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N.º 9, 2008 Anais de História de Além-Mar Lisboa / Ponta Delgada

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  • N. 9, 2008

    Anais de Histriade Alm-Mar

    Lisboa / Ponta Delgada

  • NDICE

    NOTA DE ABERTURA ............................................................................................................. 5

    ARTIGOS

    DimeNses Da castelologia Portuguesa No Norte De frica eNtre

    QuatroceNtos e meaDos De QuiNheNtos, Jorge correia ........................... 9

    homeNs e tartarugas mariNhas. seis scuLos De histria e histrias

    Nas iLhas De cabo VerDe, Nuno de santos Loureiro e maria manuel

    ferraz torro ................................................................................................................. 37

    miNas eXPaNsioNista, miNas mestia: resistNcia Dos NDios em

    miNas gerais Do scuLo Do ouro, maria Lenia chaves de resende

    e hal Langfur .............................................................................................................. 79

    o reiNaDo De D. Joo V e o Processo De DomNio PoLtico e sociaL Nas

    miNas gerais Do scuLo XViii, maria Paula Dias couto Paes ......................... 105

    De soLDaDo Portugus a marechaL Do eXrcito brasiLeiro: raimuNDo

    Jos Da cuNha mattos (1776-1839), Neuma brilhante rodrigues ................... 139

    macau et Le brsiL Lheure Du NouVeL emPire Luso-brsiLieN

    (1802-1812), andre mansuy-Diniz silva .................................................................... 175

    UM SAGRADO DEVER OU UMA AMARGA POLTICA?: O PARADISACO BRASIL DE

    LEOPOLDINA, ngela Domingues ............................................................................... 207

    o corso NeerLaNDs coNtra a carreira da ndia No Primeiro QuarteL

    Do scuLo XVii, andr murteira ............................................................................. 227

  • Des terres De fraNce auX forteresses De Lestado da ndia : Les miLi-

    taires fraNais goa sous LaNcieN rgime, ernestina carreira ........... 265

    eL suDeste asitico eN Las PoLticas De La moNarQua catLica.

    coNfLictos Luso-casteLLaNos eNtre 1580-1621, Domingo centenero

    de arce y antonio terrasa Lozano .............................................................................. 289

    aLgumas coNsiDeraes em torNo Da ProDuo tXtiL chiNesa De

    eXPortao DestiNaDa aos mercaDos Portugus e iNgLs, maria

    Joo Pacheco ferreira ................................................................................................... 333

    o imPrio mesa. uma retrica Da moNarQuia Portuguesa Nas artes

    Da mesa (1756-1775), David alexandre felismino ................................................... 351

    Documentos

    the first Dutch VoYage to thatta (1631). the Journal of gregorij cornelisz,

    Willem floor .................................................................................................................. 381

    historicaL archiVes of the Diocese of cochiN: its coNteNts aND the

    maJor PossibLe fieLDs of research, maria Lurdes rosa ........................... 423

    Recenses .......................................................................................................................... 435

    PRojectos ........................................................................................................................... 451

    eventos ............................................................................................................................... 489

    Resumos / abstracts ..................................................................................................... 523

  • Nota De abertura

    com a apresentao do seu nmero relativo a 2008, aham prossegue um esforo de aperfeioamento e de adaptao aos critrios desenvol- vidos pela comunidade cientfica. sendo um peridico referido na lista da european science foundation para as humanidades, sabemos que temos responsabilidades acrescidas.

    este volume iX foi j preparado pelo novo conselho editorial, designado pela comisso cientfica do cham em Janeiro de 2008. a todos os que acei-taram integrar esta nova equipa desejo expressar publicamente a minha gratido pela disponibilidade. aos que deixaram de pertencer a este rgo envio uma palavra de agradecimento pelo apoio dispensado nos momentos cruciais em que uma nova revista procurava ganhar o seu espao prprio no mundo universitrio internacional. o refrescamento e alargamento da equipa correspondem a uma necessidade de renovao e de internaciona-lizao do conselho, mas decorrem de uma evoluo natural em que as substituies nunca significam rupturas.

    a seleco dos artigos publicados na nossa revista sempre se pautou por critrios de elevada exigncia cientfica, e muitas candidaturas foram rejeitadas ou sujeitas a correces. sabemos que os critrios so sempre discutveis e que o mesmo artigo pode obter frequentemente avaliaes dspares. ainda assim, estou certo que a grande maioria dos textos publi-cados nos volumes anteriores so reconhecidos como trabalhos de grande qualidade que contriburam para o progresso da historiografia. No entanto, sempre possvel, e desejvel, melhorar, e os bons resultados obtidos

  • devem-nos estimular a encontrar formas de continuar a progredir e a melhorar.

    assim, a partir deste volume, procuramos reforar o controlo da quali-dade dos nossos textos atravs da introduo do sistema de arbitragem. Desta forma, ajustamo-nos aos padres reconhecidos internacionalmente, procurando que a nossa revista acrescente sua credibilidade natural, a que lhe conferida pela opinio abalizada dos nossos colegas que aceitaram rever e criticar os textos que passaram numa primeira fase de seleco. a todos os que aceitaram colaborar connosco nessa tarefa apresento tambm os meus agradecimentos, pois o seu trabalho rigoroso e generoso contribuir para uma maior credibilidade dos aham.

    como nos volumes anteriores, procuramos que os aham sejam um espao de abordagens diversificadas, quer no que respeita cronologia, quer no que toca aos espaos, quer ainda no que se refere aos temas. os con-tributos que agora publicamos, creio que preenchem esse desiderato e que constituem no seu todo, uma soma de olhares diversificados que ajudam a compreender a riqueza extraordinria do tema da histria da expanso Portuguesa.

    uma nota final para salientar que este volume apresenta a seco das notcias reformulada. tendo em conta que as actividades do cham esto apresentadas pormenorizadamente no nosso stio da internet (www.cham.fcsh.unl.pt), a seco procura ser agora, preferencialmente, um espao de reflexo sobre as actividades realizadas.

  • Artigos

  • aNais De histria De aLm-mar, Vol. iX, 2008, pp. 9-36

    DimeNses Da castelologia PortuguesaNo Norte De frica

    eNtre QuatroceNtos e meaDos De QuiNheNtos *

    por

    JORgE CORREIA **

    1. consideraes gerais

    Quase nove dcadas passaram desde que Verglio correia escreveu necessrio ir a safim para conhecer uma fortificao manuelina!1. este reconhecimento funcionou como uma constatao inabalvel at ao pre-sente, registando-se a escassez de estudos sobre a temtica. De facto, apesar das cincias histricas terem evoludo no sentido de valorizarem a arti- culao das vrias cincias sociais, buscando nos aspectos econmico-sociais e culturais uma viso crtica para alm da cronologia poltica, as referncias arquitectura construda pelos portugueses no Norte de frica quedavam-se por meras citaes de acontecimentos, de fcil comprovao atravs dos vestgios sobreviventes, falhando na caracterizao concreta dos fenmenos envolvidos. a par de correia, salva-se o estudo de vin, percursor no estabe-lecimento de sries ou invariantes, porm pouco vocacionado para a arqui-tectura militar 2.

    * este artigo tem por base a nossa tese de doutoramento apresentada faculdade de arquitectura da universidade do Porto em Julho de 2006, intitulada implantao da cidade portuguesa no Norte de frica: da tomada de ceuta a meados do sculo XVi e orientada pelos Professores alexandre alves costa e rafael moreira. o enfoque principal da tese residia nos aspectos urbanos da ocupao portuguesa no magrebe, muito embora tais no se possam dissociar de uma expresso formal militar no territrio. Por conseguinte, com este artigo pretende-se contribuir para um destaque e actualizao do conhecimento destas realidades da(s) arquitectura(s) militar(es) at ao advento da modernidade. ** cham centro de histria de alm-mar; ea.um escola de arquitectura da universidade do minho. 1 Verglio cORREIA, lugares dalm: azemr, Mazago, afim, Lisboa, tipografia do anurio comercial, 1923, p. 80. 2 Paul antoine vIN, Larchitecture Portugaise au maroc et le style manulin, Bulletin des tudes Portugaises, Lisboa, institut franais au Portugal, 1942.

  • 10 Jorge correia

    a partir da dcada de 80 do sculo passado, o patrimnio edificado de origem portuguesa comea a aparecer resgatado do esquecimento e letargia em que tinha sido abandonado, depois de identificado e rotulado. tendncia protagonizada por rafael moreira 3, com particular nfase para a leitura transversal das arquitecturas militares detectadas e interpretadas luz de uma lgica nacional e ultramarina. os castelos e as fortalezas deixados pelos portugueses em marrocos, provavelmente os legados edificados mais impres-sionantes, reclamavam agora o seu papel experimental e pioneiro de acordo com a evoluo das tcnicas militares. De referir ainda as grandes sistema- tizaes cronolgicas que Pedro Dias 4 nos fornece, concentrando-se na histria da produo arquitectnica militar, civil, religiosa e mesmo doms-tica dos mais de trs sculos e meio de presena lusa.

    urge, pois, referenciar um novo ponto de situao a um conhecimento mais actualizado dos vestgios espalhados pela costa marroquina, quer os repescados pela memria escrita ou visual, quer sobretudo os testemunhos fsicos ainda existentes. Neste artigo, procuramos esclarecer algumas ques-tes relacionadas com as dimenses da castelologia portuguesa na transio dos sculos XV para XVi. mais concretamente, pretendemos reflectir e analisar as suas expresses na geografia do noroeste africano, numa altura em que a expanso Portuguesa se implantava pelas costas africana e asitica atravs de inmeros castelos costeiros.

    o Norte de frica, lido como um campo de experimentao no que rea da arquitectura militar diz respeito, como nos adianta rafael moreira, tem sido repetidamente invocado a propsito da clivagem entre as interven-es no eixo setentrional do territrio, marcado pelo risco e obras de Diogo boytac e francisco Danzilho, e o arco geogrfico sul onde intervieram os irmos e mestres Diogo e francisco de arruda. importa, pois, acentuar a leitura vertical do percurso dessa herana edificada.

    todas essas dimenses devem igualmente ser compreendidas no contexto geral da presena portuguesa no magrebe. sumarie-se: nas cidades conquis-tadas pelos portugueses no Norte de frica imperou uma atitude pragmtica orientada para a sustentabilidade de praas de guerra isoladas em terri- trio hostil; operaram-se significativas redues de permetro e superfcie das reas ocupadas, num processo que se vulgarizou como atalho; decor-rente de um esprito profundamente racional, esta tcnica provocou um exame radical das cidades apropriadas, regularizando-as geometricamente,

    3 salientamos a importncia dos captulos a poca manuelina e a arte da guerra no renascimento, ambos includos em rafael mOREIRA (direco), Histria das Fortificaes Portuguesas no Mundo, Lisboa, alfa, 1989. 4 Pela primeira vez integrada em Pedro DIAs, Histria da arte Portuguesa no Mundo (14151822). espao do atlntico, Lisboa, crculo de Leitores, 1999, o captulo de marrocos ganha destaque editorial na sua adaptao para Pedro DIAs, a arquitectura dos Portugueses em Marrocos, 14151769, coimbra, Livraria minerva editora, 2000.

  • DimeNses Da castelologia Portuguesa No Norte De frica 11

    aproximando-as do canal martimo, reequacionando a sua disposio inte-rior e, por conseguinte, demarcando o estrato portugus at ao presente, no panorama das actuais cidades marroquinas; o impacto da chegada de um novo poder e de um novo credo implicou, por um lado, uma reavaliao do espao construdo e urbano, e, por outro, uma vontade de ruptura inerente a uma cultura arquitectnica e de cidade europeia, numa poca em que para os conceitos e as prticas urbansticas concorreriam a experincia de funda-es de vila novas medievais e o esprito higienista renovador subjacente a uma modernidade que se anunciava.

    a data de 1541 tem funcionado como verdadeira charneira da mudana artstica sentida no Norte de frica, subjacente profunda alterao da pol-tica dos portugueses nestas latitudes. Nos nove anos seguintes, abandonaram praticamente todas as posies costeiras que detinham, investindo na fun-dao de uma vila em mazago e preservando apenas as cidades do estreito de gibraltar, ceuta e tnger, onde se iniciavam campanhas de moderni-zao das suas fortificaes. Deste modo, a evoluo da arquitectura militar viu-se dividida em meados do sculo XVi entre o antes e o depois, entre a tardo-medievalidade e o renascimento. Neste texto debruamo-nos sobre o antes.

    contudo, e em primeiro lugar, este artigo prope a introduo de um terceiro tempo o tempo medieval que consagre a todo o sculo XV, desde 1415, o protagonismo que merece. considerado frequentemente o territrio ultramarino como geografia da experincia ou da vanguarda, aos reinos de fez ou marrocos (marrquexe) subtraram-se algumas aglomeraes urbanas onde persistiu uma continuidade formal com a metrpole, ou seja, uma perpetuao de um saber-fazer profundamente medieval. se o incio das conquistas magrebinas e das descobertas de novas terras abriu Portugal e a europa ao mundo, a exportao de arquitecturas encontrava nas diferentes tendncias do modo gtico e expresses tardo-gticas a sua matriz emissora.

    No entanto, face estabilidade poltica de Portugal dentro das suas fronteiras ibricas, o magrebe oferecia um cenrio de guerra e uma pres-so beligerante quase sempre permanente. esta circunstncia empurrou a arquitectura militar a registar uma importante evoluo do castelo e da cerca romnico-gtica para os complexos acastelados do perodo manuelino, em que esta designao perde a conotao de estilo que se baseia exclu-sivamente na estrutura gtica para se gerar como uma proposio formal inovadora. tratou-se de um momento de resposta, teste e actualizao da construo defensiva.

    todavia, como toda a histria da arquitectura portuguesa, tambm o tempo anterior introduo da fortificao moderna no Norte de frica no foi caracterizado por momentos estanques. De hesitaes, sobreposies ou rupturas se conta a castelologia portuguesa e se lana o mote deste artigo.

  • 12 Jorge correia

    2. o tempo medieval

    Cercas ou cortinas amuralhadas

    apesar de falarmos de cercas ou cortinas amuralhadas nos primeiros tempos da presena portuguesa no magrebe, e no propriamente de castelos, parece-nos relevante iniciar a discusso temtica e cronolgica por este cap-tulo das construes portuguesas nas margens meridionais do estreito de gibraltar. a cidade, fechada sobre si, voltada para o interior das muralhas, constitua o nico e derradeiro bastio da defesa da ocupao lusa do terri-trio e, como tal, pode e deve ser entendida como uma unidade acastelada, numa primeira fase.

    os primeiros atalhos, introduzidos nas praas setentrionais, foram-se realizando ao longo do sculo XV. Depois da reforma de algumas fortifi-caes necessrias preveno de um presente sado da crise de 1383-85, o sculo XV no , porm, um sculo de construo de fortaleza lembra rafael moreira 5. luz do enquadramento magrebino, a construo de cercas urbanas permanecia um instrumento actual de resposta persistncia de um clima de vizinhana hostil em que se insistia no cerco como principal meio de reclamao das cidades perdidas pelo rei de fez. impunha-se a ereco de uma fronteira amuralhada que a edificao do atalho, bem como o restauro das muralhas islmicas aproveitadas, consubstanciou formal-mente nas cercas de ceuta, alccer ceguer, tnger e arzila, conquistadas entre 1415 e 1471. No parece, todavia, que as cortinas defensivas destas praas acrescentassem muitas novidades em Quatrocentos. Pelo contrrio, surgem em perfeita continuidade com a tradio construtiva militar que havia caracterizado o sculo anterior em Portugal. assim, a histria dos panos fortificados das cidades ou vilas africanas reflecte uma estagnao na evoluo das arquitecturas militares praticadas em permetros urbanos.

    alguns parmetros convergentes ajudam a pr em evidncia os prin-cipais aspectos deste domnio construtivo nos reinados de D. afonso V e seu sucessor, D. Joo ii. os novos troos so lineares, tendencialmente rectos, interrompidos em intervalos regulares e frequentes por torres circulares ou torrees semi-circulares. excluda qualquer especulao sobre arzila, uma vez renovado todo o atalho na poca manuelina, e tendo em considerao que ceuta representa uma adaptao das muralhas ocidental e oriental da medina muulmana, em alccer ceguer e tnger que se apreendem as caractersticas morfolgicas da arquitectura destas cortinas. os espaos medidos entre eixos de torres que definem segmentos de muralha variam entre os dezassete e dezoito metros de comprimento no primeiro caso e os

    5 r. mOREIRA, Histria das Fortificaes cit., p. 71: o sculo XV no , porm, um sculo de construo de fortaleza. revelando-se duradoira a paz com castela, os interesses de Portugal voltam-se para alm-mar; (). No entanto, no Norte de frica que, a partir de 1415, as fortalezas exercero em continuidade a sua funo militar; ().

  • DimeNses Da castelologia Portuguesa No Norte De frica 13

    vinte e um e os vinte e trs metros no segundo, isto , distncias apertadas que oscilavam entre as oito e as dez braas. em alccer, as runas no permitem uma avaliao actual da altimetria da muralha circular. Porm, a crer numa correspondncia de crceas entre a muralha e o castelo, uma altura mdia de oito metros parece verosmil 6. oito metros que se confir-mam num clculo aproximado aos segmentos ocidentais do atalho de tnger (figura 1), em ambos os sectores da Porta do campo, os mais antigos preser-vados dada a substituio proto-quinhentista da seco sul. medida aparen-temente constante, tambm patente na cerca fernandina de Lisboa, cerca de cem anos antes 7.

    Figura 1 tnger: muralha portuguesa ocidental.

    rodrigo anes, nomeado mestre das obras dos lugares de frica, em 1473 8, surge plausivelmente como a principal personagem da reforma das cercas das cidades e vilas no ltimo quartel do sculo XV. os esforos afon-sinos e joaninos empreenderam um exerccio de equilbrio entre o aprovei-

    6 altura resultante do confronto entre um levantamento artesanal, executado de acordo com o estado actual do campo arqueolgico, e o levantamento registado pela inspection des Monuments Historiques (imht) em 1960. 7 augusto Vieira da sIlvA, a cerca fernandina de lisboa, Lisboa, cmara municipal, 1948-49, p. 18. 8 iaN/tt, chancelaria de D. afonso V, liv. 33, fl. 211v, in francisco sOUsA VITERBO, dicionrio Histrico e documental dos arquitectos, engenheiros e construtores Portugueses (fac-simile da edio de 1899-1922), 3 vols., Lisboa, iNcm, 1988, i, p. 40.

  • 14 Jorge correia

    tamento de extensos segmentos muulmanos e a nova construo militar protagonizada pelos atalhos. Nestas seces, a utilizao passiva de seteiras para tiro de arco parece ainda ser a soluo dominante, desconhecendo-se o rasgamento de troeiras para trons ou bombardas, apesar de se registar o seu emprego na castelologia portuguesa a partir de meados do sculo XV. Nos sectores remanescentes das muralhas oeste de tnger h apenas a anotar o forte talude que acompanha a linha amuralhada 9, sendo impossvel idntica deteco por entre as actuais runas de alccer.

    Castelos e Torres de Menagem

    se, sob a coroa de D. afonso V, o Norte de frica tinha conhecido as grandes conquistas de alccer, arzila e tnger e ainda as investidas contra anaf, j durante o reinado de D. Joo ii, o interesse pelas possesses magre-binas confrontar-se-ia com um crescimento da importncia proveniente do descobrimento de cada vez mais terras sub-saarianas, com o clmax a ser atingido em 1488, com a dobragem do cabo da boa esperana.

    No que a tnger ainda diz respeito, as decises de D. afonso V podem ser classificadas conceptualmente como uma renovao estrutural, por um lado, e, por outro, como de representatividade formal, atravs de novos equi-pamentos que substituram as antigas construes mernidas castelo sobre kasbah (alcova) e catedral sobre mesquita maior. importava impr novos smbolos de poder e f.

    o mais importante edifcio construdo foi, sem dvida, um castelo de raiz, de aparncia tardo-medieval sobre a alcova islmica. atravs da gra-vura tingis lusitanis tangiara de braun10, pode apreciar-se um edifcio alto, compacto e torreado, em grande parte cego num estrato inferior mas rasgado no superior, com cobertura telhada, que controlava tnger desde o seu ponto mais elevado (figura 2). a demolio da estrutura pr-existente parece bvia.

    o novo castelo portugus est morfologicamente prximo de outras construes tardo-gticas do norte de Portugal, como os paos ducais em guimares11 ou em barcelos, o desta cidade representado por Duarte

    9 todavia, julgamos pertinente um estudo atento de leitura de paramentos neste sector ainda delimitador da medina de tnger para um esclarecimento cabal da situao, pois o cres-cimento urbano da cidade sobreps histrias e construes, encostou estruturas e derrubou vestgios. 10 georg bRAUN, frans hOgENBERg, simon NOvEllANUs, civitates orbis terrarum. antuerpiae coloniae: apud Philippum gallceum / apud auctores, 1572. (bNP c.a.57v). a gravura reflecte, no caso de tnger, a situao existente nos princpios de Quinhentos, isto , antes das trans-formaes formais nas arquitecturas da cidade, ocorridas na segunda metade desse sculo. a gravura constituir, provavelmente, cpia de original com mais de meio sculo de existncia. 11 salvaguarde-se na anlise a inveno que o grande restauro da DgemN (Direco geral dos edifcios e monumentos Nacionais), por meados do sculo XX, introduziu nas fachadas principal e nordeste cujos vestgios no ultrapassavam o primeiro piso, num edifcio onde domi-nava a runa.

  • DimeNses Da castelologia Portuguesa No Norte De frica 15

    Figura 2 tingis, lusitanis, tangiara, in georg BRAUN, frans hOgENBERg, simon NOvEllANUs,

    civitates orbis terrarum, 1572, fls. 56-56v.

    darmas no seu livro das Fortalezas12. ambas as gravuras (georg braun e Duarte darmas) exibem uma imagem arquitectnica resistente a uma liber-tao de uma simblica medieval que, no caso de tnger, adiava a partilha de um pensamento racional intrinsecamente ligado ao processo de atalho e ao seu impacto nas escalas urbana e militar. o castelo de cima de tnger era um pao, conjunto palatino debruado desde a curva de nvel mais alta da cidade intramuros, smbolo poltico de afirmao, anncio e vitria. ocupava o ngulo sudeste da cerca do complexo acastelado, definida a norte e oeste pelas muralhas da cidade e a leste e sul por extenses que prolon-gavam os seus lados. enquanto a seco nascente aparece incompleta na figura de braun, o segmento meridional, no visvel, seria pontuado por torrees circulares, cujas reminiscncias podem ainda ser observadas na malha do actual bairro da Kasbah, sob a forma de uma torre transformada em forno pblico Hadj tahar.

    Para a caracterizao de um tempo medieval aparece tambm a qui-nhentista torre de menagem de arzila, desfasada temporalmente. foi a

    12 Duarte de aRmAs, livro das Fortalezas (fac-simile do ms. 159 da casa forte do instituto dos arquivos Nacionais/torre do tombo), Lisboa, edies inapa, 1997, fls. 116v-117.

  • 16 Jorge correia

    primeira construo na era de Diogo boytac. Pode identificar-se na gravura de braun o edifcio que hoje subsiste, fruto do restauro dos finais dos anos 8013 (figura 3). Porm, as empreitadas dirigidas por francisco Danzilho, entre 1511 e 1514, que seriam facilmente reconhecveis nesta perspectiva atravs da remodelao dos diferentes baluartes das frentes ribeirinhas couraa, s. francisco, Perna de aranha, Praia ou santa cruz no apare-cem representadas pelo autor. Por conseguinte, a obra ter sido edificada durante a presena de boytac na vila e sob directa superviso do mesmo, entre 1509 e 151014, num projecto que perpetuou as seguintes caractersti-cas: prisma rectangular exibindo forte alambor e aberturas nos dois pisos superiores; remate superior ritmado por ameias e merles num balco inter-

    Figura 3 arzilla, in georg BRAUN, frans hOgENBERg, simon NOvEllANUs,

    civitates orbis terrarum, 1572, fls. 56-56v.

    13 arZila, torre de Menagem, Lisboa: fundao calouste gulbenkian, 1995, pp. 55-87. 14 archivo Histrico Portuguez, 11 vols., Lisboa, [s.n.], 1903-18, i, p. 365: () mandmos ora tomar a Diego de alvarenga, cavaleiro da nossa casa, de todo o dinheiro e cousas que recebeo e despendeo nas obras da nossa villa de arzila, os annos de 509 e 510, em pagamento dos soldos da gente que na dita villa serviu, (); e 10:000 rs. de mestre butaqua; ().

  • DimeNses Da castelologia Portuguesa No Norte De frica 17

    rompido por mataces nos lados e guaritas circulares nos ngulos; cober-tura inclinada em telha, distribuda em duas guas principais para os lados maiores do rectngulo. como assinala rafael moreira15, a distribuio funcional do seu interior evolui da priso no rs-do-cho cego, para uma sala de guarda no primeiro andar, terminando na sala de audincias do gover-nador, a partir da qual e desde uma janela nobre, comunicava as ordens rgias populao reunida no terreiro.

    a torre de arzila, sendo implantada em pleno sculo XVi, assegurava valores de ostentao rgia, num perodo de vingana retrica, depois de ultrapassado o cerco de 1508. em 1515, erguia-se o paradigma formal desta tipologia na barra do tejo a torre de belm , uma implantao diversa do contexto inimigo e hostil do Norte de frica. a aproximao ao conjunto salientava duas estruturas. distncia, era o volume edificado claramente medieval que sobressaa, para a uma escala mais prxima e atenta revelar todo o simbolismo dos elementos que a compunham. em arzila transpor-tava-se a imagem da cidade para um universo de representatividade tardo--medieval tal como a torre de menagem do novo castelo de tnger cota baixa, construdo sob D. Joo ii, ainda no ltimo quartel do sculo XV, esta porm j nitidamente inserida num complexo arquitectnico que preconi-zava novas valncias de transio para a modernidade.

    as expresses arquitectnicas para-feudais, de forte carcter simb-lico, exibindo uma linguagem de um tardo-gtico militarmente eloquente em estruturas erudita e vocacionalmente cavalheirescas, de corpos slidos e despojados, prolongam-se e convivem com o pragmatismo que uma guerra sempre iminente ou presente impunha. foram castelos e torres de uma pro-paganda rgia que, num perodo em que a arquitectura militar e as tcnicas de guerra hesitavam perante os novos paradigmas de resistncia e ataque, se proclamava na segurana dos smbolos construdos ou esculpidos.

    3. ensaios de modernizao

    a importncia de um castelo de baixo em tnger para uma nova epis-temologia da arte de construir para a guerra, para uma identificao do apeli- dado estilo de transio na arquitectura militar portuguesa, central16. apesar de uma tendncia para dignificar a acrpole de tnger, atravs do seu castelo de cima como vimos atrs, a cidade registaria alguns movimentos internos que reforariam as posies junto rea porturia. outro castelo foi construdo sobre o porto, chamado castelo Novo ou de baixo, como que em oposio ao mais antigo existente no cimo da colina citadina. a existncia deste castelo durante o reinado de D. Joo ii (1481-1495) aparece descrita

    15 arZila, cit., p. 43. 16 sobre este assunto confrontar: Pedro de aboim inglez cID, a torre de s. sebastio da caparica e a arquitectura militar do tempo de d. Joo ii, Lisboa, edies colibri, 2007, pp. 132-133.

  • 18 Jorge correia

    como lugar de residncia de um governador em fim de mandato em alterna-tiva ao castelo Velho ou de cima, o qual tinha ento forosamente de aban-donar17. o edifcio situava-se a uma cota baixa da cidade, no sector nordeste, emergindo como uma estrutura defensiva e pragmtica que assegurava, no limite, a proteco aos abastecimentos em caso de cerco.

    ainda a mesma fonte iconogrfica produzida por braun18 destaca este castelo, a par com o de cima, como as duas construes mais representa-tivas de tnger. constava de uma torre quadrangular, coroada por um balco com guaritas nos ngulos sobre o qual assentava uma estrutura de madeira de forte pendente, coberta por telha. o interior surgia subdividido em pelo menos dois estratos assinalados por janeles. Dominado pela torre, o castelo articulava uma srie de panos amuralhados, cujas interseces angulares apareciam resolvidas por torrees redondos. abrigava no seu interior outras dependncias cobertas por telhados e pontuadas por chamins, de carcter manifestamente menos militar. atravs de perspectivas posteriores, pode avaliar-se na gravura o complexo do castelo Novo ou de baixo inicial, todavia sem o abrigo para atiradores que existira sobre a torre de menagem. esta assemelha-se tipologicamente de arzila e prxima de outras torres de castelos em Portugal, como beja19.

    a reconstituio global do castelo Novo ou de baixo, com a sua couraa, reclama da arqueologia urbana a estratigrafia correspondente a este perodo portugus. esboava uma planta tendencialmente pentagonal, com quatro dos cunhais marcadas por torrees circulares e o quinto coin- cidente com a torre de menagem. um desses torrees est actualmente rodeado por habitaes entre as ruas amsrak e sania, no bairro de dar Baroud. a fachada martima voltada para o porto encontrava-se acompa-nhada por uma barbac de altimetria menos elevada, cujo prolongamento para sul era interrompido por uma torrela com passagem atravs de dois portais opostos, apresentando aduelas chanfradas nos seus arcos de volta inteira, hoje pertencente a habitao particular. Devido ao desnvel do talude, a mesma suportava uma outra pertencente j aos amuralhamentos da cidade. barbac aquela que contornaria as restantes frentes do castelo, exibindo cubelos nos vrtices. a perspectiva distendida que a gravura de braun exibe, tpica da poca e comparvel do castelo de s. Jorge da mina 20, poderia

    17 D. fernando de mENEzEs (conde da ericeira), Historia de tangere, que comprehende as noticias desde a sua primeira conquista ate a sua runa, Lisboa, Na officina ferreiriana, 1732, p. 45. 18 figura 2. Ver nota 11. 19 as semelhanas formais revelam diferentes graus de erudio arquitectnica. assentam, sobretudo, na utilizao de uma defesa activa munida de balces ameados e de varandas/mata-ces nos ngulos do caminho de ronda para tiro vertical. acrescente-se que seria o prprio autor dos anais de arzila a sugerir tal comparao. cf. bernardo rODRIgUEs, anais de arzila: crnica indita do sc. XVi (Direco de David Lopes), 2 vols., Lisboa, academia das scincias de Lisboa, 1915-19, i, p. 63. 20 em muitos aspectos, este castelo joanino assemelha-se ao de so Jorge da mina, edi-ficado em 1482 no golfo da guin, principalmente ao nvel da sua disposio martima, pon-

  • DimeNses Da castelologia Portuguesa No Norte De frica 19

    fazer prever um castelo perfeitamente quadrangular, aspecto negado pelas representaes cartogrficas posteriores, onde a frente martima apresenta sempre uma inflexo 21.

    a recente presso imobiliria mascarou as principais linhas formais com que se desenhava o fosso que se abria em torno do castelo tangerino, mas algumas patologias construtivas ao nvel das fundaes tm sido detec-tadas em edifcios aparentemente localizados sobre a dita antiga vala, assim como diversos vestgios de provvel zona de despejo do castelo, foram encon-trados no seguimento daquela direco 22. a cava seria atravessada por ponte levadia cujo portal viria a ser remodelado por andr rodrigues, decnios mais tarde 23.

    4. o amadurecimento manuelino

    Ndulos amuralhados: cubelos, cubos ou baluartes

    a poltica de D. manuel i, o monarca da transio para Quinhentos, trouxe ao magrebe uma segunda campanha de atalhos, aplicados no s s mais recentes conquistas de safim e azamor, como tambm remodelao formal de parte ou da totalidade dos muros de corte que haviam definido as fronteiras portuguesas neste territrio no sculo anterior.

    Nas duas situaes, as muralhas de atalho apresentam duas caracte- rsticas transversais. Por um lado, do ponto de vista cronolgico, todas as operaes desenrolam-se num apertado intervalo de tempo, fosse pelas presses do rei de fez ou pela urgncia de manuteno de to preciosas conquistas abaixo do rio oum er-rbia. a distncia geogrfica vai trazer ao Norte de frica mestres diferentes s duas zonas de interveno, pronta-mente postos ao servio das obras em frica pelo monarca portugus. Por

    tuada por torres circulares e pela torre de menagem quadrada e parcialmente acompanhada por barbac. consultar: John VOgT, Portuguese rule on the golden coast, 14691682. athens, the university of georgia Press, 1979; r. mOREIRA, Histria das Fortificaes cit., pp. 103-108; J. batoora bAllONg-WEN-mEwUDA, a fortaleza de so Jorge da mina, oceanos, 28, Lisboa, comisso Nacional para as comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 1996, pp. 27-39 e P. cID, a torre de sebastio cit., pp. 129-130. 21 Destacamos desenhos em planta ou planta perspectivada do sculo XVii: tangier, de 1661 (british Library cXVii/80), description of tanger, de 1663 (tangier american Legation museum) e Piano di tanger situato nel str. di gibraltar (bibliothque Nationale de france ge. cc. 1262). 22 estas informaes foram recolhidas junto da populao local e proprietrios das resi-dncias e referem-se, em particular, s casas que definem o gaveto entre a rue sania e beco adjacente. 23 carta de andr rodrigues a d. Joo iii, tnger 8 de agosto de 1546 (iaN/tt, corpo cronolgico, parte i, mao 78, doc. 52), in f. sOUsA VITERBO, dicionrio Histrico cit., ii, p. 383: () tenho laurado hos trs portaes s ho da cidade que serue pra fora e hos dous pra ho castelo nouo todos de ctarya ().

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    outro lado, praticamente todas as remodelaes de troos de muro de atalho vo apresentar uma nova tipologia arquitectnica militar a esta regio de implantao portuguesa: a muralha dentada. inovao pr-abaluartada, aparece j aplicada nas muralhas de Vila Nova de Portimo em cerca de 1473 24, curiosamente o mesmo ano em que rodrigo anes surge frente das obras militares magrebinas, insistindo no modelo de cerca medieval e adiando, desta forma, a liderana do Norte de frica como laboratrio pioneiro de experincias inovadoras.

    ainda hoje possvel encontrar em arzila as obras que boytac traou, Danzilho construiu e que o primeiro voltaria a medir em 1514, ficando as medidas registadas num auto 25. a muralha sudeste descreve trs inflexes que, excepo da mais setentrional, so assinaladas por baluartes ou cubos. tambm em tnger se regista a transformao da cortina linear em trs troos interrompidos por dentes voltados no sentido ascendente da mura-lha. tipologia repetida no arranjo coevo do novo baluarte da ribeira com o qual a cortina do atalho define o ngulo sudeste daquela praa portuguesa.

    as intervenes dos irmos arruda utilizaram o mesmo dispositivo em azamor, onde a nova cortina do atalho quebrada sensivelmente a meio pelo baluarte e Porta da Vila que descreve uma profunda inflexo no sentido onde dispe duas bombardeiras para tiro rasante. Por fim, em safim, a tcnica empregue apenas no atalho norte, no local onde hoje ziguezagueia o Bordj Khazenet el Baroud, cuja salincia permite varrer uma extenso ligeiramente superior a um hectmetro de muro. Nas restantes praas, os valores permi-tidos ao flanqueamento por estes autnticos dentes de serra amuralhados situam-se entre os cinquenta e os cem metros, um clculo para um tiro com muito maior alcance que as seteiras verticais dos torrees semi-circulares dos primeiros atalhos, destinadas a arcos ou armas de fogo ligeiras.

    a torre circular ou semicircular das cortinas de atalho, afonsinas ou joaninas, registou uma consistente evoluo formal na transio de sculos, mas sobretudo nos princpios do sculo XVi. como tal, so as apropriaes, experincias e desenvolvimentos, introduzidos nas muralhas de trs vilas alccer, arzila e azamor e da cidade de safim, que concorrem para a caracterizao da fortificao dos ngulos das novas estruturas lineares.

    a nomenclatura das principais tipologias de pontuao dos lanos de muralha cubelos, cubos ou baluartes mistura-se e varia nas descries internas das prprias campanhas de obras, denotando a ponte que o manue-lino militar estabeleceria entre uma concepo medieval da arquitectura militar e a fortificao moderna. tendencialmente, arrumar-se-iam cubos ou cubelos em morfologias cilndricas, salientes em relao cortina amura-

    24 r. mOREIRA, Histria das Fortificaes cit., p. 94. 25 livro das medidas de arzila, alccer, ceuta e tnger, feitas por mestre Boytac e Bastio luiz em 1514, in iaN/tt, Ncleo antigo, n. 769, fls. 60-71.

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    lhada, munidas de seteiras que permitissem linhas de tiro rasantes quela e radiais para o exterior, e baluartes em plataformas pentagonais dimensio-nadas para artilharia de fogo26. Porm, no perodo das remodelaes dos muros de atalho, a realidade j classificava como baluartes as estruturas mais avanadas, apetrechadas por bocas de fogo de maior alcance, mas agarradas a formas ligadas a uma forte tradio de combate de proximidade. o emprego destas denominaes baralha-se nos trs primeiros lustros de Quinhentos desde os cubellos da couraa de alccer, em 1502 27, at ao cubo da dita couraa, no da mesma vila mas de arzila alguns anos mais tarde 28, onde antes j se chamava baluarte ao de tambalalo 29, aquele que estabelecia a separao entre o velho muro rabe e o novo atalho. alcanaria larga disseminao lingustica nas obras realizadas por Danzilho na mesma vila e pelos arrudas nas praas meridionais. so quatro as tipologias que predominam e que aqui sistematizamos:

    1) tambor cilndrico, semicircular ou ultrapassado em relao aos panos que nele se amarram, dependendo da sua colocao ao longo de um segmento ou num ngulo do permetro, respectivamente; so exemplos: o baluarte de s. cristvo, em azamor (figura 4), coroado por sistema para tiro mergulhante, semelhante torre da boreja j alterada pelos portu-gueses em mazago 30; os baluartes do tambalalo, da Vila ou de santa cruz e o cubo da couraa, em arzila, erguidos por Danzilho sobre desenho boyta-quiano; ou ainda o baluarte junto Porta de almedina, no atalho norte de safim;

    2) planta ultra-semicircular ou em u, que introduz um avano para o exterior do tronco cilndrico, conferindo-lhe maior aco na guarda e tiro; geralmente alamborado e marcado interiormente por um ou dois andares interiores para bombardas e superiormente por um parapeito vigilante por ameias e rasgado por seteiras para tiro de armas ligeiras, ergueu-se profu-samente nos estaleiros dirigidos pelos arruda: em safim, presentemente os Bordj naceur (figura 5), Boulkecita, amestouki, rouah e Khazenet el Baroud, e tambm em azamor, quer a meio do troo setentrional da vila, quer no extremo martimo do novo atalho;

    3) torreo prismtico, cbico ou paralelipipdico resultante do reforo das inflexes do desenho das muralhas de atalho; particularmente repre-sentativo o baluarte da Vila, charneira entre as vilas nova e velha de

    26 r. mOREIRA, Histria das Fortificaes cit., pp. 325 e 327. 27 instrues a respeito das obras da vila de alccer seguer, Lisboa 16 de Junho de 1502 e regimento a Pro Vaaz que vay a alccer fazer as obras dalcacer, Lisboa 22 de Junho de 1502, in as gaVetas da torre do tombo, 12 vols., Lisboa, centro de estudos ultramarinos da Junta de investigaes cientficas do ultramar, 1960-1977, V, pp. 213-217. 28 livro das medidas, fl. 70. 29 b. rODRIgUEs, anais de arzila cit., i, pp. 11-12. 30 o primeiro castelo de mazago, objecto de anlise mais frente neste artigo, foi tambm obra dos irmos Diogo e francisco de arruda em 1514.

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    Figura 4 azamor: baluarte de s. cristvo

    Figura 5 safim: muralha sul, junto ao Bordj naceur

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    azamor, encontrando pares no baluarte/cubo de antnio da fonseca, em arzila, ou no actualmente designado Bordj sidi el ghazi, em safim;

    4) planta em L ou estrutura em forma de esptula que se destaca do contorno fortificado como uma verdadeira mquina de guerra, defendendo pontos nevrlgicos do permetro murado, como a Porta de ceuta, em alccer ceguer, ou o sector noroeste de azamor, na forma do baluarte do raio; dife-rindo ligeiramente no seu desenvolvimento formal, aqui mais composto e trabalhado, surge o baluarte da Perna ou Pata de aranha 31 (figura 6), que, juntamente com o baluarte da couraa, protagonizam um sistema activo de pinas para a defesa da muralha martima de arzila.

    Figura 6 arzila: baluarte da Perna de aranha e torre de menagem

    Desamos para safim para a analisar desenvolvimentos particulares. executadas com alguma celeridade as principais frentes do atalho e de arranjo do pr-existente 32, quedavam, no entanto, por rematar as extremi-dades da cidade o castelo, voltado para o hinterland, e o porto, sobre a praia. urgia reparar a antiga kasbah moura, cujos muros ainda permane-ciam em taipa, e propunha-se a construo de dois baluartes nos cunhais onde aquela se articulava com os arranques dos novos muros do atalho

    31 Nos dias de hoje, este baluarte no revela a sua fora original devido sobreposio de um edifcio escolar, bem como do avano da plataforma ribeirinha. 32 carta de quitao de d. Manuel i referente a nuno gato, Lisboa 25 de maro de 1513: () de todo o dinheiro e cousas que recebeu pera o fazimento dos muros dos atalhos e casas da feitoria, e pera todalas outras obras () in arcHiVo Histricocit, iV, p. 478.

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    portugus. a soluo desenhava um castelo quadrangular, que substitusse a estrutura ancestral, e uma tipologia assimtrica, em que apenas a frente voltada para o campo exterior resultaria reforada com cubelos e cava. era imperioso que um castelo numa zona to afastada da baixa da cidade se tornasse mais forte e resistente e, como tal, absorvesse uma guarnio menor. apesar do impulso, ter-se-ia que esperar at 1540 para se atentar a concluso de uma pea nica das arquitecturas militares de safim: o grande baluarte da alcova 33, hoje Bordj dar (figura 7).

    abandonada a ideia de um remate construtivo imagem do castelo de baixo, insistindo numa repetio tipolgica presente nas cortinas do atalho da cidade, o baluarte do castelo de cima imps-se como ltimo grito de uma cidade que fora incapaz de dominar marrocos (marrquexe). tratava-se de uma estrutura em que apenas a escala desmesurada conseguiria esconder a sua condio obsoleta face ao gradual abandono da neurobalstica da acti-vidade militar. apontado ao interior do territrio, a grande estrutura semi-circular alcanava, no obstante, um dos seus objectivos: o temor. estaria engalanado por bandeiras pintadas com as armas reais e a cruz de cristo, hasteadas acima da linha de guaritas, tal como acontecia nos baluartes de s. cristvo ou do raio, em azamor, onde o grande nmero de suportes ainda visveis para o efeito demonstra bem a pompa pretendida.

    Figura 7 safim: Bordj rouah e Bordj ed dar, antigo baluarte da alcova

    Protagonista de um gesto tardio da arquitectura militar manuelina, o baluarte refinava-se no seu interior atravs de uma srie de galerias radiais divergentes em direco s bombardeiras, cobertas por abbada de canho 34.

    33 carta de d. rodrigo de castro a d. Joo iii, safim 24 de Junho de 1540 (iaN/tt, corpo cronolgico, parte i, mao 67, doc. 110), in les soUrces indites de lHistoire du Maroc, Premire srie Dynastie sadienne, archives et bibliothques de Portugal, Paris, 1948, iii, pp. 248-250. 34 idem: fazemdosse dabobada ffica a milhor pea que haver antre christos, e elle soo he bastante pera defemder toda ha cidade.

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    Para o exterior, o pesado volume parece desfasado em relao s aberturas das suas bocas de fogo. tiro tambm possvel de ameias e guaritas, numa frente de terra em que se explorava o escudo real como marcao clara de uma fronteira de poder. o grande obreiro do baluarte da alcova parece ter sido Loureno argueiro, pelo menos na empreitada final, mas desconhecido at ento.

    o valor representativo deste baluarte coloca um problema srio de discor- dncia formal em relao ao seu tempo. Quase em meados de Quinhentos, mais parece ser um exerccio de actualizao conceptual face s manifes-taes retricas da torre de menagem de arzila ou dos castelos de tnger. Por tal, mereceria ser includo num tempo medieval da construo portu-guesa no Norte de frica. todavia, o sistema radial de tiro atravs de cmaras e corredores abobadados eleva a sua condio de torreo amuralhado para a de proto-baluarte fortificado, inserido na tipologia de tambor cilndrico semicircular mencionada atrs.

    Para o fim desta abordagem aos episdios formais que interrompem por reforo os permetros amuralhados nas novas vilas e cidades portugue-sas ficou um dispositivo arquitectnico indispensvel sustentabilidade dos complexos acastelados portugueses nesta regio a couraa 35. No sendo um baluarte, representa-o sob a forma de prolongado brao fortificado sobre a gua. funcionando como quebra-mar, resguardo porturio ou defesa de porta, foi como espigo que se construiu na zona do albacar 36 de ceuta, filtrando a entrada do canal da cava ocidental, ou se lanou sobre o mar a partir do cubo da couraa em arzila, flectindo no sentido da vila. o conceito de couraa era mais denso e envolvia o levantamento de um torreo, geral-mente circular e tido como bateria de fogo horizontal, na extremidade anfbia para abastecimento, em caso de cerco terrestre, e plataforma de tiro avan-ado contra penetrao inimiga no porto. a couraa de tnger e a couraa voltada a sul de ceuta demonstram a regra que em alccer ceguer surge um pouco mais atavicamente como uma verdadeira porta para a metrpole, defendida por uma parelha de cubelos 37.

    35 sobre couraas, consultar: robert rICARD, couraa et coracha, alandalus, XiX, madrid-granada, csic, 1954, pp. 150-172, e carlos gOzAlBEs cRAvIOTO, Las corachas portu-guesas de alcazarseguer, cuadernos de la Biblioteca espaola de tetun, 15, ttuan, imprenta minerva, 1977, pp. 49-57, ou ainda o mesmo autor em Las corachas hispano musulmanas de ceuta, al Qantara, i, madrid, raycar s.a., 1980, pp. 365-383. 36 albacar: do rabe baqar; local onde se guardava o gado bovino noite ou se recolhia em caso de ataque inimigo. 37 a propsito deste tema de dupla porta artilhada, ver: P. cID, a torre de s. sebastio cit., pp. 126-128.

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    O programa de novos castelos

    se, por um lado, as morfologias relacionadas com as arquitecturas mili-tares praticadas no lanamento de cortinas amuralhadas e na sua pontuao por novos baluartes revelam importantes indcios de pioneirismo, inerentes a um contexto poltico capaz de responder s mudanas experimentais que se operavam na transio de sculos, mas sobretudo nos primeiros decnios do sculo XVi, por outro lado, a fixao em imagens atvicas relacionadas com construo de castelos e ereco de algumas torres de menagem sugere resistncias ao abandono de simblicas ultrapassadas.

    o encastelamento por novas edificaes ou adaptao das existentes constituiu, a par do atalho, um dos principais instrumentos de implantao da cidade portuguesa no Norte de frica. Pelo castelo passava a afirmao de um novo poder em enclaves no territrio inimigo, nos muros do qual se ostentavam as armas da coroa, smbolo de um domnio portugus ousada-mente subtrado a fez, marrocos ou sus. No castelo revia-se uma mole de moradores em terra estranha que identificava aquele reduto como salva-guarda defensiva da cidade ou vila adjacente.

    a pequena fortaleza de ben mirao 38, situada entre santa cruz do cabo de guer e o prprio cabo, inaugurava uma estratgia de implantao que viria a ser adoptada pela coroa portuguesa em latitudes meridionais da esfera magrebina e que se caracterizava pela construo de castelos satlites de apoio s ocupaes urbanas realizadas por conquista. o mesmo estratagema pode igualmente ser lido na costa setentrional, na qual a posse portuguesa das vilas de alccer ceguer e arzila funcionava como auxlio s cidades de ceuta e tnger, respectivamente.

    o castelo do mar em safim no aparece como uma novidade nos pontos da costa africana que os portugueses tocaram. Pelo contrrio, insere-se num programa vasto que de 1506 a 1519 dava incio s empreitadas de quatro castelos quadrados nas costas da Duquela e abda. o modelo terico parece ter sido aplicado em azamor, onde o atalho definiu um quadrngulo no topo norte da medina islmica. o castelo coincide com a prpria vila que se veio a traar no seu interior. tais propores generosas no se verificariam nos castelos edificados para sul pela seguinte ordem cronolgica: mogador, mazago, safim e aguz. se safim correspondia a um reforo militar do porto, os restantes trs castelos englobavam-se num investimento fundacional de entrepostos fortificados que, juntamente com ben mirao e santa cruz do cabo de guer, ensaiavam uma presena mais perene por estas latitudes do que as desastrosas e fugazes tentativas da graciosa e mamora o haviam feito a norte. Passemos em revista os quatro principais estaleiros.

    38 Jorge cORREIA, Notcia do castelo portugus de ben mirao, revista de Histria da arte, 2, Lisboa: instituto de histria da arte fcsh uNL, 2006, pp. 227-230.

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    Castelo Real ou Mogador

    em 1506, D. manuel i colocava Diogo de azambuja no comando de uma nova empresa fundacional na costa atlntica: a construo de um castelo no stio de mogador denominado castelo real 39, depois de j ter capitaneado os planos que levaram ao levantamento do castelo de s. Jorge da mina. a implantao correcta coloca a fundao do castelo portugus sobre o pro-montrio setentrional que define a baa. seguindo um plano de trabalhos normal, o castelo ter-se- edificado em pedra a partir de um primeiro esta-belecimento cercado em madeira. No ano seguinte dado como acabado em carta de quitao de D. manuel i 40.

    Pouco mais de quatro anos detiveram os portugueses o castelo em suas mos uma vez que, em finais de 1510, as tribos locais apoderaram-se da fortaleza em circunstncias desconhecidas 41. hoje nada resta do edifcio portugus. todas as indicaes que nos chegam acerca da implantao e forma do castelo so posteriores ao seu abandono.

    to curto perodo conduziu a um processo de fcil apropriao, desman- telamento e destruio do castelo portugus a posteriori. uma descrio de 1631 confirma a presena de um castelo forte, sublinhando a sua dimenso reduzida e o seu fraco estado de conservao 42. uma planta cartogrfica dos anos sessenta do sculo XViii aponta ainda o chteau portugus no local onde actualmente se abre o porto de pesca de essaouira 43. este desenho regista a situao imediatamente antes da interveno de thodore cornut, contratado pelo sulto alauta para o projecto de uma nova cidade e porto de mogador em 1764. o arquitecto francs chega mesmo a legendar nos seus projectos o antigo castelo construdo pelos portugueses, classificando-o como abandonado e em runa, adiantando, porm, a sua conformao em quatro faces constitudas por muros de seis palmos de espessura 44.

    39 algUns documentos do archivo nacional da torre do tombo, acerca das navegaes e conquistas portuguesas, Lisboa, academia das scincias de Lisboa/imprensa Nacional, 1892, p. 149. sobre as confuses acerca da localizao do castelo real, que o remetem para mazago ou para a ilha de mogador, consultar o esclarecimento: les soUrces cit., 1934, i, pp. 120-121. 40 arcHiVo Histrico cit., iii, pp. 472-473. 41 les soUrces cit., pp. 125-126. 42 relation du royaume de Marrocque et des villes qui en dependent, 1631, in les soUrces indites de lHistoire du Maroc, Premire srie Dynastie sadienne, archives et bibliothques de france, Paris, 1911, iii, p. 361. 43 isle de Mogador ses mouillages et son port Jacques-Nicolas bellin ca. 1760 (bNf ge DD 2987-8082). 44 les soUrces indites de lHistoire du Maroc, Premire srie Dynastie sadienne, archives et bibliothques de Portugal, Paris, 1934, i, p. 122.

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    Castelo de Mazago

    Passando um pouco revelia dos indcios ou episdios que preen-chem os antecedentes da efectiva implantao portuguesa neste ponto da costa magrebina, s em 1513, no seguimento da conquista da cidade vizinha de azamor, se tomou a deciso da construo de um forte, erguido por Diogo e francisco de arruda, no ano seguinte45. o duque de bragana, na refrega da tomada de azamor, pretendia estabelecer em mazago um baluarte avanado da praa azamorense com capacidade de armazenamento no seu interior e para defesa das excelentes condies porturias da baa 46. a obra de mazago haveria de avanar assim que azamor oferecesse condies de segurana suficientes para se bastar a si e empreitada a iniciar-se trs lguas para sul.

    os trabalhos de mazago lanaram, ento, uma planta quadrangular com cortinas a unir os quatro baluartes cilndricos que compunham o edif-cio. excluindo os torrees que intersectam a quadra nos ngulos, o castelo insere-se num quadrado de sensivelmente dezoito braas de lado pelo exte-rior. ainda hoje possvel perceber o castelo original, extraindo-o das depen-dncias que o foram preenchendo ao longo das dcadas seguintes, sobretudo aps a grande remodelao de 1541. os quatro grossos muros eram amea-dos, tal como os torrees, e apenas perfurados pela entrada original junto torre sudeste, voltada para azamor. esta torre, denominada al Boraydja, uma atalaia pertencente a uma rede de postos de vigia costeiros, actualmente identificada com a torre da (al)boreja do castelejo portugus, destacava-se pelo coroamento semelhante aos dos baluartes de s. cristvo e do raio, em azamor. Presentemente, a sempre lendria torre da boreja uma hbrida e recente estrutura de beto e tijolo. tambm comum a todos os baluartes era a sua distribuio vertical por dois pisos sob uma plataforma superior, munidos de bocas horizontais de bombardeiras para tiro radial (figura 8).

    a concluso do castelo foi bastante clere ao invs da lenta escavao do fosso que rodearia o castelo a uma profundidade de vinte palmos, todavia no terminado quatro anos mais tarde 47. o preenchimento do interior deste quadriltero, nos decnios subsequentes, discutvel. seriam estruturas de madeira que contornariam o permetro intramuros para abrigo de cavalos e militares, numa primeira fase, mas que gradualmente foram recebendo funes relacionadas com a gesto de uma vila espontnea que comeava a florescer extramuros.

    45 sobre este tema, destacamos o texto de rafael mOREIRA, a construo de Mazago. cartas inditas 15411542, Lisboa, iPPar/cPmL, 2001, pp. 31-36. 46 carta do duque de Bragana a d. Manuel i, azamor 30 de setembro de 1513 (iaN/tt, corpo cronolgico, parte i, mao 13, doc. 62), in les soUrces cit., pp. 438-442. 47 carta de antnio leite a d. Manuel i, mazago 22 de Julho de 1518 (iaN-tt, corpo cronolgico, parte i, mao 23, doc. 85), in les soUrces cit., 1939, ii, Premire partie, pp. 202-203.

  • DimeNses Da castelologia Portuguesa No Norte De frica 29

    Figura 8 mazago: runas de torre do antigo castelo manuelino, designada torre da cegonha

    foi essa vila e castelo que Joo de castilho, com Duarte coelho, foi inspeccionar em 1529, numa misso integrada de avaliao das praas portuguesas no Norte de frica 48. a iniciativa real desencadeou uma srie de consultas corte, constituindo-se como o prenncio da grande interveno de remodelao operada em mazago, transformando-a numa vila-fortaleza segundo um projecto de ruptura epistemolgica com a tradio arqui- tectnica, militar e urbana. a queda de santa cruz do cabo de guer em 1541 determinou o arranque da empresa que fez do fortim manuelino o epicentro de uma operao que permitiria manter mazago em mos portu-guesas at 1769, invertendo a sentena traada para a maioria das posses-ses lusas desta costa.

    Castelo do Mar em Safim

    Pelos mesmos anos, cerca de trinta lguas para sul, impunha-se um castelo sobre a calheta, que providenciasse a defesa do porto e do comrcio mercantil de safim. a ideia de um castelo de baixo que reflectisse as fun-

    48 frei Lus de sOUsA, anais de d. Joo iii, 2 vols., Lisboa, Livraria s da costa, 1951-54, ii, p. 85.

  • 30 Jorge correia

    es pelas quais a praa era economicamente vantajosa, situado junto via martima que comunicava com a metrpole, relegando o estatuto simblico de poder e de lana contra o infiel para o castelo de cima, na direco de marrocos (marrquexe), aparecia solicitado pela primeira vez ao monarca portugus em 1515, vindo as obras a comear um par de anos mais tarde 49.

    frente das obras da cidade surge, a partir de 1513, Joo Lus em substituio de Diogo de arruda, partido para azamor e mazago. Pedreiro e morador em safim, manteve-se no cargo at 1524 50. Viria a ser o super-visor do estaleiro do castelo do mar cujo projecto poder muito bem ter herdado das mos de arruda 51. tratava-se de um complexo edificado, inscrito numa planta que desenha um quadrado imperfeito de sensivelmente quarenta e cinco metros de lado. o regimento da obra de 1517, cuja descrio porme-norizada atesta a preservao at actualidade de algumas das estruturas fortificadas 52, permite comprovar as suas principais caractersticas (figura 9). estando naturalmente defendido pela falsia do lado martimo apresenta trs solues diferentes para a defesa dos ngulos e segmentos de terra: no cunhal nordeste, situa-se a porta principal do castelo aberta sobre a praia e protegida pela cidade uma entrada em cotovelo, defendida pela imponente torre de menagem; a estrutura da entrada interrompia o alinhamento esta-belecido entre a muralha meridional da cidade e o muro do castelo sobre a praia; desta torre quadrada era possvel o controlo do termo sul da cidade, da praa de armas do castelo, da Porta de guarniz e do trfego porturio; sob esta torre, rasgavam-se tambm as janelas mais trabalhadas dos aposentos do castelo: para norte, a fachada de representao retrica para a praia, o grande terreiro da cidade, bem reforada por uma fiada de bocas de fogo num estrato inferior saliente; para leste, o mesmo peso simblico abria-se sobre o campo; o canto sudeste assinalava-se de forma mais tradi-cional, atravs de um baluarte cilndrico, com um piso de bombardeiras imediatamente acima do forte alambor e outra superior cota da amarra-o com o caminho de ronda; as bocas de fogo disparariam sobre o serto e sobre os flancos; no topo do torreo, uma plataforma defendida por peitoril

    49 carta de d. nuno de Mascarenhas a d. Manuel i, safim 9 de Dezembro de 1516 (iaN/tt, carta dos governadores de frica, n. 37), in les soUrces cit., ii, Premire Partie, pp. 47-49. 50 f. sOUsA VITERBO, dicionrio Histrico cit., ii, p. 104. 51 Verglio correia e robert ricard atribuem a Diogo de arruda todo o plano de fortifi-cao de safim e, por inerncia, o projecto do castelo do mar, depois continuado pelos mestres sucessores. cf. cORREIA, 1923, 80-83; robert rICARD, sur la chronologie des fortifications portu- gaise dazemmour, mazagan et safi, in congresso do Mundo Portugus, Lisboa, [s.n.], 1940, iii, pp. 113-114. rafael moreira corrobora esta ideia, reforando a sua criao numa fase mais tardia da arquitectura militar manuelina. cf. r. mOREIRA, Histria das Fortificaes cit., p. 128. 52 regimento da obra do castello da cidade de afym, Lisboa 27 de agosto de 1517 (iaN/tt, Ncleo antigo, n. 16, Leis e regimentos de D. manuel, fls. 20-22v), in hlder cARITA, lisboa Manuelina e a formao dos modelos urbansticos da poca moderna (14951521), Lisboa, Livros horizonte, 1999, pp. 232-234

  • DimeNses Da castelologia Portuguesa No Norte De frica 31

    Figura 9 safim: vista area sobre o castelo do mar e rea meridional da cidade, 1925(Direction du Patrimoine culturel ministre de la culture et communication, marrocos)

    ameado permitia o tiro picado; ainda, o cunhal sudoeste possua uma exten-so de um pano de muro maneira de uma torre albarr, com torreo ciln-drico na extremidade, rasgado por arco quebrado para permitir a inundao da cava com a mar-alta; este dispositivo possibilitava a defesa e resguardo da Porta da traio do castelo situada do lado poente; finalmente, no inte-rior do castelo erguiam-se as dependncias de apoio porturio, directamente controladas pela administrao citadina armazns e celeiro, numa lgica de distribuio centrfuga onde ganhavam lugar de destaque as casas do alcaide-mor junto torre de menagem.

    Castelo de Aguz

    a foz do rio tensift, na margem direita do qual se ergue hoje a pequena povoao de souira Qedima, foi, desde o estabelecimento portugus em safim, cerca de vinte e cinco quilmetros a norte, um ponto costeiro cobi-ado por Portugal. estava em causa um melhor controlo da fronteira entre as regies de Duquela e abda, bem como o favorecimento de um xodo tribal do interior para o litoral, de marrocos para a proteco e domnio portu-gueses. a resoluo para a construo de um castelo de pedra e cal avanaria

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    a partir de 1519. D. Nuno de mascarenhas prope a D. manuel i uma obra em aguz, financiada pela coroa, mas organizada, orientada e defendida a partir de safim 53. Do mesmo ano data a missiva de D. Joo subtil, bispo da cidade, descrevendo o projecto para () hum castelo muy grande que fica de duas partes cercado do mar () 54 (figura 10).

    Figura 10 aguz: vista sul do castelo

    os vestgios que se encontram em souira Qedima, cujos lados leste e sul foram recentemente restaurados, confirmam formalmente a descri-o do bispo de safim mas atestam uma reduo para a metade exacta do plano inicial adiantado pelo bispo. ao contrrio das cento e trinta braas propostas 55, o permetro da obra realizada regista apenas sessenta e cinco braas, excluindo obviamente os dois tambores dos baluartes. trata-se de um castelo quadrado, com mais de trinta e cinco metros de lado, se tivermos em considerao os ngulos roubados pelos apenas dois baluartes cilndricos dos ngulos noroeste e sudeste. os muros so reforados inferiormente por forte alambor que na esquina sudoeste funciona como pego ou quebra-mar. a entrada efectuava-se pelo sector leste, ao abrigo do baluarte, para um interior que albergava as dependncias logsticas, defendido por um adarve

    53 carta de d. nuno de Mascarenhas a elrei a respeito da obra de aguz, safim 22 de maio de 1519, in as gaVetas cit., X, pp. 80-82. 54 carta do Bispo de safim a d. Manuel i, 11 de agosto de 1519 (iaN/tt, corpo cronol-gico, parte i, mao 25, doc. 10), in les soUrces cit., pp. 250-254. 55 idem: () e dentro na agoa de maneira que em cxxx braas de parede de comprido () ser todo sobre hua pedra e as cxxx braas fica de sartam. ().

  • DimeNses Da castelologia Portuguesa No Norte De frica 33

    corrido colocado a trinta e nove palmos do solo, atravs do qual se acedia ao parapeito de seteiras e ameias. os baluartes possuam bocas de fogo radiais, incluindo varrimento dos flancos, capazes de alojar artilharia mais grossa. em 1520, o castelo parece terminado pois o monarca portugus apresenta Duarte fogaa como prior da igreja de um castelo de aguz recm levantado e povoado 56. a histria perde o seu rasto por volta de 1524 ou 1525, certa-mente sucumbida perante as ameaas permanentes e crescentes do xerife meridional. mas o modelo parece ter permanecido no almanaque arqui- tectnico portugus, pelo paralelismo claro que estabelece com o castelo--artilheiro de Vila Viosa 57.

    5. Reflexo

    o castelo formava, juntamente com a vila 58, um dos dois principais e incontornveis sectores da composio da urbe portuguesa imposta sobre o conjunto urbano islmico. reflectindo a estruturao urbana muulmana subdividida entre alcova e medina, excluindo o(s) arrabalde(s) por razes bvias de conteno dimensional relacionadas com as operaes de atalho, a cidade portuguesa admite no processo de apropriao as vantagens inerentes manuteno de um equilbrio civil e militar, concentrando no castelo a tarefa administrativa e residncia do governador ou capito, bem como a retrica da coroa. excepo de azamor, todos os estabelecimentos portu-gueses sobre medinas muulmanas envolveram a formalizao de pelo menos um castelo independente.

    os complexos acastelados constituram uma das estruturas que mais mutabilidade registou numa perspectiva dialctica e integrada da presena portuguesa neste territrio. houve momentos em que no castelo se expe-rimentavam as mais recentes tcnicas de construo militar 59, permitindo

    56 cartas de apresentao para duarte Fogaa, vora 11 de outubro de 1520 (iaN/tt, chan-celaria de D. manuel i, livro 35, fl. 80 cpia da poca), in les soUrces cit., pp. 280-282. 57 cf. r. mOREIRA, Histria das Fortificaes cit., pp. 132-133 e John bURy, benedetto da ravena (c. 1485-1556), in a arQUitectUra Militar na expanso Portuguesa, catlogo da exposio, Lisboa, comisso Nacional para a comemorao dos Descobrimentos Portugueses, 1994, pp. 130-134. 58 Neste contexto deve-se entender vila no como denominao de um estatuto muni-cipal, por contraponto cidade, esta ento uma localidade sede de bispado, mas sim como parte baixa da cidade ou vila, rea de concentrao dos principais equipamentos pblicos e religiosos, assim como do tecido residencial. 59 escasseiam ainda estudos que aprofundem comparaes formais entre os castelos costeiros construdos pelos portugueses no Norte de frica e os castelos de plancie na metr-pole, principalmente os alentejanos com os quais a presena do mestre Diogo de arruda na regio estabelece uma ponte directa, podendo mesmo vir a desenhar um interessante trin-gulo de redes de contacto e conhecimento cientfico em que o terceiro vrtice se implanta em itlia, no ltimo quartel do sculo XV, junto a francesco di giorgio martini, entre outros. cf. r. mOREIRA, Histria das Fortificaes cit., pp. 106-107.

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    perpetuar uma ocupao cada vez mais isolada, mas tambm houve pero-dos em que a sua evoluo se deixou condicionar por elementos de repre-sentatividade ou por factores pragmticos de adaptabilidade. assim foi na primeira fase da apropriao das cidades conquistadas, como vimos atrs, independentemente do desfasamento temporal que se verifica entre todas as tomadas. as alcovas islmicas, j denominadas por castelos durante o assalto portugus, adquiriram rapidamente esse estatuto, instalando-se a o pao ou casa do governador ou capito da praa.

    o sentimento de renovao imperava e chegava mesmo a urgir em alguns casos em que se faziam sentir as insuficincias das arquitecturas aproveitadas face a uma envolvente diversa do passado que, entretanto, se tornara hostil. No entanto, na proximidade entre as praas setentrionais, todas vizinhas do ponto menos distante do reino, o estreito de gibraltar, poder-se- ler uma poltica de construo do castelo semelhante a uma exten-so do feudalismo enquanto modelo de ocupao das terras (re)conquistadas aos infiis, articulando-se numa rede regional com vista ao estabelecimento de uma defesa concertada 60. o castelo afonsino de tnger e a torre de menagem erguida em arzila por boytac, j durante a reforma manuelina, expressam visualmente a ideia. sintomticas de uma linguagem tardo--gtica, ambos os edifcios marcam irreversivelmente o skyline dos aglome-rados onde se implantam, exportando referncias conotadas com formas de residncia mais que com equipamentos militares.

    consequncia ou no da desarticulao registada entre imaginrio e realidade, foi do norte que sopraram novas linhas para a construo de castelos. se o castelo Novo ou de baixo, mandado erguer por D. Joo ii sobre o porto de tnger, insiste ainda numa representao iconogrfica semelhante a arzila, presa a um discurso medieval que se revia no seu cong- nere de cima, por outro lado, oferece baa no s uma frente de guerra passiva, atravs de uma exposio blica de dois lados amuralhados, como tambm se amarra a uma couraa, mquina avanada para artilharia atravs de troneiras cruzetadas.

    a vizinha alccer empreendia um programa semelhante apesar de consubstanciado morfologicamente de modo diverso. Dadas as reduzidas dimenses da vila, as obras passaram pela remodelao total da Porta do mar, na qual se haviam instalado os aposentos do capito at ento, e o lanamento de uma nova couraa que funcionava como alavanca de todo o projecto. surgiam novas plataformas de tiro de maior calibre, com a dotao de uma praa de armas (baluarte da Praia) no castelo por Danzilho, ou ainda em safim, onde um castelo de raiz foi levantado junto do porto castelo do mar o tal que Verglio correia apontara.

    60 Joo gouveia mONTEIRO, os castelos Portugueses dos finais da idade Mdia. Presena, perfil, conservao, vigilncia e comando, Lisboa, edies colibri, 1999, p. 21.

  • DimeNses Da castelologia Portuguesa No Norte De frica 35

    a completa destruio do castelo real de mogador impede a sua incluso num painel comparativo de castelos quadrados. todavia, ter formal- mente introduzido um modelo simples de implantao de novos castelos portugueses na orla magrebina que viria a ser adoptado nos anos seguintes. trata-se de um quadrngulo amuralhado, flanqueado, em todos ou em apenas alguns ngulos, por torrees ou baluartes cilndricos e no interior do qual se distribuam as dependncias militares, civis e/ou religiosas.

    o cruzamento escalar entre mazago, safim e aguz aproxima-os metri-camente, sobretudo no que ao espao livre interior, entre panos de muralha que unem baluartes cilndricos, diz respeito. as conformaes do permetro exterior, variveis pela existncia de baluartes nos ngulos, portas ou cunhais simples, dificultam uma comparao segundo estes vectores. assim, para o lado interior do quadrado, o intervalo de diferenas varia entre os trinta e um metros em aguz e uma mdia de trinta e sete metros em safim, pas-sando por uns intermdios trinta e quatro metros para o primeiro castelejo de mazago. tambm aqui no existiu uma regra de implantao rgida, porm a curta margem entre as catorze e dezassete braas denuncia um saber construtivo que coloca todos estes estaleiros perante um mesmo para-digma de edificao acastelada. seguramente que mogador no fugiria ao modelo uma vez que as descries antigas dos seus vestgios concorrem para uma tipologia cujas constantes assentam sobre a planta quadrada, murada e alamborada dos quatro lados, reforada nos ngulos por torrees cilndricos perfurados por bombardeiras nos estratos inferiores e ligados por segmentos ameados e perfurados por seteiras. as variaes registam-se ao nvel da elimi- nao de baluartes e a sua substituio por arestas ortogonais, pontuadas ou no por guaritas, e no preenchimento do interior pelas dependncias do castelo.

    Nestas linhas se define o essencial do castelo manuelino de carcter marcadamente militar que na metrpole se suavizava nas formas mais habi-tacionais de alvito ou voramonte, por exemplo. uns decnios depois da sua inveno, o forte costeiro fixava definitivamente a sua tipologia na plani-metria quadrada com cubelos redondos nos seus vrtices 61. Devido sua construo num contexto de apropriao de uma cidade pr-existente, o castelo do mar de safim acrescenta uma outra varivel a da presena de uma torre quadrangular desfasada das circunstncias fundacionais de mazago e aguz, estas mais austeras e que funcionariam como baluartes avanados de apoio s vizinhas azamor e safim, respectivamente. Persistia o tema da torre de menagem, porm depurada da carga simblica que arti-lhava e decorava as torres dos enclaves setentrionais e complementada por outros slidos baluartes, em semicrculo ultrapassado, inseridos num esquema global de planta quadrada. contudo, a mesma torre pode ser lida numa perspectiva integrada com as restantes fundaes manuelinas que

    61 r. mOREIRA, Histria das Fortificaes cit., p. 106.

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    floresciam no ndico. a tipologia quadrangular aplicava-se na construo de novos castelos como o de sofala, na costa oriental africana, ou o de calecute, na ndia, onde o recinto aparece tambm assinalado por altaneira torre. foi repetida e perpetuada durante todo o sculo XVi e at mesmo no seguinte, por vezes adaptada a recintos acastelados de permetro triangular, actuali-zada na escala e renovada com novas bocas de fogo e poder artilheiro 62.

    em marrocos, algumas vezes a estratgia passara por uma dupla com-binao de castelos. Por exemplo, safim apostou em dois castelos, um reaproveitado e outro ex novo, para o governo e defesa da cidade, o mesmo se passando dcadas antes em tnger, correspondendo porventura a uma opo poltica de implantao de dois castelos onde a extensa mancha urbana se debatia com topografias de relevo acidentado. em santa cruz do cabo de guer, onde o plano de fundao se empenhou apenas na cota baixa, negli-genciando o acastelamento do ponto alto sobranceiro, a vila foi facilmente tomada pelo xerife do sus. Dos erros se aprende e alccer ceguer tentou, nos anos seguintes, remendar uma circunstncia similar com a fortificao do seinal, uma elevao sobranceira vila, operao interrompida e suspensa no rescaldo da reavaliao da presena portuguesa no Norte de frica entre 1541 e 1550. Depois de quatro evacuaes, sobraram ceuta e tnger junto ao estreito e a nova vila-fortaleza de mazago para contarem uma nova histria de baluartes modernos, merles de seco parablica, de canhes; uma histria que renova a audcia construtiva portuguesa alm-mar perante os novos desafios da pirobalstica.

    62 cf. Jos manuel gARCIA, breve roteiro das fortificaes portuguesas no estado da ndia, oceanos cit., pp. 121-126; Pedro DIAs, as primeiras construes portuguesas na costa oriental da frica e no golfo Prsico (1503-1515), in iV siMPsio lusoespanhol de Histria da arte (actas), coimbra, instituto de histria de arte/universidade de coimbra, 1988, pp. 25-41.

  • aNais De histria De aLm-mar, Vol. iX, 2008, pp. 37-78

    homeNs e tartarugas mariNhas.seis scuLos De histria e histrias

    Nas iLhas De cabo VerDe

    por

    NUNO DE sANTOs lOUREIRO *mARIA mANUEl FERRAz TORRO **

    muitos tm sido os investigadores que se tm debruado sobre a histria de cabo Verde. Quase nenhuns se detiveram, mesmo assim, nas referncias presena abundante de tartarugas marinhas, nessas ilhas e nas suas guas costeiras. Na maioria dos casos porque as fontes histricas apenas do res-posta quilo para que so questionadas e s pesquisas temticas que, a partir delas, se desejam ver efectuadas

    as aluses presena de tartarugas marinhas nas guas costeiras e nas praias caboverdianas so, sem embargo, recorrentes, desde as primeiras descries de viajantes que aportaram ao arquiplago, no sculo XV, at actualidade. mas a irregularidade dessas notcias conduziu, provavelmente, a que no tenha ainda ocorrido uma tentativa para a sua sistematizao e orga-nizao, de forma detalhada e criteriosa. com o intuito de contribuir para a histria natural das ilhas de cabo Verde, entendeu-se agora que seria muito interessante traar um panorama sequencial das vrias fontes documentais que possvel recolher, sobre as tartarugas marinhas naquele arquiplago atlntico. a tarefa no foi simples, porque tais fontes se encontram dispersas em documentos avulsos, descries de viagem, memrias sobre as ilhas, etc., e as menes a tartarugas marinhas aparecem muitas vezes envergonhadas, quase tentando passar desapercebidas a um leitor menos atento.

    constituiu-se, e aqui se apresenta, um corpus documental o mais com-pleto possvel, mesmo com a mincia de quem compila no apenas fontes relativas a tartarugas marinhas em cabo Verde, mas tambm de quem se empenha em distinguir as diversas espcies de que existem notcias sufi-

    * universidade do algarve, faculdade de cincias e tecnologia. campus de gambelas, 8005-139 faro. e-mail: [email protected] ** instituto de investigao cientfica tropical, Departamento de cincias humanas. rua da Junqueira, n. 30, 1349-007 Lisboa.

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    cientemente explcitas. Qualquer investigador que queira, a partir de hoje, aprofundar o captulo sobre tartarugas marinhas, numa histria Natural das ilhas de cabo Verde, ter ao seu dispor uma slida resenha documental. mesmo assim, e embora se tenha percorrido exaustivamente um nmero considervel de fontes, no se pretende afirmar que nada mais existir de interesse sobre o tema; sero sempre bem vindos todos os futuros contri-butos que possam ampliar este corpus documental, a partir de agora facil-mente acessvel.

    uma lista muito preliminar de referncias histricas sobre a presena de tartarugas marinhas em cabo Verde tinha j sido apresentada por L. f. Lpez-Jurado et al.1, no ano de 2000. recentemente, L. f. Lpez-Jurado 2 identificou mais algumas, tentando alargar a resenha inicial. consolidou-se agora a compilao, com a ambio de, num nico texto, integrar todas as fontes documentais relevantes. Procuraram aqui enquadrar-se as relaes entre os homens e as tartarugas marinhas no seu contexto histrico, sem esquecer que cabo Verde foi, desde a sua descoberta e at a um passado recente, local de escala quase obrigatria para diversas rotas martimas. tal facto favoreceu um intenso intercmbio cultural que, frequentemente, extra-vasou a actividade mercantil. esta, por sua vez, teve enorme importncia em toda a vida no arquiplago, ao longo dos seus seis sculos de histria.

    Homens e tARtARuGAs mARInHAs num conteXto munDIAL

    cabo Verde no caso nico na predao humana de tartarugas mari-nhas, durante sculos, com enormes impactos na biodiversidade actual. a bibliografia sobre as relaes entre os homens e as tartarugas marinhas vasta, diversificada e abrange diversas pocas histricas e regies do Planeta. o depauperamento, ou mesmo desaparecimento, de inmeras populaes de tartarugas marinhas hoje um facto incontestvel, progressivamente reconhecido. Por exemplo, a tartaruga-verde (chelonia mydas, Linnaeus 1758), cuja populao reprodutora em cabo Verde j est extinta 3, foi mun-

    1 o presente texto dedicado ao Prof. Doutor Luis felipe Lpez-Jurado, da universidad de Las Palmas de gran canaria, espanha, verdadeiro pai da proteco das tartarugas marinhas em cabo Verde; sem os persistentes esforos de L. f. Lpez-Jurado, iniciados em 1998, a situao actual da conservao das tartarugas marinhas no arquiplago seria, sem dvida, muito pior. L. f. lpEz-JURADO, i. cABRERA, D. cEJUDO, c. evORA e P. AlFAmA, Distribution of marine turtles in the archipelago of cape Verde, Western africa in h. J. Kalb e t. Wibbels (comps.), Proceedings of the nineteenth annual symposium on sea turtle Biology and conservation, Noaa technical memorandum Nmfs-sefsc-443, 2000, pp. 245-247. 2 L. f. lpEz-JURADO, historical review of the archipelagos of macaronesia and the marine turtles in L. f. Lpez-Jurado e a. L. Loza (eds.), Marine turtles. recovery of extinct Populations, monografia 5, gran canaria, instituto canario de ciencias marinas, 2007, pp. 53-76. 3 L. f. lpEz-JURADO, i. cABRERA, D. cEJUDO, c. evORA e P. alFAmA, Distribution of marine turtles in the archipelago of cape Verde, Western africa in h. J. Kalb e t. Wibbels (comps.), Proceedings of the nineteenth annual symposium on sea turtle Biology and conservation, Noaa

  • homeNs e tartarugas mariNhas 39

    dialmente explorada para aproveitamento da sua carne, cartilagens, gordura, ovos, sangue e carapaas 4. muitas populaes de tartaruga-verde comearam a sofrer decrscimos na sua abundncia, desde tempos remotos, e as taxas de declnio agudizaram-se nas ltimas dcadas. escala mundial, a dimi- nuio oscilou entre 34 e 58%, durante as trs mais recentes geraes da espcie (141 anos), mas a quebra actual poder atingir valores superiores, entre 70 e 80% 5. as ilhas caimo (mar das carabas) so um dos exemplos mais paradigmticos da extino de uma populao de tartaruga-verde: em meados do sculo XVii comearam as capturas sistemticas nas praias e guas costeiras; no final desse mesmo sculo cerca de 13.000 animais adul-tos eram anualmente exportados para vrios destinos. em 1730 eram a principal fonte de carne consumida na Jamaica, levando a que, j no final do sculo XViii, a populao de tartaruga-verde tenha entrado em colapso. No incio do sculo XX extinguiu-se a espcie nas ilhas caimo 6.

    No senegal, em finais do sculo XViii e incios do seguinte, tambm se capturariam tartarugas marinhas. assim o ilustra uma gravura dessa poca referida por J. fretey 7, cuja legenda explica: senegal mouros e franceses ocupados na pesca de peixe e tartaruga. No entanto, ao contrrio da costa este da amrica central, para onde as fontes documentais so comprova-damente numerosas, na costa oeste de frica parecem ser muito escassas as fontes anteriores ao incio do sculo XX. Nas dcadas de 1960 e 70 est documentada 8 uma significativa presso de captura de imaturos de tarta-ruga-comum (caretta caretta, Linnaeus 1758) nas guas das ilhas da madeira

    technical memorandum Nmfs-sefsc-443, 2000, pp. 245-247. J. fRETEy, Biogeography and conservation of Marine turtles of the atlantic coast of africa / Biogographie et conservation des tortues marines de la cte atlantique de lafrique, cms technical series Publication, n. 6, bonn, uNeP/cms secretariat, 2001, pp. 71-87. 4 b. gROOmBRIDgE e r. LUxmOORE, the green turtle and hawksbill (reptilia: cheloniidae): world status, exploitation and trade, Lausanne, secretariat of the convention on international trade in endangered species of Wild fauna and flora, 1989. f. W. KINg, historical review of the Decline of the green turtle and the hawksbill in K. a. bjorndal (ed.), Biology and conservation of sea turtles, revised edition, Washington, D.c., smithsonian institution Press, 1995, pp. 183-188. 5 J. sEmINOFF, global status of the green turtle (chelonia mydas): a summary of the 2001 status assessment for the iucN red List Programme in i. Kinan (ed.), Proceedings of the Western Pacific sea turtle cooperative research and Management Workshop, honolulu, Western Pacific regional fishery management council, 2002, pp. 197-211. 6 f. W. KINg, historical review of the Decline of the green turtle and the hawksbill in K. a. bjorndal (ed.), Biology and conservation of sea turtles, revised edition, Washington, D.c., smithsonian institution Press, 1995, pp. 183-188. c. D. bEll, J. m. blUmENThAl, t. J. aUsTIN, J. L. sOlOmON, g. EBANKs-pETRIE, a. c. bRODERICK e b. J. gODlEy, traditional caymanian fishery may impede local marine turtle population recovery in endangered species research, 2 (2006), pp. 63-69. 7 idem, ibidem, p. 118. 8 L. D. bRONgERsmA, marine turtles of the eastern atlantic ocean in K. a. bjorndal (ed.), Biology and conservation of sea turtles, revised edition, Washington, D.c., smithsonian institu-tion Press, 1995, p. 409.

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    e, ocasionalmente, dos aores. o consumo humano de carne de tartaruga marinha, por um lado, e o embalsamento de animais para a produo de souvenirs tursticos, por outro, motivavam esta actividade artesanal ou, por vezes, semi-industrial. a utilizao de tartarugas marinhas na medicina tra-dicional e popular, em frica, parece ainda ser comum. uma breve recolha de elementos 9, que decorreu j nos primeiros anos do sculo XXi, no benim, camares, costa do marfim, gana, guin, guin-bissau, senegal e togo, evidenciou aprecivel diversidade de casos, tanto do lado dos produtos usados, como do das doenas que se pretendem curar.

    uma detalhada resenha de levantamentos zoo-arqueolgicos realizados na Pennsula rabe, no sudoeste dos e.u.a., no mar das carabas e na Penn-sula de Yucatn (mxico), foi compilada por J. frazier10. constatou-se, de forma sistemtica, a existncia de vestgios de captura e consumo de tarta-ruga-comum, de-pente (eretmochelys imbricata, Linnaeus 1766) e verde. em duas estaes arqueolgicas situadas na costa oeste do mxico, smith et al.11 encontraram ossos e fragmentos de carapaas de tartaruga-verde, possivel-mente de olivcea (lepidochelys olivacea, eschscholtz 1829) e de outras esp-cies de chelonnidae no identificadas. a abundncia de vestgios decrescia quando se evolua de depsitos mais antigos para intermdios, e praticamente desaparecia nos mais recentes. Na ocenia remota (Polinsia, micronsia e melansia) foram encontrados vestgios de captura e consumo de tarta-rugas marinhas12. Predavam-se, uma vez mais, tartarugas verde e de-pente, e os indcios mais antigos remontam a trs milnios a.c. em algumas ilhas havia a tradio de ser, o consumo de carne de tartaruga, um privilgio de lderes polticos e religiosos, e de homens ricos, mantendo-se sob controlo a predao humana de tartarugas marinhas. Noutras ilhas o consumo era livre. No entanto, nos dois tipos de ilhas e sociedades, a abundncia de tarta-rugas marinhas decresceu com o passar dos tempos e, em algumas situaes, extinguiram-se. De facto, eram outros factores, como a relao entre guas pouco profundas (sinnimo de disponibilidade de alimentos para as tarta-rugas marinhas), ou existncia de refgios seguros, e extenso de terra (ou nmero de predadores humanos), que desempenhavam a funo de regula-o decisiva para a sobrevivncia das tartarugas marinhas.

    9 J. FRETEy, g. h. sEgNIAgBETO e m. sOUmAh, Presence of sea turtles in traditional Phar-Presence of sea turtles in traditional Phar-macopeia and beliefs of West africa in Marine turtle newsletter, 116 (2007), pp. 23-25. 10 J. fRAzIER, Prehistoric and ancient historic interactions between humans and marine turtles in P. L. Lutz, J. a. musick e J. Wyneken (eds.), the Biology of sea turtles, vol. ii, boca raton, crc Press, 2003, pp. 1-38. 11 c. b. smITh, D. J. KENNETT, t. a. WAKE e b. VOORhIEs, Prehistoric sea turtle hunting on the Pacific coast of mexico in Journal of island & coastal archaeology, 2 (2007), pp. 231-235. 12 m. s. allEN, three millenia of human and sea turtle interactions in remote oceania in coral reefs, 26 (2007), pp. 959-970.

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    a. senz-arroyo et al.13, baseando-se em dirios datados do sculo XViii, dos piratas Woodes rogers [1711] e edward cooke [1712], e dos missionrios miguel del barco [1757] e Jos Longinos [1792], concluram que no golfo da califrnia existiam importantes populaes reprodutoras de tartarugas verde e de-pente. Nesses dirios encontram-se referncias a intensas capturas (mais de 100 fmeas apanhadas nas praias, por noite), tanto para consumo de carne e ovos, como para aproveitamento de escamas queratinizadas em artesanato, joalharia (ou bekko, em japons) e utenslios afins. No pre-sente, nessa regio j praticamente desapareceu a tartaruga-de-pente14. em guas no muito distantes, na costa oeste do mxico, tambm se concluiu que passaram, em menos de um sculo, da ordem dos milhes para apenas centenas de milhar15. No mar das carabas, analisando valores de diversas zonas, a. b. meylan16 chegou a concluso semelhante: em 22 de 26 zonas estudadas o decrscimo foi evidente, por vezes at ao limiar do colapso. Nas ilhas caimo, j acima referidas, ocorreu mesmo a extino17. em carta-gena das ndias (colmbia) h registo de ser distribuda carne de tartaruga para a alimentao de escravos, quando estes chegavam das costas de frica e aguardavam o momento de serem transaccionados18. No oceano atlntico, o declnio da tartaruga-de-pente foi da ordem de 80%, nas trs mais recentes geraes (105 anos)19. b. J. godley et al.20, nos territrios ingleses situados no mar das carabas e nas antilhas, confirmaram o quase colapso ou a extin-

    13 a. sENz-ARROyO, c. m. rOBERTs, J. tORRE, m. CARIO-OlvERA e J. P. hAwKINs, the value of evidence about past abundance: marine fauna of the gulf of california through the eyes of 16th to 19th century travellers in Fish and Fisheries, 7(2) (2006), pp. 128-146 (erratum: Fish and Fisheries, 7(3) (2006), p. 229). 14 J. a. sEmINOFF, W. J. NIChOls, a. rEDENDIz e L. bROOKs, occurrence of hawksbill turtles eretmochelys imbricata (reptilia: chelonidae), near the baja california Peninsula, mxico in Pacific science, 57(1) (2003), pp. 9-16. 15 K. clIFFTON, D. o. cORNEJO e r. s. fElgER, sea turtles of the Pacific coast of mexico in K. a. bjorndal (ed.), Biology and conservation of sea turtles, revised edition, Washington, D.c., smithsonian institution Press, 1995, pp. 199-209. 16 a. b. mEylAN, status of the hawksbill turtle (eretmochelys imbricata) in the caribbean region in chelonian conservation and Biology, 3(2) (1999), pp. 177-184. 17 c. D. bEll, J. L. sOlOmON, J. m. blUmENThAl, t. J. aUsTIN, g. EBANKs-pETRIE, a. c. bRO-DERICK e b. J. gODlEy, monitoring and conservation of critically reduced marine turtle nesting populations: lessons from the cayman islands in animal conservation, 10 (2007), pp. 39-47. 18 m. m. f. tORRO, De santiago para a costa da guin: a substituio do centro geogr-fico dos negcios e a manuteno da lite comerciante. as transaces da companhia de antnio fernandes Landim e de francisco Dias mendes de brito (1629-1630) in arquiplago