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15 INTRODUÇÃO Quando buscamos “entender” uma piada após lê-la ou ouvi-la, um dos procedimentos que adotamos é analisar o que nos surpreende; procuramos saber o que faz rir. Mas isso já foi respondido por pesquisadores conceituados, como Victor Raskin e Sírio Possenti. No entanto, o que revela – ou esconde – seu discurso? Como ele se constrói? E quando se está diante de piadas que se constituem a partir de relações intertextuais e interdiscursivas, como elas significam? Essa é uma resposta para ser dada pela Semiótica, que estuda a significação. Por entendermos que a Semiótica pode apresentar um ponto de vista diferente sobre piadas – não necessariamente contrário ao que já foi feito pela Lingüística ou pela Análise do Discurso, mas sim complementar – o presente trabalho toma como objeto de estudo a significação em piadas conhecidas como religiosas ou de religião. Mais especificamente, direcionamos nosso olhar para as piadas que remetem à ideologia cristã. Nosso propósito é, pois, descobrir como e o que ocorre com o discurso religioso nesses textos, que ora parecem verdadeiras passagens bíblicas, ora uma grande brincadeira – ou uma enorme heresia, para os mais “fervorosos”. De fato, a linguagem humorística já vem sendo bastante estudada, mas não há uma lingüística específica do humor, porque, por exemplo, “não há uma lingüística que se ocupe de decidir se os mecanismos explorados para a função humorística têm exclusivamente essa função 1 ”. Contudo, uma teoria discursiva do mesmo está em curso, pois há diversos trabalhos que se preocupam com as implicações do discurso humorístico, nos mais variados âmbitos de realização da língua, tais como livros didáticos, programas de TV e até sites de humor. Assim, o que se tem feito é explicar o funcionamento de determinados mecanismos em textos humorísticos diversos, bem como analisar os discursos que esses textos veiculam. São exemplos os trabalhos desenvolvidos com charges, tira em livros didáticos, advinhas e piadas. No caso das últimas, já foram realizadas pesquisas que apresentaram desde a sua defesa como gênero textual 2 , até a análise discursiva com viés psicanalítico 3 . No entanto, a significação dos discursos nesse gênero tem sido pouco explorada, assim como a sua constituição com base em outros gêneros textual/discursivos que circulam fora do universo humorístico. 1 POSSENTI, Sirio. Os humores da língua – análise lingüística de piadas. São Paulo: Mercado das Letras, 2001. p. 21. 2 MUNIZ, Kassandra, Piada: conceituação, constituição e práticas – um estudo de um gênero. Campinas, 2004. Dissertação (Mestrado) – Unicamp. 3 CONDE, Gustavo. Piadas regionais: o caso dos gaúchos. Campinas, 2005. Dissertação (Mestrado) – Unicamp.

análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

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INTRODUÇÃO

Quando buscamos “entender” uma piada após lê-la ou ouvi-la, um dos procedimentos

que adotamos é analisar o que nos surpreende; procuramos saber o que faz rir. Mas isso já foi

respondido por pesquisadores conceituados, como Victor Raskin e Sírio Possenti. No entanto,

o que revela – ou esconde – seu discurso? Como ele se constrói? E quando se está diante de

piadas que se constituem a partir de relações intertextuais e interdiscursivas, como elas

significam? Essa é uma resposta para ser dada pela Semiótica, que estuda a significação.

Por entendermos que a Semiótica pode apresentar um ponto de vista diferente sobre

piadas – não necessariamente contrário ao que já foi feito pela Lingüística ou pela Análise do

Discurso, mas sim complementar – o presente trabalho toma como objeto de estudo a

significação em piadas conhecidas como religiosas ou de religião. Mais especificamente,

direcionamos nosso olhar para as piadas que remetem à ideologia cristã. Nosso propósito é,

pois, descobrir como e o que ocorre com o discurso religioso nesses textos, que ora parecem

verdadeiras passagens bíblicas, ora uma grande brincadeira – ou uma enorme heresia, para os

mais “fervorosos”.

De fato, a linguagem humorística já vem sendo bastante estudada, mas não há uma

lingüística específica do humor, porque, por exemplo, “não há uma lingüística que se ocupe

de decidir se os mecanismos explorados para a função humorística têm exclusivamente essa

função1”. Contudo, uma teoria discursiva do mesmo está em curso, pois há diversos trabalhos

que se preocupam com as implicações do discurso humorístico, nos mais variados âmbitos de

realização da língua, tais como livros didáticos, programas de TV e até sites de humor. Assim,

o que se tem feito é explicar o funcionamento de determinados mecanismos em textos

humorísticos diversos, bem como analisar os discursos que esses textos veiculam. São

exemplos os trabalhos desenvolvidos com charges, tira em livros didáticos, advinhas e piadas.

No caso das últimas, já foram realizadas pesquisas que apresentaram desde a sua defesa como

gênero textual2, até a análise discursiva com viés psicanalítico3. No entanto, a significação dos

discursos nesse gênero tem sido pouco explorada, assim como a sua constituição com base em

outros gêneros textual/discursivos que circulam fora do universo humorístico.

1 POSSENTI, Sirio. Os humores da língua – análise lingüística de piadas. São Paulo: Mercado das Letras, 2001. p. 21. 2 MUNIZ, Kassandra, Piada: conceituação, constituição e práticas – um estudo de um gênero. Campinas, 2004. Dissertação (Mestrado) – Unicamp. 3 CONDE, Gustavo. Piadas regionais: o caso dos gaúchos. Campinas, 2005. Dissertação (Mestrado) – Unicamp.

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16

Por outro lado, a Semiótica, em suas diferentes vertentes, vem ampliando suas

abordagens e reafirmando seu objeto de análise. O que nos autoriza dizer isso é, por exemplo,

a Sociossemiótica, que analisa textos de gêneros diversos, como o romance oral4, propagandas

institucionais5 e redações produzidas por alunos do nível fundamental em escolas públicas e

privadas6. Já a Semiótica das culturas compara culturas de continentes distintos7, valendo-se

da semântica cognitiva para reforçar a compreensão de como os sujeitos constroem e

disseminam diversos conceitos em suas culturas. As análises estruturais de simples palavras,

para analisar mitos em nações diferentes, deram lugar ao exame do espetáculo semiótico em

discursos políticos e educacionais, assim como na arquitetura de países díspares quanto ao

nível de desenvolvimento sócio-econômico8.

E os textos humorísticos? E o discurso do humor? Não seria possível conciliar as

teorias sobre os dispositivos de seu funcionamento, esclarecidos por Raskin e Possenti, com

as de A. J. Greimas e Cidmar Pais, sobre a significação dos discursos? É isto que buscamos

fazer neste trabalho, que não se contenta em demonstrar como funcionam tais dispositivos nos

textos humorísticos, mas busca a significação de seus discursos. Em nosso caso, voltamo-nos

para aqueles antes sacrossantos, veiculados em passagens bíblicas, mas que, em piadas, estão

transformados, passando a fazer parte do universo discursivo do humor.

Neste sentido, o que pretendemos é observar a retomada do discurso bíblico e sua

alteração na produção do humor. Isto nos tem levado a crer numa ampliação da classificação

realizada por Possenti, a qual se fundamenta nas chaves lingüísticas que desencadeiam o riso.

Para esse autor, existem piadas fonológicas, morfológicas, sintáticas, lexicais, dêiticas, de

inferência, pressuposição e conhecimento prévio9. Cremos, porém, que as piadas podem ser

analisadas do ponto de vista de sua constituição intertextual e/ou interdiscursiva. Neste caso, a

4 BATISTA, Maria de Fátima Barbosa de Mesquita. A Narrativização do romance oral O cego. Acta semiótica et lingüística, São Paulo, v. 10, 2004. p. 67 – 78. 5 PAIS, Cidmar T. Propaganda e publicidade no discurso institucional da educação superior: análise sócio semiótica. Revista do GELNE, v.5, n. 1 e 2,. João Pessoa: UFPB / GELNE, 2003. p. 29 – 36. 6 RIBEIRO, Wilma da Silva. Aspectos ideológicos nas redações dos alunos das redes pública e particular do ensino fundamental em Pernambuco: uma abordagem sociossemiótica. João Pessoa, 2004. Dissertação (Mestrado) - UFPB. 7 PAIS, Cidmar T. Visões de mundo e sistemas de valores em culturas da América Latina e do Caribe: elementos para um estudo contrastivo em semântica cognitiva e semiótica das culturas. Revista Uniandrade. v. 01. n. 01, 2003b. p. 47-60. 8 Pais (2003b) mostra que, em determinadas nações desenvolvidas, a arquitetura antiga é preservada e tem lugar de destaque. Já em certos países em desenvolvimento, a modernidade atropela as construções antigas, que se não são tombadas (pilhadas), relegam-se ao descaso, ao abandono. 9 Possenti (2001) diferencia as piadas segundo os mecanismos linguisticos de que dispõem para promover o efeito de humor. Neste sentido, considera fonológica, por exemplo, uma piada que precinde de artifícios sonoros peculiares a uma determinada língua para ocasionar um efeito de humor. Trata-se da ocorrência de ambiguidade em uma palavra ou sentença por causa da mudança no som da pronúncia.

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17

significação dos discursos nelas veiculados parte de um texto/discurso base, que, na mudança

de um script para outro, é transformado.

Este trabalho tem como objeto, portanto, a significação de piadas que se constituem a

partir de relações intertextuais e interdiscursivas com passagens bíblicas. Interessa-nos

verificar como ocorre a transformação do discurso religioso do ponto de vista da

narratividade, das oposições semânticas fundamentais e dos valores veiculados nos discursos

dessas piadas. Uma das hipóteses a ser verificada com a nossa pesquisa é de que essas

relações ocasionam o confronto de dois universos discursivos nas piadas, os quais se

superpõem, do mesmo modo que ocorre com os scripts contrários em toda e qualquer piada10 .

Por universo de discurso, entenda-se “um conjunto não-finito, ou que tende ad infinitum, de

todos os discursos manifestados que apresentam certas características comuns e constantes,

certas coerções, suscetíveis de configurarem uma norma”. 11

Nesse caso, os dois universos de discurso em questão estão estreitamente ligados por

uma relação intertextual decorrente do uso das passagens bíblicas. Mais que isso, estão

sobrepostos, devido aos dois scripts que acionam e que se fazem perceber com a quebra de

expectativa proporcionada pelo gatilho lingüístico. Com essa sobreposição de universos

discursivos, a apreciação do percurso gerativo de sentido passa a assumir a mesma dualidade

que constituem as piadas, porque a análise da significação de cada discurso passa a considerá-

los sem seus scripts próprios.

Portanto, é a passagem que significa na piada e a piada que significa através da

passagem que se tornam passíveis de análise. É o percurso gerativo dessa significação

ambígua que se pretende investigar, na perspectiva de desvelar que valores são postos em

primeiro plano, através das relações intertextuais e interdiscursivas entre as piadas e as

passagens bíblicas a que tais textos humorísticos remetem. Por outro lado, buscamos trazer à

tona os valores relegados a segundo plano, devido à constituição das piadas, a fim de

explicitar as controvérsias entre o discurso religioso e o humorístico.

Nessa perspectiva, eis a pergunta crucial que procuramos responder, como problema

dessa pesquisa: qual é o percurso gerativo do sentido de piadas que, para sua constituição

humorística, valem-se de passagens bíblicas, ao estabelecerem relações intertextuais e

interdiscursivas? Para isso, tomamos como objetivo geral analisar, em piadas com passagens

bíblicas, a transformação do discurso religioso. Nesse sentido, é hipótese principal desse 10 RASKIN, Victor. Linguistic heuristic of humor: a script-based semantic approach. In: International Journal of sociology of language. 65. Amsterdam. Mouton de Gruyter, 1987. p. 11 – 25. 11 PAIS, Cidmar T. Texto, discurso e universo de discurso. Revista Brasileira de Lingüística, vol. 8(1). São Paulo: Plêiade, 1995. p. 135 – 164.

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18

trabalho a idéia de que, em prol do humor, valores concernentes às passagens bíblicas são

postos de lado, são relegados ao segundo plano. Assim, temos como objetivos específicos

desvelar os novos valores que o discurso humorístico confere às passagens bíblicas,

transformadas em piadas; analisar como os valores investidos pelos sujeitos enunciadores

dessas piadas são figurativizados; e identificar, do ponto de vista semântico, que implicações

de sentido surgem das alterações promovidas pelas piadas nas passagens bíblicas.

A construção de nosso corpus ocorreu através da coleta de piadas religiosas, em sites

de humor que apresentavam, em suas categorias, os termos religiosa ou de religião. Nesse

sentido, escolhemos as piadas de quatro (04) sites nos quais realizamos um trabalho

minucioso de leitura e comparação entre os textos neles apresentados:

www.humortadela.uol.com.br; www.aspiadas.com; www.quatrocantos.com; www.piada.com.

Além desses, outros três foram consultados (ver anexo I), mas devido à mínima quantidade de

piadas com passagens bíblicas, decidimos descartá-los. Nesse sentido, realizamos um

levantamento dos recursos disponíveis em cada um dos quatro sites supracitados, a fim de

verificar seu funcionamento como sites de humor ou de piadas propriamente ditas, à medida

que a pesquisa dos textos ocorria. O objetivo de tal verificação foi alargar “o leque de opções”

para a coleta do corpus, mas percebemos que os sites que só dispunham de piadas não

apresentavam muitos textos de interesse para essa pesquisa. Já os de humor – que

apresentavam não só piadas, mas também charges, quadrinhos, animações, questionários

“imbecis”, como os próprios sites intitulam, entre outros recursos – dispunham de uma

variedade maior de piadas.

Este foi mais um motivo que nos restringiu aos quatro sites indicados: mais de 500

piadas foram encontradas sob a classificação religiosa, ou de religião. Embora grande fosse a

quantidade, muitas se repetiam em mais de um site; quando não, apresentavam-se como uma

variante da outra. Em contato com o webmaster do humortadela.uol.com.br, verificamos que

grande parte das piadas era enviada por “internautas” e postas em “ranking” conforme o

maior número de acessos e votações dos leitores do site12. Acreditamos que tais critérios

contribuem para as repetições que detectamos, uma vez que tal procedimento não impede que

o internauta possa enviar a mesma piada a mais de um site. Ou, como ocorre na oralidade,

contar a mesma piada, com algumas alterações, a diferentes pessoas, neste caso, leitores dos

diferentes sites.

12 No anexo III, o webmaster Adrianete esclarece como é feito o ranking de piadas em seu site.

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19

Entretanto, nem todas interessavam à nossa pesquisa, pois nem todas possuíam, em

sua constituição, um (suposto) diálogo com alguma passagem bíblica. Muitas apenas

apresentavam alguma autoridade eclesiástica com condutas inesperadas ou situações

inusitadas em conventos, igrejas, trânsito. Por isso, reduzimos ainda mais a quantidade de

piadas e as enquadramos em três categorias que instituímos de acordo com a análise prévia de

cada texto, pouco depois da coleta. Tal categorização nos serviu como ponto de partida para

organizar a ordem de análise e foi criada a partir da relação que cada piada mantém com as

passagens bíblicas a que remetem. Sendo assim, a distribuição das piadas, segundo cada

categoria, pôde ser representada da seguinte forma:

Intertextuais São consideradas neste grupo as piadas que, pela

heterogeneidade mostrada, utilizam o texto

bíblico como gatilho para a passagem de um

script a outro.

A primeira pedra Quem eu sou? Abraão e Isaac Lázaro Jesus e as criancinhas

Interdiscursivas Consideramos nesta categoria aquelas que,

mesmo não utilizando de forma notória o texto

bíblico, compõem-se com trechos que remetem à

ideologia bíblica, pela heterogeneidade

constitutiva, estando o gatilho justamente nesses

trechos.

Fé demais não cheira bem Problemas na terra Professora atéia

Transgressivas São consideradas neste grupo as piadas que

operam com criações a partir das passagens,

transgredindo o discurso que ali se instaura,

apresentando novas situações, e bem destoantes

das apresentadas na Bíblia, quanto ao caráter

sacro.

Convite impróprio As bodas O caminho das pedras Noé perdeu, Cabral descobriu...

Por outro lado, o quadro de categorização que construímos não encerra a classificação

das piadas como uma definição estanque. Pelo contrário, cremos que algumas piadas possam

pertencer a duas ou mais categorias, de acordo com os recursos de que disponham para

propiciar o humor. Seu enquadramento numa determinada categoria segue, pois, um critério

Page 6: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

20

de predominância de recursos, ou da importância dos mesmos para promover o efeito de

humor.

À guisa de esclarecimento, não tomamos aqui o termo piada religiosa baseando-se

numa classificação científica mais precisa. O uso desse termo está alicerçado apenas na

categorização comum aos sites de humor nos quais coletamos as piadas para análise. São eles

que ora usam o termo religiosa, ora de religião para enquadrar diversas piadas, que versam

sobre cristãos, judeus, muçulmanos, hindus, budistas e outros. Assim, trazem à tona papéis

temáticos comuns à realidade cristã, como padres, pastores, freiras, apóstolos de Cristo e

Deus, ou quaisquer outros papéis e divindades que compõem as narrativas de outras religiões,

como rabinos, monges, profetas, Buda, Maomé ou Alá.

Neste cerne, após a seleção do grupo de piadas relacionado acima para organizar os

dados da pesquisa, passamos a analisar os três níveis de geração do sentido, conforme a teoria

semiótica greimasiana. Paralelamente, discutimos as relações intertextuais e interdiscursivas

existentes entre as piadas e as passagens bíblicas a que tais textos humorísticos remetem,

realizando considerações semântico-discursivas sobre os gatilhos lingüísticos que

desencadeiam o riso. Além disso, tecemos comentários sobre as estratégias do sujeito

enunciador para promover o efeito de humor e discutimos as controvérsias existentes entre

piada e passagem bíblica, do ponto de vista do discurso que veiculam.

Da mesma forma, buscamos desvelar os valores obscurecidos pelo humor, visões de

mundo e ideologias subjacentes que se sobrepõem a outras nas malhas intertextuais (e

interdiscursivas) constitutivas das piadas com passagens bíblicas.

Para o cumprimento de nossos objetivos, apresentamos, no primeiro capítulo, a teoria

semiótica greimasiana, a qual tomamos como base para nossas análises. Partimos de seus

pressupostos fundamentais, como a visão de signo de Saussure e Hjelmslev e o percurso

gerativo de sentido. Sobre tal teoria, buscamos discutir o princípio da articulação lingüística

sob as perspectivas duais de significante e significado, expressão e conteúdo, abstração e

concretude, ou, como se prefere na semiótica discursiva atual, o sensível e o inteligível. Em

seguida, esboçamos o percurso gerativo do sentido em suas etapas distintas, com base em

autores que desenvolvem trabalhos na linha de Greimas. Além disso, demonstramos como a

semiótica greimasiana dialoga com a semiótica das culturas e com as teorias do humor. Nesse

sentido, trabalhos de alguns autores são exemplificados, a fim de que seus pressupostos

teóricos sejam aclarados, fundamentando nossas discussões posteriores sobre as piadas com

passagens bíblicas.

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21

Em seguida, passamos para as teorias do humor verbal, de que nos valemos para a

preparação do corpus. Neste segundo capítulo, com atenção especial para as piadas, buscamos

esboçar conceitos relevantes para o estudo do humor, ao apresentarmos discussões de diversos

autores. Também buscamos demonstrar, à luz do dialogismo, a constituição das piadas sob o

caráter heterogêneo, que lhes é peculiar. Por fim, reservamos o encerramento desse segundo

capítulo para a apreciação do discurso religioso, sobre o qual discorremos conceitos, marcas e

propriedades, além de apresentarmos um pequeno esboço de estudos sobre sua apropriação

em contextos de uso da linguagem não-religiosos.

No terceiro capítulo, principiamos as discussões sobre as piadas com passagens

bíblicas a partir do quadro de categorização que propomos. De início, analisamos o percurso

gerativo das piadas intertextuais, buscando identificar pontos divergentes e comuns às piadas

que enquadramos em tal categoria, como implicações ideológicas e constituição do ponto de

vista das estruturas de superfície.

Já no quarto capítulo, com as piadas interdiscursivas, nosso foco é demonstrar a

manutenção da ideologia cristã. Para tanto, traçamos o percurso gerativo de sentido para a

significação do discurso religioso nas piadas com passagens bíblicas, ao passo que analisamos

as passagens de que tais piadas se apropriam do ponto de vista ideológico.

Para concluirmos as análises, apresentamos, no quinto capítulo, um grupo de piadas

que operam com transgressões ao texto bíblico. Realizamos a análise dos três patamares do

percurso gerativo e comparamos os valores subjacentes às ideologias das piadas. Com isso,

demonstramos o quanto elas destoam das passagens a que remetem do ponto de vista do

discurso veiculado e da narrativa construída.

Por fim, discorremos nossas considerações finais sobre as análises realizadas,

comparando os resultados obtidos, a fim de verificar a validade de nossas propostas.

Propomos, no fim, uma atenção maior a discussões sobre o uso do texto/discurso religioso

fora de seu contexto, por acreditarmos que implicações além da intenção humorística de

simplesmente fazer rir possam ocorrer em tais usos, sendo tarefa dos estudiosos da linguagem

desvelar os sentidos que tamanho exercício lingüístico implica.

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1. BASES TEÓRICAS

1.1 A SEMIÓTICA GREIMASIANA

Algirdas Julien Greimas concebeu uma teoria que visa explicar, através de um

percurso gerativo do sentido, a geração dos discursos em qualquer sistema semiótico. Em

verdade, o objeto de estudo da semiótica é a significação, entendida não como um a priori já

constituído, mas como o resultado de articulações do sentido13. Ao sentido, Greimas, atribui

um conceito de indefinição, e sobre ele nada se pode dizer antes que se manifeste sob forma

de significação14. Já Fontanille (2006) trata o sentido como uma direção a que tendem objetos,

práticas e situações quaisquer15, pertencentes aos sistemas semióticos.

A compreensão de tais sistemas sob a ótica greimasiana vem na esteira de Saussure,

com seus estudos do signo e sua dicotomia entre significado e significante. Para este autor, o

signo seria, então, uma articulação aleatória entre som e pensamento (ou idéias). A língua,

nessa perspectiva é um sistema de valores puros, que são elementos da significação, frutos da

arbitrariedade que une significante e significado. Articulada, pois, de maneira dupla, entre

dois planos amorfos, ela nem pertence ao plano dos sons, nem ao plano das idéias. Seu papel,

segundo Saussure (1997), não é criar um material fônico para a expressão das idéias, mas

servir de intermediário entre o pensamento e o som16.

Por outro lado, Hjelmslev (1975) reinterpretou tais considerações, conferindo-lhes

uma ampliação do ponto de vista conceitual. O signo, para ele, existe por meio de uma relação

de solidariedade entre conteúdo e expressão, segundo a qual uma expressão só é expressão

porque é expressão de um conteúdo, e um conteúdo só é conteúdo porque é conteúdo de uma

expressão17. Estas colocações dialogam e reforçam a metáfora com a folha de papel que

Saussure apresenta para exemplificar sua definição de língua.

[...] o pensamento é o anverso e o som verso; não se pode cortar um sem, ao mesmo tempo, o outro; assim, tampouco, na língua, se poderia isolar o som do pensamento, ou o pensamento do som; só se chegaria a isso por uma abstração cujo resultado seria fazer Psicologia pura ou Fonologia pura. 18

13 CORTINA, Arnaldo e MARCHEZAN, Renata C. Teoria semiótica: a questão do sentido. In: BENTES, Ana Cristina e MUSSALIN, Fernanda. Introdução à lingüística: fundamentos epistemológicos. São Paulo: Cortez, 2007. p. 394. 14 GREIMAS, A. J. e COURTÈS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Cultrix, 1979. p. 417 15 FONTANILLE, Jaccques. Semiótica do discurso. São Paulo: Contexto, 2007. p. 31 16 SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1997. p. 131. 17 HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1975. p. 54. 18 SAUSSURE, Ferdinand. Op. Cit. p. 131

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23

Martinet (1968), em suas discussões sobre a lingüística sincrônica, também concebe a

linguagem como uma dupla articulação. Para este autor, na medida em que se fala, faz-se isso

para ser compreendido, estando a expressão a serviço do conteúdo. É por esse motivo que ele

afirma haver solidariedade entre os dois planos, mas em um sentido determinado19, o que

ratifica a posição hjelmsleviana de que as línguas se articulam sob dois planos distintos.

Contudo, tanto Saussure quanto Hjelmslev mantiveram suas discussões sobre a

significação no âmbito estritamente lingüístico, do ponto de vista das estruturas dos sistemas

semióticos. Neste sentido, completamos o entendimento de signo com os postulados de

Bakhtin, para quem todo signo é ideológico e deve ser entendido como reflexo e refração de

uma dada realidade social. Sendo todo signo ideológico, a ideologia emerge do processo de

interação entre uma consciência individual e outra, numa cadeia20.

Embora Greimas tenha pensado seu projeto semiótico também voltado para questões

além do puramente lingüístico, do ponto de vista estrutural, sua concepção de ideologia não é

a mesma de Bakhtin. A semiótica greimasiana entende a ideologia como um conjunto de

valores de uma sociedade, de uma cultura; diferente da concepção bakhtiniana, que é mais

política. Assim, o signo significa o que a ideologia sustenta, sendo ideológico porque reflete

um conjunto de valores da sociedade no uso da linguagem.

Dessas discussões, chegamos ao entendimento de que a significação consiste numa

relação de dependência entre conteúdo e expressão; num processo de produção, acumulação e

transformação da função semiótica, que põe o signo em discurso; e de que as análises da

significação pressupõem também análises lingüístico-ideológicas, no que tange aos

mecanismos lingüísticos acionados e universos discursivos envolvidos.

1.1.1 O percurso gerativo do sentido

Segundo a proposta greimasiana, a geração dos sentidos parte do patamar mais

simples ao mais complexo, sendo abordado sob três níveis: o fundamental, em que a

significação surge como uma oposição semântica mínima; o narrativo, no qual a narrativa

organiza-se do ponto de vista de um sujeito; e o discursivo, em que a narrativa é assumida

pelo sujeito da enunciação21.

19 MARTINET, André. La doble articulacion del lenguaje. In: MARTINET, A. La lingüística sincrónica – estudios e investigaciones. Madrid: Gredos, 1968. p. 29 20 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997. 21 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2005. p. 09

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24

Este também é o entendimento de Fiorin (2006), que, para ilustrar de maneira

resumida as etapas do percurso gerativo do sentido, apresenta um esquema em que a sucessão

de patamares de tal percurso é explicitada. Os níveis se constituem pelas estruturas semio-

narrativas e se completam, na geração do sentido, com as estruturas discursivas, que, assim

como as anteriores, também apresentam componentes sintáticos e outros semânticos,

conforme ilustra o quadro seguinte:

Estruturas

semio-

narrativas

Estruturas discursivas

Componente Sintático

Componente Semântico

Nível Profundo Sintaxe Fundamental Semântica Fundamental

Nível de Superfície Sintaxe Narrativa Semântica Narrativa

Sintaxe Discursiva: Discursivização, actorialização, temporalização e espacialização.

Semântica Discursiva: Tematização e Figurativização.

Em seguida, o autor passa a esclarecer cada etapa do percurso. Sobre a sintaxe dos

diferentes níveis, Fiorin afirma que ela é de ordem relacional, ou seja, um conjunto de regras

que rege o encadeamento das formas de conteúdo na sucessão do discurso22. Ainda que

relacional, apresenta um componente conceptual, visto que cada combinatória de formas

possa produzir um determinado sentido. Ele acena para os componentes semânticos, em

especial para a semântica fundamental, que abriga as categorias que estão na base da

construção de um texto23. É nesse patamar que se deve determinar a oposição ou oposições

semânticas a partir das quais se constrói o sentido do texto24. Juntas, a semântica e a sintaxe

do nível fundamental formam a instância inicial do percurso gerativo do sentido e buscam a

explicação para os níveis mais abstratos da produção, do funcionamento e da interpretação do

discurso.

Já o nível narrativo – componente de qualquer texto – representa o segundo patamar

do percurso, e nele as oposições semânticas são assumidas como valores de um sujeito.

Segundo Fiorin (2006), nenhuma objeção quanto a esta etapa faz sentido, caso se tenha a 22 FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2006. p. 21 23 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 22 24 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. p. 10

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25

compreensão de que narratividade não corresponde à narração. Assim, a análise semiótica de

qualquer piada – mesmo as que não apresentam predominantemente o tipo textual narrativo –

pode ser realizada neste segundo patamar, uma vez que se trata de um componente da teoria

do discurso. A narratividade, para Fiorin, “é uma transformação situada entre dois estados

sucessivos e diferentes. Isso significa que ocorre uma narrativa mínima, quando se tem um

estado inicial, uma transformação e um estado final”. 25

A sintaxe narrativa organiza toda a complexa relação em que um sujeito se insere no

fazer sobre o mundo. Barros (2005) sustenta que o entendimento da organização narrativa de

um texto precisa estar atrelado à descrição do espetáculo que simula o fazer do homem.

Segundo a autora “é preciso determinar, em um texto, os participantes e papel que

representam na historiazinha simulada” 26.

Por outro lado, Greimas e Courtês (1979) consideraram a semântica narrativa como a

instância de atualização dos valores e o lugar das restrições impostas à combinatória, em que

é decidido em parte o tipo do discurso a ser produzido. Já Fiorin apresenta os seguintes

esclarecimentos:

A semântica do nível narrativo ocupa-se dos valores inscritos nos objetos [...] modais e objetos de valor. Os primeiros são o querer, o dever, o saber e o poder fazer, são aqueles elementos cuja aquisição é necessária para realizar a performance principal. Os segundos são os objetos com que se entra em conjunção ou disjunção na performance principal. 27

A terceira e última etapa do percurso gerativo do sentido é a discursivização, que

também apresenta um componente sintático e outro semântico. Aqui as formas abstratas do

nível narrativo são revestidas de termos que lhes dão concretude28. É uma etapa em que se

opõem enunciação e enunciado, verificam-se as escolhas do sujeito da enunciação e as

estruturas que regem a organização do discurso anteriormente à sua manifestação29.

A respeito das escolhas do sujeito da enunciação, Barros (2005) diz que ele faz uma

série de escolhas de pessoa, de tempo, de espaço, de figuras, e conta ou passa a narrativa

transformado-a em discurso. Neste sentido, discurso pode ser entendido como a narrativa

enriquecida por todas as opções desse sujeito, que marcam os diferentes modos pelos quais a

enunciação se relaciona com o discurso enunciado.

25 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 28 26 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. 27 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 37 28 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 41 29 GREIMAS, A. J. e COURTÈS, Joseph. Op. Cit. p. 124

Page 12: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

26

Para a distinção entre os componentes sintáticos e os semânticos da discursivização, é

preciso entender que “a sintaxe discursiva observa a relação entre a enunciação e o discurso,

revelando as unidades discursivas. A semântica discursiva estabelece percursos temáticos e

reveste figurativamente os conteúdos da semântica narrativa”. 30

Assim, a divisão entre sintaxe discursiva e semântica discursiva dá-se mediante a

observância de procedimentos peculiares a cada instância. Na sintaxe discursiva, tem-se

actorialização, temporalização e espacialização, procedimentos que atestam as projeções da

enunciação. Além desses componentes sintáticos, estruturam-se os semânticos, que podem ser

detectados na configuração temática e figurativa do discurso31.

A actorialização corresponde ao revestimento dos sujeitos da narrativização. Os

actantes ganham concretude e o que era um simples sujeito semiótico passa a ser um apóstolo,

no caso de uma piada religiosa, por exemplo. Ou seja, ocorre uma concretização das

personagens enunciadas na narrativa, podendo haver até um sincretismo actancial, quando um

mesmo actante manifesta-se através de dois atores ou mais32.

Na temporalização, o sujeito enunciador deixa as marcas temporais que situam seu

discurso historicamente. Podem ser produzidos efeitos de realidade, através das mudanças em

tempos verbais e efeitos de distanciamento ou aproximação, com as projeções agora / então.

Segundo Greimas e Courtés (1979: 455), a temporalização transforma uma organização

narrativa em história, já que segmenta e organiza as sucessões temporais, valendo-se de

procedimentos de debreagem e embreagem.

Do mesmo modo, a espacialização produz efeitos de aproximação (aqui) ou de

distanciamento do sujeito enunciador (alhures). Essas coordenadas deixadas no texto pelo

sujeito enunciador dão-lhe o efeito de subjetividade ou objetividade, que a semiótica

greimasiana classifica como debreagem e embreagem respectivamente. Tais termos foram,

por Greimas, tomados de empréstimo de Jakobson, quando este tratou dos shifters

(embreantes)33. A respeito do mecanismo de debreagem, Fiorin (2006) faz uma divisão entre

debreagem enunciativa e debreagem enunciva e apresenta o seguinte esclarecimento:

A debreagem enunciativa projeta, pois, no enunciado o eu-aqui-agora da enunciação, ou seja, instala no interior do enunciado os actantes enunciativos, os espaços enunciativos e os tempos enunciativos [...] A debreagem enunciva constrói-se com o ele, o alhures e o então, o que

30 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual, 1988. p. 16 31 CORTINA, Arnaldo e MARCHEZAN, Renata C. Op. Cit. p. 408 32 GREIMAS, A. J. Os Atuantes, os Atores e as Figuras. In CHABROL, Claude (Apres.) Semiótica narrativa e textual; Trad. Leyla Perrone Moisés et al. São Paulo: Cultrix, 1977. 33 CORTINA, Arnaldo e MARCHEZAN, Renata C. Op. Cit. p. 412

Page 13: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

27

significa que, nesse caso, ocultam-se os actantes, os espaços e os tempos da enunciação34.

Quanto aos mecanismos da semântica discursiva, Barros (2005) assinala que cabe ao

sujeito da enunciação disseminar os temas e figurativizá-los, para assegurar a coerência

semântica do discurso e criar, com a concretização figurativa do conteúdo, efeitos de sentido,

sobretudo de realidade35. Já Fiorin (2006) faz a seguinte apreciação a respeito de tais

mecanismos:

Podem-se revestir os esquemas narrativos abstratos com temas e produzir um discurso não figurativo ou podem-se, depois de recobrir os elementos narrativos com temas, concretizá-los ainda mais, revestindo-os com figuras36.

Na verdade, isto quer dizer que há textos com predominância temática e outros em que

predominam as figuras. Tematização e figurativização são níveis de concretização do sentido,

e sendo independentes, pode haver textos mais temáticos que figurativos, ou o contrário.

Entretanto, é comum que apareçam figuras nos textos em que domina a tematização, ou temas

no caso da predominância da figurativização. Para Fiorin (2006), figura é o termo que remete

a algo existente no mundo natural e tema consiste num investimento semântico, de natureza

conceptual, puramente, que não remete a esse mundo. Em outras palavras, figura é todo

conteúdo de qualquer língua natural ou de qualquer sistema de representação que tem um

correspondente perceptível no mundo natural; já temas são categorias que organizam,

categorizam e ordenam os elementos do mundo natural37.

Por fim, é importante ressaltar que o percurso gerativo do sentido não pode ser tomado

como um esquema a que os textos tenham que se adaptar. Antes de tudo, trata-se de um

dispositivo de interpretação inerente aos textos, visto que a significação dos mesmos constrói-

se, senão com todas as etapas, pelo menos com algumas delas. Ele não descreve a maneira

real de produzir um discurso, pois é, na verdade, um simulacro metodológico, que permite ler

um texto com mais eficácia38.

1.2 SEMIÓTICA E CULTURA

34 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 58-59 35 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. p. 68 36 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 90 37 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 91 38 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 44

Page 14: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

28

O projeto semiótico de A. J. Greimas visava à construção de uma teoria semântica que

transcendesse a observância da palavra sob o ponto de vista estrutural e puramente lingüístico.

Ao discordar do posicionamento de que sobre o sentido nada poderia ser dito, Greimas (1975)

esclarece que a distinção entre semiótica e semiologia, por ele respectivamente entendidas

como ciência da natureza e ciência do homem, é uma questão de procedimento. Para ele:

[...] será preciso ressaltar que a distinção que se pode estabelecer entre as semióticas e as semiologias – entre as ciências da natureza e as ciências do homem – ao menos no nível dos modelos paradigmáticos escolhidos, não é uma distinção de estrutura, mas sim de procedimento39.

Nessa perspectiva, Greimas seguiu em direção a uma semiótica do mundo natural,

quando considerou passíveis de análise os signos naturais do mundo visível, estáticos ou em

movimento. Por outro lado, ele acenou para a possibilidade de se abordar, mediados pela

linguagem, tanto a natureza quanto o homem. A respeito dessa questão, Greimas diz que:

A natureza e o homem se manifestam para nós sob a forma de signos que podem, pela mediação lingüística, ser reunidos em conjuntos, recortados e reinterpretados como sistemas de relações, tornando-se assim objetos científicos; na mesma medida, as transformações dos fenômenos da natureza e as mudanças resultantes da atividade humana podem ser igualmente transcodificadas e denominadas, convertendo-se assim em descrições baseadas em unidades lingüísticas com caráter discursivo40.

Tais mudanças promovidas pelo homem correspondem a um fazer do mesmo sobre o

mundo, fazer este que também se apresenta como signo(s), em um mundo semioticamente

construído. É nesse sentido que Greimas aponta para uma semiótica da cultura, ao considerar

passível de descrição as ações do homem sobre o mundo, mediadas pelo uso da linguagem.

Segundo Pais (2006), o objeto da semiótica das culturas são as culturas humanas e sua

diversidade, sempre numa perspectiva intercultural ou multicultural, através de comparações

entre culturas. A busca pela caracterização de uma cultural prescinde da comparação com

outra, com o intuito de desvelar seus microssistemas de valores e as visões de mundo deles

decorrentes, estabelecendo uma tensão dialética entre a especificidade e a diversidade.

Especificidade implica não-diversidade, resultando na identidade cultural. Diversidade

implica não-especificidade, resultando na alteridade. Na tensão dialética entre especificidade

e diversidade está a interculturalidade. Seu oposto seria a inexistência semiótica resultante dos

termos contrários não-diversidade e não-especificidade. Pode-se visualizar melhor tal relação

39 GREIMAS, Algirdas Julien. Sobre o sentido: ensaios semióticos. Petrópolis: Vozes, 1975. p. 31 40 GREIMAS, Algirdas Julien. Op. Cit. p. 32

Page 15: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

29

no octógono seguinte, evolução do quadrado semiótico que Greimas (1975) apresenta ao

tratar do jogo das restrições41:

(PAIS, 2006: 02) 42

Uma das diferenças entre o octógono de Pais e o quadrado de Greimas está na relação

de implicação entre os termos contrários – que são denominados por Pais (2003b) de

metatermos simples – a qual apresenta um metatermo complexo, que resulta de tal

implicação. Nesse caso, alteridade reúne diversidade e não-especificidade; e/ou identidade

cultural reúne especificidade e não-diversidade. Assim, não só a significação S reúne S1 e S2,

sendo redefinido como sema complexo, mas também os contrários S1 e ‘S1, assim como S2 e

‘S2, tem como implicação um metatermo, embora isto não esteja ilustrado no diagrama

abaixo:

41 No capítulo intitulado O jogo das restrições semióticas, Greimas apresenta a formatação do quadrado semiótico, que, com a evolução das pesquisas em semiótica das culturas e sociossemiótica, passa a ser apresentado em forma de octógono. 42 PAIS, Cidmar T. Da semiótica das culturas a uma ciência da interpretação: valores e saberes compartilhados. 58ª Reunião Anual da SBPC. Florianópolis, 2006. p. 1 – 5

Interculturalidade

Alteridade Identidade

cultural

Não-diversidade Não-especificidade

Especificidade

Diversidade

Natureza biológica

Page 16: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

30

(GREIMAS, 1975: 127) 43

Na verdade, o octógono já se delineava quando Greimas e Courtés discorriam sobre as

modalidades veridictórias. Naquele esquema, todo objeto semiótico é visto na tensão entre um

ser e um parecer, cujos contraditórios são respectivamente não-ser e não-parecer, como

ilustramos abaixo.

(GREIMAS e COURTÉS, s.d.: 488)44

43 GREIMAS, Algirdas Julien. Op. Cit. p. 127 44 GREIMAS, A. J. e COURTÈS, Joseph. Op. Cit. p. 488

S2

S

‘S ‘S2 ‘S1

S1

Verdade

Mentira Segredo

Não-parecer Não-ser

Ser Parecer

Falsidade

Page 17: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

31

Da implicação entre ser e não-parecer resulta o segredo; já da implicação entre

parecer e não-ser resulta a mentira. Na tensão dialética entre ser e parecer está a verdade,

ficando a falsidade para a implicação entre não-parecer e não-ser.

Por outro lado, Greimas buscou, nos procedimentos da semântica estrutural, o

caminho para uma semiótica da cultura, ao realizar comparações entre os mitos, mais

precisamente através das narrativas míticas escandinavas e indianas. Neste cerne, o autor

discute as concepções de bem e mal que perpassam tais narrativas e finaliza tal estudo

indicando que os mitos apresentam unidades constitutivas nos seus significados que

correspondem às seqüências das narrativas míticas45.

Com a evolução das teorias semânticas – como a semântica cognitiva – a semiótica da

cultura passa a preocupar-se com os microssistemas de valores das culturas e com as visões de

mundo deles decorrentes. São exemplos os trabalhos de Cidmar Pais, que comparam a cultura

caribenha com a latino-americana e as visões de mundo em Cuba e no Brasil; também o são

as comparações entre França, Brasil e Cuba, no que tange às visões sobre o acesso à

universidade pública46.

Nesse último caso, tem-se um bom exemplo a ser esclarecido a respeito das

considerações realizadas pela semiótica das culturas: a questão do privilégio. Numa sociedade

capitalista e excludente, como o Brasil, o privilégio de se alcançar uma universidade pública

cabe a poucos cidadãos. No caso, estes poucos representam as camadas mais favorecidas

financeiramente. Privilégio tem, pois, um valor eufórico, traz consigo traços de desigualdade

e discriminação, além de representar um querer, uma aspiração dos membros de nossa

sociedade47. Já na França, por exemplo, este mesmo privilégio é disfórico, já que existem

políticas que combatem a discriminação e buscam minimizar as desigualdades, inerentes a

ele.

Outro exemplo do que esclarece a semiótica das culturas é dado por Pais (2003b),

quando trata do discurso político eleitoral. Ele esclarece que a seguridade social constitui uma

aquisição definitiva na França, que direito à educação e à saúde estão garantidos em Cuba e,

sendo assim, candidato algum ousaria dizer o contrário, caso quisesse ser eleito. Por outro

lado, os programas e as promessas dos candidatos brasileiros falam de assegurar, se eleitos, o

acesso de todos à educação e à saúde. Isto demonstra que a igualdade dos cidadãos perante a

Lei ainda não foi assegurada a todos. Ou seja, enquanto as sociedades francesa e cubana têm

45 GREIMAS, A. J. Op. Cit. p. 114, 115 46 PAIS, Cidmar T. Op. Cit. p. 47 – 60. 47 PAIS, Cidmar T. Op. Cit. p. 54

Page 18: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

32

direitos garantidos e seus políticos não negam isso em seus discursos, a brasileira ouve a cada

eleição o mesmo discurso de que, caso eleito, um determinado candidato – e vários se

colocam nessa condição – fará com que os direitos do brasileiro sejam garantidos, já que

ainda não foram.

Sendo assim, as visões de mundo sobre privilégio e discurso político diferem na

cultura brasileira e na francesa, devido aos valores distintos aspirados por cada uma. Tais

considerações só puderam ser realizadas porque a semiótica das culturas põe lado a lado duas

– ou mais – culturas distintas a fim de compará-las e desvelar seus microssistemas de valores.

1.3 SEMIÓTICA E HUMOR

Os estudos semióticos há muito se tem voltado para a significação em diversos modos

de realização da linguagem. Não é à toa que se fala em semiótica verbal e sincrética, pois

tanto se pode analisar poemas quanto Histórias em Quadrinhos (HQs). Discini (2005) nos dá

um bom exemplo ao realizar uma análise que demonstra um diálogo entre esses dois gêneros.

Em meio às suas discussões, diz que:

[...] as HQs, como gênero, apresentam recorrentemente o sincretismo do verbal com o visual, isto é, a expressão verbal e a visual, longe de se manterem discretas, separadas, juntam-se; o verbal colabora com o visual, para que se construam efeitos de sentido; no caso das HQs, o visual não só complementa o verbal, como predomina sobre ele48.

Isto confirma a afirmação de Barros (2005) sobre o que a semiótica de hoje procura

determinar: o que o texto diz, como diz e para que o faz. Segundo esta autora, a semiótica

analisa

[...] os textos da história, da literatura, os discursos políticos e religiosos, os filmes e as operetas, os quadrinhos e as conversas de todos os dias, para construir-lhes os sentidos pelo exame acurado de seus procedimentos e recuperar, no jogo da intertextualidade, a trama ou o enredo da sociedade e da história49.

Nesse sentido, vemos que a análise de textos humorísticos, assim como a de religiosos,

já vem sendo procedida pelos semioticistas. No caso dos primeiros, a HQ que Discine analisa,

além de ser observada sob sua constituição sincrética (verbal e visual), é focada sob a relação

48 DISCINI, Norma. HQ e poema: diálogo entre textos. In: LOPES, Ivã Carlos e HERNANDES, Nilton (Orgs.) Semiótica – objetos e práticas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 277 49 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. p. 83

Page 19: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

33

intertextual que mantém com um poema. O exame acurado da semiótica acena para um

diálogo entre textos. Segundo a autora, tal diálogo diz respeito à própria constituição do

sujeito da enunciação, que é dialógica por natureza50. Aponta também que a reconstrução de

um diálogo, como esse, se faz pela identificação de convergências e divergências de pontos de

vista, já que cada texto reproduz a visão de mundo de uma dada formação social.

Contudo, a HQ e o poema analisados pela autora não apresentam discursos marginais,

subterrâneos ou proibidos, como o fazem as piadas com passagens bíblicas, por exemplo.

Estas se constituem a partir de um texto anterior (o bíblico), reconhecido na História e na

“historinha simulada”, para, em seguida, promover o humor, propósito que as passagens a que

remetem as piadas não possui.

Por outro lado, concordamos com a autora quando esta acena para a reconstrução de

um diálogo entre textos através da verificação de convergências e divergências de formações

ideológicas. No caso da HQ e do poema analisados por Discini (2005), convergem as ironias

com relação às prescrições do que se deve, ou do que é preciso fazer.

Dessa forma, reconhecemos piadas que mantém relações intertextuais e

interdiscursivas com passagens bíblicas ora para negá-las, ora para confirmar seus discursos.

E aí entendemos o negar como uma divergência cuja apropriação da palavra do outro gera a

diminuição de seu valor – nesse caso, em prol do riso; já a confirmação vem por um efeito de

humor que não deprecia o discurso bíblico, não o põe de lado, mas o fortalece; logo, tem-se

uma convergência.

Além disso, a análise de piadas com passagens bíblicas difere daquela realizada entre

HQ e poema porque as piadas de que tratamos necessitam das passagens para significar. É o

diálogo que mantêm de alguma forma com o texto bíblico que as diferencia de outras piadas

ou de outros textos humorísticos.

Uma segunda abordagem semiótica sobre texto humorístico a se considerar é a

realizada por Farias (2005), quando analisa uma charge. Nesse caso, vemos um discurso

marginal em uma situação formal, que é uma Comissão Parlamentar de Inquérito (doravante,

CPI), mas não uma verdadeira. Para o enunciatário aceitá-la como um texto humorístico, deve

saber que ela é apenas um simulacro da CPI51. Nesse caso, entendemos que tanto enunciador

quanto enunciatário sabem que a função do humor é fazer rir, por isso a charge é aceita; além

50 DISCINI, Norma. Op. Cit. p. 280 51 FARIAS, Iara Rosa. Charge: humor e crítica. In: LOPES, Ivã Carlos e HERNANDES, Nilton (Orgs.). Semiótica – objetos e práticas. São Paulo: Contexto, 2005. p. 245 – 259.

Page 20: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

34

disso, o segundo interpreta a mesma como uma mentira, mas ri diante das expectativas

quebradas, pois esta é uma situação inerente a todo texto humorístico.

Uma terceira questão relevante a considerar na análise semiótica da linguagem

humorística é a coerência semântica. Nessa perspectiva, vale salientar as palavras de Barros

(2005) sobre as piadas.

As piadas fornecem, em geral, bons exemplos de coerência semântica, pois, muitas vezes, a graça do chiste decorre da ruptura dessa coerência e da proposição de outra leitura. Essa segunda leitura, inesperada, constrói-se também a partir dos traços semânticos do discurso e liga-se freqüentemente à primeira, previsível, por um elemento figurativo52.

Com tais assertivas, a autora acena para um diálogo com o que preceitua Raskin

(1987)53 a respeito do funcionamento das piadas. Para esse autor, uma das condições da a

existência da piada (ou do chiste) é a superposição de scripts contrários, compatíveis com um

mesmo texto. Assim, a outra leitura a que se refere Barros é a que decorre do acionamento do

gatilho lingüístico, que promove uma quebra de expectativa. Daí, o termo “inesperada”,

utilizado pela autora; daí também a segunda leitura, ou seja, o script que se superpõe ao

outro.

Ainda sobre a questão da coerência semântica, Fiorin (2006: 117-118) indica que é a

reiteração, a redundância, a repetição a recorrência de traços semânticos ao longo do discurso;

ou seja, a isotopia que faz do texto uma unidade. Com isso, sua leitura passa a ser limitada às

suas virtualidades significativas; àquilo que está inscrito nele, não ao que o leitor queira

entender. É a leitura que deve ser feita, não a que se escolhe fazer, nem a que se consegue

fazer; mas a que o texto permite.

Com esse entendimento, o autor reconhece a importância da isotopia para a

interpretação e verificação dos mecanismos que compõem os textos humorísticos, quando

afirma que:

O conceito de isotopia é extremamente importante para a análise do discurso, pois permite determinar o (s) plano (s) de leitura dos textos, controlar a interpretação dos textos pluri-significativos e definir os mecanismos de construção de certos tipos de discurso, como, por exemplo, o humorístico54.

Assim, a semiótica, mais uma vez, apresenta-se como teoria que contribui para a

análise da linguagem do humor. E nesse cerne, dialoga com Possenti (2001), que defende a

52 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. p. 69 53 RASKIN, Victor. Op. Cit. 54 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 118

Page 21: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

35

idéia de que o texto é o fator mais relevante no processo de leitura. Para ele, a piada demanda

e limita a atividade do leitor, devido aos detalhes lingüísticos com que o leitor precisa ser tão

atento55. Sendo o fator mais importante a se considerar no trabalho de interpretação, não o

único, o texto apresenta marcas que direcionam a leitura; por isso é que Fiorin considera

essencial a observação dos desencadeadores ou conectores de isotopia, gatilho lingüístico para

Possenti. A análise semiótica de um texto humorístico prescinde, portanto, dessa observância,

para que nenhum plano de leitura seja desprezado.

55 POSSENTI, Sírio. Op. Cit. p. 39

Page 22: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

36

2. PREPARANDO O CORPUS

2.1 TEORIAS DO HUMOR VERBAL: O CASO DAS PIADAS

Com a afirmativa de que o humor é uma faculdade humana, Travaglia (1990) principia

sua Introdução aos estudos do humor pela lingüística, acenando para a hipótese de que sua

função vai além de fazer rir. Segundo este autor, o humor serve para realizar denúncias,

manter equilíbrios sociais e psicológicos, revelar outras visões de mundo das realidades

naturais ou culturais que nos cercam, demonstrando, assim, falsos equilíbrios56.

Na verdade, seu trabalho é uma panorâmica sobre os estudos lingüísticos do humor e

tem como fontes principais Raskin e Freud, antes de quem, conforme o primeiro, não se

poderia falar sobre pesquisa do humor. Neste sentido, Travaglia apresenta a seguinte assertiva

a respeito da visão freudiana do humor:

Para Freud o humor permite descobrir fontes de prazer reprimidas pela censura e o prazer vem pelo fato de se enganar o censor. Ao mesmo tempo ele reconhece o humor como um fenômeno social57.

Sem se apegar às funções sócio-psicológicas do humor, mas sim ao seu

funcionamento, ou mais precisamente, voltando-se para o que faz um texto ser humorístico,

Raskin (1987) procura discutir uma teoria lingüística do humor verbal. Para Conde (2005), “o

objetivo de sua teoria é formular as condições necessárias e suficientes, em termos puramente

semânticos, para que um texto seja engraçado” 58. Por outro lado, Raskin reconhece o caráter

interdisciplinar do humor, ao entendê-lo como um fenômeno multifacetado complexo59.

É com base nessa afirmativa que Aragão (2005) realiza uma análise da Cartilha do

Lula, proposta pelo jornalista José Simão (Macaco Simão), assumindo pressupostos da

dialetologia e da sociolingüística. Para verificar aspectos fonético-lexicais e semânticos que

entram nas composições do referido jornalista, a autora demonstra como possibilidades

estruturais e combinatórias – que o sistema permite – podem fazer com que surjam novos

signos com conotações engraçadas e humorísticas60.

56 TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Uma introdução aos estudos do humor pela lingüística. In: Delta, 6 , 1990, p. 55 – 82 57 TRAVAGLIA, Luis Carlos. Op. Cit. p. 60 58 CONDE, Gustavo. Op. Cit. p. 36 59 RASKIN, Victor. Op. Cit. p. 11 60 ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. Cartilha do Lula – uma análise fono-léxico-semântica. Revista de Letras. Fortaleza, v. ½, n. 27, 2005. p. 90 - 95

Page 23: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

37

Por outro lado, outros autores têm buscado, no humor, verificar aspectos de seu

funcionamento sócio-cultural, sem, contudo, relegar a segundo plano os lingüísticos. Isso

acontece ora porque vêem neles a possibilidade de demonstrar as práticas sociais e realidades

que o discurso humorístico reflete, ora porque deles se valem para esboçar a constituição de

um dado gênero textual/discursivo.

Nesse sentido, Conde (2005) busca, além dos aspectos lingüísticos, dar conta de vários

níveis de intelecção emaranhados numa piada. Para tanto, vale-se da análise do discurso, da

teoria semântica dos scripts formulada por Raskin e de considerações freudianas sobre os

chistes. Numa abordagem pragmática do discurso humorístico, o autor intenta dar corpo a

uma teoria discursiva do humor. Por outro lado, a fim de também confirmar que os estudos

humorísticos são empreendimentos interdisciplinares61, Muniz (2004) desenvolve um trabalho

que visa à caracterização do gênero piada, apoiando-se na Lingüística textual, Análise do

discurso de linha francesa e Pragmática. A autora tem como objetivo fornecer elementos para

que a piada seja considerada um gênero inerentemente narrativo62.

De fato, um dos pontos em comum apresentados pelos dois pesquisadores supracitados

são os pressupostos da teoria semântica do humor verbal na linha de Raskin. Além disso,

tomam piadas como corpus, a fim apontar novos rumos de análise para as mesmas. A base de

tal teoria semântica está alicerçada sob cinco pilares, através dos quais é possível considerar

um dado texto como humorístico, ou melhor, como uma piada. E Possenti (2001) apresenta-os

assim:

Segundo Raskin (1987: 17), uma caracterização do chiste, feita em termos semânticos, conteria os seguintes ingredientes: a) uma mudança de comunicação bona-fide para o modo não bona-fide de contar piadas; b) o texto considerado chistoso; c) dois scripts (parcialmente) superpostos compatíveis com o texto; d) uma relação de oposição entre os dois scripts; e) um gatilho, óbvio ou implícito, que permite passar de um script a outro63.

A questão central, conforme Possenti, é que, para a lingüística, o que mais interessa é

a descrição dos gatilhos e a verificação da compatibilidade entre os dois scripts, ou seja,

identificação de razões (lingüísticas) que fazem com que sejam compatíveis. No entanto,

aceitando os preceitos de Raskin, é preciso entender que as piadas não se constituem só de

elementos verbais. Em suas palavras,

All the five components of the joke, postulated by the script-based theory of humor, should be present between the text of the joke and its linguistic and

61 RASKIN, Victor. Op. Cit. p. 11 62 MUNIZ, Kassandra. Piada: conceituação, constituição e práticas – um estudo de um gênero. Campinas, 2004. Dissertação (Mestrado) – Unicamp. 63 POSSENTI, Sírio. Op. Cit. p. 22

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38

extralinguistic context, or in other words, between the text and the situation in which it is uttered64.

Assim, entendemos que, segundo Raskin (1987), as piadas não dependem apenas do

aspecto lingüístico, mas também do contexto extralingüístico, da situação de uso; logo, não só

dos elementos verbais que entram em jogo, mas das condições de produção. Além do mais,

todos os cinco pilares (ou ingredientes) precisam estar presentes entre texto e contexto, pois se

qualquer um faltar, não haverá piada.

Voltando aos pilares da teoria de Raskin (1987) apresentados por Possenti (2001),

alguns conceitos precisam ser aclarados, como a idéia de script e a da mudança de

comunicação bona-fide para não bona-fide. Conde (2005) diz que “o script é uma espécie de

roteiro de práticas sociais específicas” e que, por isso, “quando Raskin fala em scripts

sobrepostos, já fala em discurso, se se quiser” 65. Esta idéia advém da concepção que possui

os analistas de discurso sobre a estreita relação existente entre as práticas sociais e os

discursos. Já Raskin (1987) define os “scripts como entidades semânticas formais, que

resultam da análise semântica de um texto” 66. Como roteiro de práticas, os scripts são, pois,

reconhecidos (e conhecidos) tanto numa situação de comunicação oral quanto numa análise

de um dado texto escrito. É o reconhecimento de um novo script que se sobrepõe a um

primeiro que instaura a mudança de comunicação bona-fide para não bona-fide.

Esses modos de comunicação são explicitados por Garcia (2008), quando diz que

Raskin, ao distinguir tais modos de comunicação, elabora um princípio de cooperação

humorístico, nos moldes dos princípios de cooperação de Grice. Assim sendo, o autor aponta

que a maioria das formas de comunicar-se, desde que não se transgrida o princípio de

cooperação, é denominada comunicação bona-fide, ou fidedigna. Ao transgredir tal princípio,

portanto, os interlocutores situam-se no âmbito da mentira ou do chiste (humor), que seriam

usos desviados da linguagem67.

Ainda segundo Garcia (2008), se para Raskin o humor implica um desvio no uso da

linguagem, Curcó apresenta uma visão diferente, visto que, para ele, no humor, operam os

mecanismos de sempre. Ou seja, os mesmos mecanismos que operam no humor estão

64 RASKIN, Victor. Op. Cit. p. 18 “Todos os cinco componentes da piada, postulados pela teoria de humor com base em script, devem estar presentes entre o texto da piada e seu contexto lingüístico e extralingüístico, ou em outras palavras, entre o texto e a situação em que ele é proferido.” 65 CONDE, Gustavo. Op. Cit. p. 45 66 RASKIN, Victor. Op. Cit. p. 16 67 GARCIA, Francisco Javier Sanchez. Teorias lingüísticas del humor. www.proel.org/articulos/humor.htm acessado em 25/06/2008

Page 25: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

39

presentes em outras situações de uso da linguagem. Neste sentido, há um diálogo com

Possenti, que não vê necessidade de uma lingüística do humor, uma vez que

[...] não há uma lingüística que se ocupe de decidir se os mecanismos explorados para a função humorística têm exclusivamente esta função ou se se trata do agenciamento circunstancial de um conjunto de fatores, cada um deles podendo ser responsável pela produção de outro tipo de efeito em outras circunstancias ou em outros gêneros textuais68.

No primeiro caso, o humor poderia ser pensado como uma técnica própria do ser

humano para alcançar, pela linguagem, determinados objetivos, seja fazer rir ou, como

apresenta Travaglia, denunciar, manter ou quebrar equilíbrios sociais e mesmo revelar novas

visões de mundo. No entanto, se no humor da palavra, como preceitua Possenti, existem

recursos ou mecanismos da linguagem que possam ser tão bem observados quanto em outras

situações de uso – ou até melhor –, é porque os mecanismos lingüísticos que operam no

humor não possuem exclusivamente a função de produzi-lo.

Ele é, portanto, mais um campo de manifestação da linguagem, com gêneros diversos,

mas com características que acenam para uma estabilidade. Uma ordem à qual subjazem

vários gêneros textual-discursivos, que, pelo menos no que concerne ao gênero piada, parece

estar bem definida. Segundo Conde (2006), com regras e personagens preferenciais,

componentes consagrados, como o simulacro, a estereotipia e a sobreposição de scripts, além

de possibilitar invariavelmente a descoberta de novos sentidos, as piadas apresentam-se como

um gênero de discurso69. Sendo gênero, é de se pensar que podem ser alocadas em grupos ou

ordens cujos gêneros integrantes apresentem funções sócio-discursivas e construções de

enunciados similares.

A esse respeito, Bakhtin (2003) atesta que os tipos relativamente estáveis de

enunciados são denominados gêneros do discurso e que estes, para que assim sejam

considerados, devem apresentar certa estabilidade no conteúdo temático, no estilo e

construção composicional. Por estilo de linguagem o autor entende a seleção de recursos

lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua70. É nesse sentido, portanto, que as piadas são

consideradas gêneros textual-discursivos, visto serem práticas discursivas ou formas de ação

no mundo que apresentam características de certo modo estáveis.

Independentemente da teoria (textual ou discursiva), as piadas não deixam de ser

veículo de um discurso proibido, subterrâneo, não oficial; ou seja, de discursos não

68 POSSENTI, Sírio. Op. Cit. p. 21 69 CONDE, Gustavo. Op. Cit. p. 63 70 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 261

Page 26: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

40

explicitados correntemente71. Dado interessante também nas piadas é que elas não possuem

autor definido, sendo a evidência de que existem discursos que se dizem – que são ditos por

todos – dadas certas condições72. Mas a ausência clara de um autor não implica

impossibilidade de se buscar, nas piadas, um suporte subjetivo, porque, independentemente de

sua condição de “encontrada” e não “feita”, seu aparecimento depende de um enunciador,

“alguém cuja face não nos é mostrada, uma instância sem ponto de vista, mas que articula e

antecipa todos os possíveis” 73. Assim sendo, tanto na abstração quanto na sua conseqüente

materialidade, as piadas operam com discursos que possuem um enunciador, alguém a quem

se pode atribuir uma condição de sujeito da enunciação; logo, responsável pelo discurso nela

veiculado. Este, certamente clivado por dois mundos sócio-culturais; ou melhor, pertencente a

um mundo cujos conhecimentos que compartilhe se entrecruzem em dois scripts, roteiros de

práticas discursivas que se opõem, usualmente, em um sentido especial, como sustenta Raskin

(1987).

Quanto à definição de script, na visão da lingüística textual, pode-se entendê-lo como

um feixe estruturado e formalizado de informação semântica inter-relacionada74. Segundo

Travaglia (1990), é com base nesta noção que Raskin, aplicando-a ao humor, cria sua teoria,

cuja sustentação apresenta duas hipóteses principais: a) o texto é compatível, em seu todo ou

em parte, com dois scripts diferentes; b) os dois scripts com os quais o texto é compatível são

opostos em um sentido especial75.

Tais hipóteses são oriundas de uma questão-problema que Raskin considera central no

estudo do humor: “O que é engraçado?”. Para respondê-la, ele defende que o humor verbal

deve ser visto como um texto e em que se deve buscar descobrir um conjunto de propriedades

lingüísticas tais que qualquer texto que as apresente será engraçado. Travaglia ainda

acrescenta a esta posição o fato de que o texto tenha que ser engraçado para alguém, mas não

necessariamente para todo mundo. Neste cerne, o texto que for percebido como engraçado por

alguém, terá tais propriedades76. Ou seja, é preciso que o texto apresente os cinco ingredientes

já mencionados acima, quando recorremos a Possenti, para que possamos considerá-lo uma

piada. Do contrário, pode até ser visto por alguém como um texto engraçado, mas não

necessariamente ele será considerado uma piada.

71 POSSENTI, Sírio. Op. Cit. p. 26 72 POSSENTI, Sírio. Op. Cit. p. 37 73 CONDE, Gustavo. Op. Cit. p. 62 74 TRAVAGLIA, Luis Carlos. Op. Cit. p. 76 75 TRAVAGLIA, Luis Carlos. Op. Cit. p. 77 76 TRAVAGLIA, Luis Carlos. Op. Cit. p. 61

Page 27: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

41

2.1.1 A heterogeneidade no discurso das piadas

Segundo Possenti (2001), as piadas parecem ter sido criadas a propósito, caso se

queira ilustrar a intertextualidade ou a heterogeneidade dos discursos. Para ele, qualquer texto

com mais de um sentido pode servir para este fim, mas há chistes que invocam explicitamente

a intertextualidade77. Por outro lado, como preceitua Barros (2005), é no jogo da

intertextualidade que se pode, através do exame acurado dos procedimentos da semiótica,

construir os sentidos de cada texto e recuperar a trama ou enredo da sociedade e da história78.

Assim ocorre com os quadrinhos, no âmbito do humor e, da mesma forma, com textos da

história, literatura, ou com discursos políticos ou religiosos, todos heterogêneos.

Sobre esta noção, Maingueneau (1997) entende que, quando se fala em

heterogeneidade do discurso, o que se pretende é tomar conhecimento de uma relação radical

existente entre seu “interior” e seu “exterior” 79. Tal autor distingue a heterogeneidade

mostrada da constitutiva com a seguinte explicação:

[...] a primeira incide sobre as manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes de enunciação, enquanto a segunda aborda uma heterogeneidade que não é marcada em superfície [...] 80

Neste sentido, os discursos têm formações que, se não apresentam duas dimensões,

possuem uma organização advinda da relação com o que se imagina ser exterior, mas que, na

verdade, faz parte de sua identidade81. É por isso que o autor, para tratar dessa questão, aponta

que é preciso considerá-la em dois planos diversos: um plano de superfície e outro de ordem

interdiscursiva.

Também diferenciando tais planos sob a denominação respectiva de intertexto e

interdiscurso, Orlandi (2003) aponta que, enquanto o primeiro restringe-se à relação de um

texto com outros textos, o segundo “é da ordem do saber discursivo, memória afetada pelo

esquecimento, ao longo do dizer” 82. Numa definição mais ampla, a autora sustenta,

inicialmente, que o interdiscurso é aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente.

E completa, dizendo:

77 POSSENTI, Sírio. Op. Cit. 38 78 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Op. Cit. 83 79 MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1997. p. 75 80 MAINGUENEAU, Dominique. Op. Cit. 75 81 MAINGUENEAU, Dominique. Op. Cit. 75 82 ORLANDI, Eni Puccnelli. Análise de discurso – princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003. p. 34

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42

[...] é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra83.

Para Orlandi, portanto, o que é dito depende de um já-dito, estando todo dizer

diretamente ligado a um dito, e esquecido. É por isso que a autora conceitua o interdiscurso

como “conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos” 84.

Nessa perspectiva, esquecimento é entendido como fator ideológico, pertencente à instância

do inconsciente, por termos a ilusão de que dizemos o original, quando, na verdade,

retomamos sentidos pré-existentes. E é por isso que Orlandi completa:

Para que minhas palavras tenham sentido, é preciso que elas já façam sentido. E isto é efeito de interdiscurso; é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em um momento particular, se apague na memória para que, passando para o “anonimato”, possa fazer sentido em minhas palavras85.

Com tais considerações a autora acena para um diálogo com o que preceitua Barros

(2003), que, ao tratar de conceitos bakhtinianos, como dialogismo, polifonia e

intertextualidade, diz ser este último a dimensão primeira de que o texto deriva. Ou seja, para

ela instaura-se um primado da intertextualidade (ou interdiscursividade, se se quiser separar),

sobre a textualidade, quando se tem um diálogo entre as vozes internas de um dado texto86,

que se constitui a partir dessa intertextualidade e não o contrário.

Também sobre a heterogeneidade dos discursos, Fiorin (2003) realiza uma

diferenciação relevante. Entendendo que o conceito de intertextualidade concerne ao processo

de construção, reprodução ou transformação do sentido87, o autor diz ser preciso diferenciar

os dois planos da heterogeneidade, caso se distinga a noção de discurso da noção de texto.

Sendo assim, conceitua o plano de superfície como processo de incorporação de um

texto em outro, seja para reproduzir ou transformar o sentido incorporado, podendo se

manifestar através de três processos: citação, alusão e estilização88. O primeiro pode

confirmar ou alterar o sentido do texto citado; no segundo, não se citam as palavras, mas se

reproduzem construções sintáticas em que certas figuras são substituídas por outras; já o

terceiro processo é a reprodução do conjunto dos procedimentos do estilo de outrem.

83 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 31 84 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 34 85 ORLANDI, Eni Puccinelli. OP. Cit. p. 34 86 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Dialogismo, polifonia e enunciação. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de e FIORIN, José Luiz (orgs.). Dialogismo, polifonia e intertextualidade. São Paulo: Edusp, 2003. p. 04 87 FIORIN, José Luiz. Polifonia textual e discursiva. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de e FIORIN, José Luiz (orgs). Dialogismo, polifonia e intertextualidade. São Paulo: Edusp, 2003. p. 29 88 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 30

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43

Por outro lado, a interdiscursividade é vista pelo autor como a incorporação dos

percursos temáticos e/ou figurativos de um discurso em outro. Os processos interdiscursivos

ocorrem de duas formas: através de citação, com a repetição de percursos temáticos e/ou

figurativos; e de alusão, ao se incorporarem temas e/ou figuras de um discurso que serve de

contexto para a compreensão do que foi incorporado89.

Desta forma, Fiorin (2003) afirma que a interdiscursividade não implica

intertextualidade, embora o contrário seja verdadeiro, uma vez que se referir a um texto

implica referir-se ao discurso nele manifestado, mas não obrigatoriamente se chega a um

mesmo texto quando se recorre a um mesmo discurso. Ou seja, segundo ele, a

intertextualidade não é um fenômeno necessário para a constituição de um texto, mas a

interdiscursividade o é para um discurso; ou seja, ela é inerente à sua constituição90.

Voltando, pois, ao que preceitua Possenti, sobre a heterogeneidade discursiva, vale

salientar o exemplo dado com o chiste “O futebol é o craque do povo”. Segundo o autor, há

neste pequeno texto uma alusão à conhecida frase, “a religião é o ópio do povo”, que foi

incorporada ao âmbito do futebol, passando a ser dita “o futebol é o ópio do povo”. Possenti

explica que, devido à troca da palavra ópio por craque, o leitor é levado à descoberta das

correlações entre craque do futebol, jogador de qualidades admiráveis e diferenciadas, e

crack, droga considerada, na atualidade, entre as mais perigosas no que tange aos efeitos

nocivos ao usuário e à dependência a que este se submete. Além disso, esta frase certamente

evoca as anteriores (religião é o ópio do povo / futebol é o ópio do povo), residindo sua graça

também nesta descoberta.

Neste cerne, a imposição do texto sobre o leitor sustenta-se através dos dispositivos

de que o primeiro dispõe, para apresentar ao segundo diversas possibilidades de leitura, a fim

de que, em seguida, possa impedir-lhes algumas91. Dispositivos estes que fazem com que o

leitor volte-se para outros textos, caídos no esquecimento, e que são retomados, para que um

dado texto possa significar. Nesse jogo ambíguo da intertextualidade é que determinadas

piadas constroem o humor, decorrente da (re) descoberta do conhecido, porém, esquecido, e

que retorna sob outra “face”, pré-construída, com sentidos reproduzidos e/ou transformados.

Se entendermos, portanto, que através de relações intertextuais os textos impõem algo

a algum leitor; isto é, que pela relação com outros textos é que as piadas também podem

significar, quando impõem determinados sentidos aos leitores, é preciso aceitar o primado do

89 FIORIN, José Luiz. OP. Cit. p. 32, 34 90 FIORIN, José Luiz. Op. Cit. p. 35 91 POSSENTI, Sírio. Op. Cit. p. 62

Page 30: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

44

intertexto sobre o texto, pelo menos neste caso. É preciso que, assim como a

interdiscursividade, a intertextualidade seja entendida como constitutiva e necessária para os

sentidos; logo, para a significação dos discursos veiculados nas piadas.

2.2 O DISCURSO RELIGIOSO

Para tratar das formações discursivas que dispõem de artifícios persuasivos, Citelli

(1993) diz ser o discurso autoritário persuasivo por excelência, visto abrigar todas as

condições para que ocorra a dominação pela palavra. Sobre ele, ressalta o autor:

É um discurso exclusivista, que não permite mediações ou ponderações. O signo se fecha e irrompe a voz da ‘autoridade’ sobre o assunto, aquele que irá ditar verdades como num ritual entre a glória e a catequese. O discurso autoritário lembra um circunlóquio: como se alguém falasse para um auditório composto por ele mesmo. É na forma discursiva que o poder mais escancara suas formas de dominação92.

Visto por este ângulo, a persuasão está diretamente ligada à dominação, que neste caso

se dá pelos sentidos tomados como únicos; são verdades absolutas, sem possibilidade de

contestação. Nesta perspectiva, o autor acredita que o discurso religioso apresenta as

formações discursivas mais explicitamente persuasivas, cujo eu enunciador, além de não

poder ser visto ou analisado, possui voz que engloba todas as outras, inclusive a de quem fala

em seu nome. Assim, o autor o caracteriza como um discurso de autoria sabida, mas não

determinada, pelo fato de seu representante construir sua fala como verdade não sua, mas do

outro, “aquele que, por ser considerado determinação de todas as coisas, engloba todas as

falas do rebanho”93.

Já para Orlandi (1996), tem-se, no discurso autoritário, uma tendência à monossemia,

pois sua polissemia é contida. Para a autora, todo discurso é polissêmico por definição e o

autoritário, por conseqüência o religioso, tende a estancar a polissemia94, visto que os sentidos

não podem ser quaisquer sentidos, mas aqueles que a Igreja adota. É por isso que ela afirma

que a interpretação da palavra de Deus é regulada; e prossegue com as seguintes colocações

sobre o que regula a palavra divina:

92 CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. São Paulo: Ática, 1993. p. 39 93 CITELLI, Adilson. Op. Cit. p. 48 94 ORLANDI, Eni Puccinelli. O discurso religioso. In: A linguagem e seu funcionamento – as formas do discurso. Campinas: Pontes, 1996. p. 240

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45

No cristianismo, enquanto religião institucional, a interpretação própria é a da Igreja, o texto próprio é a Bíblia, que é a revelação da palavra de Deus, o lugar próprio para a palavra é determinado segundo diferentes cerimônias95.

Segundo a autora, como no discurso religioso fala a voz de Deus, existe um

desnivelamento fundamental na relação entre locutor e ouvinte – no caso da modalidade oral

– sendo o locutor do plano espiritual (Deus) e o ouvinte do temporal (homens). Daí se

constitui a assimetria que leva a não-reversibilidade de tais planos: os homens não podem

ocupar o lugar de locutor, pois este é o lugar de Deus. É esta a relação de interlocução que

constitui o discurso religioso, dada e fixada pela assimetria96.

O que existe, portanto, é um mecanismo de incorporação de vozes, no qual uma voz se

fala na outra da qual é representante. Para Orlandi, outros discursos dispõem deste

mecanismo, tais como o discurso político, em que a voz do povo se fala no político,

candidato; ou o pedagógico, no qual a do saber se fala na voz do professor. Desta forma, no

discurso religioso, a voz de Deus se fala na voz do padre – e do pastor, se se pensar na

ideologia cristã sob suas duas vertentes mais difundidas. Outros discursos apresentam

diferentes graus de autonomia do representante em relação à voz que fala nele, mas no

religioso, segundo a autora, nenhuma autonomia se faz perceber, pois de forma alguma o

representante pode modificá-la97.

Após tais considerações, Orlandi sustenta que se mantém a distância entre o “dito de

Deus” e o “dizer do homem”, havendo uma separação – quiçá diferença – entre a significação

divina e a linguagem humana. É por isso que ela afirma manter-se obscura tal significação,

que, mesmo desejada, não pode ser acessada pelo homem, por este ser apenas, e tão somente,

porta-voz da palavra divina. Daí também a autora caracterizar o discurso religioso pela não-

reversibilidade dos planos (espiritual e temporal), criando o conceito de ilusão da

reversibilidade. Para ela, como não se pode interagir com Deus, o homem tem essa ilusão a

partir do momento em que seus representantes “falam” por ele. Contudo, ela não desconsidera

as diversas fórmulas que o ser humano cria para “alimentar”, tal ilusão, conferindo-lhes lugar

de destaque na caracterização do discurso religioso, quanto às marcas que o constituem. E

explica em que consiste a reversibilidade, sem confundi-la com a crença do cristão, que

acredita poder falar com Deus:

A reversibilidade não está em se poder falar também, ou se poder falar diretamente. O eu-cristão pode falar diretamente com Deus, mas isto não

95 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. 246 96 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. 243 97 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. 245

Page 32: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

46

modifica o seu poder de dizer, o locutor de onde fala. O que, em análise de linguagem, significa que não se altera o estatuto jurídico do locutor98.

Ou seja, fala-se com Deus, mas não em seu lugar. Mesmo com espontaneidade,

contrariando as fórmulas prontas (Ó meu Deus! Senhor, faça com que...) não se reverte tal

estatuto. Mantém-se, pois, a dissimetria, porque se mantém a relação: de um lado a

onipotência divina; de outro, a submissão humana99.

Sobre a questão da fé, Orlandi afirma que esta é mais um constituinte que confirma o

estatuto da interlocução no discurso religioso, já que a fé é uma graça divina, dada por Deus

aos homens. Ela não emana deles; logo, é mais um fator que comprova a não-reversibilidade

entre os dois planos. Além disso, distingue os fiéis dos não-fiéis, os convictos dos não-

convictos; pela fé, o discurso religioso é uma promessa, mas, para os que não crêem, é uma

ameaça100.

Outro “ingrediente” do discurso religioso para confirmar a principal propriedade em

questão – isto é, a ilusão da reversibilidade – é o milagre. Para Orlandi, à interferência divina

une-se a inexplicabilidade da ciência dos homens, para a constituição do milagre. Neste

sentido, os homens não operam milagres, mas sim Deus. As palavras que proferirem em

qualquer ato dito milagroso são, portanto, decorrentes da concessão divina, dita pelos homens,

mas o efeito é resultado da intercessão de Deus.

No entanto, a ilusão da reversibilidade, sendo propriedade constituinte do discurso

religioso, implica uma conseqüência ainda mais relevante para quem se propõe estudar esse

gênero de discurso (tipo, no dizer de Orlandi): trata-se da relação do homem com o poder.

Assim a autora sustenta que a ilusão da reversibilidade toma apoio na vontade de poder que

têm os homens. Sobre isso ela acrescenta:

Essa vontade aponta para a ultrapassagem das determinações (basicamente de tempo e espaço): ir além do visível, do determinado, daquilo que é aprisionamento, limite. Ter poder é ultrapassar. E ter poder divino é ultrapassar tudo, é não ter limite nenhum, é ser completo101.

É desta vontade de poder que derivam as transgressões do discurso religioso, visto que

quem o transgride busca assumir o lugar do poder absoluto; ou seja, tomar o lugar de Deus e

ter poder sobre tudo, inclusive com a possibilidade de dizer em seu lugar aquilo que lhe for

conveniente. Caracterizada como blasfêmia, no entanto, a transgressão consiste numa quebra

98 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. 247 99 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. 247 100 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 250 101 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 253

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47

das regras do jogo; é uma apropriação do inapropriável cujo traço principal é a gratuidade:

não muda nada, não traz nada, não prejudica nenhum ser humano; é um exercício de liberdade

que se faz por pura malícia102. Ultrajando a palavra de Deus, o blasfemo busca tomar seu

lugar, burlando a dissimetria dos planos, na perspectiva de reverter sua condição. Para

Orlandi, a blasfêmia nasce da contradição no interior de uma só e mesma palavra, a qual

decorre do maniqueísmo que concebe o mundo de forma dual.

2.2.1 Discurso religioso, mídia e intertextualidade

Segundo Orlandi (1996), o sentimento religioso não está presente apenas no espaço

dos templos ou nas formas institucionais da religião. Espalha-se pelo cotidiano, ao adquirir

múltiplas formas e acompanhar o homem em seu dia-a-dia. Neste caso, a ilusão da

reversibilidade encontra-se em qualquer fragmento de linguagem, não só nos dizeres

proferidos no espaço institucional (a Igreja) através dos representantes da palavra divina ou

nos comentários de quem dela faz uso para ratificá-la, como o faz o teólogo.

Sendo assim, a autora nos dá um bom exemplo de como o homem, com a mídia

escrita, pode apropriar-se do prestígio da palavra divina. Ao tratar do Golpe de 64 e suas

implicações, um jornalista, para eximir de culpa os pichadores do muro de um museu, diz que

“eles não sabem o que fazem.” 103 Nessa perspectiva, vemos que relações intertextuais não só

estão presentes no discurso teológico, como característica forte que lhe é atribuída, mas

também em outros discursos que se apropriam (ou se beneficiam) da palavra divina.

No caso do exemplo da mídia jornalística citado anteriormente, é preciso que haja uma

remissão ao texto bíblico (LUCAS, 23: 33 – 34)104, para que aquele signifique, o que

caracteriza a intertextualidade. Já com o discurso teológico, tal relação se dá como um

comentário ao texto de origem. Na verdade, Orlandi prefere não fazer uma distinção estanque

entre discurso religioso e teológico. Diz apenas que o primeiro caracteriza-se pela

espontaneidade, enquanto o segundo, pela formalidade. Em suma, no teológico tem-se um

comentário do teólogo sobre a palavra divina, já no religioso existe a tomada da palavra pelo

representante, ou mesmo pelo fiel, de maneira espontânea, sem que ela seja modificada.

O fato é que, tanto o teológico quanto o religioso, se se quiser distinguir, são discursos

cuja autonomia do representante, ou teólogo, em relação a voz de Deus, praticamente inexiste, 102 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 254 103 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 256 104 “Quando chegaram ao lugar do chamado Calvário, ali o crucificaram, bem como aos malfeitores, um à direita, outro à esquerda. Contudo Jesus dizia: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.”

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o que lhes confere um caráter fechado. É por isso que a autora diz haver um discurso obscuro,

um dizer sempre-já-dito, que se fala para os homens105. E isto é um princípio da

intertextualidade, que se define, segundo a própria autora, pela remissão de um texto a outro

para que o primeiro signifique.

Sobre a relação mídia e religião na atualidade, Burity (2005) diz que o vínculo entre

essas duas instâncias do exercício lingüístico aparece de duas formas: com a ocupação do

discurso religioso, em seu próprio nome, nos diversos espaços de que a mídia dispõe para

difusão (rádio, tevê, internet e outros); ou por meio do discurso comentado, através de

documentários, entrevistas, cobertura de notícias, entre tantas outras formas de se falar do

outro, de que a mídia faz uso. Além disso, o autor aponta que a presença da religião na mídia

se estende dos produtos oferecidos, nos espaços de que ela dispõe, à propriedade de veículos e

recursos de produção106. Em suma, Burity condensa essa relação da seguinte maneira:

[...] de um lado, a mídia exibe a religião como notícia, como polêmica, como produto para um certo público consumidor dos rituais e manifestações massivas da religião [...] De outro lado, a religião investe na mídia, certa de que a tecnologia da comunicação pode fazer muito para propagar seu discurso muito além de sua capacidade de difusão pelos meios clássicos da pregação ou da interação face-a-face107.

De qualquer forma, mantém-se o primado da intertextualidade como nos ensinou

Orlandi, com o exemplo do jornalista. Mesmo que as ocorrências se dêem na face teológica

do discurso religioso, é preciso que seu dizer institucional, ou seja, o texto bíblico seja alvo de

retomadas para que as reportagens, entrevistas ou discursos gravados (ou ao vivo) façam

sentido. Contudo, tais retomadas da palavra divina nos moldes em que preceitua Burity não

conferem ao discurso religioso nenhum efeito de ressignificação, ambigüidade ou malícia,

como no caso das blasfêmias de que trata Orlandi. São mais uma forma de reafirmar a palavra

de Deus ou comentá-la, expondo os pontos fortes e os obscuros.

105 ORLANDI, Eni Puccinelli. Op. Cit. p. 260 106 BURITY, Joanildo A. Mídia e religião: os espectros continuam a rondar... Disponível em: www.comciencia.br/reportagens/2005/05/14_impr.shtml acessado em 10/07/2008 107 BURITY, Joanildo A. Op. Cit. p. 02

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49

3. ANÁLISE SEMIÓTICA DE PIADAS INTERTEXTUAIS

3.1 A PRIMEIRA PEDRA

Maria Madalena estava no meio da praça, prestes a ser apedrejada, quando Jesus

interviu108 a seu favor:

- Quem aqui nunca errou que atire a primeira pedra...

Todos que estavam ali recuaram e jogaram as pedras no chão, menos um português,

que se abaixou, pegou um tijolo do chão e jogou bem no meio da testa da coitada...

Então Jesus ficou inconformado e foi conversar com ele:

- Manoel, meu filho... Por acaso você nunca errou?

- Olha, senhor... Eu posso até ter errado, mas dessa distância não...

No que tange ao funcionamento dos mecanismos lingüísticos para a geração dos

efeitos de humor, podemos dizer que esta é uma piada intertextual, porque ela se constitui a

partir da relação entre um texto e outro para significar. Envolve dois universos de discurso

distintos, os quais acionam simultaneamente temas e figuras que lhes são peculiares. Nesse

sentido, faz de início uma alusão à passagem bíblica João 8: 1-11109, em que Jesus é posto à

prova pelos escribas e fariseus, os quais lhe apresentam uma mulher adúltera a fim de que

diga se devem ou não apedrejá-la. Entretanto, o texto aciona em seguida um script

humorístico cujo personagem central é um típico português, estereotipado como burro. O

gatilho que proporciona tal mudança de script é o verbo “errar”, que entra em lugar de pecar e

permite que Manoel interprete a indagação de Jesus como errar um arremesso de uma pedra.

Percurso temático

Partindo da segmentação do texto, delineamos os momentos que nos permitirão traçar

os percursos narrativos de dois sujeitos semióticos (S) em A primeira pedra. São eles Jesus

(S1) e o português Manoel (S2). Eis, portanto, a segmentação da narrativa:

108 Optamos por manter a conjugação verbal conforme a versão original, coletada no site www.aspiadas.com, ainda que tenhamos percebido desacordo com a norma padrão, que prescreve a conjugação interveio, visto apontar o verbo INTERVIR como derivado do verbo VIR, seguindo, pois, seus paradigmas de conjugação. Nossa intenção é manter a fidelidade aos corpórea que encontramos, consoante a variedade lingüística do (s) internauta (s) que enviou (aram) a (s) piada (s). 109 Para realizar a mudança de script, a piada altera o versículo 7, que diz: “Como insistissem na pergunta, Jesus se levantou e lhes disse: Aquele que dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro que lhe atire pedra”.

Page 36: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

50

1. A EXPECTATIVA DO APEDREJAMENTO

2. A INTERVENÇÃO DE JESUS

3. O RECUO DOS AGRESSORES

4. A AÇÃO DO PORTUGUÊS

5. A INTERPELAÇÃO DE JESUS A MANOEL

6. A RESPOSTA DE MANOEL

3.1.1 Narrativização

Modalizado por um querer, o sujeito semiótico 1 (doravante S1) procura intervir na

ação daqueles que se propunham apedrejar Madalena, sua adjuvante, de quem ele se serve

para exemplificar e persuadir “todos”, por meio de um discurso de sedução. Com este, tenta

fazer-crer que “todos” não são diferentes de Madalena, porque também pecam; ou melhor,

erram. Logo, não devem apedrejá-la, se não quiserem apedrejar a si mesmos.

Seu objeto de valor (OV) principal é a fé das pessoas; para atingi-lo, traça um percurso

que vai da manutenção da integridade física de Madalena (OV1) ao convencimento de seu

oponente (Manoel) (OV3). Este, quando surge na narrativa, assim como “todos”, obstaculiza

o alcance do objeto de valor do S1.

Já o S2, também modalizado por um querer-fazer, além de um poder-fazer, é

destinado por um querer coletivo de um grupo em que se insere: os agressores que pretendiam

apedrejar a Madalena. Tem Jesus como seu adjuvante (Adj.), o qual, em suas palavras, acena

para a possibilidade de alguém atingir a mulher; ou seja, lança o desafio àquele que nunca

“errou”. É impulsionado por este desafio que o S2 busca entrar em conjunção com seu objeto

de valor inicial (responder a Jesus).

Por outro lado, Jesus também figura como oponente do S2 no decorrer do percurso

narrativo, visto que vem a interpelá-lo na perspectiva de obstaculizar sua conjunção com o

terceiro objeto de valor: a ratificação de sua pontaria. O S2 busca, então, fazer-crer que possui

boa pontaria, ao afirmar que, àquela distância jamais errara, denotando ter capacidade para

fazê-lo. Logo, instaura-se também por um poder.

É possível dizer que, na busca de seus objetos de valor, existe uma diferença entre os

dois sujeitos semióticos da narrativa. O S1 principia disjunto de seu OV principal e, nas

palavras finais e atitudes do português, vê-se ainda disjunto, embora tenha ocorrido uma

conjunção momentânea, quando os outros agressores largam as pedras e recuam. Por outro

Page 37: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

51

lado, o S2, que de início encontra-se disjunto com seu OV, termina por entrar em estado de

conjunção, porque acerta a pedra “bem no meio da testa da coitada”. Assim, consegue sua

auto-afirmação, como pretendido.

Apresentamos, em seguida, os percursos narrativos dos dois sujeitos semióticos em

questão. Primeiro, o percurso do sujeito semiótico 1 (S1):

Onde:

S1 = Jesus

OV1= Manter a integridade física de Madalena.

OV2= Convencer todos a admitirem seus erros.

OV3= Convencer Manoel.

Agora, o percurso narrativo do sujeito semiótico 2 (S2):

Onde:

S2 = Manoel

OV1 = Responder a Jesus

OV2 = Atingir Madalena

OV3 = Ratificar sua pontaria

S2 OV2

OV3 S2

S1

OV2

OV3 S1

OV1

OV1

Page 38: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

52

3.1.2 Discursivização

“A primeira pedra” apresenta os seguintes atores, do ponto de vista das estruturas de

superfície: Jesus e Manoel, que figuram como sujeitos enunciadores nos diálogos presentes na

narrativa, concebida por um sujeito enunciativo. A Maria Madalena, que, na passagem

bíblica, apresenta-se no papel temático da mulher adúltera, permanece em tal papel. Todos

remete aos personagens bíblicos que pretendiam apedrejar Madalena (os escribas e os

fariseus) até ouvirem Jesus, que lhes convence a não mais apedrejá-la, tal como na Bíblia.

Verificamos um sincretismo actancial no ator Manoel: ora figura como o português, ora é

Manoel.

Quanto à categoria de espaço, vemos que é representado pelas expressões no meio da

praça, aqui e ali; já o tempo, com relação ao sujeito enunciador da piada, é marcado pela

própria referência a Jesus, o que demonstra um distanciamento desse sujeito. Fora isso, não

existem outros marcadores temporais que situem o sujeito enunciador, que denunciem seu

tempo, com relação à narrativa. A história não é do sujeito da enunciação, ele está de fora

dela, distante no tempo e no espaço.

Como o efeito de sentido é em 3ª pessoa, quando se tem a narração, e em 1ª, quando se

está diante da enunciação das personagens, pode-se dizer que existe distanciamento do ponto

de vista do sujeito enunciador, ao se tratar daquele que narra a piada, pois dela ele não

participa. Contudo, ao se analisar cada enunciação dos atores, pode-se observar, por exemplo,

uma projeção do eu-aqui-agora, como no enunciado “Eu posso até ter errado, mas dessa

distância não...” Nesse caso, tem-se o eu como o Manoel, “dessa distância” como marca de

lugar “aqui”, relativamente próximo a Madalena, e nas reticências a pressuposição de “não

erro” como agora, pela conjugação verbal no presente. Na verdade, o que existe é uma

concessão que o sujeito da enunciação faz: concede voz ora ao narrador, ora aos atores.

No que tange às figuras acionadas, tem-se Jesus no papel do líder religioso

benevolente, misericordioso. Com relação à passagem bíblica, está praticamente intacto,

exceto pelo fato de ser inserido num contexto situacional diferente do apresentado na

passagem, quando o português arremessa a pedra. Ainda assim, Jesus mostra-se

misericordioso, porque não condena, mas sim busca compreender o porquê de Manoel atingir

a mulher, o qual assume a figura do português, estereotipado como burro, por não entender a

mensagem de Jesus. Daí advém o efeito de humor: de uma reação inesperada e incomum ao

script religioso. O errar, para Manoel, é não acertar a pedra na mulher, mas daquela distância

em que se encontrava, ele afirma não ter como errar, por isso a atinge.

Page 39: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

53

Nesse momento, o sujeito da enunciação busca dar mais dramaticidade à narrativa, ao

referir-se a Madalena como uma coitada e apontar Jesus num estado de inconformismo, mas

que vai conversar e dirigir-se ao português pelo termo “meu filho”. Um tratamento respeitoso

e carinhoso, que é retribuído com um “senhor”.

Do ponto de vista dos valores aos quais remete a piada, percebe-se que ela introduz

uma observação autocrítica que a passagem bíblica original promove, quando Jesus se dirige

àqueles que iam apedrejar Madalena. No entanto, os temas do perdão, da redenção, do amor

ao próximo e da auto-avaliação, evocados pelo texto bíblico, são postos de lado em favor do

riso com a trapalhada do português. Através de uma pequena modificação do verbo pecar

para errar, cria-se um gatilho que torna o signo interpretável ora como pecar, ora como errar

o arremesso da pedra.

A discursivização nessa piada reserva um ponto de discussão ainda mais intrigante: a

dos universos discursivos acionados. A significação da piada ocorre também através do

reconhecimento dos discursos que pertencem a universos discursivos distintos; ou seja, o

religioso e o humorístico. É na relação intertextual que se processa o acionamento desses

universos discursivos, pois o texto começa como uma paráfrase da passagem bíblica,

conservando termos, incrementando outros, mas sem transgredi-la totalmente. Quando o

gatilho é acionado, a piada traz o português e começa a transgressão, porque não havia

nenhum Manoel que não reconhecera a mensagem de Jesus, segundo a Bíblia, a ponto de

jogar uma pedra em Maria Madalena; ou seja, houve um acréscimo determinante de um

personagem não-bíblico ao texto. O discurso de que todo português é burro logo é

reconhecido e a mensagem que vale de reflexão em um texto sacro serve de motivo ao riso,

porque há quem a interprete com outra significação.

Apedrejar uma mulher em campo aberto faz parte do relato bíblico, assim como o faz

todo o enunciado que atire a primeira pedra. Do mesmo modo, uma atitude equivocada,

atrapalhada, faz parte do universo discursivo do humor, no que tange a atitudes de um

português. O que está em jogo aqui é a idéia preconceituosa de que os portugueses são burros

e esse estereótipo, por ser pertencente ao universo discursivo do humor, ao mundo das piadas,

já muda o rumo do texto que analisamos, porque já se pressupõe, antes mesmo de seu

desfecho, que algo inusitado vá ocorrer.

Na verdade, a piada faz sentido porque existem saberes compartilhados entre o

enunciador (aquele que escreveu a piada) e o enunciatário (aquele que lê). O fazer de

persuasão por parte do primeiro implica um fazer interpretativo do segundo, que, conhecedor

dos dois scripts, vê-se diante de uma cena inusitada: um português com interpretações

Page 40: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

54

errôneas, o qual modifica os rumos de uma história até então religiosa, ou pelo menos bem

parecida com uma. Os saberes compartilhados a respeito da cultura religiosa a que pertence a

passagem e da idéia preconceituosa sobre a ignorância dos portugueses, a qual é veiculada nas

piadas, portanto, são os constituintes fundamentais à percepção intertextual que corroboram

para a geração do humor em “A primeira pedra”.

3.1.3 Estrutura Fundamental

Do ponto de vista das oposições semânticas que configuram o octógono, evolução do

quadrado semiótico desenvolvido por Greimas, considerando o script bíblico, perdoar é

eufórico e condenar disfórico. Nesse sentido, perdoar implica não-condenar e entre esses dois

termos tem-se seguir a Jesus, que quer dizer, nesse contexto, não atirar a pedra em

Madalena. Acertar é, pois, refletir e entender que, por também já ter errado/pecado, largar a

pedra. Condenar implica não perdoar, e entre esses termos está o pecar/errar. Eis a ilustração

representativa desse conflito:

Outro octógono ainda pôde ser formulado, segundo o script bíblico, mas do ponto de

vista dos agressores da Madalena, Assim, o eufórico é condenar e o disfórico é perdoar.

Condenar implica não perdoar, já perdoar implica não condenar. Entre a relação de

Tensão dialética

Pecar (errar) Seguir a Jesus (acertar)

Não-condenar Não-perdoar

Perdoar Condenar

Page 41: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

55

implicação eufórica, tem-se atirar a pedra (acertar) e entre a disfórica encontra-se não atirar

a pedra (errá-la), conforme observamos abaixo:

Por outro lado, no script humorístico os termos também se invertem quanto à euforia e

à disforia, mas nas relações de implicação uma mudança se processa: entre condenar e não

perdoar está o acertar (a pedra); já entre perdoar e não condenar encontra-se o errar (a

pedra). Dessa forma, a significação de errar, para o português, é disfórica e acertar/atirar é

eufórica, diferente de Jesus, para quem atirar é disfórico.

Um outro octógono ainda pode ser construído a partir da relação entre os dois scripts

superpostos: o humorístico e o religioso. Nesse caso, tem-se o jogo do ser e do parecer,

conforme Greimas (1975: 92), para quem “todo objeto semiótico, ou qualquer um de seus

elementos (...) existe no modo do ser e no modo do parecer ao mesmo tempo”. A partir dessa

assertiva, ainda podemos configurar a piada sob mais um diagrama, que nos permite, do ponto

de vista do script humorístico, concluir que o ser é eufórico e implica não parecer; já o

parecer é disfórico e implica não ser. Dessas implicações tem-se que o texto humorístico está

entre ser e o não-parecer, já a passagem bíblica está entre o parecer e o não ser. Assim

sendo, entendemos que o texto A primeira pedra parece passagem bíblica, mas é piada. E

Tensão dialética

Não atirar a pedra

Atirar a pedra

Não-perdoar Não-condenar

Condenar

Perdoar

Page 42: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

56

mais: existe no modo do ser e do parecer ao mesmo tempo como uma piada com passagem

bíblica, conforme apresentamos na tensão dialética do esquema seguinte.

3.2 QUEM EU SOU?

Jesus estava entre seus seguidores e disse:

- Alguém dentre vós sabe verdadeiramente quem eu sou?

Um deles respondeu:

- O senhor é a manifestação escatológica das profundezas do nosso ser; a fundação

ontológica do contexto do nosso íntimo revelado.

E Jesus disse:

- Ooo queee?

Esta piada funciona por meio de uma relação intertextual com uma passagem bíblica,

na qual Jesus interroga seus discípulos e tem de Pedro a resposta: “Tu és o Cristo, o Filho do

Deus vivo” (MATEUS, 16:15–16). Na verdade, o efeito de humor é provocado pela presença

da variedade padrão em sua expressão mais exagerada, porque a resposta de Pedro conforme a

Bíblia é simples, e Jesus a entende como uma inspiração divina. Mas na piada ocorre o

T. D.

Passagem bíblica Piada

Não-parecer Não-ser

Ser

Parecer

Page 43: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

57

contrário, ou seja, Ele não a entende; logo, o gatilho está na própria pergunta de Jesus, que

recebe uma resposta além do esperado; é o intertexto com a passagem bíblica que gera a

expectativa de uma resposta nos moldes do discurso religioso, expectativa esta que é quebrada

com uma falácia, exacerbação filosófica para a questão do ser.

Percurso temático

Assim como na piada anterior, a segmentação desta apresenta uma configuração

actancial que nos remete a dois sujeitos semióticos: Jesus (S1) e o seguidor (S2). Tal

segmentação pode ser expressa na seguinte organização temática:

1. A INTERPELAÇÃO DE JESUS

2. A RESPOSTA DO SEGUIDOR

3. SURPRESA SENTIDA POR JESUS

3.2.1 Narrativização

Modalizado por um querer, o S1 busca fazer com que seus seguidores creiam na

relevância de sua existência, persuadindo-lhes, por intermédio de um questionamento direto,

de que eles ainda não a concebem verdadeiramente. Seu objeto de valor principal (OV1) é,

pois, a fé de tais seguidores, a crença em seu poder, em seu nome e em sua relevância. Para

atingi-lo, o percurso que traça vai da expectativa de resposta gerada por sua interpelação

inicial à resposta que pretendia receber de um de seus discípulos. No entanto, a resposta que

recebe não condiz com as expectativas do S1, que fica disjunto de seu objeto de valor. Assim,

este seguidor passa de adjuvante potencial a oponente do S1, prejudicando a obtenção do

valor que ele busca.

Por sua vez, o seguidor é o sujeito semiótico 2 (S2), que tem como objeto de valor

(OV2) a ser alcançado a atenção de todos, visto dar uma resposta que passa a ser o foco das

interpelações e acarreta a surpresa sentida por Jesus; são dizeres que tomam a atenção do

questionamento inicial, pois nem mesmo Jesus os compreende. Neste sentido, o S2 está

modalizado por um poder-fazer, ao levar seu líder a surpreender-se e se questionar sobre tal

resposta.

Nesta perspectiva, pode-se dizer que o seguidor que responde a interpelação de Jesus é

seu oponente, do ponto de vista do programa narrativo do S1, mas sob a ótica do programa

Page 44: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

58

narrativo do S2, Jesus é adjuvante desse seguidor. Com isso, o S2 fica conjunto com seu

objeto de valor, porque prende a atenção de todos, inclusive a de Jesus, ao proferir uma

resposta sem sentido. Vejamos agora os programas narrativos de cada sujeito semiótica da

narrativa em questão:

Dario.

S1

Dario.

S2

3.2.2 Discursivização

Quanto às estruturas discursivas, a piada em questão apresenta Jesus e seu seguidor

como atores. O primeiro assume o papel temático que lhe é comum às narrativas bíblicas

(líder religioso, Salvador, Senhor); já o segundo, assume o papel temático de discípulo

questionador, aquele que interpela o líder, adianta-se ao mesmo, ou busca superá-lo pela

palavra. É como um aluno prodígio, que interage com o mestre, ou rouba-lhe a atenção com

colocações intrigantes e/ou espetaculares.

Figurativizado como líder religioso, Jesus interroga seus seguidores a respeito do

verdadeiro conhecimento que têm sobre ele. Nessa enunciação existe a projeção “eu-aqui-

agora”, que reconhecemos a partir do questionamento direto (dentre vós = aqui) e da

conjugação verbal em tempo presente (sabe = agora). Já o seguidor, que na passagem bíblica

está figurativizado pelo discípulo Simão Pedro, tem sua enunciação, nesta piada, marcada

pelo efeito de subjetividade, visto que instaura, no diálogo com o “tu” (Senhor), o “eu” que se

manifesta sob um “nós” (nosso ser... nosso íntimo).

Quanto à espacialização, nada consta na piada que aponte um espaço aberto ou

fechado, a não ser a própria referência que faz a passagem bíblica. Nela Jesus está a caminho

de um lugar, Cesaréia de Filipe, e é justo neste caminho que interroga seus discípulos, como

Dor.

OV1 A fé dos homens

Opo. = seguidor

Dor.

OV2 atenção de todos

Adj. Jesus

Page 45: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

59

está descrito no Evangelho de Marcos 8: 27-29110, assim como em Mateus 16: 15-16. É, pois,

com base no script religioso que o enunciatário passa a construir a noção de espaço. Se

compartilhar o mesmo conhecimento do enunciador, no que tange à narrativa bíblica,

embasar-se-á nela para ter a noção do espaço em que se desenrola o enredo.

No que tange à apreciação do sujeito enunciativo que concebe tal piada, o efeito

parece ser de distanciamento, pois ele empresta sua voz aos atores de tal maneira que aparenta

apenas contar a história, como um narrador onisciente, mas sem emitir juízos de valor. Como

em piadas a definição de autoria é praticamente nula, pode-se apenas dizer que o sujeito da

enunciação confere ao ator seguidor de Jesus o papel de enunciar uma resposta vazia,

incoerente o bastante para passar a ser centro das atenções. E já que seus dizeres não “têm

sentido”, nem mesmo para o ator Jesus, surge o efeito de humor, com a quebra de expectativa

diante de uma resposta com exacerbado intelectualismo.

O humor advém, portanto, do uso exagerado, redundante e incoerente do padrão culto

formal. “Escatológico” remete ao “fim dos tempos”, mas se Jesus salva, o que ele tem a ver

com a manifestação escatológica das profundezas de nosso ser? Já fundação ontológica

refere-se à compreensão do “ser” como ser de natureza comum e inerente a todo ser vivo.

Portanto, se a pergunta “(...) quem eu sou?” gerou tal resposta, talvez nem mesmo Heidegger,

que dedicou grande parte de sua obra à questão do Ser, poderia prevê-la. Segundo Giles

(1989), sua filosofia buscou sustentar que o homem é a única criatura a quem foi confiado o

pensamento e a guarda do Ser 111.

Contudo, na segunda fala do ator Jesus tem-se uma implicação relevante do ponto de

vista da apropriação do discurso religioso pela piada: a ressignificação de Jesus como um

homem comum, não sábio ou ser divino. Isto se evidencia na sua falta de compreensão sobre

o que foi proferido, pois a resposta dada por um de seus seguidores, ainda que vaga ou

incoerente, além de remeter ao padrão culto da língua, prescinde de conhecimento filosófico.

Para um mero carpinteiro, entender o ser pelo viés da ontologia ou compreender sua

existência pela escatologia não parecem uma tarefa corriqueira.

Assim, a quebra de expectativa ocorre justamente pelo uso indevido da variedade

padrão e sua presença é que pode ser considerada motivo de riso. Ou seja, o uso da “norma

culta” é tão passível de incoerência quanto o de qualquer variedade lingüística; depende do

contexto em que tal uso ocorre. No caso dessa piada, o exagero é tanto que ela, através da

110 “Então Jesus e os seus discípulos partiram para as aldeias de Cesaréia de Filipe; e, no caminho, perguntou-lhes: Quem dizem os homens que eu sou?” 111 GILES, Thomas Ransom. História do existencialismo e da fenomenologia. São Paulo: EPU, 1989. p.

Page 46: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

60

resposta do discípulo, faz crer que nem mesmo Jesus consegue compreender tal definição,

dita naquelas palavras, com aquela variedade lingüística.

Desta forma, reiteramos o que ocorre em A Primeira pedra: o saber compartilhado

sobre a passagem bíblica é constituinte para a percepção intertextual e contribui para a

geração do humor. Além do mais, com e desvio de atenção que provoca a exacerbada resposta

do seguidor, o foco sai de Jesus e recai sobre a busca inútil de entendimento sobre os dizeres

proferidos por seu seguidor. Mais uma vez, os valores cristãos são relegados a segundo plano

em prol do riso. Esta parece ser a constante das piadas intertextuais com passagens bíblicas:

gerar expectativa a partir de uma narrativa similar à bíblica e quebrá-la, com uma ênfase em

outro aspecto, que se impõe ao primeiro, gerando o efeito de humor.

3.2.3 Estrutura Fundamental

Também no nível profundo, as piadas analisadas até aqui apresentam pontos de

convergência. O principal está na oposição ser x parecer, que se repete entre “A primeira

pedra” e “Quem eu sou?”.

Nesse sentido, vemos que a piada em questão oscila entre o parecer passagem bíblica,

mas é piada, visto que principia sua história com uma narração que remete ao relato bíblico,

porém seu desfecho é humorístico.

Tensão dialética

Passagem bíblica Piada

Não-parecer Não-ser

Ser Parecer

Page 47: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

61

Outro esquema pode ser montado, se considerarmos como eufórico a revelação de

quem é Jesus. Sob essa ótica, tem-se uma tensão dialética entre revelação x ocultação. Com a

inclusão dos termos contraditórios não-ocultação e não-revelação, as implicações passam a

ser as seguintes: revelação implica não-ocultação, resultando na resposta pretendida; já

ocultação implica não-revelação, das quais resulta a resposta dada. No octógono, os termos

podem ser organizados da seguinte maneira:

Outros octógonos ainda podem ser montados, caso se leve em consideração a mudança

de foco que a piada propicia entre o universo de discurso religioso e o humorístico. Teríamos

tensões entre o Ser divino e o Ser mundano – do mundo, mortal, não sabedor de todas as

coisas, inclusive de escatologia ou ontologia – no que se refere à noção de quem é Jesus; ou

entre o Ser religioso e o Ser como entidade passível de explicação filosófica.

No entanto, optamos por destacar, em especial, uma outra oposição, ao considerarmos

o uso exacerbado da variedade padrão como ingrediente para geração do efeito de humor.

Como a quebra de expectativa se dá com a pergunta “quem eu sou?”, ser é o gatilho que

aciona a mudança do script religioso – em que Jesus obtém uma resposta positiva a seu

respeito – para o humorístico – no qual um discípulo surpreende o mestre. Nessa perspectiva,

tem-se uma tensão dialética entre sabedoria x ignorância, em que sabedoria implica não-

ignorância e ignorância implica não-sabedoria. Da primeira implicação resulta o

conhecimento; da segunda, o desconhecimento.

Tensão dialética

Resposta dada Resposta

pretendida

Não-ocultação Não-revelação

Revelação Ocultação

Page 48: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

62

Contudo, tanto sabedoria quanto ignorância aqui podem ser consideradas sob dois

pontos de vista: saber sobre o mundo, conhecimento de mundo; ou conhecimento lingüístico,

domínio de uma dada variedade lingüística, que neste caso é a variedade de prestígio. Como

não há saber compartilhado no que se refere à “manifestação escatológica” ou “fundação

ontológica”, nem mesmo ao “nosso íntimo revelado”, o diálogo é nulo e resulta numa dúvida,

não apenas para o enunciatário participante da piada (Jesus ou os demais seguidores), mas

também para todo leitor que se deparar com esse texto e não estiver familiarizado com a

“linguagem filosófica” nele empregada.

Para ilustrar tais relações, construímos o octógono que apresentamos abaixo:

3.3 ABRAÃO E ISAAC

Contam as sagradas escrituras que o Senhor ordenou a Abraão matar seu filho Isaac

e, no momento em que o obediente Abraão estava com a faca levantada, prestes a matar o

próprio filho, ordenou: “Pare, Abraão, você já provou que me é leal, não sacrifique seu

filho”.

Abraão deixou a faca de lado e, aliviado, olhou para seu filho, que se levantou do

chão e saiu correndo. Abraão o chamou:

Tensão dialética

Desconhecimento Conhecimento

Não-ignorância Não-sabedoria

Sabedoria Ignorância

Page 49: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

63

- Volte, meu filho, o Senhor não quer que eu te sacrifique! Ele te ama!

- Ama uma ova! – respondeu Isaac – Ainda bem que eu sou ventríloquo!

Esta terceira piada intertextual tem a peculiaridade de estabelecer um diálogo com a

passagem bíblica Gênesis 22: 12112, na qual Abraão, após atender à solicitação do Senhor de

encaminhar seu filho Isaac ao sacrifício, ouve Dele, por intermédio de um anjo, a informação

de que deve deixar Isaac viver. Mas é na intervenção que cessa a ação do sacrifício que se

encontra o gatilho, no dizer do suposto Deus. A negativa é na verdade uma farsa, por causa da

única maneira que Isaac encontra para não ser morto, passando-se por Deus e falando por Ele,

por se dizer ventríloquo.

Percurso temático

Do ponto de vista da configuração temática, essa piada pode ser segmentada da

seguinte forma, considerando seus três sujeitos semióticos:

1. A ORDEM

2. A TENTATIVA DE CUMPRI-LA

3. A NOVA ORDEM

4. O ALÍVIO

5. A FUGA

6. O CHAMADO

7. A REVELAÇÃO

3.3.1 Narrativização

Modalizado por um “querer-fazer”, o sujeito semiótico 1 (S1) busca obedecer a Deus,

seu destinador, e tem essa ação como seu objeto de valor inicial (OV1). Nesse sentido, o S1

tenta chegar à conjunção com o OV1, ao tentar promover o sacrifício, atitude que se configura

no segundo objeto de valor (OV2). Contudo, o destinador interrompe tal ato, ao anunciar que

não será mais necessário realizá-lo. Logo, o S1, na busca da conjunção com seu objeto de

112 “O Anjo disse: ‘Não estendas a mão contra o menino! Não lhe faças nenhum mal! Agora sei que temes a Deus: tu não me recusaste teu filho, teu único filho.’” In: A BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 60

Page 50: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

64

valor principal – obedecer a Deus – cessa o sacrifício (OV3), a fim de ter seu filho consigo

(OV4). Mas este o deixa, e o S1 fica disjunto de seu objeto de valor final.

O sujeito semiótico 2 (S2), por sua vez está modalizado por um “poder-fazer-crer”,

pois possui a competência para passar-se por Deus e burlar o sacrifício, o qual seria realizado

pelo S1, agora seu oponente. Tem como objeto de valor inicial (OV1), portanto, passar-se por

Deus, através da fala, para enganar Abraão e poder fugir, atitude que se configura no OV2.

Em suma, o S2 tem a vida como valor principal e último (OV3) no percurso narrativo; e para

entrar em conjunção com ele, engana e foge.

Já o S3, na verdade, apresenta-se como um sujeito semiótico cuja voz é suplantada

pela atitude do S2, seu oponente; pois, ao passar-se por Deus, o S2 não permite que sua

vontade prevaleça. Ele está modalizado pelo querer e pelo poder-fazer-crer que é o Senhor e

através de um discurso de persuasão, ordena que Abraão sacrifique seu próprio filho, a fim de

que lhe prove fidelidade. Seu objeto de valor inicial (OV1) é testá-lo, e é para tanto que pede

o sacrifício. Além disso, o S3 busca impor sua vontade (OV2) sobre Abraão, seu adjuvante,

que age na perspectiva de realizá-la. Mas seu principal objeto é a fidelidade de Abraão. Por

outro lado, tem-se aqui um sincretismo actancial, pois o S3 ora figura como Senhor, ora como

Isaac, que se passa por Deus, ao dispensar o sacrifício.

Do ponto de vista do S1, Isaac é seu oponente, visto que foge e não permite, com a

fala que se passa pela de Deus, a conjunção do S1 com seu objeto de valor principal: ficar

com seu filho. Já do ponto de vista do S2, Deus e Abraão são seus oponentes, pois ambos, um

mandando e o outro agindo, tentam contra sua vida. Por fim, o S3 tem Abraão como

adjuvante e Isaac como oponente: o primeiro porque busca cumprir a sua vontade, o segundo

porque tenta contra a mesma.

Vejamos agora os esquemas dos percursos narrativos para cada sujeito semiótico.

Comecemos pelo S1:

OV1

OV2

OV3

OV4

S1

S1

S1

S1

Page 51: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

65

Onde:

S1 = Abraão;

OV1 = obedecer a Deus;

OV2 = sacrificar Isaac;

OV3 = cessar o sacrifício;

OV4 = ter o filho de volta;

Em seguida, o percurso do S2:

Onde:

S2 = Isaac;

OV1 = passar-se por Deus;

OV2 = fugir de seu pai;

OV3 = manter-se vivo;

Por sua vez, o S3 apresenta o seguinte esquema para representação de seu percurso

narrativo:

Onde:

S3 = Senhor (Deus);

OV1

OV2

OV3 S2

S2

OV1

OV2

OV3

S3

S3

S3

S2

Page 52: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

66

OV1 = testar Abraão;

OV2 = impor sua vontade;

OV3 = manter Abraão fiel;

3.3.2 Discursivização

Figurativizado como um seguidor de Deus, crente e temente a Ele, o ator Abraão

busca provar sua fidelidade com o sacrifício de seu filho, Isaac. Nesse sentido, o sujeito da

enunciação, aquele que concebe tal narrativa, põe em cena os temas da lealdade, da

obediência, da fé, do amor; contudo, este último só vem à tona quando Abraão revela ao seu

filho que Deus dispensou o sacrifício por amá-lo. Assim, a morte de Isaac implicaria a falta de

amor de Deus por ele, segundo o discurso de Abraão. O tema da morte está posto desde o

princípio, mas sob a face do sacrifício a ser realizado como prova de lealdade.

Com a revelação de Isaac, surge o tema da ventriloquia, habilidade dos ventríloquos,

que usam a voz como arte. Um ventríloquo pode “emprestar” sua voz a um mamulengo, um

animal, uma rocha, uma sombra ou qualquer outro objeto do mundo natural que ele possa

fazer passar por falante, como se a voz que falasse saísse de outra fonte, não dele. No caso de

Isaac, surge também o tema da mentira, pois ele se vale dessa arte para burlar a vontade

divina e enganar seu pai. A voz que manda cessar o sacrifício é uma farsa; não é Deus que

dispensa tal ato. Assim, a piada em questão põe de lado os temas da lealdade, da fé, do amor,

da obediência, da verdade divina, focalizando seus opostos.

O humor que advém da revelação de Isaac faz vir à tona também a figura do esperto e

o tema da enganação, visto que foi preciso ele passar-se por Deus para poder salvar sua vida.

Nesse caso, a piada muda o sentido da passagem bíblica do livro de Gênesis, na qual está

posto que seja Deus quem libera Abraão de sacrificar seu filho. Contrapõe-se ao discurso

religioso e manifesta-se como um discurso subterrâneo, como se fosse o outro lado,

obscurecido, da história, ao pôr em cena a farsa de Isaac. Nessa perspectiva, tem-se uma farsa

que revela outra suposta, porquanto tenha ocorrido uma disseminação da história de Abraão e

Isaac, na Bíblia, com a presença da intervenção divina; mas para o sujeito enunciador da piada

não: Deus em nada interveio no sacrifício, sendo Isaac o único responsável por sua salvação.

O discurso religioso é, portanto, negado e transformado em discurso humorístico, cuja

implicação é o esquecimento momentâneo dos valores apregoados pela passagem bíblica: fé,

lealdade, obediência ao divino, amor a Deus sobre todas as coisas – inclusive os filhos.

Page 53: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

67

No que tange às projeções da enunciação, as falas dos atores Isaac e Abraão

caracterizam-se ambas por uma debreagem enunciativa, ao projetarem um eu-aqui-agora. Ou

seja, no discurso de Isaac, o eu está em “Ainda bem que eu sou ventríloquo”; o agora na

conjugação de presente do verbo ser; e o aqui, caracterizado no próprio ato da fuga, que

revela Abraão, ao dizer “Volte, meu filho...”, denunciando o diálogo entre os dois. Já no

discurso de Abraão, o eu revela-se nos pronomes meu e eu, ao enunciar ao seu filho que “O

Senhor não quer que eu te sacrifique...”; a conjugação do verbo sacrificar, no presente,

indica o aqui e o agora, porquanto estejam no momento e no lugar onde deveria ocorrer o

sacrifício. Mas é a expressão “no momento em que” que melhor denuncia o tempo do

discurso, na enunciação do narrador da história. Esse não é o tempo dele, nem é o tempo do

enunciatário, leitor da piada; é o tempo das ações dos atores no lugar onde se narra que estão.

No entanto, este lugar não está bem caracterizado, exceto pela figura do chão, que a narrativa

aponta como lugar de onde Isaac levantou-se e saiu correndo. Assim, só com a remissão à

passagem bíblica é que fica caracterizado o lugar, não enunciado na piada, mas rememorado

com a leitura de Gênesis 22: 02113, passagem em que Deus revela o lugar onde Abraão deve

oferecer seu filho em holocausto.

Além disso, o tempo da piada – assim como ocorre no lugar –, remete ao tempo

bíblico, pois não é o mesmo do sujeito da enunciação, que não conta sua história, mas de

outrem. Em “Contam as sagradas escrituras que o Senhor ordenou...”, está denunciado que

as ações decorrem no passado, pela conjugação do verbo “ordenar”; e também que o sujeito

dessa enunciação não participa da história, pois atribui às sagradas escrituras, ou seja, À

Bíblia, os dizeres que enuncia como verdades. Dessa forma, o enunciador busca respaldar-se

na credibilidade da “palavra de Deus” para se fazer ouvir, mas, em seguida, muda-lhe o

sentido, ao acrescentar figuras e temas que caracterizam a dispensa do sacrifício como fruto

de uma farsa.

A configuração atorial da narrativa reserva uma discussão ainda mais complexa e

reforça o caráter farsesco da piada. É que o ator que enuncia a dispensa do sacrifício é o

Senhor, o mesmo que a narrativa aponta de início, segundo as sagradas escrituras; quem

ordena a Abraão matar seu próprio filho; mas essa ordem não é evidenciada na piada, só o

relato da mesma. Já o enunciado que preserva a vida de Isaac é posto em cena pelo suposto

Senhor: o próprio Isaac, que na condição de ventríloquo, convence Abraão de que não mais

precisa tirar a vida de seu filho. É a descoberta dessa farsa que nos leva a identificar, no

113 “Deus disse: ‘Toma teu filho, teu único filho, que amas, Isaac, e vai à terra de Moriá, e lá oferecerás em holocausto sobre uma montanha que eu te indicarei.’” In: A BÍBLIA de Jerusalém. Op. Cit. p. 59.

Page 54: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

68

enunciado “Ainda bem que eu sou ventríloquo”, a mudança de script, visto não ser possível,

até essa revelação, reconhecer os temas da mentira, da enganação, ou a figura do esperto. Só

com ela é que fazem sentido, para os dois scripts, religioso e humorístico respectivamente, a

idéia de que Deus dispensou Abraão de sacrificar seu filho e a de que Isaac passou-se pelo

Senhor para manter-se vivo e falar a seu pai como um deus.

3.3.3 Estrutura fundamental

Diferente das piadas intertextuais anteriores, esta não se apresenta, no nível profundo,

sob a tensão dialética do ser x parecer no que se refere a ser uma piada, mas parecer uma

passagem bíblica. Isto porque o sujeito da narrativa, aquele que conta a história, assume a

condição de narrador de uma história baseada nas Sagradas Escrituras. Ou seja, ele conta sua

interpretação, mas não o que diz a Bíblia, como as outras duas piadas anteriores buscam fazer-

crer que os seus narradores fazem. Em “A primeira pedra” e “Quem eu sou?”, conta-se como

se fosse a própria narrativa bíblica, mas, em “Abraão e Isaac”, narra-se uma história que

supostamente toma por base a Bíblia.

Contudo, esta mesma tensão verifica-se no enunciado do ator Isaac, antes revestido de

um parecer-ser o Senhor, posto que engana Abraão na perspectiva de salvar sua vida.

Estruturamos o seguinte diagrama para ilustrá-la, do ponto de vista do ator Isaac:

Tensão dialética

Mentira Verdade

Não-parecer Não-ser

Ser Parecer

Page 55: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

69

Nesta perspectiva, o enunciado parece provir da enunciação do Senhor, mas é de

Isaac; sendo assim, é eufórico para ele, que consegue fingir a ordem de interrupção do

sacrifício. Mas é disfórico para Abraão, já que este não cumpre a sua tarefa inicial devido a

uma “fraude”.

Uma outra tensão é a que ilustramos entre morte x vida, na qual se insere o fazer de

Isaac. Ele opta pela vida ao não aceitar o sacrifício imposto pelo Senhor a Abraão, que vê

nesta ação sua prova de lealdade. Nesse sentido, fugir é eufórico para Isaac, posto que vida

implique o não-morte, e dessa relação resulte a fuga; já a morte implica a não-vida, e é daí

que advém o sacrifício. Sendo assim, para Isaac, o sacrifício é disfórico e a fuga eufórica,

conforme o diagrama abaixo:

Além dessas tensões, optamos por mais uma a ser relevada, que é a existente entre

lealdade x liberdade. Tal tensão verifica-se a partir da angústia que se pressupõe do alívio de

Abraão, após a dispensa do sacrifício de seu filho. Liberdade implica não-lealdade, e dessa

relação resulta o vontade de deixar viver, subentendida no discurso do sujeito enunciador, que

concebeu a piada com um alívio de Abraão, por este não precisar matar seu filho. Já lealdade

implica não-liberdade, e daí resulta o sacrifício solicitado pelo Senhor, mas não

necessariamente bem quisto por Abraão. Nesta perspectiva, lealdade é disfórico para ele,

Tensão dialética

Fuga Sacrifício

Não-vida Não-morte

Morte Vida

Page 56: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

70

visto que seja necessário matar seu próprio filho para alcançá-la, o que condiz com o alívio

que o pai sente, quando descobre que não mais precisará realizar o sacrifício; por outro lado,

liberdade permite decidir não sacrificar Isaac, e deixá-lo viver seria não ser leal ao Senhor. A

euforia dessa tensão estaria, pois, no poder-fazer um ato contrário à vontade divina, e nisto

consiste a liberdade preterida por Abraão em prol da lealdade ao seu deus. Assim, no

diagrama que segue está representada essa tensão.

3.4 LÁZARO

A multidão se aproxima e vê Jesus que está a chamar Lázaro.

― Lázaro! Levanta-te, Lázaro.

E Lázaro, nem ta aí. Fica lá.

― Lázaro! Levanta-te, Lázaro – repete Jesus.

E nada de Lázaro se levantar.

― Lázaro! Levanta-te, Lázaro. A turma tá toda aqui te esperando.

E nada.

Tensão dialética

Deixar viver Sacrificar

Não-liberdade Não-lealdade

Lealdade Liberdade

Page 57: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

71

Então Jesus se vira para a multidão que a tudo observa com ansiedade e,

decepcionado, fala:

― Desculpa aí, pessoal. Desta vez ele morreu mesmo.

Esta piada dialoga com a passagem bíblica João 11: 43, em que Jesus ressuscita

Lázaro diante de uma platéia de amigos, parentes e curiosos. Nela, assim como na passagem,

Jesus o convida a erguer-se, mesmo estando morto aos olhos de todos. O desfecho dessa cena,

na passagem, é a ressurreição; mas aqui ocorre diferente: o inusitado está na última fala de

Jesus, quando revela aos observadores que “desta vez” Lázaro morreu de fato. Sendo assim,

tal expressão consiste no gatilho da piada, que permite a passagem do script religioso para o

humorístico.

Percurso temático

Para melhor esclarecer a geração de sentido sob seus três níveis, apresentamos de

início a segmentação do texto, conforme sua configuração temática.

1. A APROXIMAÇÃO DA MULTIDÃO

2. O CHAMADO DE JESUS

3. A REPETIÇÃO DO CHAMADO

4. O NOVO CHAMADO

5. A REVELAÇÃO DE JESUS

3.4.1 Narrativização

Modalizado por um querer-fazer, o sujeito semiótico 1 (S1) busca fazer-crer que tem

capacidade para ressuscitar os mortos, ao convidar Lázaro a levantar-se perante uma

multidão. Tem como objeto de valor, portanto, a ressurreição aparente daquele homem, mas

finda a narrativa disjunto de tal objeto, visto que Lázaro não se levanta de onde está mesmo

após três solicitações. Nesta perspectiva, o percurso narrativo do S1 (Jesus) apresenta como

objeto de valor inicial (OV1) chamar Lázaro para fora, diante da multidão que se aproxima;

em seguida, o S1 busca mais uma vez chamar Lázaro frente a todos que o observam (OV2);

esse mesmo objeto de valor é almejado pelo S1 outra vez (OV3), diante da multidão já

Page 58: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

72

ansiosa; por fim, o S1 busca manifestar sua decepção (OV4), por não conseguir fazer com

que Lázaro apareça vivo diante de todos.

Vejamos, pois, o percurso narrativo do S1:

Onde:

S1 = Jesus;

OV1 = chamar Lázaro;

OV2 = chamar Lázaro mais uma vez;

OV3 = chamar Lázaro outra vez;

OV4 = manifestar sua decepção;

O S2, pos sua vez, é um sujeito coletivo que busca saber do que Jesus é capaz. É

destinado pela curiosidade. Tem como objeto de valor inicial presenciar a ressurreição de

Lázaro, seu oponente, visto que, por não levantar-se, contribui para que ele não atinja seu

valor principal: a satisfação de presenciar o incrível ocorrer; e por “ficar lá” é que Lázaro

pode ser considerado também oponente do S1. O percurso narrativo do S2 varia pouco no que

se refere aos valores almejados, posto que a constância de seu querer o conduz sempre ao

mesmo objeto de valor: presenciar a ressurreição de Lázaro. Eis, portanto, o percurso do S2:

OV1

OV2

OV3

OV4

S1

S1

S1

OV1

OV2

OV3

S2

S2

S1

S2

Page 59: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

73

Onde:

S2 = multidão (observadores que assistiam ao diálogo de Jesus com o morto, Lázaro);

OV1 = aproximar-se de Jesus (para presenciar a ressurreição de Lázaro);

OV2 = esperar Lázaro sair (para presenciar...);

OV3 = observar tudo ansiosa (para presenciar...);

3.4.2 Discursivização

Do ponto de vista das estruturas discursivas, a piada em questão apresenta a seguinte

configuração atorial: Jesus, figurativizado como o filho de Deus, capaz de ressuscitar os

mortos; multidão, sujeito coletivo que almeja presenciar tal feito; e Lázaro, que mesmo sem

nada enunciar, figura como um morto dotado de vontade suficiente para não dar atenção ao

ator Jesus. O sujeito enunciador que narra a piada concebe um cinismo, uma ironia ao ator

Lázaro de tal modo que chega a revelar que ele “não está nem aí” para Jesus e a multidão; ou

seja, não lhes dá nenhuma importância. Mas sendo morto, como pode relevar as palavras de

Jesus, ou a ansiedade da multidão? Esta, por sua vez, manifesta-se como um conglomerado de

curiosos, que a tudo observam, atentos, a fim de verem algo extraordinário ocorrer, como em

uma apresentação circense. E é nesse script que a piada se insere; ou melhor, é esse o segundo

script que a compõe, além do religioso, por meio do qual dialoga com a passagem bíblica.114

Entretanto, aqui Jesus, após convidar Lázaro a levantar-se três vezes, diferentemente

do que diz a Bíblia, revela que Lázaro, “desta vez”, morreu de fato, aparentemente. Nessa

perspectiva, pressupõe-se que em outras vezes ele não estava morto “mesmo”, como se essa

ação de Jesus com Lázaro não fosse a única. Assim sendo, surge o tema do charlatanismo,

visto que esse Jesus é, na verdade, um enganador, que finge ressuscitar pessoas, operar

milagres, e Lázaro faz parte de seu show, sendo cúmplice em vários outros espetáculos

encenados anteriormente. Mas “desta vez” Lázaro “morreu mesmo”, porque não atendeu aos

chamados de seu comparsa, ainda que este o lembre de que a “turma toda” o espera. Essa

“turma” remete não só àquela multidão curiosa, mas às outras que já o viram erguer-se do

mundo dos mortos, de maneira milagrosa. É mais um grupo dentre tantos outros que

comumente presenciam o espetáculo da ressurreição.

Por outro lado, subentende-se também que “desta vez” remete a um momento singular

da narrativa bíblica tantas vezes contada e tantas vezes repetida com a ressurreição de Lázaro.

114 O capítulo 11, do livro de João, compõe-se de 46 versículos, e todo ele trata da ressurreição de Lázaro. Contudo, é no versículo 43 que Jesus diz “Lázaro, vem para fora”.

Page 60: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

74

Neste caso, Jesus não é um charlatão, mas um ser falho, cujo poder de operar milagres é

passível de ausentar-se, por algum motivo. Nas outras vezes em que se relatou tal passagem, o

milagre ocorrera e fora possível realizá-lo, mas desta vez a morte ocorreu mesmo, sem volta,

como acontece com todos os seres humanos que não sofrem nenhuma interferência divina no

curso de suas vidas. Sendo assim, na interpretação anterior, Lázaro não se levanta porque não

pode; nesta, é Jesus quem não consegue fazer com que ele se levante, porque lhe faltou este

poder.

De uma forma ou de outra, não estamos apenas diante do script religioso, mas também

do humorístico, quer seja com um Jesus charlatão, quer seja com Ele passível de falhas. O

inusitado está posto de qualquer maneira, pois do ponto de vista religioso, Jesus é o filho de

Deus, capaz de curar cegueiras, aleijões, expulsar demônios, perdoar mulher adúltera,

entender além do que entende um simples ser humano, entre outras qualidades superiores.

Contudo, do ponto de vista humorístico, em que se manifestam discursos proibidos, pode-se

dizer que Jesus aqui é um “enrolão”, um farsante; ou, então, um ser imperfeito, cuja

capacidade de operar milagres não é interminável, ou inexiste.

Sob o aspecto temático, as duas interpretações humorísticas conduzem aos temas do

charlatanismo ou da imperfeição. A segunda interpretação ainda leva a crer que Jesus é

incapaz, dentro de uma configuração temática da oposição entre o divino X o terreno. No

entanto, Ele seria mais terreno que divino, visto não ter o poder de ressuscitar Lázaro, pelo

menos “desta vez”. Outros temas ainda podem ser notados, como o milagre e a fé, do ponto

de vista religioso, sendo o início da piada o ponto que desencadeia tais temas.

Quanto às configurações de tempo e espaço, “Lázaro” prescinde da passagem bíblica a

que remete para significar, visto que o sujeito da enunciação, que a concebeu, não demarca o

tempo em expressões, nem o espaço. A narrativa apóia-se justamente no conhecimento

partilhado que o enunciatário tem com o enunciador, que narra a história. Nessa perspectiva,

fica subentendido que Lázaro está no túmulo de onde Jesus pede que saia; aqui, que se

levante.

Uma observação mais atenta dos enunciados do ator Jesus, no entanto, nos conduzem

a marcas espaço-temporais da enunciação. Ao enunciar que “a turma toda tá aqui te

esperando”, Jesus acena para um espaço externo, diferente do que se encontra Lázaro, que

“fica lá”, como aponta o narrador. Daí o diálogo com a passagem bíblica, que indica uma

gruta na qual Lázaro jaz até a chegada de Jesus. Sua enunciação também revela que é o

momento de Lázaro levantar-se, pois todos já o esperam. Mas é o “dessa vez” que mais

apresenta implicações do ponto de vista temporal na enunciação de Jesus. É que tal expressão,

Page 61: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

75

como uma locução de freqüência, acena para a possibilidade de que Lázaro tenha sido

submetido ao (suposto) milagre de Jesus outras vezes, antes desta. E é aí que se encontra a

grande ambigüidade de seu discurso: ou Jesus é um charlatão e “dessa vez” Lázaro morreu de

fato, ou é um ser falho, incapaz de ressuscitar alguém, pelo menos dessa vez.

3.4.3 Estrutura fundamental

Sob as oposições semânticas que constituem esta piada, destacamos que o ser x

parecer, que marca as piadas intertextuais, mais uma vez está presente. Sustentamos,

portanto, a posição de que “Lázaro” parece passagem bíblica, mas é piada. Quanto às outras

oposições, relevamos a que se configura entre morte x vida, em que vida implica não-morte, e

desta relação surge o acerto, visto ser eufórico para a encenação de Lázaro e Jesus que o

primeiro esteja vivo. Já da relação de implicação entre morte e não-vida advém a falha,

disfórica, pois o que se almeja é que todos acreditem no poder de Jesus – seja real ou não –, e

um ato falho compromete essa crença.

Outra tensão a ser relevada, decorrente dessa, é a que se verifica entre milagre X

mentira. Essa é uma tensão em cujo centro se encontra Jesus, visto que entre o milagre e a

T. D.: Lázaro

Acerto Falha

Não-vida Não-morte

Morte Vida

Page 62: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

76

não-mentira está Deus; e entre a mentira e o não-milagre está o homem, como ilustramos em

seguida:

Por fim, uma outra tensão se configura, decorrente dessa: imperfeição X perfeição. Da

relação de implicação entre imperfeição e não-perfeição tem-se o ser humano; já perfeição

implica não-perfeição e daí é que surge o ser divino.

T. D.

Homem Deus

Não-mentira Não-milagre

Milagre Mentira

T. D.

Ser divino Ser humano

Não-perfeição Não-imperfeição

Imperfeição Perfeição

Page 63: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

77

Assim sendo, acertar e ser perfeito são competências cujos valores são eufóricos, para

um Jesus que se decepciona; já falhar e ser imperfeito é disfórico, por isso a decepção.

3.5 JESUS E AS CRIANCINHAS

Jesus pregava na Galileia ao lado dos seus discípulos. Enquanto falava, uns moleques

não paravam de jogar pedras nele.

Jesus não moveu um só músculo e falou:

― Venham a mim as criancinhas.

Um dos discípulos não se conteve e disse:

― Jesus, o senhor é tão bom! A molecada não pára de atirar pedras e o senhor ainda

diz “venham a mim as criancinhas”...

― É isso mesmo! Deixa eu pegar uma para ver a porrada que ela vai levar...

Ao estabelecer um diálogo intertextual com a passagem bíblica Mateus 19: 13-14, esta

piada gera a expectativa de um Jesus benevolente, que compreende os atos irrequietos das

crianças. Mas ao convidar para junto de si as criancinhas que o apedrejavam, este Jesus tem

outras pretensões. É a revelação que faz a um de seus discípulos que quebra a expectativa

gerada pela interpelação que lhe é direcionada. E o gatilho é seu primeiro enunciado, quando

convida as criancinhas para junto de si.

Percurso temático

1. A PREGAÇÃO DE JESUS

2. A AGRESSÃO DOS MOLEQUES

3. O CHAMADO DE JESUS

4. A INTERPELAÇÃO DO DISCÍPULO

5. A RESPOSTA DE JESUS

3.5.1 Narrativização

Modalizado por um querer, o S1 tem como objeto de valor inicial (O.V.1) pregar.

Com a interrupção das crianças, o S1 busca a atenção delas (O.V.2), quando as chama para

Page 64: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

78

junto do si, assim como fez com os outros ouvintes, seus adjuvantes. As crianças, no entanto,

são oponentes do S1, pois tentam interromper a conjunção deste com seu objeto de valor

inicial. Na seqüência de seu percurso narrativo, o S1 ainda tem como objeto de valor revelar

ao seu discípulo sua real intenção (O.V.3) para com as criancinhas que o agrediam.

Vejamos o percurso narrativo do S1:

Onde:

S1 = Jesus

O.V.1 = pregar

O.V.2 = a atenção das crianças

O.V.3 = revelar sua real intenção para com as crianças

Já o sujeito semiótico 2 (S2) é destinado pela admiração a Jesus e modalizado por um

querer-saber, visto que apresenta como valor principal entender o gesto de Jesus, que chama

para junto de si seus agressores. Em seu percurso narrativo, o S2 tem como objeto de valor

inicial (O.V.1) ouvir Jesus e em seguida interpelá-lo (O.V.2). Assim sendo, as criancinhas

são também oponentes do S2, porquanto busquem prejudicar a sua conjunção com o objeto de

valor inicial.

Vejamos, portanto, seu percurso narrativo:

Onde:

S2 = o discípulo

O.V.1 = ouvir a pregação de Jesus

O.V.2 = interpelar Jesus

OV1

OV2

OV3

S1

S1

S1

S2

S2

OV1

OV2

Page 65: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

79

Como a narrativa deixa em aberto seu desfecho, não fica claro se o S1 finda conjunto

ou disjunto de seu objeto de valor final (O.V.), que seria a porrada a ser dada nas criancinhas

que dele se aproximassem. Por outro lado, o S2 tem na resposta de Jesus a conjunção com o

que busca, que é entender o porquê de Jesus convidar seus oponentes para junto de si.

3.5.2 Discursivização

Do ponto de vista atorial, tem-se o ator Jesus figurativizado como o mestre, que prega

junto a seus discípulos. Nessa pregação, ele sofre agressões oriundas de crianças que figuram

como moleques de rua, as quais são convidadas a se aproximarem junto aos outros ouvintes.

É no enunciado “Venham a mim as criancinhas” que se encontra o diálogo com a passagem

bíblica Mateus (19: 13 – 14)115. Contudo, na Bíblia, as crianças são conduzidas a Jesus, e não

há relato algum de que elas a agrediam; já na piada, é Jesus quem as convida, ao ser agredido

com pedras por elas arremessadas. Assim, o chamado de Jesus é, na verdade, uma forma de

ludibriar as crianças, a fim de descontar as agressões sofridas. Sob esse ponto de vista,

portanto, Jesus figura como um pecador qualquer, que busca vingar-se de seus agressores.

O outro ator que se faz presente na piada é um de seus discípulos, cujo nome não é

revelado. Ele está, de fato, figurativizado como discípulo do mestre, o qual questiona o

chamado de Jesus às crianças; e, assim como ocorre na narrativa bíblica, discorda da presença

delas. Além disso, na passagem bíblica, os discípulos buscam repreendê-las, mas aqui é Jesus

quem o quer fazer; e é para este fim que as convida. Por não conhecer o objetivo de Jesus é

que o discípulo o interpela, buscando compreender por que Ele, agredido, ainda chama para

junto de si seus agressores.

Quanto às projeções da enunciação, podemos dizer que o ator Jesus projeta um eu-

aqui-agora no enunciado “Venham a mim a criancinhas”, sendo o mim representativo do eu

e o aqui e o agora estando presente na conjugação do verbo vir (venham): no modo

imperativo, acenando para o tempo presente (agora) e apontando para o lugar (aqui),

porquanto quem venha não esteja presente, mas sim quem diz para que o outro venha. Em sua

segunda fala, Jesus mantém o eu manifesto, ao revelar intenção de “pegar uma” e lhe dar

uma “uma porrada”. Por sua vez, o ator discípulo tem seu discurso caracterizado por um

efeito de objetividade, devido à ausência de marcas enunciativas que imprimam o eu. Ou seja,

115 “13Naquele momento, foram-lhe trazidas crianças para que lhes impusesse as mãos e fizesse uma oração. Os discípulos, porém, as repreendiam. 14Jesus, todavia, disse: Deixai as crianças e não as impeçais de virem a mim, pois delas é o Reino dos Céus.”

Page 66: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

80

ele não manifesta sua opinião, seu juízo pessoal de modo subjetivo; não imprime marcas de

primeira pessoa (pronome ou conjugação verbal equivalente), embora exclame sua admiração

por Jesus diante de sua atitude.

Com relação às marcas temporais, verificamos que o tempo da piada é marcado pela

história de Jesus; ou melhor, o tempo bíblico. Nesse sentido, o sujeito enunciador imprime um

efeito de realidade ao acenar para as pregações de Jesus na Galileia, fundamentando seu relato

com pressupostos bíblicos. Portanto, o tempo da enunciação dos atores difere do tempo da

enunciação do sujeito enunciador, que narra a piada. Este apenas conta uma história que não é

sua, e que se passa, supostamente, em um momento do passado, no tempo de Jesus, segundo a

religião cristã.

Já quanto ao espaço, vemos a pressuposição de que Jesus pregava na rua, uma vez que

os moleques o apedrejavam, o que era comum ocorrer em espaços abertos como ruas e praças.

Por outro lado, tendo em vista que a piada dialoga com a passagem bíblica Mateus 19: 13 –

14, ressaltamos que o conhecimento compartilhado entre enunciador (narrador da piada) e

enunciatário (leitor), a respeito da versão bíblica, situa a história entre outras que se conta

sobre as andanças de Jesus. É no caminho por onde passa que Ele opera milagres, realiza

pregações e abençoa as pessoas, como, segundo a Bíblia, fez com as crianças.

No entanto, algumas controvérsias são bastante relevantes quando se trata do espaço

em piadas com passagens bíblicas. A princípio, a piada Jesus e as criancinhas diz que “Jesus

pregava na Galileia (...)”; contudo, a Bíblia diz, logo no início do capítulo 19, no livro de

Mateus, que Ele deixou a Galileia e foi além do Jordão, no território da Judéia116. Nesta

perspectiva, entendemos que o sujeito enunciador, ao conceber a piada, busca validá-la,

situando a história na Galileia, mas entra em desacordo com o discurso bíblico.

Sob os aspectos temáticos, destacamos os temas do respeito e seu contrário, para os

quais apontam os atos do discípulo e das crianças, respectivamente; da admiração, que o

discípulo manifesta por seu mestre; da bondade, suposta na atitude de Jesus, e da vingança,

sua intenção real. Além desses, destacamos também o tema da dissimulação, com a qual Jesus

busca enganar as crianças, a fim de agredi-las. Ele age com destreza, ao se manter inerte às

agressões sofridas, e, como relata o narrador, não mexe um só músculo. Com isso, Jesus

figura como O todo poderoso, mas quer, na verdade, enganar seus agressores, fingindo não se

incomodar com as pedradas. É, portanto, um Jesus impiedoso, vingativo e “malvado”.

116 “E aconteceu que, concluindo Jesus estas palavras, deixou a Galileia e foi para o território da Judéia, além do Jordão. Seguiram-no muitas multidões, e curou-as ali”. (MATEUS, 19: 1 – 2)

Page 67: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

81

Por outro lado, vemos que o enunciador da piada busca promover o humor não só com

a dessacralização da imagem de Cristo, mas principalmente com a intolerância às crianças. A

“porrada” é o castigo dado à “molecada” mal comportada; é a ideologia autoritária e tirana

quem impera aqui. Assim, o discurso dessa piada é o de que nem Jesus, que perdoa, tem

paciência com as crianças mal comportadas, e o humor advém justamente de sua atitude

inesperada, após a pergunta do discípulo.

3.5.3 Estrutura fundamental

Assim como as piadas anteriores que compuseram a categoria intertextual, esta

mantém a tensão ser x parecer, sob a característica de parecer passagem bíblica, mas ser

piada. Por outro lado, outras tensões serão aqui destacadas no octógono semiótico, como a

que diz respeito às oposições entre falsidade x sinceridade.

Nesta perspectiva, ser falso é eufórico para Jesus, que quer revidar a agressão sofrida

pelas crianças; já ser sincero implica, de fato, convidá-las para junto de si e tratá-las como os

outros ouvintes, o que é disfórico. Sinceridade implica não-falsidade, e dessa relação advém o

perdão. No entanto, da implicação entre falsidade e não-sinceridade surge a agressão.

Outra tensão dialética que pudemos perceber aqui é a que diz respeito a Imperfeição x

perfeição. Neste sentido, imperfeição implica não-perfeição, resultando na capacidade do ser

T. D.

Agressão Perdão

Não-falsidade Não-sinceridade

Sinceridade Falsidade

Page 68: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

82

humano; já perfeição implica não-imperfeição, de que resulta a capacidade do ser divino. O

octógono seguinte demonstra, na verdade, aquilo que Jesus quer que as crianças acreditem,

quando não mexe um só músculo.

T. D.

Ser divino Ser humano

Não-perfeição Não-imperfeição

Imperfeição Perfeição

Page 69: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

83

4. ANÁLISE SEMIÓTICA DE PIADAS INTERDISCURSIVAS

4.1 FÉ DEMAIS NÃO CHEIRA BEM

A filha apresenta ao pai seu futuro marido, um rapaz crente.

- Em que área você trabalha? – pergunta o pai.

- Eu não trabalho. – responde o rapaz, sorrindo placidamente.

- E como pretende sustentar minha filha? – indigna-se o pai.

- Deus nos dará tudo o que precisamos. – responde o rapaz, erguendo os braços aos

céus.

- E onde pretendem morar? – o pai prossegue indignado.

- Não temos onde morar – responde o rapaz, sempre com o mesmo sorriso – mas Deus

providenciará para nós!

Nervoso, o pai pede licença e sai da sala para refrescar a cabeça. A filha corre até ele

e pergunta ansiosa:

- O que o senhor está achando do meu noivo, pai?

- Eu prefiro não falar o que estou achando dele... Mas com certeza ele está me

achando um Deus!

As piadas interdiscursivas que aqui analisamos são assim consideradas porque

mantém um diálogo com passagens bíblicas sob o ponto de vista do discurso, mas não

necessariamente da manifestação textual. Mais que as palavras utilizadas, interessa-nos

observar a preservação da ideologia religiosa com o intuito de promover o humor. No caso

desta primeira piada interdiscursiva, observamos que ela opera com um diálogo e quebras de

expectativa seqüenciadas. É um pai que interroga seu (possível) futuro genro e deste recebe

respostas inesperadas, das quais discorda; o ápice dá-se quando a filha questiona o que o pai

“achou” do noivo e tem como resposta mais uma informação inesperada. São mudanças

sucessivas de script as quais visam provocar o riso com inserções do discurso religioso diante

de questionamentos puramente materiais. Neste caso, é um discurso que remete a passagens

como as de Filipenses 4: 19 e Mateus 6: 33, que sustentam a idéia de que Deus proverá tudo

aquilo de que o homem precisar. No entanto, para o pai, esse discurso funciona como uma

desculpa de quem busca nele um provedor das coisas terrenas, e é daí que advém o efeito de

humor na piada.

Page 70: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

84

Percurso temático

1. A APRESENTAÇÃO DO NOIVO

2. OS QUESTIONAMENTOS DO PAI

3. AS RESPOSTAS DO NOIVO

4. A SAÍDA DO PAI

5. A PERGUNTA DA FILHA

6. A RESPOSTA DO PAI

4.1.1 Narrativização

Modalizado por um querer-saber, o sujeito semiótico 1 busca, como objeto de valor

principal, avaliar e julgar o rapaz crente que pleiteia casar-se com sua filha. Na figura do pai

exigente, o S1 passa a interrogar seu futuro genro e intenta, de início, saber em que ele

trabalha (O.V.1); por conseguinte, procura entender como sustentará sua filha (O.V.2), uma

vez que o rapaz, seu oponente, diz não ter emprego; adiante, o S1 busca saber onde o casal irá

morar (O.V.3), e conforme a resposta inesperada que recebe, ausenta-se da sala, a fim de

acalmar-se (O.V.4); por fim, o S1 busca revelar parte de seu julgamento, sem, contudo, dizer

explicitamente o que pensa do futuro genro.

Neste sentido, vejamos o esquema do percurso narrativo do S1:

Onde:

S1 = pai

O.V.1 = saber o emprego do futuro genro

S1

S1

S1

S1

S1

OV1

OV2

OV3

OV4

OV5

Page 71: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

85

O.V.2 = entender como sustentará sua filha

O.V.3 = saber onde irão morar

O.V.4 = ausentar-se para se acalmar

O.V.5 = revelar à filha sua opinião sobre o noivo

Por sua vez, o S2, que é modalizado por um querer-poder-fazer o futuro sogro

consentir o casamento e destinado pela fé em Deus para atingir tal objeto de valor, busca

responder às perguntas do pai da noiva, seu oponente. Este intenta prejudicar a conjunção do

S2 com seu objeto de valor por não confiar nele para casar-se com sua filha. Assim sendo, o

objeto de valor principal do S2 é o consentimento para casar-se, e para alcançá-lo, tenta

convencer o sogro de que a ajuda de Deus é tudo que precisa para levar uma boa vida com a

esposa.

Em seu percurso narrativo, portanto, o S2 tem como objeto de valor inicial (O.V.1)

responder ao sogro calmamente sobre sua ocupação; em seguida, busca esclarecer como a

esposa será sustentada (O.V. 2); por fim, procura reforçar o que irá suprir suas necessidade

(O.V. 3). Diante das discordâncias de seu oponente, podemos concluir que o S2 busca entrar

em estado de conjunção com seu objeto de valor (O.V.), mas finda a narrativa sem consegui-

lo; ou seja, ele principia a narrativa disjunto do O.V. e assim permanece no seu término.

Vejamos agora o esquema do percurso narrativo do S2:

Onde:

S2 = noivo

O.V.1 = responder ao sogro

O.V.2 = esclarecer como a esposa será sustentada

O.V.3 = revelar o que irá suprir suas necessidades

OV1

OV2

OV3

S2

S2

S2

Page 72: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

86

A narrativa ainda apresenta um sujeito semiótico 3 (S3), que é modalizado por um

querer-saber se terá consentimento para casar, seu objeto de valor principal. Na figura da

filha ansiosa, o S3 busca inicialmente apresentar seu noivo ao pai (O.V.1), a fim de que este

seja avaliado; após perceber que o pai se ausenta de onde interroga o pretendente, O S3

procura saber qual é a opinião do pai a respeito do seu noivo (O.V.2). Como não recebe

resposta direta e literal, o S3 finda a narrativa disjunto de seu objeto de valor, pois o

consentimento para casar-se não lhe é dado; e o julgamento do pai não é explicitado com

clareza. Logo, seu percurso narrativo pode ser representado da seguinte maneira:

Onde:

S3 = filha

O.V.1 = apresentar o noivo ao pai

O.V.2 = saber a opinião do pai sobre o noivo

4.1.2 Discursivização

Figurativizado como um chefe de família patriarcal, o ator pai da noiva promove uma

verdadeira sabatina com o seu aspirante a genro, um rapaz crente, sob a “caricatura” (figura)

do evangélico acomodado e conformado, que deposita todas as suas esperanças em uma

divindade (Deus, que tudo pode). Esse é um estereótipo difundido por boa parte das piadas

religiosas que acionam a figura do evangélico, assim como fazem aquelas que operam com

padres (libidinosos ou sexualmente desequilibrados), loiras (burras ou mulher objeto), judeus

(preocupadíssimos com dinheiro), dentre outras “estereotipações” comuns ao universo de

discurso humorístico117.

117 Segundo Possenti (2001), as piadas operam fortemente com estereótipos, seja porque veiculam uma visão simplificada do problema, seja porque assim se tornam mais facilmente compreensíveis. Para ele, esses textos fornecem um bom material para pesquisas sobre representações, mesmo que grosseiras. Além disso, o autor ressalta que muitas ações sociais (logo, práticas discursivas) são realizadas com os frágeis argumentos embasados em preconceitos e práticas estereotípicas.

OV1

OV2

S3

S3

Page 73: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

87

A filha, por sua vez, figura como uma mulher ansiosa para ser desposada, e que busca

o consentimento do pai para realizar sua vontade. É a filha submissa, que, para se casar,

espera a aprovação da família, representada pelo pai. Isto reflete o tema do machismo e do

autoritarismo paterno, uma vez que a mãe não tem voz, nem é ao menos mencionada na

história. A opinião do pai é fator determinante na construção do efeito de humor; seu

julgamento é quem valida ou não a relação. Já o noivo, em seu discurso, evoca os temas da

devoção, da fé em Deus acima de todas as coisas, da confiança em dias melhores conforme a

vontade divina.

Nesse sentido, o diálogo entre sogro e genro acena para um choque ideológico, no

qual o primeiro enunciador busca inquirir o segundo na perspectiva de desvelar questões

materiais e mundanas (sustento financeiro, moradia); por seu turno, o genro acena para a

abstração da fé, da esperança, da crença. Os valores almejados pelos dois atores são distintos,

contrariam-se e se refletem em seus discursos, o que se traduz numa oposição temática –

semântica, quando se tratar de estrutura profunda – marcada por posições ideológicas

divergentes.

O espaço é marcado pela expressão sai da sala, o que remete a uma casa. Não,

poderíamos dizer que se trata de um outro ambiente, pois a piada segue as regras morais e

ideológicas que movem uma família patriarcal e autoritária: é preciso que o noivo seja

apresentado ao futuro sogro com este em seus domínios, e é na sala que ocorre uma conversa

dessa natureza.

Quanto ao tempo, percebemos que suas marcas restringem-se aos efeitos de

subjetividade nas projeções eu-aqui-agora. Como exemplo, no discurso do noivo (Eu não

trabalho) e do pai (Eu prefiro não falar o que estou achando dele...), ambos com conjugação

em tempo presente, ora denotando o momento atual, no que tange à ocupação, ora

manifestando opinião presente. Além dessas marcas enunciativas, não há nenhuma outra

deixada pelo sujeito da enunciação que concebeu a piada, a fim de marcar o tempo no enredo.

Por outro lado, as controvérsias existentes entre as piadas intertextuais e as passagens

bíblicas dão lugar à observância do discurso religioso na construção do humor. Não se muda o

texto bíblico do ponto de vista ideológico, usa-se o mesmo discurso como fator constituinte

da oposição entre os scripts superpostos, característica peculiar aos textos humorísticos. Para

cada piada interdiscursiva, a apropriação do discurso religioso revela estratégias diversas. No

caso da presente piada, a estratégia é seguinte: em oposição aos questionamentos de valor

material, o rapaz crente oferece respostas de valor espiritual; ou seja, em vez de responder que

emprego tem, por exemplo, diz não ter emprego algum, por confiar que tudo lhe será dado por

Page 74: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

88

Deus. A quebra de expectativa, portanto, ocorre diante de tais respostas, que para o pai não

condizem com a situação.

Na verdade, o ator pai segue o script da apresentação de um pretendente a marido de

sua filha, no qual ocorrem diálogos que fornecem informações a respeito da procedência do

aspirante, de sua ocupação. Tudo isso porque o pai concebe sua filha como um bem, que

muda de dono, mas que não pode passar a ser de um novo dono qualquer, mas daquele que

tiver sua aprovação.

Entretanto, o rapaz crente aciona o script religioso sempre que questionado,

justificando-se com o discurso de que Deus proverá tudo de que ele precisar. Neste cerne, ele

dialoga com passagens bíblicas diversas, das quais destacamos duas: Filipenses 4: 19 e

Mateus 6: 33. Na primeira118, o apóstolo Paulo demonstra sua gratidão para com os filipenses,

que tanto lhe ajudaram, e lhes diz que Deus deverá suprir as necessidades deles, como

retribuição. É o discurso de que Deus não deixa faltar nada a quem tem fé. Já na segunda119,

esse discurso é ainda mais incisivo e se faz presente desde o versículo 25 até o 34, nos quais

Cristo prega aos homens, ensinando-lhes que não devem ter ânsia pela vida; ânsia de vestir,

de comer ou beber.

É também um discurso contrário ao imediatismo e ao materialismo humanos, pois

sustenta a idéia de que se deve primeiro buscar a Deus. Ele acrescentará tudo aquilo que for

justo, sem que o homem precise preocupar-se com o dia de amanhã. Contudo, esse discurso é

rebatido por outro, que se opõe pelo viés da estereotipação.

Nessa perspectiva, o enunciador que concebe tal piada busca disseminar a idéia

generalizadora de que os crentes (evangélicos) são pessoas descansadas, preguiçosas e

alienadas; de que utilizam a religião, a fé para justificar sua (suposta) ociosidade. Sua

acomodação é validada pela espera em Deus, o que se contrapõe ao que acredita o pai da

noiva, pois para ele, se o rapaz não tem emprego nem onde morar, restará a ele mesmo

sustentar não só a filha, mas também o genro. É por isso que ele diz no final acreditar que o

rapaz acha que ele é um Deus; logo, alguém que lhe proverá de tudo.

Diante desse diálogo entre o discurso religioso e o humorístico, percebemos que não

se trata de relegar a segundo plano alguns valores em prol de outros, não se deixa de lado os

ensinamentos bíblicos, mas se põe em evidência. Os temas, os conceitos e os saberes sobre o

discurso religioso são relevados para se contraporem aos outros a que a piada remete e fazer a

118 “E o meu Deus, segundo a sua riqueza em glória, há de suprir em Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades.” 119 “Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas.”

Page 75: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

89

ressignificação. Ri-se, portanto, quando se está diante do mundo, da vida mundana, dos

valores relevantes para o cotidiano do ponto de vista material, e o texto traz à baila os valores

religiosos, quebrando a expectativa com um discurso óbvio do ponto de vista religioso, mas

momentaneamente esquecido do ponto de vista anterior.

4.1.3 Estrutura fundamental

As oposições semânticas fundamentais que constituem esta piada giram basicamente

em torno do conflito entre os valores materiais e os espirituais. Neste cerne, a oposição que

primeiro demonstramos é a existente entre materialismo x espiritualismo. No octógono que a

representa abaixo, materialismo implica não-espiritualismo e espiritualismo implica não-

materialismo. Da primeira relação de implicação tem-se a aprovação; e da segunda, a

reprovação. Nesse sentido, é preciso considerar que, para o noivo, os valores espirituais são

eufóricos, mas para o pai da noiva não, pois este valoriza o inverso, ou seja, o material.

Logo, outra tensão pode ser estruturada: fé x razão, onde fé implica não-razão e razão

implica não-fé. Da primeira implicação advém o conformismo e da segunda a preocupação

financeira, conforme está ilustrado no octógono abaixo:

T. D.

Reprovação Aprovação

Não-espiritualismo Não-materialismo

Materialismo Espiritualismo

Page 76: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

90

4.2 PROBLEMAS NA TERRA

Jesus chama os seus discípulos e apóstolos para uma reunião de emergência, devido

ao alto consumo de drogas na Terra.

Depois de muito pensar e discutir, chegaram à conclusão de que a melhor maneira de

combater a situação era provar a droga eles mesmos.

Então, organizam uma comissão de apóstolos para buscarem as drogas na Terra. A

operação é feita e, dois dias depois começam a retornar os apóstolos.

Jesus espera à porta do céu, quando chega o primeiro servo:

— Quem é?

— Sou Paulo.

Jesus abre a porta.

— E o que trazes Paulo?

— Trago pó da Colômbia.

— Muito bem, filho. Entre.

Então chega o segundo apóstolo:

— Quem é?

— Sou Pedro.

T. D.

Preocupação financeira

Conformismo

Não-razão Não-fé

Fé Razão

Page 77: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

91

Jesus abre a porta.

— E o que trazes, Pedro?

— Trago maconha do Brasil.

— Muito bem, filho. Entre.

E foi assim sucessivamente até chegar o último apóstolo:

— Quem é?

— Sou Judas.

— Jesus abre a porta.

— E tu, o que trazes Judas?

— Polícia Federal! Todo mundo na parede! Mão na cabeça, cabeludo! A casa caiu!

Esta piada, diferente da anterior, não apresenta quebras de expectativa sucessivas. Na

verdade, ela é verdadeiramente o tipo que contempla os ingredientes postulados por Raskin

(1987) para ser piada: dispõe de temas controversos, dois scripts sobrepostos, um gatilho

lingüístico, que é o próprio Judas. A história versa sobre a preocupação de Jesus com os

problemas atuais da Terra, em especial o consumo de drogas. Jesus decide, junto com seus

seguidores, enviar uma comissão de apóstolos à Terra, os quais devem retornar ao céu,

posteriormente, trazendo diversas drogas para serem experimentadas. Este foi o melhor modo

por eles encontrado para combater o problema, mas após sucessivos retornos, chega o último

apóstolo, Judas. Mantém-se o discurso de que Judas traiu Jesus, segundo a Bíblia, o que

confere a esta piada o caráter interdiscursivo.

Percurso temático

1. A REUNIÃO DE JESUS COM SEUS SEGUIDORES

2. A DECISÃO DO QUE FAZER SOBRE AS DROGAS

3. A PARTIDA DA COMISSÃO DE APÓSTOLOS

4. A CHEGADA DE PAULO

5. O DIÁLOGO COM JESUS

6. A PERMISSÃO PARA ENTRAR NO CÉU

7. A CHEGADA DE PEDRO

8. OUTRO DIÁLOGO COM JESUS

9. NOVA PERMISSÃO

10. NOVAS CHEGADAS E PERMISSÕES CONCEDIDAS

Page 78: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

92

11. A CHEGADA DO ÚLTIMO APÓSTOLO

12. O DIÁLOGO COM JESUS

13. A ABERTURA DA PORTA

14. A TRAIÇÃO DE JUDAS

4.2.1 Narrativização

Modalizado por um querer-saber, o S1 reúne seus seguidores na perspectiva de

encontrar uma solução para o problema das drogas na Terra, seu objeto de valor principal.

Tais seguidores são seus adjuvantes, porquanto busquem lhe auxiliar na tomada de decisão do

que fazer. Feito o acerto, o S1 passa a esperá-los na porta do céu, com o intuito de saber o que

trazem da Terra. Quando chega o primeiro e é questionado pelo S1, responde de imediato e

obtém permissão para entrar. Com o segundo, ocorre o mesmo e a nova permissão é

concedida. No entanto, a chegada do terceiro rompe a trajetória do S1 na busca de seu objeto

de valor, uma vez que Judas é na verdade seu oponente e não adjuvante. Ele prejudica o S1 ao

lhe trazer a Polícia Federal e não uma droga para ser experimentado, conforme havia sido

acordado na reunião com todos os seguidores. Assim, o S1 finda a narrativa em estado de

disjunção com seu objeto de valor principal, tendo sido traído por Judas, seu oponente, que

traz a Polícia para lhe prender. Eis o esquema do percurso narrativo do S1:

OV1

OV2

OV3

OV4

OV5

OV6

OV7

OV8

S1

S1

S1

S1

S1

S1

S1

S1

Page 79: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

93

Onde:

S1 = Jesus

O.V.1 = reunir os seguidores

O.V.2 = encontrar solução para as drogas

O.V.3 = aguardar os seguidores na porta do céu

O.V.4 = saber o que Paulo trouxe

O.V.5 = permitir sua entrada

O.V.6 = saber o que Pedro trouxe

O.V.7 = permitir sua entrada

O.V.8 = saber o que Judas trouxe

O S2, por sua vez, é modalizado por um querer-fazer com que Jesus saiba o que lhe

trouxe, dando-lhe a resposta devida. Seu objeto de valor principal é retornar ao céu, conforme

o acordo firmado na reunião. Jesus é seu adjuvante, uma vez que lhe auxilia com o diálogo;

mas é antes de tudo seu destinador, porque é quem lhe concede a permissão para entrar no

céu. Assim também ocorre com o S3, que percorre as mesmas etapas para atingir seu objeto

de valor. Vejamos, pois, os percursos do S2 e do S3:

Onde:

S2 = Paulo

O.V.1 = responder a Jesus

O.V.2 = entrar no céu

Onde:

S3 = Pedro

S3

S3

S2

S2

OV2

OV1

OV2

OV1

Page 80: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

94

O.V.1 = responder a Jesus

O.V.2 = entrar no céu

Já o S4 é modalizado por um querer-fazer e busca como objeto de valor principal trair

Jesus. Ele responde a Jesus quem é, quando perguntado; mas, diante da porta aberta, consuma

a traição, pois traz consigo a Polícia Federal, seu adjuvante. Assim, o S4 finda a narrativa

conjunto com seu objeto de valor. Eis o esquema de seu percurso:

Onde:

S4 = Judas

O.V.1 = responder a Jesus

O.V.2 = entregá-lo à Polícia

Por fim, a narrativa ainda apresenta o S5, que é um sujeito coletivo figurativizado pela

Polícia Federal. Tem como objeto de valor principal o cumprimento da lei, seu destinador.

Com o auxílio de Judas, seu adjuvante, o S5 chega até a porta do céu e consegue entrar para

prender Jesus e seus seguidores. Isso o deixa conjunto com seu objeto de valor.

Seu percurso pode ser representado pelo seguinte esquema.

Onde:

S5 = Polícia Federal

O.V.1 = abordar a todos

O.V.2 = prender Jesus

4.2.2 Discursivização

S4

S4

OV1

OV2

S5

S5

OV1

OV2

Page 81: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

95

Do ponto de vista atorial, o ator Jesus figura como o mestre, que dispõe de discípulos

e/ou apóstolos, ou como senhor, que possui seus servos. É ele quem organiza a reunião na

qual é decidido o que fazer para solucionar o problema da droga na Terra. É o Cristo vivo,

que vela pelo homem no céu e age para ajudá-lo, quando preciso for. Com isso, o sujeito

enunciador veicula o discurso de que Jesus (Deus) pode intervir na humanidade, quando

julgar necessário. Mas não decide fazê-lo sozinho, posto que envie os apóstolos à Terra para

cumprirem uma missão: trazer drogas para serem experimentadas por eles mesmos e, assim,

descobrirem como combatê-las melhor.

Jesus enuncia, com objetividade, perguntas curtas, que servem ao propósito do diálogo

com os apóstolos, quando estes retornam ao céu. Saber quem são e o que trazem é a condição

para que seja permitida a entrada; diz-se o nome e Ele abre a porta, diz-se o que traz e Ele

deixa entrar. Salvo o tratamento filho, que mantém com Paulo e Pedro, nada altera tal

objetividade. Por sua vez, esse tratamento gera um efeito de aproximação, porque denuncia

seu apreço com seus discípulos, diferente dos questionamentos “quem é?” e “o que trazes?”.

Os apóstolos, por sua vez, enunciam com a subjetividade peculiar à situação, dizendo

o nome e a droga que trouxeram. O efeito de aproximação ocorre ao enunciar o eu implícito

em sou Paulo, ou sou Pedro. Eles são figurativizados como apóstolos fiéis a Jesus, porque

cumprem as ordens delegadas na reunião e respondem a Jesus coerentemente. Mas não é o

mesmo com Judas, que só diz quem é, e o que traz apresenta-se por si só: o sujeito coletivo

Polícia Federal, a instituição na figura dos policiais que a representam e dão ordem de prisão a

Jesus. Assim, Judas mantém-se no papel temático do traidor, o que confere à piada o caráter

interdiscursivo e estabelece o humor.

Efeito similar ao do discurso de Jesus ocorre com a Polícia, que, objetivamente,

anuncia-se e ordena que todos se voltem para a parede. Mas em um típico enunciado de voz

de prisão, o enunciador acena para uma aproximação, ao tratar Jesus como cabeludo e

exclamar que a casa caiu, evidenciando o juízo que a Polícia fez: Jesus é um criminoso

qualquer; por isso, é tratado como tal, inclusive com vulgo; conclui-se que Judas o denunciou

como traficante, levando a Polícia a externar sua satisfação em prendê-lo, no enunciado a

casa caiu, que equivale a farra acabou, ou chega de festinha.

O tempo da enunciação é basicamente marcado por três expressões, sendo a primeira

todo o enunciado que aponta o alto consumo de drogas. Isto conduz à atualidade, visto que a

massificação e a divulgação desse problema na mídia estão atreladas à modernidade.

Contudo, o consumo de drogas não é problema novo, mas o alto consumo sim, se se pensar

numa sociedade ocidental que o concebe como problema, discrimina-o e o considera uma

Page 82: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

96

atividade parceira da criminalidade, por contribuir para o tráfico. Para outras sociedades em

que alguma droga é legal ou aceitável culturalmente, de certo, o efeito de humor desse tipo de

piada não teria o mesmo sentido. Para alguns povos indígenas, por exemplo, o uso de

alucinógenos em rituais não é discriminado, nem transgride leis; na Europa há países em que

maconha é legalizada. Em suma, trata-se de um discurso marcado por uma idéia de uma

determinada cultura ocidental que concebe drogas como uma praga da modernidade; é aí que

o texto se situa no tempo.

Outra expressão que marca o tempo é dois dias depois, que aponta um intervalo na

narrativa. É o tempo dos atores, ou seja, o tempo que dura sua ação de ir à Terra em busca de

drogas; o intervalo que o sujeito enunciador concebe entre a busca e o retorno ao céu. Além

dele, a narrativa apresenta mais um intervalo, existente entre a chegada dois primeiros

apóstolos e o último. Durante esse período, outros apóstolos foram chegando sucessivamente,

até a chegada de Judas; mas o sujeito enunciador não os enfatiza, não lhes dá voz, não os situa

no espaço, nem os figurativiza, apenas indica que o processo continua até Judas, ao enunciar

que foi assim sucessivamente. Nessa expressão, está implícita uma continuidade, que poderia

ser “... que ocorreu a chegada dos demais apóstolos”.

Já o espaço caracteriza-se pela oposição céu x terra, a qual os apóstolos se submetem.

Jesus os reúne no céu para discutir como solucionar o problema das drogas, e a Terra é uma

ponto de parada apenas para recolhê-la, não enfatizado. Mas o espaço que mais caracteriza a

narrativa é a porta do céu, na qual Jesus os aguarda e onde também se depara com a Polícia

Federal, após falar com Judas. Do outro lado dessa porta, pressupõe-se que haja um espaço

fechado, visto que a ordem da polícia é que todos fiquem na parede; ou seja, é o local onde os

apóstolos provavelmente experimentariam as drogas, ou, no mínimo, aguardavam a chegada

do último apóstolo, cada qual com a droga que trouxe da Terra. Daí a ordem de que todo

mundo se voltasse para a parede, comum às situações de revista e/ou prisão em massa.

A respeito da configuração temática, vemos que esta piada, de início, acena para temas

como drogas, corrupção humana, traição, criminalidade, mas também remete aos temas da

intervenção divina, união cristã, lealdade. A piada também veicula o aspecto legal que

envolve o trabalho policial, ao nos remeter ao tema das leis e suas infrações. Nesse aspecto, é

importante destacar que, se Jesus e seus apóstolos são presos, é porque infringiram a lei, que

não considera consumo de drogas crime, mas o tráfico; é pela quantidade de drogas que

entrou no céu que a polícia pode pressupor que não era uma questão de consumo. Mas o que

realmente assegura isso é que, segundo o discurso religioso, Judas é o traidor, que delatou

Page 83: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

97

Jesus; logo, a denúncia de tráfico partiu dele, pois a polícia já veio certa de que havia

ilegalidade.

Um aspecto relevante, do ponto de vista da estratégia para promover o humor, é que o

enunciado da Polícia promove a quebra de expectativa desencadeada pela chegada de Judas.

Ele não traz a droga solicitada por Jesus, como os outros apóstolos o fizeram. Ele traz a

polícia, e, obviamente, trai Jesus. Isso é o que faz rir, porque é obvio que Judas trairia Jesus.

Mas o primeiro script acionado pela piada conduz o leitor a esperar que ele faça o mesmo que

Paulo e Pedro, apresentando-se e dizendo que droga trouxe. No entanto, ele faz exatamente o

mesmo que faz na Bíblia, e que, diante da trama da piada, cai no esquecimento, voltando

rapidamente por efeito de interdiscurso, e é desse efeito que advém o humor dessa piada.

Esse jogo é tão bem construído que os valores religiosos não chegam a ficar em

segundo plano. Pelo contrário, emergem em primeiro plano inesperadamente, provocando o

riso. Por outro lado, os valores concernentes ao consumo de drogas, tráfico, criminalidade, em

suma, o universo de discurso da legalidade (e ilegalidade) cai no esquecimento. Assim, essa

piada aciona o script religioso para promover o humor, não o contrário; ela traz à tona os

valores religiosos para relegar a segundo plano os aspectos que são relevantes de início, como

o alto consumo de drogas, por exemplo.

Na verdade, o sujeito enunciador busca persuadir os enunciatários (leitores) de que os

problemas na Terra são os mesmos de sempre, tanto na época de Jesus quanto ma atualidade:

infidelidade, deslealdade, traição, preconceito. Mas o objetivo da piada não é discuti-los. Ela

busca veicular e disseminar o discurso de que quem trai uma vez, sempre trairá; de que o

tempo passa, mas tudo continua do mesmo jeito; de que uma vez pecador, assim permanecerá;

e de que se Judas traiu séculos atrás, trairia hoje do mesmo modo. Ou seja, mudam as

formações discursivas, mas o ideológico permanece, e o ideológico da piada é de que um erro

do passado retorna no futuro, inevitavelmente.

4.2.3 Estrutura fundamental

As oposições semânticas em que essa piada se situa não apresentam grandes

diferenças quanto às piadas intertextuais. Um exemplo é a tensão do humano x divino, na qual

Jesus se constitui. Ser divino é eufórico para Jesus, que reúne seus apóstolos no céu e os envia

à Terra. Mas para a Polícia é disfórico, porque almeja prendê-lo como qualquer criminoso.

Nesse cerne, surge a implicação entre divino e não-humano, resultando na liberdade para

Page 84: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

98

transportar e experimentar drogas no céu. Já da implicação entre humano e não-divino advém

a repressão, conforme ilustramos no seguinte octógono:

Os próximos octógonos que ilustramos centram-se na ação de Judas e dos demais

apóstolos. No primeiro, temos a tensão entre lealdade x infidelidade. Decorre da implicação

entre lealdade e não-infidelidade a obediência às regras; já da implicação entre infidelidade e

não-lealdade surge a desobediência.

T. D.

liberdade Repressão

Não-divino Não-humano

Ser humano Ser divino

T. D.

Desobediência Obediência

Não-infidelidade Não-lealdade

Lealdade Infidelidade

Page 85: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

99

A outra tensão é a existente entre sinceridade x falsidade, sendo que ser falso é

eufórico para Judas e disfórico para os demais apóstolos; já ser sincero é eufórico para os

apóstolos e disfórico para Judas. Sinceridade implica não-falsidade e dessa relação advém o

ato de seguir a Jesus; por sua vez, falsidade implica não-sinceridade e dessa implicação surge

a traição. O octógono seguinte pode ser lido tanto na posição sinceridade x falsidade quanto

falsidade x sinceridade, considerando-se a primeira leitura para o conceber de Judas e a

segunda para os apóstolos.

4.3 PROFESSORA ATÉIA

Um dia, na sala de aula, a professora estava explicando a teoria da evolução aos

alunos e tentando provar que Deus não existe. Ela perguntou a um dos estudantes:

― Tomas, vês a árvore lá fora?

― Sim – respondeu o menino.

A professora voltou a perguntar:

― Vês a grama?

E o menino respondeu prontamente:

― Sim.

Então, a professora mandou Tomas sair da sala e lhe disse para olhar pra cima e ver

se ele enxergava o céu. Tomas entrou e disse:

T. D.

Traição Seguir a Jesus

Não-falsidade Não-sinceridade

Sinceridade Falsidade

Page 86: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

100

― Sim, professora. Eu vi o céu.

― Vistes a Deus? – perguntou a professora.

O menino respondeu que não. A professora, olhando para os demais alunos da sala,

disse:

― É disso que eu estou falando! Tomas não pode ver a Deus, porque Deus não está

ali! Podemos concluir então que Deus não existe.

Nesse momento Pedrinho se levantou e pediu permissão à professora para fazer mais

algumas perguntas a Tomas.

― Tomas, vês a grama lá fora?

― Sim.

― Vês as árvores?

― Siiiiiiiimmmmm.

― Vês o céu?

― Sim!

― Vês o cérebro da professora?

― Não – disse Tomas.

Pedrinho então, dirigindo-se aos seus companheiros, disse:

― Colegas, de acordo com o que aprendemos hoje, concluímos que a professora não

tem cérebro!

Esta piada tem a particularidade de dialogar com a passagem bíblica João 20: 24-29,

na qual Jesus aparece aos discípulos e precisa convencer Tomé, que se revela descrente com

tal aparição, por não o ter visto antes. Jesus enuncia que é bem-aventurado aquele que crê

nele, mesmo sem o ver, pregando o discurso de que a fé se sobrepõe aos sentidos visuais. É

neste sentido que há interdiscursividade entre a passagem bíblica e essa piada, mas na

contramão desse discurso, uma professora tenta fazer seus alunos acreditarem na inexistência

de Deus, por eles não conseguirem vê-lo. No entanto, um de seus alunos intervém, ao usar a

mesma estratégia argumentativa da professora e concluir que seu cérebro também não existe,

já que ninguém o vê. Essa é a quebra de expectativa que desencadeia o riso, visto que o fato

de a professora não ter cérebro possui também o sentido de que ela é burra. Além disso, seria

óbvio acreditar na inexistência de seu cérebro, ao se levar em conta sua linha de raciocínio.

Percurso temático

Page 87: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

101

1. A EXPLICAÇÃO DA PROFESSORA

2. AS PERGUNTAS A TOMAS SOBRE AS COISAS VISÍVEIS

3. AS RESPOSTAS DE TOMAS A PROFESSORA

4. O QUESTIONAMENTO SOBRE O CÉU

5. A AFIRMATIVA DE TOMAS

6. O QUESTIONAMENTO SOBRE DEUS

7. A NEGATIVA DE TOMAS

8. A CONCLUSÃO DA PROFESSORA

9. A INTERVENÇÃO DE PEDRINHO

10. AS PERGUNTAS DE PEDRINHO SOBRE AS COISAS VISÍVEIS

11. NOVAS RESPOSTAS DE TOMAS

12. OUTRO QUESTIONAMENTO SOBRE O CÉU

13. OUTRA AFIRMATIVA DE TOMAS

14. A PERGUNTA SOBRE O CÉREBRO DA PROFESSORA

15. A NEGATIVA DE TOMAS

16. A CONCLUSÃO DE PEDRINHO

4.3.1 Narrativização

Modalizado pelo querer-fazer-crer, o S1 busca persuadir seus alunos da inexistência

de Deus. Para isso, tem Tomas como adjuvante, por lhe fazer perguntas cujas respostas

induzam os demais colegas a aderirem a seu credo. Destinado, pois, pelo conhecimento

científico, o S1 interpela Tomas sobre o que ele vê fora da sala, na perspectiva de fazê-lo crer

apenas naquilo que pode ver. Então, o S1 começa perguntando sobre a árvore, a grama e, por

poder-fazer Tomas sair da sala e olhar para cima, pergunta sobre o céu. Em seguida,

manifesta aos demais sua conclusão, após perguntar se Tomas viu a Deus e obter resposta

negativa. Neste sentido, portanto, o S1 está caminhando para o estado de conjunção com seu

objeto de valor principal: a adesão pelos alunos à sua idéia.

Eis o percurso narrativo do S1:

S1

S1

OV1

OV2

OV3

Page 88: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

102

Onde:

S1 = a professora

O.V.1 = provar que Deus não existe

O.V.2 = interpelar Tomas sobre as coisas visíveis

O.V.3 = fazê-lo crer apenas naquilo que pode ver

O.V.4 = manifestar a turma sua conclusão

Por sua vez, o S2, figurativizado pelo aluno Tomas e modalizado pelo dever-fazer,

busca cumprir a tarefa que lhe é destinada, a fim de alcançar o sossego, instaurando-se

também por um querer livrar-se dos questionamentos a ele direcionados. Destinado pela

disciplina, responde às perguntas da professora e às de Pedrinho, seu oponente, porquanto

tenha interrompido a conjunção com seu objeto de valor, após as perguntas da professora (sua

oponente). Porém, assim que Pedrinho conclui suas perguntas, o S2 passa ao estado de

conjunção com seu objeto de valor principal (o sossego), visto que esse outro oponente volta-

se para toda turma, liberando-o de novos questionamentos. Seu percurso narrativo pode ser,

pois, representado pelo seguinte esquema:

Onde:

S2 = Tomas

O.V.1 = conseguir sossego

O.V.2 = responder à professora

O.V.3 = responder a Pedrinho

OV4

S1

S1

S2

S2

S2

OV1

OV2

OV3

Page 89: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

103

Por fim, o S3 procura persuadir os colegas de que a professora está errada, sendo

modalizado pelo querer-fazer-crer que Deus existe, independente de que se possa vê-lo ou

não. Ou seja, o S3 busca inicialmente intervir na aula da professora, para conseguir a adesão

dos colegas (seu objeto de valor principal). Em seguida, passa a questionar Tomas sobre o que

ele não vê, assim como o fez a professora. Nesse sentido, ele é modalizado pelo poder-fazer,

pois adquiriu de sua adjuvante (a professora) a autorização para também interpelar o colega.

O S3 finda a narrativa conjunto com seu objeto de valor, o qual seja manifestar sua

discordância com professora. Mas o valor principal que ele busca é também a adesão dos

alunos às suas idéias, ao seu credo religioso; contrário ao credo da professora. Assim, o S3

Pedrinho, no programa narrativo do S1, é seu anti-sujeito e vice versa, porque o S1 professora

também é anti-sujeito no programa narrativo do S3. Seu percurso narrativo pode ser

representado da seguinte forma:

Onde:

S3 = Pedrinho

O.V.1 = intervir na aula da professora

O.V.2 = interpelar Tomas sobre as coisas visíveis

O.V.3 = manifestar a turma suas conclusões

Por fim, a piada acena para um conflito de interesses, responsável pela disjunção de

ambos, sujeitos semióticos 1 e 3, com seus objetos de valor principais. Os dois buscam

conseguir o mesmo (a adesão às suas idéias pelos alunos) e aqueles aos quais os sujeitos

procuram convencer, com discursos de sedução e manipulação, não manifestam que partido

tomam, ambos findam a narrativa disjunto de seu valor almejado – ambos buscam fazer os

colegas crerem em suas idéias e podem fazer Tomas responder a suas perguntas, mas não fica

claro se há sanção ou não.

S3

S3

S3

OV1

OV2

OV3

Page 90: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

104

4.3.2 Discursivização

Quanto aos aspectos discursivos, no que tange à actorialização, a piada apresenta a

professora, no papel temático da docente que monta uma estratégia de argumentação, para

transmitir seus conhecimentos aos alunos. Dispõe também do ator Tomas, que figura como

um aluno obediente, disciplinado e que procura cumprir as tarefas a ele destinadas. O terceiro

ator dessa piada é Pedrinho, figurativizado como um aluno que se rebela contra o que diz a

professora; é um autônomo, o suficiente para questionar seu próprio colega, seguindo a

mesma estratégia argumentativa da professora, a fim de rebater sua conclusão.

Neste sentido, vem à tona temas ligados à educação, como relação professor-aluno e

metodologia de ensino. Além desses, surgem outros temas, como teorias científicas, fé, razão

e natureza, estando esse último ligado às figuras da árvore, da grama e do céu, objetos do

mundo natural que a professora e Pedrinho pedem para Tomas ver. Por outro lado, figuras

como sala de aula e estudantes remetem diretamente ao tema educação escolar.

Sobre a temporalização, podemos perceber que essa piada situa a história no tempo

através do indicativo de modernidade, pela referência à teoria da evolução, que remonta à

teoria de Charles Darwin, para quem as espécies evoluem. Nesse sentido, o tempo da história

contada na piada se situa entre o momento contemporâneo e, no mínimo, a segunda metade do

século XIX, quando o evolucionismo ganhou força. Por outro lado, o tempo dentro da própria

piada apresenta algumas marcas que delineiam os momentos da história narrada, tais como

um dia, então, nesse momento, hoje. No entanto, o sujeito enunciador demarca o tempo dos

fatos na piada como não seus, por não narrar sua história, não manifestando qualquer

expressão que demarque seu tempo, o tempo de sua enunciação, a não ser o indicativo de

modernidade.

Já com relação ao espaço, o indicativo é de um ambiente escolar, a própria sala de

aula de uma escola indefinida. Nessa perspectiva, trata-se de um espaço fechado, no qual os

atores dialogam e de lá avistam objetos fora dela. Existe, pois, um espaço aberto, que se

visualiza por uma janela ou porta, e que se pode contemplar, saindo da sala. É um lugar com

gramas, árvore e de onde se pode olhar para cima e ver o céu: um jardim, um pátio interno ou

mesmo externo à escola.

Quanto às projeções da enunciação, vemos que o sujeito enunciador cede boa parte do

texto aos atores, concedendo-lhes as vozes que enunciam por ele. Nesse sentido, os três atores

emplacam um efeito de subjetividade, como em “É disso que eu estou falando!” (professora),

“Sim, professora. Eu vi o céu.” (Tomas) e “Colegas, de acordo com o que aprendemos

Page 91: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

105

hoje...” (Pedrinho). No discurso da professora, o eu-aqui-agora se manifesta pelo próprio

pronome de primeira pessoa (eu) e pela conjugação composta de presente do indicativo e

gerúndio estou falando (aqui-agora). Além disso, os diálogos em que a professora e Pedrinho

interpelam também denotam a concomitância, própria do aqui, em cada questionamento

imperativo, porquanto peçam uma resposta imediata daquilo que se vê no momento. No

entanto, sempre que o enunciador, narrador da piada, tem o turno de voz, projeta um efeito de

distanciamento. Mas confere ao seu texto um efeito de realidade, caracterizado pelos

discursos diretos que embalam os interlocutores numa debreagem interna.

Do ponto de vista ideológico, verificamos que esta piada busca relevar o discurso

religioso de que Deus existe, independente de que possa ser visto pelos seres humanos.

Dialoga, pois, com a passagem bíblica João 20: 29, na qual Jesus enuncia: “Porque me viste,

creste. Bem-aventurados os que não viram e creram”. Nesse sentido, o valor religioso se sobre

põe ao racional, científico e materialista que subjaz ao discurso da professora. O efeito de

humor provém da sua estratégia de argumentação, que num silogismo falso, busca persuadir

os alunos de que Deus não existe, porque não pode ser visto. Ora, se tudo que não puder ser

visto momentaneamente aos olhos humanos não existir, é lógico que a o cérebro da professora

também não, pois os alunos não podem vê-lo dentro da cabeça da professora. Essa é a

estratégia de Pedrinho, rebater a professora desqualificando seu dizer. Logo, a ambigüidade

do seu dizer (... concluímos que a professora não tem cérebro) está na dupla possibilidade de

sentido para não tem cérebro: pode significar que seu órgão não existe, por não poder ser

visto, mas também significa que a professora usou de pouca inteligência, ao formular tal

argumentação. Em suma, ou lhe falta algo, ou ela é burra mesmo, e é esse jogo dual que

propicia o riso, porquanto imponha o último sentido, sem esgotar a possibilidade do primeiro.

Dar-se conta de que existe outra leitura, óbvia, é característica de uma leitura humorística.

Por outro lado, mais uma vez, o humor não ofusca os valores religiosos, mas os

reforça, porque minimiza o fundamento científico do discurso da professora em prol da

conclusão a que chega Pedrinho. Na verdade, se a professora é “burra”, por não ter cérebro, é

porque é descrente ou não sabe que Deus existe independente de que Tomas pudesse vê-lo ou

não no céu. Seu argumento, por outro lado, é caracterizado como falso logicamente porque

não é a visão ou não de Deus no céu, naquele momento, que invalidaria sua existência. Tomas

poderia tentar vê-lo em outro momento, porque Deus poderia estar lá outra hora. Nesse

sentido, sua existência estaria condicionada à visão de um ser, como Tomé, que só acreditou

em Cristo depois de vê-lo e tocá-lo. Aliás, Tomas e Tomé são nomes bem parecidos! O

diálogo interdiscursivo se instaura também sob essa ótica, mas é a professora que está mais

Page 92: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

106

para Tomé do que o pobre Tomas, que responde impacientemente sobre o que vê

(Siiiimmmmmm).

4.3.3 Estrutura fundamental

Quanto às oposições semânticas que estão na base da geração de sentido dessa piada,

destacamos as tensões fé x razão e aceitação x rejeição. Na primeira, fé implica não-razão e

dessa relação advém o conhecimento religioso. Já razão implica não-fé e é dessa implicação

que surge o conhecimento científico. Se considerarmos os valores relevados pelos atores

Pedrinho e professora, na discursivização, concordaremos que fé é eufórico para o primeiro,

mas disfórico para a segunda, assim como para a professora é eufórica a razão, mas disfórica

para Pedrinho. Vejamos no octógono abaixo:

Em seguida, apresentamos o octógono representativo da tensão dialética aceitação x

rejeição. Nela aceitação implica não-rejeição, e dessa relação surge o credo imposto, seja

pela educação escolar, pautada pela ciência da razão, seja pela educação religiosa, a qual se

baseia na tradição, na cultura. Já rejeição implica não-aceitação, relação da qual advém o

credo autônomo, que se fundamenta na capacidade humana de questionar, refletir e construir

argumentos capazes de rebater coerções sócio-culturais.

Vejamos o esquema:

T. D.

Conhecimento Científico

ConhecimentoReligioso

Não-razão Não-fé

Fé Razão

Page 93: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

107

T. D.

Credo autônomo Credo imposto

Não-rejeição Não-aceitação

Aceitação Rejeição

Page 94: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

108

5. ANÁLISE SEMIÓTICA DE PIADAS TRANSGRESSIVAS

5.1 CONVITE IMPRÓPRIO

Os apóstolos iam jogar uma partida de futebol contra o time dos centuriões do

Império Romano e resolveram cortar caminho pelo Gólgota. Quando chegaram no alto do

morro, avistaram Jesus sendo erguido na cruz. Ficaram muito sem graça, até que um deles se

dirigiu ao mestre:

― Rabi, vamos bater uma bolinha?

Jesus olhou aqueles pobres e rudes homens com profunda misericórdia e respondeu:

― Hoje não dá, tô pregado!

Concebemos a categoria de piadas transgressivas para enquadrar os textos

humorísticos que remetem a determinadas passagens bíblicas, mas descrevem situações bem

destoantes daquelas mencionadas na Bíblia. De certa forma, existe um efeito de intertexto que

remete as piadas dessa categoria a passagens bíblicas específicas, mas essa constituição

dialogal “pulveriza” qualquer valor religioso, visto que ocorre uma substituição temática e

figurativa bastante incisiva e evidente. Não se quer fazer parecer passagem bíblica, ou relevar

o discurso religioso; antes de tudo, essas piadas o transgridem, pois narram situações bastante

destoantes das bíblicas. São verdadeiras invenções, sob a ótica religiosa.

É o caso desta piada, que se refere à crucificação de Jesus, no mesmo lugar citado pelo

livro sagrado, mas com um fato novo: o encontro dos apóstolos com Cristo, em meio à

caminhada que faziam em direção a um suposto campo de futebol. A piada já começa com

esse propósito transgressivo e traz o fato da crucificação para quebrar a expectativa do leitor,

promovendo o humor com as palavras de Jesus, que se diz pregado. Esse é o gatilho

lingüístico que promove a mudança de um script a outro na piada. É esse dizer que gera a

ambigüidade de seu discurso.

Percurso temático

1. A CAMINHADA DOS APÓSTOLOS

2. A CHEGADA AO GÓLGOTA

3. O ENCONTRO COM JESUS

Page 95: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

109

4. O CONVITE DO APÓSTOLO

5. A RESPOSTA DE JESUS

5.1.1 Narrativização

Modalizado por um querer-poder-fazer, o S1, busca chegar ao local onde pretende

jogar uma partida de futebol. Destinado pela ansiedade, encurta o caminho a fim de acelerar

sua chegada, mas se encontra com o mestre, que está pregado na cruz. Na verdade, o S1 é um

sujeito coletivo, figurativizado pelos apóstolos, dotados de um querer comum. Seu percurso é

marcado por uma interrupção, uma vez que o encontro com seu mestre o incita a parar.

Nesse sentido, Jesus se apresenta inicialmente como oponente do S1, porquanto sua

presença no caminho, diante da situação em que se encontra, acarrete a parada dos apóstolos.

O S1 permanece disjunto de seu objeto de valor: jogar a partida de futebol. Mas com as

palavras de Jesus, tem a possibilidade de retomar seu caminho em direção ao seu objeto de

valor. Assim, o S1 passa a ter Jesus também como seu adjuvante, pois suas palavras

minimizam sua situação, liberando o S1 para seguir adiante (OV4). Assim, seu percurso

narrativo pode ser representado no seguinte esquema:

Onde:

S1 = grupo de apóstolos

O.V.1 = jogar futebol

O.V.2 = encurtar caminho

O.V.3 = parar diante de Jesus

O.V.4 = seguir adiante

Já o S2 é modalizado pelo querer-saber, na figura do apóstolo que se dirige a Jesus

para convidá-lo a jogar futebol com ele. Seu objeto de valor inicial é, pois, aproximar-se do

S1

S1

OV1

OV2

OV3 S1

OV4

Page 96: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

110

mestre para saber se o terá na partida de futebol. Nessa perspectiva, Jesus é seu adjuvante,

porquanto lhe dê a resposta que precisa para alcançar o saber. Mas se o S2 convida Jesus e

dele obtém uma resposta negativa, podemos dizer que ele fica disjunto de seu objeto de valor

principal: a presença de Jesus na partida de futebol. Seu percurso é, pois, representado da

seguinte maneira:

Onde:

S2 = um dos apóstolos

O.V.1 = aproximar-se de Jesus

O.V.2 = convidá-lo para o jogo

Por sua vez, o S3 busca acalentar seus apóstolos (O.V.1), que ficam “sem graça” ao

vê-lo crucificado e interrompem a caminhada, rumo à partida de futebol, por terem cortado o

caminho e o avistarem crucificado. Em seguida, o S3, modalizado pelo poder-fazer-crer que

está tudo bem, dispensa a partida para a qual é convidado por um de seus apóstolos. Neste

sentido, Jesus busca minimizar sua situação (O.V.2), a fim de que se sintam mais à vontade e

possam seguir satisfatoriamente sua caminhada rumo à partida, ainda que sem sua presença. O

apóstolo que lhe interpela torna-se seu adjuvante, pois é por meio da resposta a sua pergunta

que Jesus assume o poder-fazer os demais acreditarem que ele não pode seguir. O S3 finda a

narrativa conjunto com seu objeto de valor principal, o qual seja dar uma satisfação aos

apóstolos, que não disporão de sua presença na partida de futebol.

Eis o esquema narrativo do S3:

S1

S1

OV1

OV2

S1

S1

S1

OV1

OV2

OV3

Page 97: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

111

Onde:

S3 = Jesus

O.V.1 = acalentar os apóstolos

O.V.2 = minimizar sua situação

O.V.3 = permitir que sigam rumo à partida

5.1.2 Discursivização

A piada apresenta dois atores aos quais o sujeito enunciador concede a palavra no

intervalo de sua enunciação: um apóstolo e Jesus. O primeiro pertence a um grupo que se

desloca em direção a um lugar indefinido, no qual será disputada uma partida de futebol

contra os centuriões do Império Romano. Seu discurso é marcado pelo efeito de proximidade

da enunciação, visto que assume, no vamos, o convite a Jesus, caracterizando-se como um eu

que se dirige a um tu. Do mesmo modo, o ator Jesus caracteriza-se como um enunciador

debreado enuncivamente, porquanto assuma um eu implícito (mas pressuposto) no tô pregado

e projete o aqui e agora no lugar e tempo do enunciado que profere.

Neste sentido, a temporalização acena para uma “presentificação”, do ponto de vista

dos enunciados dos atores supracitados, porque operam com conjugações verbais do presente.

Da mesma maneira ocorre com a espacialização com a qual o sujeito enunciador concebe suas

personagens: em campo aberto, no monte Gólgota, conforme assegura a Palavra Sagrada. São

lá que os diálogos ocorrem e é lá que o enredo se dá, no espaço dos atores, não do

enunciador. Assim, tanto o tempo quanto o espaço não são os mesmos para enunciador e

atores, tendo o primeiro projetado um ele-então-alhures na concepção de seu discurso.

Do ponto de vista das figuras e dos temas a que remetem essa piada, dois papéis

temáticos se sobressaem: o do mestre e o dos discípulos. Ambos remetem aos temas da

sabedoria, da lealdade, da obediência, da devoção, da fidelidade e do respeito, este presente na

figura dos apóstolos, mas que contrasta com a do peladeiro, desinibido, que convida Jesus

para bater uma bolinha, em oposição aos envergonhados (sem graça) companheiros. Além

disso, o ator Jesus ainda se figurativiza como o Senhor, piedoso, misericordioso, o que remete

aos temas correspondentes a tais qualidades. Mas tudo isso está no script religioso, porque, no

esportivo, outros temas são acionados. Nesse sentido, todos os apóstolos estão figurativizados

como “peladeiros”, praticantes do futebol por prazer, mas que não dispensam a disputa, a

competição, temas inerentes às praticas esportivas profissionais e por entretenimento. E a

Page 98: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

112

disputa aqui subentende até uma rivalidade, porquanto ocorra entre os algozes de Jesus

(centuriões) e seus apóstolos.

Na verdade, Convite impróprio principia com a remissão aos temas esportivos,

embora seus atores, inerentes ao universo de discurso bíblico, sejam de pronto mencionados.

Mas seus valores ideológicos são predominantemente pertencentes ao mundo do

entretenimento esportivo. Existe a disputa que ocorre entre atores do universo de discurso

religioso: apóstolos e centuriões. O lugar também é bíblico, o Gólgota, monte no alto do qual

Cristo foi crucificado; contudo, seu encontro com os apóstolos é acidental, visto que a

intenção deles era apenas cortar caminho para chegar mais rápido ao local da partida. Para-se

diante de Jesus crucificado, mas se dirige a ele com intenções de divertimento. Em suma, o

foco nessa piada é o entretenimento esportivo, os valores inerentes a ele: prazer, disputa,

competição, diversão, entre outros.

Nessa perspectiva, entendemos que o enunciador não pretende contar a passagem

bíblica de outra maneira, mas inventar uma situação diferente daquelas que os textos bíblicos

citam. As controvérsias entre o discurso religioso e o humorístico não estão em se dizer

diferente, mas em se dizer o novo. Ou seja, não se trata de evocar o velho e retrabalhá-lo, não

é um intertexto; nem se trata de, no dizer novo, manter o ideológico, como no interdiscurso.

Aqui o que vale é apropriar-se do discurso religioso, do saber sobre ele para inventar uma

situação que lhe é alheia, e inusitada: os apóstolos jogando bola com os centuriões do Império

Romano. Isso é inconcebível historicamente, pois não há registro de que esse tipo de prática

esportiva fosse realizada na época de Jesus, pelo menos não entre seus discípulos. Também

não se concebe dizer, no universo de discurso religioso, que os apóstolos estivessem

procurando diversão no dia da crucificação de Cristo. Daí surgirem implicações relevantes,

visto que o discurso do enunciador busca persuadir o enunciatário de que Jesus, pela

misericórdia, permitiria que seus apóstolos fossem jogar sem ele, sem ao menos questionar a

lealdade. É no mínimo vergonhoso, na cultura cristã ocidental, ir divertir-se enquanto o

mestre está à beira da morte. Os valores almejados por esses apóstolos são completamente

destoantes dos apregoados no discurso religioso.

Então, o humor advém justamente dessa quebra de expectativa que ocorre, quando, em

vez de reprimir ou questionar, Jesus diz que “Hoje não dá. Tô pregado!”. Mais que isso,

pregado se insere no universo de discurso das práticas esportivas como situação de cansaço,

estresse ou esgotamento físico. No entanto, no script religioso, significa preso por pregos a

uma cruz de madeira, como cita a Bíblia. Logo, pregado significa literalmente estar preso – à

cruz – por pregos, conforme o discurso religioso, mas na piada pode apresentar outra

Page 99: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

113

interpretação: estar extremamente cansado. É o primeiro entendimento que gera o efeito de

humor, porquanto a pergunta tenha sido realizada no sentido da prática esportiva: “Rabi,

vamos bater uma bolinha”; mas recebe uma resposta ambígua, com dois sentidos: um para

cada script. Portanto, o humor surge da percepção por parte do enunciatário de que,

obviamente, Jesus não poderia jogar bola com os apóstolos por ter sido crucificado – por isso

o pregado.

5.1.3 Estrutura fundamental

Os investimentos semânticos dos quais se vale essa piada para a geração de sentido

conduzem-nos a tensões dialéticas variadas, mas aqui nos deteremos em três: ser divino x ser

humano, tristeza x alegria e diversão x devoção. A primeira está presente também em outras

piadas já analisadas e acena para oposição existente entre o discurso religioso e o humorístico,

a qual constitui as piadas com passagens bíblicas. Nessa tensão, ser humano é eufórico para

os apóstolos, que almejam a presença de Jesus numa partida de futebol; já ser divino não, pois

pressupõe uma repreensão do mestre aos seus discípulos. Assim, ser humano implica não-ser

divino e dessa relação advém a permissividade desejada pelos apóstolos e praticada por Jesus.

Já ser divino implica não-ser humano, originando a repreensão cabível àqueles que se

apresentam ao mestre com propósitos diferentes dos religiosos. Vejamos no octógono:

T. D.

Permissividade Repreensão

Não-ser humano Não-ser divino

Ser divino

Ser humano

Page 100: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

114

A segunda tensão que passamos a ilustrar é a existente entre tristeza x alegria, na qual

se concebe a situação em que se encontram os apóstolos. Diante do mestre crucificado, os

discípulos interrompem o estado emocional em que eles se encontravam anteriormente, o que

os conduz ao estado oriundo da implicação entre tristeza e não-alegria, a vergonha. Por sua

vez, da relação de implicação entre alegria e não-tristeza surge a despudor com que um dos

apóstolos se dirige a Jesus para convidá-lo. Na verdade, toda a piada gira em torno dessa

tensão, porquanto trate, desde seu início, de uma situação de entretenimento, mas com

personagens conhecidos pela seriedade (apóstolos, centuriões do império romano e Jesus),

pelo menos no universo de discurso religioso e no histórico. Assim, representamos tal tensão

no seguinte octógono:

A última tensão sobre a qual discorremos é a existente entre diversão x devoção. Ela é

geradora de sentido da piada segundo as atitudes dos apóstolos. Nesse caso, diversão implica

não-devoção e devoção implica não-diversão. Da relação de implicação entre diversão e não-

devoção surge a infidelidade, posto que os apóstolos tenham preferido a partida de futebol a

acompanhar os passos de Jesus até a crucificação a ponto de nem saberem onde ele estaria: o

encontro acidental. Já da implicação entre devoção e não-diversão surge a lealdade com que

os apóstolos deveriam ter tratado o mestre.

T. D.

Despudor

Vergonha

Não-alegria Não-tristeza

Tristeza Alegria

Page 101: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

115

Na seqüência, apresentamos o octógono que ilustra tal tensão dialética:

5.2 AS BODAS

Foi uma bela festa de casamento naquela cidade da Galileia. Vinho não faltou: foi

servido o melhor da safra. No dia seguinte, José acordou com muita dor de cabeça, uma puta

de uma ressaca, a boca ressequida. Nem pôde se levantar da cama. Chamou a mulher e

pediu:

- Maria! Me traz um copo d’água, ó Maria!

- Ó filho, leva essa água ali pro teu pai – disse Maria.

- Pel’amor-de-meu-Pai, não deixa o menino tocar nessa água, Maria – implorou José.

Seguindo o padrão da piada anterior, esta se caracteriza por uma remissão ao texto

bíblico para transgredi-lo, ao relatar situações destoantes das apresentadas na Bíblia. Nesse

sentido, não há um intertexto ou um interdiscurso, exceto pela referência da transformação de

água em vinho. A narrativa relata uma suposta ressaca que conduz José a pedir água, na

tentativa de curá-la ou aliviá-la; contudo, sua esposa delega seu filho para entregar o pedido, o

que leva José a implorar a mulher para não deixar o “menino” tocar na água. É o

T. D.

Lealdade

Infidelidade

Não-devoção Não-diversão

Diversão Devoção

Page 102: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

116

conhecimento partilhado de que Jesus, filho de José e Maria, transforma água em vinho, numa

festa de casamento, que faz essa piada ter sentido como texto humorístico.

Percurso temático

1. A FESTA DE CASAMENTO

2. A RESSACA DO DIA SEGUINTE

3. O CHAMADO DE JOSÉ

4. A ORDEM DE MARIA

5. O PEDIDO DE JOSÉ

5.2.1 Narrativização

O S1 busca curar sua ressaca com água através da ingestão, a qual quer-fazer com

auxílio da esposa. Ele, nesse sentido, está modalizado por um querer e um poder-fazer-fazer,

pois pode-fazer a mulher fazer a água chegar até ele. Fazer o pedido de água a mulher é o seu

objeto de valor inicial, e ela é seu adjuvante, porquanto delegue o filho para levar a água até o

marido. Mas este, por fazer-crer que pode-fazer água transformar-se em vinho, torna-se

oponente do S1, pois ele acredita que, em vez de água, vai terminar bebendo vinho. Assim, o

S1 tem como objeto de valor posterior (O.V.2) afastar o filho da água, através do pedido que

faz a esposa. Isto porque ele quer evitar o vinho (O.V.3), que lhe causou o incômodo da

ressaca. Seu percurso narrativo é representado pelo seguinte esquema:

Onde:

S1 = José

O.V.1 = fazer o pedido a mulher

O.V.2 = afastar a água do menino

O.V.3 = evitar o vinho

OV1

OV2

OV3

S1

S1

S1

Page 103: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

117

O S2, na figura da esposa Maria, busca somente a satisfação do marido, agindo de

modo a atender seu pedido (OV1) através da recorrência ao filho para cumprir a ordem de

levar a água almejada. Nesse sentido, o menino é adjuvante da mãe, que não se detém no

suposto poder do filho, ao delegar-lhe tal função. Ela quer apenas ordenar que o menino leve

a água, seu objeto de valor final (OV2). Seu percurso narrativo é, portanto, representado no

seguinte diagrama:

Onde:

S2 = Maria

O.V.1 = atender o marido

O.V.2 = ordenar o filho

O menino, embora não seja um sujeito semiótico, pois não demonstra nenhum querer

ou poder senão os subentendidos pelo S1, é um actante relevante para o desfecho da narrativa.

Do ponto de vista do S1, ele é seu oponente, porque em vez de água lhe traria vinho; contudo,

do ponto de vista S2 ele seria igualmente adjuvante, pois, ao levar a água, cumpriria a ordem

da mãe, que almeja atender ao marido, e auxiliaria o S1 a alcançar seu objeto de valor

principal: a água. Como o S1 crê que não ocorreria dessa forma, finda a narrativa disjunto de

seu objeto de valor.

5.2.2 Discursivização

Do ponto de vista atorial, As bodas apresenta os atores Maria e José respectivamente

nos papéis temáticos de mãe e pai de família. Eles executam um diálogo no qual está

projetada uma debreagem enunciativa, posto que instaurem um eu-aqui-agora em seus

discursos. Nas conjugações de imperativo e nos vocativos (Maria! Me traz... e Ó filho, leva...

por exemplo) estão as marcas de diálogo presencial, no aqui e agora das trocas enunciativas.

No entanto, os aspectos temporais que compõem a piada conduzem a uma distinção

entre o tempo do enunciador e dos atores. Como a história não é sua e as formas verbais

remontam a um passado alheio (Foi numa bela festa...; No dia seguinte, José acordou...), há

S1 OV1

OV2 S1

Page 104: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

118

um efeito de distanciamento por parte do enunciador: ele se situa em um tempo à frente dos

atores e narra a história deles. Além disso, o tempo da piada é marcado por um intervalo, que

se faz perceber pela expressão “No dia seguinte”, enunciada para dividir a narrativa em dois

momentos: o da festa e o da ressaca.

Já o espaço está explicitado no termo cidade da Galileia e na pressuposição de uma

casa na qual esteja a família, no dia seguinte, visto que o enunciador menciona uma cama, de

onde José mal consegue se levantar. A própria festa de casamento já subentende um espaço

fechado, posto que remete a um lugar onde se servia vinho a convidados. Como a piada

remonta à passagem bíblica do Evangelho de João (2: 1-10)120, a idéia de uma festa em uma

casa faz sentido.

Quanto à tematização, temos os temas da embriaguez e da bebedeira, atrelados à

figura do marido que bebe e ocupa mulher no dia seguinte, com os problemas que passa a

sofrer. Nesse sentido, surgem também os temas da doença, do descuidado com a saúde, da

ressaca e do incômodo causado pelos males da bebida: tontura, dor de cabeça e boca

ressequida, por exemplo. Mas esses são evocados pelo script humorístico, porque no religioso

outros temas são trazidos à tona, como o do milagre promovido por Jesus, ao transformar

água em vinho. Esse tema é evocado no final da piada, com a passagem para o script

religioso. É o seu reconhecimento que promove o riso, visto que água nas mãos de quem a

transforma em vinho, pode resultar em mais vinho. Assim, para quem está fugindo dessa

bebida, a última coisa que pode querer é que lhe seja trazida a água pelas mãos de um filho

que a transforma em vinho. Eis a quebra de expectativa que desencadeia o riso, a qual é

propriedade do humor.

Uma discussão ainda mais intrigante é a que se pode fazer sobre as controvérsias entre

a piada e a passagem a que remete. Se, na passagem bíblica, Jesus compareceu à referida festa

com seus discípulos, isto é sinal de que o mesmo já estava na fase adulta. Mas na piada, o

tratamento que José tem com seu filho, quando se refere ao mesmo pelo termo menino,

conduz o enunciatário à interpretação de que José lidava, no mínimo, com um jovem. Mas

Jesus já era “homem feito” quando operou a transformação da água em vinho; inclusive, já

possuía seguidores. Nesse sentido, o sujeito enunciador busca persuadir os enunciatários

(leitores) de que essa transformação era comum e que José tinha pleno conhecimento de sua

120 1(...) houve um casamento em Caná da Galileia, achando-se ali a mãe de Jesus. 2Jesus também foi convidado, com os seus discípulos, para o casamento. 3Tendo acabado o vinho, a mãe de Jesus lhe disse: Eles não tem mais vinho. (...) 7Jesus lhes disse: Enchei d’água as talhas. E eles as encheram totalmente. 8Então lhes determinou: Tirai agora e levai ao mestre-sala. Eles o fizeram. 9Tendo o mestre-sala provado a água transformada em vinho, não sabendo donde viera, se bem que o sabiam os serventes que haviam tirado a água, chamou o noivo.

Page 105: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

119

realização costumeira. Tanto que pede a Maria para afastar a água do menino, para que não

tocasse nela e, certamente, fizesse surgir mais vinho.

Outra questão controversa é a presença de José numa festa onde se bebia vinho da

melhor qualidade. Inevitavelmente, o saber partilhado entre enunciador e enunciatário a

respeito dessa passagem bíblica conduz à mesma festa de casamento em que Jesus esteve

presente. Nela a transformação de água em vinho foi realizada com tanta perfeição que o

noivo recebeu o elogio de ter servido o melhor vinho (o melhor da melhor safra) no fim da

festa, diferente de outros anfitriões. Contudo, nada há na Bíblia que indique a presença de

José numa festa de casamento, para, no dia seguinte, acordar de ressaca, tema que sequer é

mencionada nos escritos bíblicos.

Sendo assim, ou o sujeito enunciador concebe essa piada como uma transgressão ao

discurso bíblico, no sentido de enunciar que não só Maria estava presente na festa, mas

também José, que bebeu exageradamente do vinho que o filho fizera surgir da água; ou,

igualmente transgressivo, dissemina-se nessa piada o discurso de que Jesus costumava

realizar a referida transformação sem nenhum motivo especial. Qualquer uma das duas

conclusões acena para uma invenção, uma transgressão ao discurso religioso, porque lhe

acrescenta valores distintos e opostos aos veiculados na passagem bíblica. Por exemplo, a

reflexão a respeito do poder de Jesus cuja notícia começaria a se espalhar dali se contrapõe a

evidente ojeriza à bebida sentida por quem amanhece doentio, por causa dos efeitos negativos

provocados pelo excesso de ingestão no dia anterior. Mais que isso, fugir da bebida, para

quem está com “uma puta de uma ressaca”, é preferível, mesmo que essa bebida seja fruto de

uma transformação milagrosa. E isto é motivo de riso.

Em suma, o sujeito enunciador vale-se do conhecimento partilhado com o enunciatário

para quebrar sua expectativa e promover o efeito de humor. A idéia de que Jesus faz vinho a

partir de água é posta para desencadear o riso, após o relato dos males da bebida, que são

intensificados pelo “puta de uma ressaca”, expressão que remonta a subjetividade do

enunciador: ele já sentiu ressaca assim ou a conhece de perto o suficiente para xingá-la.

5.2.3 Estrutura fundamental

Dentre as oposições semânticas nas quais essa piada se funda, três serão ilustradas e

discutidas: religiosidade x profanidade, divindade x humanidade e saúde x doença.

Começando pela que diz respeito aos aspectos religiosos e profanos do texto humorístico,

destacamos que religiosidade implica não-profanidade e dessa relação advém a relevância

Page 106: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

120

dada ao milagre praticado com a transformação de água em vinho. Já profanidade implica

não-religiosidade, relação da qual advém a ênfase em práticas alcoólatras.

Na outra tensão, divindade implica não-humanidade e dessa implicação surge a

especialidade com que se trata o ato de transformar vinho em água. Por sua vez, humanidade

implica não-divindade e dessa relação advém a banalidade. Vejamos, assim, o octógono que

representa essa segunda tensão dialética:

T. D.

Banalidade Especialidade

Não-humanidade Não-divindade

Divindade Humanidade

T. D.

Alcoolismo Milagre

Não-profanidade Não-religiosidade

Religiosidade Profanidade

Page 107: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

121

Assim, beber o vinho oriundo da prática religiosa é eufórico para os cristãos, mas

disfórico, caso se beba em demasia, resultando em ressaca, porquanto seja considerada uma

prática alcoólatra, profana e, portanto, banal. Nesse sentido, a piada se funda na tensão entre o

ato especial e o banal: especial por significar um milagre e banal por ser uma transformação

corriqueira, passível de rejeição.

Na última tensão, destacamos o dilema por que passa quem se submete à bebida. José

está entre saúde e doença, termos opostos que geram o sentido dos valores por ele almejados.

Nesse cerne, saúde implica o contraditório não-doença e dessa relação de implicação advém a

melhora, almejada com a ingestão de água. Por outro lado, doença implica não-saúde e dessa

implicação surge a piora, conforme ilustramos abaixo:

Nesse sentido, vemos que, para José, beber água é eufórico, mesmo que isso ocorra

diante de uma iminente transformação dela em vinho, o que consistiria num ato comum, não

especial, milagroso. Já a ingestão de vinho é disfórica, visto que lhe acarretaria uma piora no

estado de ressaca em que se encontrava. É preferível, portanto, não aceitar a intervenção de

Jesus, rejeitando um ato concebido como milagroso no script religioso, mas que aqui se

concebe como uma ação comum, corriqueira, passível de rejeição.

T. D.

Piora

Melhora

Não-doença Não-saúde

Saúde Doença

Page 108: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

122

5.3 O CAMINHO DAS PEDRAS

Vendo Jesus e Pedro caminharem sobre as águas e entrarem no barco, gritou um

circunstante:

― Pedro, o que preciso fazer pra andar também sobre as águas?

São Pedro respondeu:

― Fé, meu filho, muita fé.

O camarada tentou entrar na água e começou a afundar, enquanto São Pedro gritava:

― Mais fé, rapaz, mais fé...

Jesus vira pra Pedro e diz:

― Pedro, não faz isto com o pobre, ensina o caminho das pedras...

Estabelecendo um diálogo com a passagem bíblica do evangelho de João 6: 16-21,

esta piada remete ao momento que Jesus anda sobre as águas e encontra seus discípulos. Mas

aqui Ele não está sozinho. O caminho das pedras é mais que uma transgressão daquilo que é

dito na Bíblia; é uma invenção baseada no relato bíblico. Mantém, a princípio, o discurso de

que Jesus tem a capacidade de andar sobre as águas, mantendo uma relação interdiscursiva

com a passagem supracitada. Contudo, vai além dessa perspectiva, pois conta a história de um

circunstante que vê Jesus e seu discípulo andarem sobre as águas e busca fazer o mesmo sob a

orientação de Pedro. Porém, este não está disposto a dividir com tal circunstante o verdadeiro

segredo para realizar tal proeza. O humor advém justamente da revelação que Jesus faz, ao

cobrar de Pedro que não minta para o circunstante e lhe mostre o caminho das pedras. É o fato

de que eles não faziam nada especial ou sobrenatural que quebra a expectativa do leitor, que

está envolvido na narrativa, rememorando o milagre protagonizado por Jesus, mas se depara

com uma invenção.

Percurso temático

1. A VISÃO DO CIRCUNSTANTE

2. A PERGUNTA DO CIRCUSNTANTE

3. A RESPOSTA DE SÃO PEDRO

4. A ENTRADA NA ÁGUA

5. O INCENTIVO DE SÃO PEDRO

6. O CONSELHO DE JESUS

Page 109: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

123

5.3.1 Narrativização

Figurativizado como um circunstante que observa Pedro e Jesus caminharem sobre as

águas, o S1 é modalizado por um querer-saber-fazer o mesmo que seus observados. Tem

como objeto de valor principal andar sobre as águas e para atingi-lo interroga São Pedro, a

fim de descobrir o que fazer para agir igual a ele e Jesus. Assim, o S1 está também

modalizado por um querer-ser igual. No entanto, o apóstolo é seu oponente, pois o conduz ao

afogamento, com informações falsas sobre o procedimento adequado para andar sobre as

águas. Já Jesus é seu adjuvante, posto que aconselhe São Pedro a dizer a verdade. Assim o

estado de conjunção do S1 com seu objeto de valor é uma possibilidade, mas não um fato,

porque a narrativa deixa em aberto se Pedro vai ensinar ou não o caminho das pedras. Certo

mesmo é que ele principia a narrativa em estado de disjunção e, até a intervenção de Jesus,

assim permanece. Vejamos seu esquema narrativo:

Onde:

S1 = o circunstante

O.V.1 = saber de Pedro

O.V.2 = andar sobre as águas

O S2, por sua vez, é modalizado pelo poder-fazer o circunstante crer que pode andar

sobre as águas. Opera, pois, com um discurso de sedução, na busca de seu objeto de valor:

enganar o circunstante. De início, o S2 quer-fazê-lo-crer que a fé é o pressuposto único para

realizar tal caminhada, mas ele passa a afundar, levando o S2 a insistir na mesma tese. Assim,

este sujeito semiótico fica conjunto com seu objeto de valor, que é despistar o circunstante e

manter o segredo a respeito da caminhada sobre as águas. Eis o esquema narrativo do S2:

S1

S1

OV1

OV1

S2

S2

OV1

OV2

Page 110: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

124

Onde:

S2 = São Pedro

O.V.1 = despistar o circunstante

O.V.2 = manter o segredo

Por fim, a narrativa apresenta um terceiro sujeito semiótico, figurativizado por Jesus e

modalizado por um querer-fazer o circunstante não se afogar. Nesse sentido, ele tem como

objeto de valor principal a salvação desse postulante a discípulo e para alcançá-lo, quer fazer

São Pedro contar a verdade, ensinando o caminho das pedras. Como a narrativa termina sem o

indicativo claro de que, destinado por Jesus, São Pedro irá revelar o segredo, o S2 fica

disjunto de seu objeto de valor. Seu esquema narrativo pode ser representado pelo seguinte

diagrama:

Onde:

S3 = Jesus

O.V.1 = revelar o segredo

O.V.2 = evitar o afogamento

5.3.2 Discursivização

No que tange à actorialização, temos os atores São Pedro, na figura do discípulo de

Jesus, que também se apresenta como ator, na figura do mestre e senhor misericordioso. Além

deles, o sujeito enunciador, que concebeu tal narrativa, ainda acrescenta um circunstante, que

fica admirado com a visão dos primeiros andando sobre as águas e solicita de Pedro

informações para fazer o mesmo. Nesse sentido, o ator Pedro se vale de um discurso de

sedução e de manipulação para despistar o circunstante, incentivando a entrar na água e fazer

o mesmo que ele e seu mestre, contanto que tenha fé. Assim, o enunciador busca construir a

idéia de que São Pedro pretende esconder o real modo de andar sobre as águas, numa típica

atitude de picaretagem.

S3

S3

OV1

OV2

Page 111: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

125

Nesse caso, Jesus é antes de tudo um simples homem, que anda sobre pedras nas

águas, mas não faz questão de enganar as pessoas, caso estas queiram se aventurar a fazer o

mesmo que ele. Neste sentido, o ator Jesus figura como misericordioso, pois não quer permitir

que o homem se afogue. A piada, portanto, mantém o discurso de que Jesus salva, mas nega

sua capacidade extraordinária para fazê-lo, conforme assegura a Bíblia.

Quanto às projeções da enunciação, vemos que o ator circunstante projeta o eu-aqui-

agora na pergunta que direciona a Pedro. Ele enuncia sob a marca do eu, manifestada no

verbo preciso; projeta o aqui nas águas diante das quais está ao ver Pedro e Jesus sobre elas; e

denota o agora no tempo presente com que conjuga a seqüência (...) preciso fazer pra andar

também (...). Ou seja, o discurso desse ator é marcado pela debreagem enunciativa.

De modo um pouco diferente ocorre com Pedro, que imprime em seu discurso um

efeito de subjetividade apenas a partir do vocativo meu filho, com o qual se dirige ao

circunstante. Por sua vez, Jesus enuncia sob um efeito de objetividade, por omitir o eu, mas

sua subjetividade está apenas camuflada, não ausente. É que, se por um lado o sujeito

enunciador concebeu o discurso do ator Jesus sem marca expressa de primeira pessoa (eu

expresso em pronome ou implícito em desinência verbal), por outro acenou para uma

benevolência que lhe é peculiar, como senhor misericordioso, ao tratar o circunstante como

pobre. Esse dizer confere a seu enunciado uma subjetividade camuflada, tendo em vista a

piedade para com o coitado, o sofredor, o pobre que se afunda diante da mentira de Pedro.

Nessa perspectiva, as configurações temáticas a que remete a piada são inúmeras. De

pronto, temos o extraordinário, o milagre, o poder santo de andar sobre as águas que relata a

Bíblia. Mas em João 6: 16-21, este é um privilégio de Jesus, não de seus discípulos, o que já

confere a piada o caráter transgressivo logo no início. Além disso, o sujeito enunciador busca

desacreditar o enunciatário da possibilidade ato sobrenatural na caminhada de Jesus, pois

coloca Pedro na condição de um enganador. Ambos andam sobre pedras submersas o

suficiente para confundir o olhar de um circunstante e fazê-lo crer que se pode andar sobre as

águas do mar. É ávido por este poder extraordinário que ele solicita a “fórmula” a Pedro, que

lhe garante ser a fé. Daí a piada evoca os temas da “enrolação”, do charlatanismo, mas

também remete a fé, misericórdia, solidariedade e até do sadismo, visto que quem conhece o

caminho seguro não deve ensinar do afogamento senão pelo prazer de assistir ao sofrimento

alheio. São temas controversos a que recorre o enunciador, porque também são igualmente

controversos os valores aos quais remete esta piada.

Page 112: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

126

5.3.3 Estrutura fundamental

Do ponto de vista das oposições semânticas que estão na base de sentido dessa

piada, merece destaque a tensão dialética fé x razão, pois reflete o conflito porque passam

enunciador e enunciatário diante da interlocução que se realiza no ato de leitura. Nesta

perspectiva, fé implica não-razão e dessa relação surge o ato emotivo. Já razão implica não-

fé, relação de implicação da qual advém o ato pensado, racional.

Vejamos no octógono abaixo:

Nessa perspectiva, razão é eufórica para o enunciador da piada, visto que quer fazer-

crer aos enunciatários que não há nada de especial em andar o sobre as águas. Do mesmo

modo, ocorre com São Pedro, que incentiva o circunstante a entrar na água pela fé, mesmo

sabendo que se afogaria. Por outro lado, fé é eufórica para o circunstante, posto que se valha

dela para realizar seu desejo: andar sobre as águas como Pedro e Jesus.

Uma outra tensão dialética que podemos ilustrar é a que põe em oposição divindade

versos humanidade. Nela divindade implica não-humanidade e dessa relação advém o ato

especial, sobrenatural. Por sua vez, humanidade implica não-divindade e daí surge o ato

comum, corriqueiro. Nesse sentido, divindade é eufórica para o circunstante, pois é daqueles

T. D.

Ato pensado, racional.

Ato emotivo

Não-Razão Não-fé

Fé Razão

Page 113: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

127

que considera divino que recebe o ensinamento para andar sobre as águas. Já humanidade é

disfórica, porque esse ensinamento pode levá-lo ao afogamento por ele não almejado.

Vejamos, pois, a ilustração seguinte:

Contudo, a tensão mais significativa do ponto de vista do discurso veiculado pelos

atores desta piada é a que remete às modalidades veridictórias, que Greimas explica quando

apresenta o quadrado semiótico em Du sens. É a tensão do ser x parecer, que se caracteriza

pelo fazer persuasivo do enunciador e pelo fazer interpretativo do enunciatário, combinados

na formação de um contrato de veridicção. Nesse sentido, ser implica não-parecer e dessa

relação de implicação surge o segredo; já parecer implica não-ser e daí advém a mentira.

Assim, na piada em questão, é eufórico para o enunciador Pedro que pareça verdade seu

enunciado (Fé, rapaz, fé). Mas diante do que enuncia Jesus, percebemos que Pedro mente,

omitindo o segredo para andar sobre as águas: o caminho das pedras.

Abaixo o octógono que representa o jogo de verdade que se instaura diante dos

enunciados dos atores da piada:

T. D.

Ato comum, corriqueiro.

Ato especial, sobrenatural

Não-humanidade Não-divindade

Divindade Humanidade

Page 114: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

128

5.4 NOÉ PERDEU. CABRAL DESCOBRIU

Depois de construir a arca e já no terceiro dia após o dilúvio, Noé percebeu que tinha

esquecido de fazer um banheiro em sua arca.

Como a cada dia que se passava, o cheiro ficava cada vez mais insuportável, Noé fez

uma prece e prometeu que, se Deus levasse toda aquela bosta embora, depois que acabasse o

dilúvio, ele iria encontrá-la e limparia tudo.

Deus atendeu o seu pedido e, quando o dilúvio acabou, Noé passava todos os dias

procurando pela montanha de bosta. Nunca a encontrou.

Cabral a descobriu em 1500!

A última piada transgressiva que analisamos não faz exatamente uma remissão a uma

passagem bíblica, mas à história do dilúvio, enfrentado por Noé, que é contada no livro de

Gênesis entre os capítulos 6 e 8. No entanto, nada há nesta piada que lembre o discurso

religioso, senão os acordos que Deus faz com Noé. E neste caso, o acordo é para limpar a

arca, projetada sem estrutura para se desfazer dos dejetos expelidos por seus ocupantes. Sem

ter o que fazer e sem suportar o acúmulo que lhe causa grande incômodo olfativo, Noé recorre

Verdade

Mentira (fé) Segredo (as pedras)

Não-parecer Não-ser

Ser Parecer

Falsidade

Page 115: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

129

a Deus para limpar tudo, com a promessa de que encontrará a montanha de dejetos retirada de

sua arca, após o término do dilúvio. O efeito de humor já se instala nesses dizeres, pois não se

espera da história de Noé uma aliança com Deus para tal finalidade. Mas a quebra de

expectativa maior está no fim do texto, quando é dito que Cabral descobriu, em 1500, aquilo

que Noé todos os dias procurou após o dilúvio, sem sucesso.

Percurso temático

1. A PERCEPÇÃO DA AUSÊNCIA DE BANHEIRO

2. O AUMENTO DO INCÔMODO COM O MAU CHEIRO

3. A PRECE DE NOÉ A DEUS

4. A RETIRADA DOS DEJETOS DA ARCA

5. A PROCURA PELA MONTANHA DE DEJETOS

6. A DESCOBERTA DE CABRAL

5.4.1 Narrativização

O S1, Noé, modalizado pelo querer-fazer o incômodo com o mau cheiro em sua arca

acabar, busca, como objeto de valor, livra-se dos dejetos acumulados, por causa da ausência

de banheiro (O.V.1). Destinado pela fé, procura conseguir a ajuda de Deus, através de uma

prece (O.V.2), prometendo-lhe encontrar tudo que for jogado fora (O.V.3) e limpar, após o

dilúvio (O.V.4). nessa perspectiva, Deus é seu adjuvante, visto que limpa sua arca, pondo-o

em estado de conjunção com este objeto de valor. Todavia, como Noé não consegue mais

encontrar a montanha de dejetos jogada fora por Deus, finda a narrativa disjunto de seu objeto

de valor final, pois não consegue cumprir a promessa feita a seu adjuvante.

Por outro lado, Cabral é quem encontra tal montanha, já em 1500, instaurando-se

como anti-sujeito de Noé, visto que alcança o objeto de valor por ele almeja, ainda que não o

dispute. Nesse sentido, ambos são modalizados por um quer-saber, pois intentam realizar

uma descoberta. Vejamos, a seguir, o esquema narrativo do S1:

OV1

OV2

S1

S1

Page 116: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

130

Onde:

S1 = Noé

O.V.1 = livrar-se dos dejetos

O.V.2 = a ajuda de Deus

O.V.3 = a retirada dos dejetos de sua arca

O.V.4 = encontrar a montanha de dejetos

5.4.2 Discursivização

Diferente das demais piadas analisadas até aqui, esta última tem a particularidade da

ausência de diálogo entre os atores; ou seja, o sujeito enunciador não lhes confere voz. O

narrador conta a história de outrem, mas não concede a palavra a tais participantes da história.

O enunciador concebe o texto, portanto, sob um efeito de distanciamento, visto que instaura

no texto a debreagem enunciva.

Para alcançar tal efeito, ele utiliza verbos conjugados no passado (pretérito perfeito ou

imperfeito), advérbios que remontam a um tempo distinto de sua enunciação e o discurso

indireto para referir-se aos enunciados dos atores. Nesse sentido, a temporalização se

manifesta por meio das ações enunciadas pelo narrador, a respeito do atores. Mas também é

marcada por expressões adverbiais, como depois, já no terceiro dia após, a cada dia, todos os

dias, nunca e em 1500. Todas elas tanto marcam o tempo da narrativa, indicando não ser o

mesmo tempo do enunciador, quanto demarcam o tempo na narrativa, apontando para a

ocorrência de fatos em momentos diferentes. Assim, a percepção da ausência de banheiro se

dá após três dias; o cheiro foi ficando cada vez mais insuportável a cada dia, sendo a prece

de Noé realizada depois dos três dias; o dilúvio acabou depois que Deus atendeu às preces de

Noé, mas o enunciador não precisa o tempo, e após acabar é que Noé passa a procurar a

montanha, todos os dias; contudo, nunca a encontrou; já Cabral conseguiu em 1500. Portanto,

o enunciador refere-se a pelo menos 5 momentos distintos.

Quanto à espacialização, temos a arca e o dilúvio, que dependem do conhecimento

partilhado entre enunciador e enunciatário (leitor da piada) a respeito da história bíblica.

OV3

OV4

S1

S1

Page 117: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

131

Nessa perspectiva, a arca é um espaço fechado e isolado do mundo, por estar navegando em

um mar de águas derramados por um dilúvio enviado por Deus para destruir a Terra.

Valendo-se desse saber, o sujeito enunciador concebe Noé realizando sua prece para livrar-se

da enorme quantidade de excrementos, cujo odor vai tornando-se insuportável a cada dia

dentro da arca. Fora dela há um espaço desconhecido para o ator Noé, de dimensões

incalculáveis, tanto que sua montanha (de bosta) fica perdida com o fim do dilúvio.

Na tematização, o enunciador evoca, primeiramente, os temas da saúde e higiene, ao

tratar da ausência de banheiro na arca. Mas quando cita o cheiro insuportável, traz à tona as

figuras das fezes acumuladas (ou espalhadas) por três dias e aumentando mais a cada dia que

dura o dilúvel. Nessa perspectiva, confere à sua narrativa um tom grotesco e banaliza o tema

da fé, com a promessa que Noé faz a Deus: em troca da retirada dos dejetos por Deus, ele os

encontraria e limparia tudo após o término do dilúvio.

Com o uso de uma linguagem forte e agressiva, o enunciador também deixa

transparecer ao enunciatário sua repugnância e reprovação, na palavra bosta, intensificando a

questão da higiene e transcendo-a para uma crítica ao Brasil, a montanha de “bosta” que

Pedro Álvares Cabral descobriu em 1500. Vale-se, portanto, da História para fazer seu texto

significar e do conhecimento partilhado com o enunciatário a respeito dessa história do

descobrimento. Nessa perspectiva, a crítica é generalizada, porquanto conceba todo o país

como um lugar desprezível, indesejado, nojento, grotesco; enfim, com todas as características

que a “bosta” (não as fezes) tem. Mudando o foco do tema da saúde, ou da higiene, para

sócio-político, pretende persuadir o enunciatário de que o Brasil não presta. É, pois, um

discurso pessimista, veiculado num texto de humor, que camufla sua força, mas não deixa de

disseminar sua ideologia, seus valores.

Quanto aos valores religiosos, vale salientar que as remissões aos temas da fé e da

promessa situam o texto parcialmente no universo de discurso religioso, mas sem a

preocupação de relevar sua importância, e sim de torná-los coadjuvantes da geração do

sentido. A própria história de Noé aqui lembrada está transformada, pois a piada releva

aspectos não mencionados na Bíblia, mas passível de preocupação do ponto de vista material,

ou racional. É o caso da falta de higiene em se passar dias navegando com animais de diversas

espécies. Nesse sentido, a piada é um protesto de um enunciador descrente, que discorda da

versão oficial (bíblica) da história de Noé e cria outra, mais racional, cuja preocupação de

saúde e higiene sobrepõe-se aos valores religiosos, tais como obediência, lealdade e

submissão às vontades de Deus.

Page 118: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

132

Além disso, o enunciador que fazer crer ao enunciatário que, se ordem para navegar

em tais condições de higiene partiu de Deus, então Ele mesmo teria de dar cabo da saúde das

pessoas que precisaram dividir uma embarcação com todos os animais ali presentes. Seja por

milagre, força sobrenatural, poder divino ou por consciência de que corriam risco de doença,

Deus deveria ajudá-los. Então a piada resgata este sentido e põe em primeiro plano os valores

esquecidos pela narrativa bíblica.

5.4.3 Estrutura fundamental

Nesta piada, a oposição semântica fé x razão também e determinante para a construção

do sentido, assim como em O caminho das pedras. No entanto, aqui essa oposição se reveste

dos valores próprios desta piada e, consoante sua figurativização em discurso, pudemos notar

as diferenças. Assim, fé implica não-razão e dessa relação advém a despreocupação com a

saúde, que levou Noé a esquecer de construir um banheiro na arca. Já razão implica não-fé,

relação da qual surge a preocupação higiênica, o incômodo com o mau cheiro. Vejamos, pois,

o octôgono que a representa:

No entanto, outro octógono merece destaque na ilustração das oposições semânticas. É

o que se refere à tensão dialética religião x história, na qual as relações de implicação fazem

T. D.

Ato pensado, racional.

Ato emotivo

Não-Razão Não-fé

Fé Razão

Page 119: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

133

surgir o fato histórico do descobrimento do Brasil, por história implicar não-religião; e o fato

bíblico da aliança entre Deus e Noé, por religião implicar não-história. Vejamos, portanto, a

configuração desse octógono:

T. D.

Descobrimento do Brasil.

Aliança

Não-história Não-religião

Religião História

Page 120: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

134

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As piadas com passagens bíblicas possuem características similares a toda e qualquer

piada, como sobreposição de scripts contrários, temas controversos, gatilhos lingüísticos e

discursos subterrâneos. Contudo, existe um elemento que lhes confere um diferencial: é sua

constituição intertextual ou interdiscursiva, que se revelou uma propriedade significativa,

porque contribui de forma determinante para a significação dos discursos veiculados. Nessa

perspectiva, a compreensão do ponto de vista ideológico dessas piadas necessita do

conhecimento partilhado entre enunciador e enunciatário (analista ou leitor) a respeito do

discurso religioso. Assim, o efeito de humor está diretamente ligado à percepção da mudança

de um script para outro, num diálogo entre o texto bíblico e o humorístico.

No entanto, estas piadas foram encontradas em um número bem inferior às mais de

quinhentas existentes sob a categoria religiosa ou de religião que os sites pesquisados

apresentam. As doze que analisamos fazem parte de um pequeno grupo de 47 piadas que

possuem características similares, sem contar com algumas variantes encontradas entre um

site e outro. Elas se diferenciam das centenas veiculadas nos sites de humor por sua

significação depender da constituição dialogal com uma determinada passagem bíblica, seja

um versículo ou um pequeno conjunto de versículos da Bíblia. As religiosas, muitas vezes não

se referem a passagem bíblica alguma; até promovem remissões a alguma passagem, mas seu

efeito de humor independe de tais remissões.

O que mais nos chamou atenção nas piadas que analisamos é que – assim como as 35

restantes – denotam um conhecimento notável do enunciador sobre os textos bíblicos. Isso

nos leva a crer que os sujeitos enunciadores que as conceberam, indefinidos, possuem um

contato significativo com práticas que recorram ao universo de discurso religioso com

bastante propriedade e, quiçá, freqüência, o que as diferencia de outras que apenas põem

padres e freiras em situações inusitadas, por exemplo. O enunciador que concebe uma piada

com passagem bíblica intertextual conhece a Bíblia o suficiente para escolher o momento

certo de promover a mudança de script e torná-la significativa o bastante para que as duas

leituras sejam possíveis. Já com as piadas interdiscursivas, esse não é o foco, pois elas não

precisam parecer o texto bíblico, mas relevar seu discurso. As transgressivas por sua vez, de

fato, promovem uma transformação do discurso bastante evidente, pois o atualizam,

revestindo-os de outros temas e outras figuras completamente destoantes das empregadas no

Page 121: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

135

discurso religioso. Nessa perspectiva, uma de nossas hipóteses está confirmada, pois o

discurso religioso, antes sacrossanto, sofre uma transformação, e alguns de seus elementos

passam a fazer parte do universo de discurso humorístico, ao serem ressignificados.

Nessa perspectiva, o percurso gerativo de sentido dessas doze piadas revelou cada qual

um conjunto de dados que nos possibilitou traçar algumas considerações relevantes sobre os

três níveis. Na narrativização, a maioria das piadas intertextuais apresentou um objeto de

valor comum almejado por seus sujeitos semióticos: a fé do outro. Em A primeira pedra,

Jesus busca a fé daqueles que apedrejam Madalena; em Lázaro e em Jesus e as criancinhas

esse também é o que busca os sujeitos semióticos que se figurativizam como Jesus. Mas

nessas últimas ele não assume o papel temático do Senhor, benevolente, piedoso e perfeito. É

antes de tudo um homem, um charlatão (Lázaro) ou um malvado, sem paciência com

crianças.

Sob os aspectos discursivos, as piadas intertextuais apresentam uma estratégia comum,

exceto em Abraão e Isaac. Nas demais, o enunciador conta a história como se fosse o próprio

relato bíblico, conferindo a sua narrativa um efeito de realidade. Diferente, na piada

supracitada, o enunciador recorre a um efeito de referente e de distanciamento, através do

qual busca validar suas palavras, respaldando seu discurso na credibilidade da Bíblia.

Quanto aos aspectos semânticos fundamentais, essas piadas têm em comum a tensão

dialética do ser x parecer. E com exceção de Abraão e Isaac, as demais se definem por serem

piadas, mas parecerem passagens bíblicas. Já a referida apresenta essa tensão no nível da

enunciação de um de seus atores. No entanto, outras tensões ainda se fazem perceber em mais

de uma piada, como ser humano x ser divino e perfeição x imperfeição.

Por sua vez, as piadas interdiscursivas têm a particularidade de, na narrativização,

apresentar sujeitos semióticos destinados pela fé. É o que ocorre com os sujeitos semióticos

figurativizados pelos apóstolos (Problemas na Terra), Pedrinho (Professora atéia) e o rapaz

crente (Fé demais não cheira bem). No entanto, verificamos que, na discursivização, o sujeito

enunciador dessa última piada busca, antes de tudo, pôr em evidência o discurso religioso,

para em seguida negá-lo, através de um ator preconceituoso (o pai da noiva). Por outro lado,

as três piadas interdiscursivas analisadas demonstram um movimento contrário ao das

intertextuais: essas últimas partem do (suposto) discurso religioso para o mundano, e a

mudança de um script para outro segue essa ordem; já as interdiscursivas partem das coisas do

mundo para o discurso religioso, realizando a mudança de um script a outro sob essa regra.

Quanto às oposições semânticas identificamos que as tensões dialéticas fé x razão e

ser humano x ser divino se revezam nas piadas. Além delas, outras tensões foram detectadas,

Page 122: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

136

como materialismo x espiritualismo, alteridade x identidade, sinceridade x falsidade e

aceitação x rejeição.

Por fim, as piadas transgressivas, sob a ótica da narrativização, apresentam bastante

diversidade nos resultados que obtivemos com as análises. Elas realizam remissões a

determinadas passagens bíblicas, para negar seu discurso, inventando situações destoantes das

relatadas nos textos bíblicos. Nesse sentido, os sujeitos semióticos buscam objetos de valor,

em sua maioria, diferentes dos almejados nas passagens bíblicas a que remetem. Por exemplo,

os apóstolos buscam encontrar um campo para disputar uma partida de futebol (Convite

impróprio); José procura afastar seu filho – Jesus – da água que pretende beber com receio de

terminar bebendo vinho (As bodas); o apóstolo Pedro quer despistar um circunstante,

omitindo a forma adequada de realizar uma travessia sobre as águas (O caminho das pedras);

e Noé procura a Deus em oração, para livrar-se de uma montanha de dejetos acumulados em

sua arca. Assim, são, em sua maioria, valores mundanos, almejados por atores do discurso

religioso na Bíblia.

Na discursivização também verificamos diversidade, através das variadas figuras e

temas a que as piadas remetem, uma vez que o sujeito enunciador não busca fazer seu

discurso parecer passagem bíblica. O conhecimento partilhado entre enunciador e

enunciatário remete o segundo ao texto bíblico, pela referência que o primeiro faz aos atores,

ao lugar e ao tempo. Logo, é o reconhecimento dos fatos bíblicos que promovem o efeito de

humor, aos quais são acrescidas situações inusitadas, que promovem a quebra de expectativa

no enunciatário. Assim, Jesus, na cruz, depara-se com discípulos “peladeiros”; José fica de

ressaca e busca afastar seu filho da água, porque este pode transformar água em vinho; Pedro

faz um circunstante quase se afogar, mesmo sabendo que não se caminha sobre as águas

apenas com intermédio da fé; e Noé constrói arca sem banheiro, passando a sofrer

conseqüências por isso.

Por outro lado, temas esportivos e de saúde, por exemplo, são constituintes dessas

piadas, mas nada tem a ver com as passagens bíblicas a que remetem. Os enunciados dos

atores em quase nada se assemelham aos enunciados da Bíblia, como ocorre quando um

discípulo faz um convite a Jesus (Rabi, vamos bater uma bolinha) ou quando José implora a

Maria (Pel`amor-de-meu-pai...); além disso, é inconcebível, no universo de discurso religioso,

uma oração de Noé pedindo a Deus para limpar a “bosta” de sua arca. Portanto, são aspectos

como esses que diferenciam as piadas transgressivas das demais analisadas neste trabalho. E é

por isso que, de fato, existe um discurso transformado nessas piadas.

Page 123: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

137

Do ponto de vista da semântica fundamental, verificamos que a tensão dialética fé x

razão está presente em mais de uma das piadas analisadas, assim como a tensão ser humano x

ser divino. As tensões divindade x humanidade, ser x parecer, tristeza x alegria, sinceridade x

falsidade e religiosidade x profanidade também estão presentes nas piadas transgressivas,

seja por fundamentar a geração de sentido das piadas como um todo ou por estarem na base

de sentido do discurso determinados atores.

A análise de cada patamar do percurso gerativo de sentido das três categorias de

piadas com passagens bíblicas também nos possibilitou concluir que nem sempre os valores

religiosos são relegados a segundo plano. Dependendo do tipo de piada, relevá-los pode ser o

objetivo do enunciador, seja para negá-los ou negar discursos que a eles se opõem. Como

dissemos no início dessas considerações, são só piadas como quaisquer outras, mas possuem

uma particularidade que está em sua constituição dialogal para poder significar. Propomos,

portanto, que piadas que se valham de outros discursos para promover o efeito de humor, seja

por meio de intertexto ou interdiscurso, possam ser classificadas não só pelos dispositivos

lingüísticos e se enquadrem entre as de inferência, as dêiticas, as fonológicas ou lexicais, por

exemplo. Aceitamos essas definições quando esses recursos são determinantes, mas quando a

significação depender de operações intertextuais ou interdiscursivas, é assim que devem ser

classificadas. O que lhes garantirá a categoria é a sua organização para gerar sentidos, os

recursos de que se valham para se constituir dialogicamente, as estratégias do enunciador para

concebê-las.

Esperamos que este trabalho acene para novos horizontes e que a ele se juntem outros,

preocupados com diálogos entre universos de discurso aparentemente tão controversos, mas

bastante salutares. Cremos, por fim, que outros estudos semióticos da linguagem humorística

possam ser realizados e continuem a comprovar a validade dos os ensinamentos de Greimas.

Aqui, buscamos neles um apoio para apresentar uma visão mais ampla dos discursos

veiculados em piadas e como resultado obtivemos a desmitificação do uso do discurso

religioso fora de seu universo próprio. Dependendo da estratégia do enunciador e do gênero

empregado, seus valores nem sempre são relegados ao esquecimento; mais que isso, podem

ser ressignificados e terem sua força perpetuada.

Page 124: análise semiótica de piadas com passagens bíblicas

138

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