Su-perar-se-ia, portanto, a contradio entre a explorao do tempo de trabalho e sua dispensabilidade ou, pelo menos, essa contradio no seria mais central.

    Ao revisarem os Grundrisse, os autores que fundamentam o trabalho imaterial como fora produtiva central e, por conseguinte, caracterizam as sociedades contempor-neas como cognitivas,3 assentam suas teses em uma leitura do manuscrito de Marx, procurando justificar o surgimento de interstcios de libertao social dentro do pr-prio capitalismo contemporneo.4 Nesse sentido, procuram justificar o surgimento do capitalismo cognitivo como um movimento automtico do prprio capitalismo indus-trial, isto , como um percurso, um desdobramento lgico que teria sido anunciado, j no sculo XIX, pelo prprio Marx.

    No sentido de contestar essa interpretao, retomaremos algumas teses de Marx dos Grundrisse e de O capital com o objetivo de problematizar os limites do processo de valorizao e acumulao capitalistas, sobretudo os limites que se constituem como elementos materiais para a superao da sociedade capitalista e, portanto, de liberta-o do trabalho em relao ao capital. O norte terico desse artigo assenta-se, assim, em torno da crtica s concepes que se baseiam em uma interpretao determinis-ta da histria. Nesse sentido, nos remeteremos, primeiramente, discusso sobre a ps-grande indstria, elemento chave de muitas divergncias sobre a fase atual do capitalismo contemporneo. Em segundo lugar, sero tratadas as questes relativas relao entre trabalho produtivo e o trabalho improdutivo, o que, de certa forma, pode trazer elementos analticos significativos para a crtica da tese de uma sociedade fundamentalmente baseada nos servios. Por fim, retomaremos os pontos centrais sobre o tempo de trabalho, observando, com base em Marx, como se fundamenta a relao entre tempo livre/tempo liberado e tempo de trabalho, ou seja, procuraremos identificar como o tempo dispensado no capitalismo tem uma fundamentao nega-tiva para os coletivos de trabalho, no sendo possvel a constituio de espaos de libertao dentro do prprio capitalismo.

    2. Sobre a sociedade ps-industrial e do conhecimento, cf.: Bell (1973) e Touraine (1970); sobre a sociedade ps-materialista, cf.: Inglehart (1997); sobre a sociedade da informao, cf.: Castells (1999) e Melucci (1980); sobre a sociedade baseada nas atividades intelectuais, cf.: Gouldner (1979); sobre a sociedade de servios, cf.: Offe (1989a); Touraine (1989); e sobre a sociedade cognitiva ou capitalismo cognitivo, cf.: Negri (2003), Gorz (2005), e Moulier-Boutang (2007).

    3. H muitos autores que desenvolvem a tese do capitalismo cognitivo. No entanto, os autores mais expressivos so Moulier-Boutang (2007) e toda a tradio que se fundamenta em Negri (2003) e Negri e Hardt (2001); alm das teses de Gorz (2005) sobre o imaterial.

    4. Como nos indicada Nicolas-Le Strat (1996: 103): segundo Gorz, [...] Nos interstcios da produo, os indivduos, redescobririam aquilo que daria a qualidade de sua existncia dos valores no imediatamente quantificveis, do tempo livre de clculo e do rendimento, de uma autoapropriao das

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    A ps-grande indstria

    A discusso sobre a ps-grande indstria desenvolveu-se nas ltimas dcadas a par-tir de um resgate de passagens dos Grundrisse sobre o desenvolvimento do capital constante. A relao pressuposta nesse debate tem como horizonte um processo de subordinao do trabalho ao capital que em seu percurso teve desdobramentos che-gando forma atual da subordinao formal-intelectual. O processo de reduo do tempo de trabalho para o aumento de produtividade teria, em termos lgicos, che-gado a uma fronteira em que a contradio entre diminuio do tempo de trabalho e centralidade do trabalho abstrato teria chegado ao fim. A tese de fundo que explicita esse raciocnio de que a incorporao do trabalho intelectual ao processo de pro-duo teria reintroduzindo o trabalho e o trabalhador como sujeitos desse processo. Agora, o capital precisaria, necessariamente, do trabalho intelectual e, portanto, teria se colocado um problema sem soluo.

    Ao indicar uma terceira forma da indstria, Fausto (1989), por exemplo, concebe esse momento do desenvolvimento industrial, remetendo-o ao surgimento de uma nova sociedade. As formas de subordinao do trabalho em relao ao capital foram no passado, para Fausto, expresso de subsunes. A manufatura se fundamentou na subordinao formal e a maquinaria na subordinao real (formal e material) do tra-balho em relao ao capital. Com o advento da ps-grande indstria se fundamentaria uma terceira forma na medida em que o [...] homem no mais sujeito do processo de produo. [...] O homem de certo modo posto para fora, liberado do processo, mas assim mesmo que ele passa a dominar o processo (1989: 52).

    A ltima reestruturao da produo, com base no desenvolvimento da automao, te-ria constitudo, dessa forma, uma nova condio de subordinao que superaria a subor-dinao real do trabalho ao capital na medida em que colocaria como centro da produ-o o carter subjetivo do trabalho. Em resumo, a subordinao real (formal e material) daria lugar subordinao formal-intelectual do trabalho ao capital. O autmato [diz Fausto] agora autmato espiritual, no simples autmato vivo (1989: 58-59). Nesse sentido, haveria, para o autor, uma reconfigurao na produo que criaria a possibilida-de de retomada do domnio do processo de trabalho pelo trabalhador. Citando Marx dos Grundrisse, indica que [...] assim, o capital que era uma alma apetitiva [...] de trabalho alheio [...] se apossa de um intelecto, mas acaba sendo dominado por ele (1989: 59). Pressupe-se, assim, que a nova forma de subordinao formal-intelectual no seria mais adequada logicamente ao padro de valorizao do capital, isto , o capital teria criado um problema que ele mesmo no conseguiria resolver. O trabalhador passaria, nestes termos, de mediador a sujeito do processo de trabalho, tornando a subjetividade um elemento central, j que ela seria utilizada durante o processo de produo. Isso, para Fausto, requalifica a utilizao do tempo de trabalho para a produo de valor.

    causas de sua ao, dos compromissos voluntrios e reflexivos... at a [...] esfera da integrao social. Com esse mesmo mote, Gorz (1987) fundamentou uma sociedade dual composta por uma parte heternoma e outra autnoma e tambm esferas sociais, em Habermas (1987), como as do sistema e do mundo da vida.

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    A valorizao no mais a cristalizao de um tempo posto. Ela se d no tempo. De certo modo, o tempo volta sua imediatidade. A valorizao se liberta do tempo de trabalho, mas com isto ela no ser mais valorizao (Fausto, 1989: 50).

    Parece, assim, haver uma contradio no raciocnio de Fausto. Ao mesmo tempo em que o autor vislumbra uma nova fase da produo capitalista, fundamentada pela subordinao formal-intelectual e marcada pela reconduo do trabalho a elemento ativo do processo de produo, indica que a valorizao teria chegado ao fim. De um lado, a produo capitalista se preserva reintroduzindo o trabalho ao processo de produo. De outro, ainda opera como uma forma de subordinao do trabalho ao capital.

    Seguindo a anlise de Fausto, Prado (2004) indica a ps-grande indstria como uma fase do desenvolvimento da produo industrial que no estaria completamente es-truturada pela dependncia em relao ao tempo de trabalho. Uma produo social, em certo sentido alheia ao tempo de trabalho, seria utilizada durante o tempo de tra-balho. Assim, a ps-grande indstria apresentada como a ltima fase da produo capitalista, fase na qual a cincia e a tecnologia seriam os fundamentos de valorizao do capital, atravs do trabalho criativo, inteligente, cognoscitivo.5 A busca desenfrea-da pela diminuio de tempo de trabalho no estaria mais no norte da produo de mercadorias; primeiro porque a produo, na ps-grande indstria, seria de carter heterogneo em oposio produo homogeneizada da grande indstria; segundo, porque, com a mudana dessa propriedade particular, a produo se tornaria qualita-tiva em oposio produo quantitativa da grande indstria. Com isso, Prado obser-va a radical diferena entre uma produo baseada no tempo de trabalho, sintetizada na forma da grande indstria e fundamentada na quantidade e na produtividade em oposio produo no mais baseada no tempo de trabalho, sintetizada na ps--grande indstria e fundamentada pela qualidade. Assim, [...] dada a relativa irrele-vncia do tempo de trabalho e a proeminncia da qualidade desse tempo, a cincia e a tecnologia atuam na produo do valor por meio de trabalho (Prado, 2004: 64). De nosso ponto de vista, a anlise sobre a ps-grande indstria tem necessariamente que se submeter ao processo histrico. Podemos observar hoje que, com o processo de automao das indstrias, altas taxas de produtividade do trabalho ainda impe-ram.6 Quantidades muito grandes de mercadoria so produzidas na medida em que se reproduz, radicalizando a lgica da grande indstria, o emprego da cincia e da tec-nologia produo, com vistas, sobretudo, economia de tempo de trabalho. Nesse sentido, a anlise de Fausto parece presa lgica formalista do processo histrico, isto , a ordem lgica submete a ordem histrica, valorizando, nesta ltima, aspectos que so fruto de desdobramentos conceituais e no tem efetiva concretude se os pensar-mos dentro da atual diviso internacional do trabalho e do quadro de explorao do trabalho em empresas capitalista contemporneas.

    5. Para Prado, a base material para a constituio do socialismo j estaria dada no sentido em que o tempo de trabalho no mais se fundamenta como elemento quantitativo do processo de valorizao do capital, visto que a cincia e a tecnologia, por meio do trabalho, teria se tornado a base qualitativa do processo de produo. Em suas palavras: Ainda que por um caminho que se afasta do legado de Marx, certas concluses de Gorz mostram-se corretas. O seu ponto principal que o capitalismo chamado de cognitivo e por isso deve se entender que este modo produo entrou j numa fase em que o conhecimento se torna mais e mais o principal contedo do capital j a crise do capitalismo. Pois a economia baseada no trabalho conceitual e no conhecimento cientfico e tecnolgico avanado incongruente com a relao de capital (Prado, 2004: 53). Bastaria, portanto, [...] a abolio da relao social de capital e tambm do trabalho assalariado j que a base material teria todas as condies necessrias para superar a forma valor. Apesar

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    A ps-grande indstria, como ltima fase da produo do valor, s tem sentido concei-tual em Marx, seja nos Grundrisse, seja em O capital, se a qualificamos dentro de uma anlise histrica e determinada pela luta de classes. No se trata, como vislumbra Fausto, de uma fase do capitalismo que de forma automtica negaria a prpria lgica capitalista. A ps-grande indstria no se fundamenta como uma negao da nega-o, tendo em vista que est diretamente submetida s formas de obteno de lucro. A autorruptura sem lutas e sem classes, ademais, no se fundamenta como uma tese que tem seu bero em Marx. Para Marx, a ltima fase do valor tem relao direta com o fim das classes sociais e, portanto, com a necessidade de uma direo socialista que alce o fim do valor-trabalho como seu objetivo central. Para esses autores, a luta de classes, portanto, torna-se um elemento chave do processo de abolio do trabalho assalariado e do capital apenas depois da constituio da ps-grande indstria como base do novo modo de produo. Antes disso, a luta, elemento central da anlise marxiana, secundarizada em relao ao movimento espontneo da economia, im-pulsionado, sobretudo, pelo desenvolvimento aparentemente autnomo das foras produtivas.

    A evoluo do sistema no leva, portanto, autorruptura. Para Marx, essa ruptura s pode ser sntese de embates classistas e est vinculada constituio de foras sociais revolucionrias. Os elementos constituintes de uma possvel ruptura se arti-culam, no obstante, entre as relaes de produo e as foras produtivas, sendo estas resultados/snteses do confronto entre trabalhadores e capitalistas em forma-es sociais historicamente determinadas. No h, nesse sentido, uma determinao interna ao movimento de extrao de mais-valia que faa implodir automaticamente o modo de produo capitalista. Esta pressuposio, alm de determinista, considera a tendncia de desenvolvimento das foras produtivas isolando-a de seu elemento transformador central: a luta. No obstante, preciso tambm levar em considerao os movimentos e as tendn-cias prprios do modo de produo capitalista. Se, por um lado, Marx indica mani-festaes tendenciais e internas ao processo de valorizao do capital, por outro, demonstra como estas tendncias devem ser entendidas historicamente na medida em que sofrem a influncia de contratendncias. Nesse sentido, as tendncias de-generativas do processo de valorizao como, por exemplo, a de tendncia de queda da taxa de lucro, apreendida por Marx como uma contradio em processo que, em ltima anlise, no opera automaticamente, mas dentro de historicidades especficas e devem ser observadas conjunturalmente.

    de sublinhar, no incio de seu texto, a necessidade [...] da ao dos homens (idem: 46) no processo de superao do modo de produo capitalista, Prado parece admitir que a base material para essa superao j estaria constituda hoje com a ps-grande indstria e que esta base no tem relao direta com a ao dos homens.

    6. H inmeros exemplos de intensificao e superexplorao do trabalho, alm de trabalho escravo e semiescravo no Brasil, na China e em outros pases centrais economia capitalista que qualificam a radicalizao dos preceitos tayloristas e fordistas para a explorao da fora de trabalho fsica (manual) e imaterial (intelectual) e que, em consequncia, desabonam qualquer validade das teses sobre o fim da produo industrial e da estruturao de sociedades centradas no no trabalho. Entre tantas outras importantes referncias sobre as novas e velhas configuraes do trabalho no capitalismo contemporneo, Cf.: as compilaes de Dal Rosso (2008); Dal Rosso e Fortes (2008); e Antunes (2006; 2013). Alm dos textos sobre o trabalho escravo de Sakamoto (2004;

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    Trabalho produtivo, trabalho improdutivo e servios

    As transformaes na produo ocasionadas nas ltimas quatro dcadas podem ser analisadas com base na relao entre tempo de trabalho e tempo livre. No entanto, parece-nos de incio importante questionar: haveria uma transformao estrutural na produo que teria alterado os fundamentos da produo de mercadorias com o objetivo de produzir mais-valia? Parece-nos que esse questionamento est direta-mente relacionado compreenso do trabalho produtivo e do trabalho improdutivo e, particularmente, dos servios e de seu crescimento nas sociedades capitalistas con-temporneas.

    Marx afirma, no Captulo VI Indito (1985) que o objetivo central do capital e seu fim imediato a produo de mais-valia. Nesse sentido, produtivo seria todo aquele em-preendimento capitalista que tem por objetivo produzir diretamente mais-valia, isto , [...] s aquele trabalho que seja consumido diretamente no processo de produo com vista valorizao do capital (1985: 108). Assim, a designao de produtivo em Marx deve sempre relacionar-se ao processo geral de produo, isto , na relao entre processo de trabalho e processo de valorizao, na qual o processo de trabalho est subordinado aos interesses do processo de valorizao. Portanto, trabalho pro-dutivo vem a ser aquele trabalho que utilizado, de maneira socialmente combinada, como instrumento direto do capital para sua valorizao. O processo de produo , ento, compreendido por Marx como uma combinao de relaes sociais que operam em variadas frentes. Incorporam-se, por um lado, trabalhos predominantemente manuais articulados a trabalhos predominantemente intelectuais ou cognitivos, sempre com o objetivo de incrementar a produo na me-dida em que uma maior quantidade de funes seja controlada pelo capital. O que vale para o capital no , ento, uma determinada forma de trabalho, como nos indica Braverman, mas

    [...] se foi obtido na rede de relaes sociais capitalistas, se o tra-balhador que o executa foi transformado em homem pago e se o trabalho assim feito foi transformado em trabalho que produz lucro para o capital (1980: 305).

    Na prtica, o capital submete uma quantidade sempre maior de funes e profisses distintas para atingir a finalidade de produzir mais-valor.

    [...] este como diretor (manager), engenheiro (engineer), tcnico e etc., aquele como capataz (overlooker), aquele outro como operrio manual ou at como simples servente [...] so cada vez em maior

    2006) e sobre o trabalho atpico de Vasapollo (2005).

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    nmero as funes da capacidade de trabalho includas no conceito imediato de trabalho produtivo, diretamente explorados pelo capital e subordinados em geral ao seu processo de valorizao e de produ-o (Marx, 1985: 110).

    Ao analisar os servios, o que desde incio deve ser diferenciado da produo de ser-vios, isto , a produo de mercadorias na forma tipicamente capitalista produtora de mais-valia, vemos que no h uma troca de tempo de trabalho por dinheiro, como representao do valor. Troca-se dinheiro, na forma de rendimento, por um servio, isto , o dinheiro trocado no entra no ciclo da produo como capital. Funciona, as-sim, como indica Marx, como meio de circulao e no como capital.

    A diferena entre o trabalho produtivo e o improdutivo consiste ape-nas em que, em si, o trabalho trocado por dinheiro como dinheiro e em dinheiro como capital. Sempre que compro uma mercadoria a um trabalhador, como, por exemplo, no caso do trabalhador in-dependente, do arteso (self employing labourer, artisan) etc., a categoria (trabalho) est totalmente fora de questo porque no se d um intercmbio direto entre o dinheiro e o trabalho de qualquer ndole, mas sim, entre dinheiro e mercadoria (Marx, 1985: 119).

    Para retomar a perspectiva que caracteriza o capitalismo dentro de uma tendncia de reduo do tempo de trabalho, isto , do trabalho produtivo, como um dos elemen-tos centrais para a manuteno da reproduo da vida burguesa, Marx vislumbra o crescimento do setor de servios em detrimento do setor produtivo e a substituio do trabalho produtivo por trabalho improdutivo. No obstante, o autor diferencia, em alguns pontos, o trabalho produtivo daquele que denomina de imaterial ou no material.

    Essa diferenciao importante na medida em que, no debate contemporneo so-bre a imaterialidade do trabalho, a tese que proclama o capitalismo cognitivo tem como eixo central o argumento de que o trabalho imaterial ou cognitivo seria a fora produtiva central, ou pelo menos, se apresentaria tendencialmente como, nas so-ciedades atuais. Na compreenso de Gorz (2005), Moulier-Boutang (2007), Viveret (2003), entre outros, a forma valor estaria em crise pois o conhecimento, fundamento do trabalho imaterial, dificulta a formalizao do valor, isto , na medida em que o conhecimento no poderia ser medido por unidades de tempo de trabalho. Citando Marx dos Grundrisse, Gorz assevera:

    [...] o trabalho em sua forma imediata, mensurvel e quantificvel, dever, por consequncia, deixar de ser a medida da riqueza criada. Esta depender cada vez menos do tempo de trabalho e da quantia de trabalho fornecida; ela depender cada vez mais do nvel geral da cincia e do progresso da tecnologia (2005: 15-16).

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    O autor, conclui, por conseguinte, que o desenvolvimento das foras produtivas ca-pitalistas imateriais teria colocado a prpria forma valor e, por conseguinte, o capital em xeque.

    A questo aqui no se fundamenta se Marx est ou no correto em tal afirmao. A questo que nos parece fundamental : Marx se refere a qual sociedade quando pres-supe as possibilidades de libertao do tempo de trabalho pela introduo massiva de cincia e tecnologia? A resposta de Gorz, ao se utilizar dessa passagem, obvia: Marx se referiria ao ltimo estgio da produo capitalista. Contrariamente, entende-mos que essa possibilidade s pode ser vislumbrada em uma sociedade socialista, na qual todas as foras sociais estejam empenhadas para desenvolver tal substituio e ao mesmo tempo libertar o trabalho de sua subordinao capitalista.

    Gorz, no obstante, entende que o modo de produo comunista j se apresentaria nos interstcios da sociedade capitalista. Um exemplo disso seriam as ferramentas in-formacionais e a possibilidade de apropriao coletiva do espao virtual, sobretudo demonstradas pela constituio de softwares livres. A instaurao de uma

    [...] comunidade virtual, virtualmente universal, dos usurios-produ-tores de programas de computador e de redes livres, instaura rela-es sociais que esboam uma negao prtica das relaes sociais capitalistas (2005: 66).

    Essas relaes de cooperao voluntria, segundo Gorz, conviveriam com o modo de produo capitalista, seriam prticas no mensurveis e no subordinadas lgica da valorizao do capital. Seriam, por fim, antagnicas s prticas capitalistas na me-dida em que [...] o capitalismo do saber gera em si e para alm de si a perspectiva de sua possvel supresso. Em seu mago [aponta Gorz] germina uma semente comunis-ta (idem: 69).

    Uma observao crtica permite retomar a discusso sobre o trabalho produtivo e o trabalho improdutivo. A afirmao de que o trabalho imaterial a fora produtiva cen-tral nas sociedades contemporneas est assentada no argumento de que o conheci-mento e a informao so elementos no quantificveis e no redutveis a unidades de tempo de trabalho. No entanto, a no conversibilidade do trabalho imaterial em valor est fundamentada em seu carter no tangvel, isto , para Gorz, o conheci-mento e a informao so elementos que no apresentam fisicidade e, portanto, no poderiam ser codificados.

    H, com isso, uma incompreenso em relao teoria do valor-trabalho de Marx. No so, nestes termos, os contedos materiais (fsicos) ou imateriais (no fsicos) que de-terminam, na viso de Marx, o carter produtivo ou no do trabalho.7 As mercadorias

    7. Marx, afirma nesse sentido que: Para o empresrio da fbrica de conhecimentos os docentes podem ser meros assalariados (1985: 120).

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    so consideradas como depositrias de relaes sociais especficas (tipicamente ou no capitalistas). O que d sentido matria (histrica), contrariamente, o conjunto de relaes sociais que tem por objetivo valorizar o capital, sintetizando-se como mer-cadoria. Determinar um encontro, uma sntese de relaes sociais como produtiva no passa necessariamente pela fisicidade do produto, mas exatamente pelo modo, pela maneira ou forma como esse conjunto de relaes se sintetizou. Portanto, a ma-terialidade das relaes sociais, do ponto de vista da anlise marxiana, no est ligada fisicidade das mercadorias. Ela est relacionada, na verdade, diretamente materia-lidade histrica de seu modo de produzir.

    Tempo de trabalho e tempo livre

    O tempo de trabalho necessrio produo e manuteno da reproduo social nos remete, com base na anlise de Marx, forma histrica do funcionamento do capitalismo. Essa forma histrica tem um prazo de validade, ou seja, histrica, mas no tm uma data de expirao determinada pressuposta. Marx observa essa ten-dncia contraditria nos Grundrisse sob dois ngulos complementares. De um lado, a potncia do capital em expandir-se e, de outro, os limites histricos dessa expanso que abririam espao para crises, lutas, embates que possibilitem a superao da so-ciedade capitalista.

    O esforo terico de Marx em levar essa contradio social ao limite tem como consequncia o desenvolvimento conceitual da reduo do tempo de trabalho ao ponto em que este esteja totalmente ou, pelo menos, de maneira hegemnica, su-bordinado ao tempo livre. Entretanto, importante nos interrogarmos: o limite do capital, indicado por Marx nos Grundrisse, seria um limite criado por foras sociais antagnicas, isto , pelas classes sociais, ou seria ocasionado por uma determinao intrnseca ao desenvolvimento do capital? [...] O capitalismo teria um fim autom-tico, resultante de tendncias internas degenerativas, ou precisaria ser derrubado por foras sociais revolucionrias? (Miglioli, 1994: 62). Isto , o capital estaria fa-dado, em um processo automtico, a um fim, ou a anlise sobre o desenvolvimento das relaes de subsuno nos Grundrisse seria um exerccio lgico que pressuporia necessariamente a luta de classes? Marx problematiza essa questo argumentando que:

    [...] se no encontrssemos veladas na sociedade, tal como ela , as condies materiais de produo e as correspondentes relaes de intercmbio para uma sociedade sem classes, todas as tentativas para explodi-la seriam quixotadas (2011: 107).

    No entanto, quais seriam as condies materiais para revoluo da sociedade capita-lista? A questo sobre o tempo de trabalho elemento de nossa anlise contribui

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    mais uma vez para explicitarmos essa questo, sobretudo no momento em que temos a inteno de desqualificar qualquer perspectiva sobre a formao do valor que esteja pautada em uma mensurao aritmtica e economtrica.8

    Para entendermos o exerccio lgico que Marx fez nos Grundrisse, exerccio que retira do palco, temporariamente, a luta de classes, primeiramente devemos passar pela de-signao de que o tempo de trabalho medida do valor e, por isso, no tem um valor em si mesmo. Sendo medida, deve abstrair-se de qualquer forma de quantificao. A quantificao, na verdade, deve ser pensada na relao entre os valores de troca pro-duzidos em um tempo social mdio despendido na produo, sempre considerando um estgio histrico do desenvolvimento das foras produtivas. Se a tendncia geral inserir novas formas de cincia e tecnologias produtivas para diminuir o tempo de trabalho, barateando o valor da fora de trabalho, a liberao de tempo de trabalho caminharia sempre para o infinito.

    O exerccio lgico de Marx nos Grundrisse desenvolve-se apenas na primeira parte dessa relao, isto , na incorporao de novas foras produtivas ao processo de pro-duo, sem, nesse momento, questionar-se sobre as consequncias dessa liberao de tempo de trabalho para a classe trabalhadora. Dessa forma, Marx indica relaes sociais necessrias ao processo de liberao de tempo de trabalho com o objetivo de revolucionar as relaes sociais capitalistas, superando as determinaes da lei do valor-trabalho. A primeira seria um alto nvel de produtividade e de relativa abundn-cia e a segunda seria a necessidade de uma populao excedente, como tambm de uma produo excedente.

    A criao de tempo disponvel teria assim relao direta com a criao de tempo de no trabalho, ou seja, reduo de tempo de trabalho necessrio. Na busca incessante de crescimento, o capital acabaria, malgr lui,9 por ser instrumento, em escala social, da criao de tempo disponvel ao reduzir o tempo de trabalho [...] a um mnimo de-crescente e, com isso, na transformao do tempo de todos em um tempo livre para seu prprio desenvolvimento (Marx, 20011: 590). No entanto, como j salientamos, essa reduo de tempo de trabalho no pode ser levada ao limite na medida em que as foras sociais capitalistas no podem desvencilhar-se completamente do trabalho. O capital cria, dessa forma, mais tempo de mais-trabalho.10

    Marx sempre nos Grundrisse indica por extenso que esse crescimento volumoso das foras produtivas no poderia mais estar ligado apropriao de sobretrabalho e que a massa operria deveria apropriar-se de seu mais-trabalho. Com isso, o tempo necessrio como medida do trabalho deixaria de existir e o tempo disponvel passaria a ser o centro de constituio da nova sociabilidade. J que a riqueza real produto de uma fora produtiva social,

    8. Como sugere Husson (2000: 2): A ideia que o capital aproveita da faculdade de se apropriar dos progressos da cincia (ou do conhecimento) no uma ideia nova, j que um elemento fundamental de anlise marxista do capitalismo. Pretender que se trate de uma descoberta recente e de uma real novidade faz retornar a uma compreenso estreita da teoria marxista do valor conduzida a um simples clculo do tempo de trabalho.

    9. Expresso francesa empregada por Marx nos Grundrisse/Borrador (1972: 232), em portugus apesar dele.

    10. Para Tosel (1994), o tempo liberado pela reduo de tempo de trabalho produtivo no implica no desenvolvimento do indivduo social, nos moldes anunciados por Marx nos Grundrisse. Segundo o autor, esse tempo liberado no tempo livre, j que negativamente liberado na forma do desemprego, da precarizao, do subemprego, do banco de horas etc., fundamentando assim a impossibilidade efetiva de a classe trabalhadora usufruir desse tempo liberado.

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    [...] ento, por um lado, o tempo de trabalho ter sua medida nas necessidades do indivduo social, por outro, o desenvolvimento da fora produtiva social crescer com tanta rapidez que, embora a pro-duo seja agora calculada com base na riqueza de todos, cresce o tempo disponvel de todos (Marx, 2011: 591).

    Nestes termos, o tempo de trabalho deixaria de ser medida de valor, sobretudo no momento em que Marx vislumbra a transformao massiva do trabalhador oprimido pelo ritmo industrial de trabalho em trabalhador exercendo uma atividade de vigiln-cia e regulao do processo de trabalho.

    Esse exerccio lgico-conceitual que Marx fez nos Grundrisse, no obstante, deve ser apreciado com base em suas anlises fundamentalmente polticas. O fim da lei do valor em Marx no pode ser examinado sem a considerao de que as foras sociais presentes na sociedade capitalista e na sociedade de transio socialista se empenhem para essa finalidade. Qualquer automatismo social est decididamente descartado da anlise marxiana, visto que o prprio autor, em muitas de suas obras, destacou o lugar central da luta de classes na constituio de uma nova sociedade emancipada do capital. com esse sentido que encaminho minhas consideraes finais.

    Consideraes finais

    O capital, nas ltimas dcadas, ao contrrio de estruturar uma autorruptura e propi-ciar qualquer forma de libertao da classe trabalhadora de suas amarras, manifestou uma monstruosa capacidade em recompor suas bases de dominao e explorao. Ao fundamentar-se na reestruturao da produo e em polticas neoliberais, fez aumen-tar suas taxas de lucro atravs de um processo de subalternizao da classe trabalha-dora nunca antes visto. Esse processo de reconfigurao das bases de explorao ca-pitalista criou, em contraposio s teses que fundamentam o capitalismo cognitivo, um cenrio amplamente desfavorvel para a classe trabalhadora.

    Perda de direitos trabalhistas, terceirizao e precarizao do trabalho, superexplo-rao e intensificao da produo, codificao das formas de trabalho intelectual, autogerenciamento das tarefas produtivas, alm de trabalhos com contratos tempo-rrios e do trabalho escravo e semiescravo so formas utilizadas pelo capital para reorganizar o padro taylor-fordista de produo, acrescentando-lhe formas primi-tivas de explorao e dominao.11 No obstante as manifestas condies em que a classe trabalhadora mundial se v condicionada, alguns autores insistem na tese segundo a qual haveria, no processo de reduo do tempo de trabalho, a possibili-dade de constituio de espaos de liberdade alheios produo e racionalizao da economia capitalista.

    11. Cf. nota 5.

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    Notamos que a reduo do tempo de trabalho reproduzida socialmente pela substitui-o de trabalho vivo por trabalho morto, com a incorporao da cincia e da tecnolo-gia, est qualificada por um insistente objetivo produtivo: a manuteno da sociedade capitalista e das classes sociais que a constituem. No h elementos essencialmente neutros ou positivos no desenvolvimento das foras produtivas que liberem o tempo para o usufruto da classe trabalhadora. Todas as formas de liberao de tempo no capitalismo esto, assim, direta ou indiretamente atreladas valorizao do capital. Em termos marxianos, no se pode falar em tempo livre sem que toda a sociedade esteja implicada em exercer esse tempo ativamente, isto , a produo material s atingiria esse estgio se o tempo livre estivesse posto socialmente e se tivesse como centro de sua libertao uma atividade fundamentalmente cientfica, oposta, nesse sentido, a todas as formas de adestramento, gerenciamento e subalternizao carac-tersticas do trabalho de tipo assalariado. Falar em tempo livre por ocasio do desenvolvimento das foras produtivas, como fundamento do indivduo social, implica em estabelecer uma direo poltica que te-nha como objetivo eliminar a lei do valor-trabalho, substituindo as formas de produ-o tipicamente capitalistas por formas comunistas de produo.12

    A transformao de tempo de trabalho em tempo livre na qual o desenvolvimento das foras produtivas abriria espao para a constituio do indivduo social s se afina com a leitura de Marx em um momento em que a sociedade socialista se apresenta como norteadora desse movimento. Portanto, a liberao de tempo de trabalho no capitalis-mo, alm de representar uma mistificao da relao de subordinao do trabalho em relao ao capital, tem, do ponto de vista da classe trabalhadora, apenas um sentido estritamente negativo, expresso nas mais atuais formas de subalternizao do trabalho.

    Abstract: The working time is a central concept to the Marxist analysis of capitalist society. From Karl Marx to the present day, the discussion on the reduction of working time has been developed by several interpretations. Among them is one that points to the gradual reduction of working time. Progressive, this case is not understood on the basis of its own contradiction, in other words, as a need of capital for their valorization, but as a process of progressive reduction of working time that, ultimately, put the ca-pital relation in check. Based on this interpretation, the trend of reduction of working time would annou-nce the extinction of capitalist relations of production. We would, therefore, faced with a perspective that is grounded in a social automatism and therefore assumes the end of capitalism in a deterministic way. Returning to the more central implications that the restructuring process, called toyotist, has pro-vided, especially those relating to the massive replacement of workers by informational technology and microelectronic, this article aims to revisit the notion of working time, trying thereby to demonstrate the fragility of the thesis that assumes a structural breakdown of capitalist society as the result of an auto-matic internal movement of capital reproduction. We conclude that these theories in practice mystify the centrality of class struggle, first as a determinant element of the constitution of capitalist productive forces, and second, as an overcoming element for the subordination of labor to capital.

    12. Entendemos aqui o socialismo como uma sociedade de transio e no como um modo de produo tpico. Nesse sentido, o socialismo se sintetizaria pela progressiva constituio de relaes sociais e foras produtivas comunistas e pela eliminao tambm progressiva das relaes sociais capitalistas j subordinadas ditadura do proletariado. Naves (1994: 72) sintetiza esse argumento da seguinte forma: Aps a revoluo, a luta de classes prossegue, com a classe operria procurando, por um lado, destruir o ncleo duro das relaes sociais capitalistas, justamente aquilo que permite a dominao e a expropriao do trabalhador: uma dada organizao do processo de trabalho retira do operrio todo e qualquer controle das condies materiais da produo e do produto de seu trabalho, e que se funda na diviso entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, e na diviso entre as tarefas de direo e de execuo. E, por outro lado, procurando destruir o aparelho de Estado burgus, visando, por meio da ditadura do proletariado, transform-lo em algo que j no seja

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    Keywords: working time, social automatism, post-major industry, productive labor, unproductive la-bor, labor value.

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