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ANÁLISE Referencial de Análise para a Estudo da Relação Trabalho, Mulher e Saúde Jussara Cruz de Brito* V anda D'Acri** *Pesquisadora Assistente do Ces- teh/ Ensp/ Fiocruz. ** Pesquisadora Assistente do Cesteh/ Ensp/Fiocruz, cedida pe- lo Inamps. Assim, todo o ser do homem, corporal e espiritualmente, pressupõe o da mu- lher... Jung Até aqui, temos vivido a civilização uni- sexual, a mulher não passou de especta- dora no cenário da vida. María Lacerda de Moura 1932 (...) A mulher nem patroa, nem escrava, nem femina nem angélica, nem asséptica nem messalina; mas a mulher amante e amada, que, recebendo no seu seio o novo gérmen, maturando-o na dor, con- sagrando-o com seu sangue, à huma- nidade, o milagre da vida para ela, nela e com ela, eternamente se renovando até o infinito. (...) doutro lado não queremos tão pouco a mulher máquina, a mulher besta de carga, a chamada governadeira. Josefina Bertacchi Terra Livre 1910 Este texto procura mostrar a importância da abordagem de gênero na construção teórica da área de Saúde do Trabalhador, uma vez que homens e mulheres são expostos a condições de trabalho diferenciadas no processo produtivo. No caso das trabalhadoras, destaca-se a conjugação do capitalismo e patriarcalismo como determinantes da opressão feminina nas relações hierárquicas do trabalho, assim como a responsabilidade social oculta do trabalho doméstico, realizado na esfera do privado, o que distancia a mulher do mundo social e político e gera fortes impactos à sua saúde. Pela divisão sexual do trabalho, são reservadas às trabalhadoras, na indústria, as tarefas mais repetitivas e que exigem grande resistência nervosa condições que não são

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ANÁLISE

Referencial de Análise para a Estudoda Relação Trabalho, Mulher e Saúde

Jussara Cruz de Brito*V anda D'Acri**

*Pesquisadora Assistente do Ces-teh/ Ensp/ Fiocruz.** Pesquisadora Assistente doCesteh/ Ensp/Fiocruz, cedida pe-lo Inamps.

Assim, todo o ser do homem, corporale espiritualmente, pressupõe o da mu-lher...

Jung

Até aqui, temos vivido a civilização uni-sexual, a mulher não passou de especta-dora no cenário da vida.

María Lacerda de Moura — 1932

(...) A mulher nem patroa, nem escrava,nem femina nem angélica, nem assépticanem messalina; mas a mulher amante eamada, que, recebendo no seu seio onovo gérmen, maturando-o na dor, con-sagrando-o com seu sangue, dá à huma-nidade, o milagre da vida para ela, nelae com ela, eternamente se renovando atéo infinito.

(...) doutro lado não queremos tão poucoa mulher máquina, a mulher besta decarga, a chamada governadeira.Josefina Bertacchi — Terra Livre — 1910

Este texto procura mostrar a importância daabordagem de gênero na construção teórica da áreade Saúde do Trabalhador, uma vez que homens emulheres são expostos a condições de trabalhodiferenciadas no processo produtivo. No caso dastrabalhadoras, destaca-se a conjugação do capitalismoe patriarcalismo como determinantes da opressãofeminina nas relações hierárquicas do trabalho, assimcomo a responsabilidade social oculta do trabalhodoméstico, realizado na esfera do privado, o quedistancia a mulher do mundo social e político e gerafortes impactos à sua saúde. Pela divisão sexual dotrabalho, são reservadas às trabalhadoras, naindústria, as tarefas mais repetitivas e que exigemgrande resistência nervosa — condições que não são

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especialmente saudáveis e que implicam um padrãoespecífico de desgaste. Concluímos que sãonecessárias mudanças nos planos da vida social, alémda ruptura das crenças que sustentam a divisão sexualdo trabalho, para que se transformem as condiçõesagressivas impostas à saúde dos homens e mulheres,no processo de trabalho.

INTRODUÇÃO

Entender a questão da saúde das trabalhadoras— nas suas raízes — é o desafio que enfrentamos.Nesse terreno, muitos pontos precisam ser conside-rados: a diferença e identidade feminina (biológicae social), a divisão sexual das técnicas, o trabalhoprodutivo e reprodutivo, assim como a relação entreo capitalismo e o patriarcalismo, expressa nas formasde controle da produção, segundo a condição de gê-nero.

A saúde, no seu conceito amplo, não se reduzao biológico, mas é também o conjunto de fatoresligados às condições de vida, à possibilidade de lazere de participação significativa no coletivo. Esses fato-res apresentam-se diferenciados, conforme o sexo dostrabalhadores. Baseando-nos nessa concepção é queentendemos que, para o estudo da saúde da mulhertrabalhadora, é necessário delimitar os condicionantesbiológicos — não-redutíveis à fecundação, menstrua-ção, gestação e amamentação — e somá-los à esferacoletiva e social.

O PATRIARCALISMO E O TRABALHO

A diferente alocação dos gêneros na divisão se-xual do trabalho reporta ao patriarcalismo como pontode referência. É importante observar a imbricação dosdiversos aspectos que vêm sendo estudados, para seter uma visão mais totalizante da questão da mulhertrabalhadora.

O patriarcalismo, que tem a característica de esta-belecer o poder masculino, é resultado de um processohistórico que pressupõe condições ideológicas para seuestabelecimento e manutenção. Nas sociedades patriar-cais, o masculino e o feminino são tidos como superiore inferior. Essa construção baseia-se em diversos siste-mas filosóficos e nos mitos de origem dos seres huma-nos construídos por várias civilizações. E da relaçãopatriarcal que o homem emerge como principal ganha-

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-pão familiar e a mulher como trabalhadora comple-mentar — tendo na reprodução da família seu principalcampo de atividades, partindo daí a própria construçãode sua identidade (Pena, 1981).

A família organiza os recursos procriativos damulher e tanto o trabalho doméstico quanto sua fertili-dade consistem em mecanismos de operação de repro-dução da força de trabalho e das relações sociais e,portanto, do processo de acumulação capitalista. Asujeição da mulher ao homem não se originou no capi-talismo, porém, nesse sistema, tornou-se mais viru-lenta e devastadora na separação entre espaço públicoe espaço privado. As mulheres recebiam salários maisbaixos que os homens, na suposição patriarcal de queparte de seus custos de reprodução estariam cobertospelo salário dos homens. Com a expansão capitalista,novas formas de extração de valor desenvolveram-se,utilizando-se a divisão sexual do trabalho como pontode partida (Pena, 1981).

Para melhor entendimento, Andrée Kartchewsky(1986) cita a necessidade de se encarar a divisão socialdo trabalho como relação de classes e entre sexose de se ter a compreensão do trabalho como atividadeprofissional e atividade da esfera doméstica. Quantoa participação desigual no trabalho de homens e mulhe-res, diz que a utilização da força de trabalho destinaas mulheres às categorias menos remuneradas, acres-centando que esse problema se refere mais ao estatutosocial das mulheres do que à sua vinculação a determi-nada categoria profissional. Tal afirmação é compro-vada desde a incorporação da mão-de-obra femininaao mundo industrial até os dias atuais.

Marilena Chauí (1980: p.61), citando Marx e En-gels, na Ideologia Alemã, faz a seguinte colocação:a divisão social do trabalho não é uma simples divisãode tarefas, mas a manifestação de algo fundamentalna existência histórica, a existência de diferentes for-mas de propriedade, isto é, a divisão entre as condi-ções e instrumentos ou meios de trabalho e do própriotrabalho, incidindo por sua vez na desigual distribui-ção do produto de trabalho. Numa palavra: a divisãosocial do trabalho engendra e é engendrada pela desi-gualdade social ou pela forma de propriedade.

Assim, da mesma forma que a essência da divisãosocial do trabalho é a desigualdade, dividindo a socie-dade em proprietários e não-proprietários dos meiosde produção, a divisão sexual do trabalho distribuios gêneros para atividades desiguais, onde umas sãomais valorizadas que as outras, entre o mundo da pro-dução e o da reprodução. A permanência dessa frag-mentação entre o mundo do trabalho e o mundo domés-tico tem como uma das causas fundamentais a ideolo-gia, que oculta a diferenciação entre a biologia e a

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história, privilegiando o papel reprodutivo feminino,em detrimento da sua intervenção no mundo social.

A colocação de Maria Cristina situa esta fragmen-tação: No final do século XIX, com a Revolução Indus-trial, o trabalho passou a ser dividido em duas esferasdistintas, de um lado a unidade doméstica, de outroa unidade de produção. A essa fragmentação corres-pondeu uma divisão sexual do trabalho, cabendo aohomem o trabalho produtivo extralar, pelo qual passoua receber um salário, enquanto à mulher coube princi-palmente a realização das tarefas relativas à reprodu-ção da força de trabalho, sem remuneração (Bruschini,1982, p10).

Na compreensão da ideologia é que podemos en-tender a "perpetuação" dessa prática social, pois éna separação entre o trabalho material e o espiritualque a divisão social do trabalho se completa, dandolugar ao nascimento das ideologias, entendidas comoum sistema de representações de normas e de regras,separadas das condições materiais, pois os teóricos,ideólogos e intelectuais não estão vinculados à produ-ção material das condições de existência. Dessa forma,como a consciência está indissociavelmente ligada àscondições materiais da produção da existência, as rela-ções sociais são apresentadas como coisas em si, exis-tentes por si mesmas e não como conseqüência dasações humanas. Aparece como um dado natural, neces-sário e eterno, e não como resultado da praxis humana(Chauí, 1980).

Relacionando a ideologia e o trabalho domésticona sociedade, Maria Cristina Bruschini faz a seguinteconstatação: a ideologia transformou a rígida divisãosexual do trabalho em uma divisão natural, própriaà biologia de cada sexo. A mistificação do papel deesposa e mãe concretizou-se mais facilmente na medidaem que casa e família passaram a significar a mesmacoisa, apesar de na verdade não o serem; enquantoa casa é uma unidade material de produção e consumo,a família é um grupo de pessoas ligadas por laçosafetivos e psicológicos. Como afirma Marilena Chauí,a contradição entre a vida doméstica e a vida emfamília pode, no caso das mulheres, legitimar a natura-lidade do trabalho doméstico como se ele fosse umtrabalho para a família e não um trabalho da casae, portanto, um trabalho que já é social (Bruschini,1982, p.10).

A discussão em torno do trabalho doméstico en-volve a própria necessidade de compreender a sua posi-ção a nível do social, o que ele encobre através dosserviços prestados, isto é, o ocultamento dos seusbenefícios, permitindo-nos, dessa forma, ter algunspontos de reflexão de uma atribuição tão peculiar aogênero feminino. Para Maria Valeria Pena, o trabalho

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masculino e feminino são categorias importantes nãoem função da natureza técnica, mas em função dasrelações hierárquicas que envolvem. Sobre o trabalhodoméstico, a autora considera-o como uma atividadereprodutiva, pois, através dele, a mulher cria valoresde uso, pelos quais trabalhadores e herdeiros sobrevi-vem rotineiramente.

As mulheres servem duplamente ao capital, atra-vés de sua força de trabalho trocada abaixo de seuvalor e, também, através do trabalho doméstico, quepossibilita que uma massa de trabalhadores cheguediariamente às fábricas, usinas, escritórios, lojas e ar-mazéns (Pena, 1986). Ao pensar a produção e a repro-dução como interligadas, Daniele Combes, (1986, ps.24 e 25) diz que "em toda formação social coexistemuma produção social de bens e produção de seres huma-nos... a produção e reprodução são indissociáveis, nãose pode pensar uma sem a outra, uma é a condiçãoda outra".

Pensar o trabalho doméstico nos remete a algunspontos que precisam ser aprofundados, tais como: olocus feminino construído na sociedade, pelo imaginá-rio social, no qual se tem a definição básica da mulhercomo pertencente a uma dinâmica alheia, como serdo lar, da família, do casamento, da maternidade (Pao-li, 1985, p. 86), como um ser cuja identidade estádada, determinada socialmente para essas funções, umaidentidade que não precisa ser desenvolvida.

Quando Pena diz que o trabalho doméstico estáno cerne da opressão feminina, entendemos que istodiz respeito ao fato de ser uma responsabilidade indivi-dual, familiar, que não se pode abstrair, necessáriaaos seres humanos, aos trabalhadores, uma responsabi-lidade social oculta, que o sistema econômico nãopode dispensar e que permanece ao nível do privado.

Marilena Chauí usa o conceito de Hanna Arendt,para quem o espaço do privado é o espaço da privaçãoe não da privacidade e da intimidade, privação darelação com os outros pela palavra e pela ação naconstrução e nas decisões concernentes ao mundo co-mum, isto é, a existência política (Chauí, 1985, p.33). A autora refere-se ao lugar dos trabalhadores nasociedade atual como pertencente a este espaço.

A alocação do trabalho doméstico na esfera doprivado coloca a mulher numa dupla opressão, a decidadã, como trabalhadora, e a de gênero feminino,como responsável pelo trabalho da casa, que a distân-cia da produção, da vida social e política.

Sabemos da dificuldade de se refletir sobre o tra-balho doméstico. Pode ser fonte de prazer em suarealização, na opção de fazer seu próprio alimentoou da família, na organização e arrumação da casa,no cuidar das crianças. Apresenta-se de diferentes for-

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mas, ou seja, a penalização para as mulheres dependeráda classe social a que pertence, do número de pessoaspara auxiliá-las, dos aparelhos eletrodomésticos quedispõe para a execução das tarefas e, principalmente,do número de pessoas na família, e a faixa etáriadelas, como crianças e pessoas idosas. Portanto, oimpacto deste trabalho tem uma interferência decisivana vida pessoal e profissional das mulheres, afetandosua saúde, sobretudo pela configuração de uma duplajornada.

Do que foi exposto a respeito da função socialdo trabalho doméstico fazemos algumas reflexões. Elepode ser uma atividade a ser dividida entre homense mulheres e não apenas um atributo feminino, cons-truído ideologicamente. Quanto à sua natureza social,na proposta apresentada por José Oiticica (1983) rela-tiva a uma comuna anarquista, há a referência aoscuidados com a casa e com as crianças como preocupa-ção do social — incluindo aí as cozinhas e as lavande-rias coletivas, o que poderia contribuir para modificaro distanciamento das mulheres, do mundo da produção,do mundo político e social e, principalmente, possibi-litar melhores condições de saúde para as trabalha-doras.

Portanto, a realização feminina não se dá apenasno mundo da reprodução, mas através da sua atuaçãona sociedade e do seu desenvolvimento pleno comopessoa, uma luta comum aos dois sexos.

OS "GUETOS" FEMININOS

Um dos fatores que condiciona a saúde da mulheré a sua posição no processo de produção — o postode trabalho que ocupa. Essa abordagem inscreve-seno entendimento de que os perfis de morbi-mortalidadesão determinados pela relação capital/trabalho, segun-do as diferentes classes sociais e suas frações, bemcomo em função do sexo da força de trabalho. Comodiz Kergoat (1982):

A organização técnica e social do trabalho variasegundo se trate de uma fábrica de homens oude uma fábrica de mulheres e, mais do que isso,as relações de força capital/trabalho não sãoas mesmas, segundo o trabalho se conjugue nofeminino ou masculino.A definição da área de "Saúde do Trabalhador"

implica, em primeiro lugar, o estudo e a atuação práticareferentes às múltiplas situações que afetam as condi-ções de saúde dos trabalhadores e que são produzidaspelas condições e processo de produção (determinantesdo processo saúde/doença) (Tambellini et alii: 1987).Homens e mulheres são afetados por situações diferen-ciadas nos processos produtivos e, portanto, a questão

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de genero deve ser vista como um elemento funda-mental na elaboração do marco teórico e metodológicodessa área de conhecimento. Se o trabalhador brasileiroestá exposto a um quadro sanitário perverso no seuambiente de trabalho, às mulheres não estão reservadasalocações particularmente saudáveis e isentas de riscoà sua saúde.

Ao contrário, como resultado da idéia tão difun-dida de que mulheres e homens não podem realizartarefas iguais devido às diferenças biológicas, ambosos sexos tornam-se oprimidos nas suas possibilidadesde expressão e encontram-se aprisionados em padrõesespecíficos de desgaste. Os guetos femininos e mascu-linos são exatamente os setores de produção e os pos-tos de trabalho, em diversos setores, que concentrampessoas do mesmo sexo. As trabalhadoreas parecemser as maiores vítimas dessa forma de segregação, mui-tas vezes com a justificativa de que estão excluídasde tarefas danosas à sua saúde.

No entanto, como nos adverte Messing (1987),o mito de que a alocação nos postos de trabalho respei-ta as características biológicas serve aos emprega-dores para justificar baixos salários e tarefas entedian-tes para as mulheres e a exposição dos homens aosaltos riscos e condições assustadoras de trabalho. Per-cebe-se, com essa observação, a necessidade de seconsiderar os grupos sexuados na pesquisa em Saúdedo Trabalhador, pois a lógica da divisão sexual dotrabalho interfere diretamente nas condições de vidae trabalho das pessoas.

Podemos aqui lembrar do Taylorismo e do Fordis-mo, como sistematizadores e divulgadores de princí-pios que orientam até hoje a sociedade industrial e,por serem apontados como inquestionáveis e científi-cos, dificultam a visualização dos conflitos nos proces-sos de trabalho. Com o Taylorismo se estabelece aseleção das "pessoas certas para os postos certos",além de seu treinamento apropriado (ou reduzido).Com o Fordismo esse ideal é perseguido, com maisdeterminação, pelos princípios da "economia de pensa-mentos e movimentos" e da "decomposição" dos cor-pos quanto à sua funcionalidade, no aproveitamentodas partes (muito) produtivas de deficientes, o queos tornaria mais precisos e rápidos. Essa fragmentaçãode atributos e de corpos, que só beneficia a produção,atinge claramente as identidades feminina e masculina.

Entender o trabalho feminino pode ser o pontode partida para desvendar a dinâmica da divisão eopressão dos seres, a partir de sua identidade sexual.Vejamos, então, o que acontece com a mulher.

No Brasil, mais da metade da população femininaeconomicamente ativa está concentrada nas funçõesde trabalhadoras rurais (22,9%), de escritório (12,4%),

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de empregadas domésticas (9,8%) e como costureiras(6%) (IBGE). São categorias profissionais que guar-dam características próximas ao trabalho doméstico— poderíamos mesmo dizer que são variantes ou exten-sões deste, Muitos autores se reportam à constataçãoque o trabalho doméstico, em vários países da AméricaLatina, América do Norte e Europa, é a principalbase de formação das mulheres para o trabalho assala-riado (Shaw, 1981). O vínculo entre o trabalho domés-tico e o assalariado está nas habilidades desenvolvidasno âmbito da casa e utilizadas no escritório, na indús-tria, e na agricultura, sendo consideradas habilidadesnaturais femininas e não qualificações adquiridas du-rante anos de experiência numa "escola" informal eque não dá diploma:

A utilização da mão-de-obra feminina é em fun-ção de sua inserção específica na esfera da re-produção. (...) A fábrica recruta as operáriasmuito jovens, com fraca bagagem escolar, porémjá com grau de formação doméstica. Se elas ad-quirem uma formação profissional, é nas escolasde costura ou culinária que recebem sua inicia-ção nos ramos correspondentes e uma disciplina,habilidade e gosto pelo trabalho muito apreciadonas indústrias mecânicas e elétricas (Shaw,1981).

De qualquer maneira, a destreza manual (precisãomotriz, agilidade digital e delicadeza gestual), a mono-tonia e a atenção a vários sinais (controle visual, audi-tivo e tátil), entre outros exemplos, são exigênciaspredominantes no trabalho feminino — doméstico ouassalariado. Entendê-las como competências naturaisdas mulheres é um passo certo para desvalorizar otrabalho feminino, para a manutenção de divisão sexualdo trabalho e para mascarar o desgaste gerado nessascondições. Na indústria, a postura estática, a cadênciaelevada, as tarefas muito parceladas, exigindo granderesistência nervosa, com duração limitada do ciclo detrabalho, utilização de pequeno número de músculose pouca amplitude de movimentos, são constantementeencontradas nos postos de trabalho ocupados pelasmulheres (Shaw, 1981).

Para uma mesma classe profissional (OE — operá-rios/as especializados/as e OQ — operários/as qualifi-cados/as), uma enquete do Ministério do Trabalho daFrança indica que a carga de trabalho varia sensivel-mente segundo sexo, como mostra a tabela seguinte(Kergoat, 1987, p. 42):

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Ao compararmos os índices, que expressam situa-ções de quase imobilidade e repetição de movimentosiguais na execução das tarefas, ficam evidentes asdiferenças da participação dos sexos nos processosde trabalho, mesmo quando se trata do mesmo grupode profissionais. Sabe-se que a repercussão, a nívelbiológico, do trabalho muscular estático está relacio-nada à fadiga, pela contração e ausência de relaxa-mento dos mesmos músculos. Por outro lado, não po-deríamos deixar de focalizar o sentido disciplinar queexiste no controle e robotização do corpo, com a redu-ção da possibilidade de movimentar-se com liberdadee espontaneidade. E a dominação capitalista da sexua-lidade, em última instância: a sujeição das mulheresatravés do corpo e através da hierarquia. Relatos detrabalhadoras do setor de embalagem de uma impor-tante indústria de produtos químicos do Rio de Janeiroapontaram essa "contradição": enquanto todas as fun-cionárias do setor são mulheres, a chefia é compostapor homens.

Mesmo com mudanças tecnológicas, a divisão se-xual do trabalho permanece: pela apropriação da esferatecnológica pelos homens e a construção social dofeminino como incompetente tecnicamente (Hirata eRogerat, 1988). A mão-de-obra feminina diminui, pro-gressivamente, nos setores de confecção e amplia-seem outros, como, por exemplo, na metalurgia. Masas novas tecnologias não suprimem o interesse pelasqualificações obtidas na esfera doméstica: a capacida-de de atenção e vigilância, ligada a uma certa capaci-dade de passividade são necessárias dentro de certospostos automatizados femininos (Hirata e Rogerat,1988).

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A interessante análise citada por Capra (1988,p. 183), sobre a afinidade entre feminismo e ecologia,revela outra face do domínio Yang da tecnologia, im-plicando concepções tecnológicas perversas:

Fiquei muito impressionado com essa análise,que expõe um elo crucial e assustador entre aciência mecanicista e os valores patriarcais, epude perceber o tremendo impacto do "espíritobaconiano" em todo o desenvolvimento da ciên-cia e da tecnologia modernas. Desde o tempodos antigos, as metas da ciência sempre haviamsido a sabedoria, a compreensão da ordem natu-ral e a busca de uma nova vida em harmoniacom essa ordem. No século XVII, porém, essaatitude transformou-se radicalmente na atitudeoposta. A partir de Bacon, o objetivo da ciênciatem sido o de um conhecimento que possa serusado para dominar e controlar a natureza, ehoje tanto a ciência quanto a tecnologia são usa-das predominantemente para fins deletérios, no-civos e profundamente antiecológicos. (...) Desdea ascensão da ciência mecanicista, explicou Mer-chant, a exploração da natureza tem se processa-do lado a lado com a exploração das mulheres.Assim, mediante a antiga associação entre mulhere natureza, podemos estabelecer um elo entrea história das mulheres e a história do meioambiente, um elo que mostra o parentesco naturalentre o feminismo e a ecologia.

Estudos de casos com categorias específicas têmcontribuído para se desenhar um quadro mais detalhadosobre as condições de trabalho, segundo o sexo. A"falta de identidade do que é feito", associada à exi-gência de disponibilidade constante, paciência, silen-ciosidade e autocontrole, à sensação de enclausura-mento e de espaço invadido e à subordinação a muitos,foi a imagem construída pelas funcionárias de escritó-rio de uma instituição governamental, do Rio de Janei-ro (Brito e Almeida, 1990). A produção do trabalhodoméstico — os resultados e produtos sociais gerados— não é assimilada por esse grupo, embora seja fre-qüente a extensão de jornada nos períodos noturnos,fins-de-semana e feriados. A vivência da maternidade,da gravidez e, principalmente, da amamentação, mui-tas vezes parece não ser plena, como se o trabalho"de fora", necessariamente, implicasse a negação des-ses trabalhos femininos. Está implícita uma condiçãode opressão interiorizada — "ou eu sou mulher ousou trabalhadora" — e uma inferiorização dos seusatributos.

Essa reflexão leva-nos a pensar no problema dacostituição do coletivo formado pelas trabalhadoras

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— grupo sexuado — a partir de um enfoque de Hiratae Kergoat (1987, ps.5-6).

Chegamos aqui a um problema essencial e sobreo qual pode-se articular uma reflexão conjuntada psicopatologia do trabalho/divisão sexual dotrabalho: trata-se da hipótese segundo a qualas mulheres, negando o grupo, negam-se a simesmas como sujeito. As mulheres operárias não-qualificadas, por exemplo, como os homens ope-rários não-qualificados, desvalorizam seus co-nhecimentos e seu savoir-faire e, simultaneamen-te, se autodesvalorizam (...) Mas no caso dasmulheres acrescenta-se a isso uma autodesvalo-rização enquanto sexo. Tudo se passa em realida-de como se fosse apenas diferenciando-se dasoutras mulheres (...) que elas conseguissem afir-mar sua identidade individual: eu não sou comoas outras. (...) E por isso que dizemos que aautodesvalorização enquanto sexo é ainda maiscomplexa que a autodesvalorização enquantooperário (a), porque significa de certa maneirae negação de si mesma. Há nisso algo de esqui-zóide: a personalidade é quebrada, dividida, ea dor secretada não pode não ter conseqüênciassobre a saúde mental.

Sem reconhecer-se no grupo sexuado, as trabalha-doras convivem com a dificuldade de reconhecer pro-blemas patogênicos que lhes são comuns, oriundosdo processo de trabalho e das características biológi-cas. Distúrbios articulares (entre eles a tenossinovite)e visuais são correlacionados às tarefas repetitivas eestáticas reservadas às mulheres, com manipulação rá-pida de instrumentos e excessiva demanda de visualiza-ção. O controle emocional das recepcionistas e dastelefonistas tem sido identificado como geradores deansiedade (Wisner, 1987). Várias ocupações femininasrequerem o carregamento de pesos e grandes esforçosfísicos, como, por exemplo, na enfermagem, no setorrural e o próprio trabalho doméstico (Apesar do mitodo trabalho leve!). Sabe-se que, entre outros fatoresprejudiciais à mulher grávida, o transporte de pesos,os esforços físicos dinâmicos e repetitivos e as vibra-ções podem causar partos prematuros e abortos. Hácorrelações entre distúrbios menstruais e a cadênciaelevada e vibrações. O ruído excessivo pode lesar oouvido do feto. Além disso, uma série de agentesagressivos pode prejudicar o feto: o benzeno, p chum-bo e o mercúrio são teratogênios. As radiações ionizan-tes podem, também, causar mal-formações em váriosórgãos do corpo do feto e até a morte. Diversas subs-tâncias químicas passam pelo leite materno e são inge-ridas pelo neném.

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Esses e outros dados, ainda que bem dispersos,mostram os efeitos que as condições de trabalho podemter sobre a saúde da mulher. Notamos que parte dessesefeitos estão ligados a determinadas fases do ciclofeminino. Por outro lado, os padrões cíclicos dos ho-mens — sono, ritmo cardíaco e produção de harmôniossexuais — também são afetados pelas condições detrabalho, como, por exemplo, pelos turnos alternantes.Muitas substâncias teratogênicas são também mutagê-nicas (modificam esperma e óvulo) e cancerígenas,prejudicando homens e mulheres. Essas consideraçõescolocam em cheque a existência dos guetos femininos(Messing e Reveret, 1983). Por que não lutar paraque todos os locais de trabalho sejam saudáveis eacessíveis a todos?

CONCLUSÃO

Este texto pretende ser uma síntese do que consi-deramos importante em torno da questão saúde, mulhere trabalho. Dessa forma, além de subsídio teórico àanálise do tema, fornece elementos de reflexão paracontinuidade das pesquisas que vêm sendo desenvol-vidas no Cesteh.

Pensar a saúde da mulher trabalhadora pressupõesituar as mudanças não só nas relações de trabalho,mas em todos os planos da vida social — nas relaçõesfamiliares, na modificação do imaginário burguês daimagem feminina, nas relações do cotidiano —, nosentido de contribuir para o questionamento do patriar-calismo. Isto significa considerar sua emancipação to-tal, sua plena realização enquanto pessoa, através daatuação no mundo, contra os preconceitos que lhedificultam o desenvolvimento.

Essa busca atinge, também, as questões coletivaspresentes no processo de trabalho. Escondidas pela— aparentemente "natural" — divisão sexual do traba-lho, encontramos formas sutis de exploração dos traba-lhadores. Homens e mulheres ocupam posições tipifica-das e polarizadas na produção, e a aceitação dissocomo decorrente das diferenças sexuais impossibilitaa maior realização e a percepção das diversidades nasformas de desgaste, segundo os sexos. Por outro lado,é fundamental reconhecer a identidade feminina, o di-reito e o prazer de gestar e amamentar e suas condiçõesbiológicas específicas, não como fatores de discrimi-nação e exclusão, mas como condições essenciais, quedevem ser respeitadas pelo mundo do trabalho.

Pesquisar a saúde da mulher trabalhadora corres-ponde a um caminho para se enxergar problemas poucoevidenciados da relação saúde/trabalho, questionandovários planos da existência, rumo à melhoria do nívelgeral de vida de homens e mulheres.

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The present paper aims at showing the importanceof the gender approach in the theoretical constructionof the field of worker's health since men and womenare exposed to different work conditions within theproductive process. In the case of female workers,we point to the liaison of capitalism and patriarchyas determinants of women's oppression in thehierarchical relationships of labor as well as to thehidden social responsability of the housework, whichis carried out in the private sphere thus keeping womendistant from the social and political world andgenerating strong impacts on their health. Accordingto the sexual division of labor, female work in industryis restricted to rather repetitive tasks that require agreat nervous resistance — not especially healthyconditions that lead to a specific consuming pattern.We concluded that changes should occur in the sociallife schemes, besides breaking with the myths thatsupport the sexual division of labor, so that theaggressive conditions imposed on men and women'shealth in the work process can be altered.

AGRADECIMENTOS

A elaboração desse texto se deve muito à contri-buição de Regina de Almeida e Rosane Meister,durante o período que trabalharam como pesquisa-doras no Cesteh, pelas reflexões conjuntas no desen-volvimento das pesquisas.

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