André Gardel Literatura Brasileira II
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Literatura Brasileira II André Gardel
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IESDE Brasil S.A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Todos os direitos reservados.
© 2009 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial,
por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do
detentor dos direitos autorais.
G218 Gardel, André. / Literatura Brasileira II. / André Gardel. —
Curitiba : IESDE Brasil S.A., 2009.
212 p.
ISBN: 978-85-387-0161-3
CDD 869.07
Imagem da capa: IESDE Brasil S.A.
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Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de
Ja- neiro (UFRJ). Mestre em Literatura Comparada pela UFRJ.
Bacharel em Língua e Li- teratura Portuguesa pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
André Gardel
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Sumário
Os estilos pós-românticos
......................................................................................................
15
Lima Barreto e Euclides da Cunha
.......................................................................................
17
Augusto dos Anjos e Raul de Leoni
....................................................................................
20
As vanguardas europeias
...................................................... 27
O Futurismo
.................................................................................................................................
29
O Expressionismo
......................................................................................................................
31
O Cubismo
...................................................................................................................................
32
O Dadaísmo
.................................................................................................................................
34
O Surrealismo
.............................................................................................................................
34
A fase heroica: a Semana e os principais manifestos
..............................................................
43
Antecedentes da Semana
......................................................................................................
43
Manifestos de Mário de Andrade
........................................................................................
46
Manifestos de Oswald de Andrade
.....................................................................................
49
Os grupos de direita e seus manifestos
.............................................................................
52
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A obra de Manuel Bandeira
.................................................. 59
Manuel Bandeira e o Modernismo: aproximações e fugas
........................................ 60
A poesia do humilde cotidiano e do alumbramento
................................................... 62
O poeta cronista
........................................................................................................................
64
O crítico de arte e literatura
...................................................................................................
67
Itinerário de Pasárgada
...........................................................................................................
69
O ficcionista
.................................................................................................................................
80
A música modernista de câmara e a canção popular
.................................................. 82
O antropólogo aprendiz
.........................................................................................................
83
A atuação como homem público
........................................................................................
86
A obra de Oswald de
Andrade............................................. 93
O primeiro Oswald: viagens e atuação jornalística
....................................................... 93
A poesia
........................................................................................................................................
95
O romancista
...............................................................................................................................
97
O dramaturgo
.............................................................................................................................
98
Outros manifestos
...................................................................................................................101
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Segundo momento modernista: estabilização da consciência criadora
nacional (a poesia) .........................107
A estabilização da consciência criadora nacional
.......................................................107
Carlos Drummond de Andrade
..........................................................................................108
As duas faces da prosa dos anos 30
..................................................................................123
Rachel de Queiroz e José Lins do Rego
...........................................................................124
Graciliano Ramos
.....................................................................................................................126
Jorge Amado
.............................................................................................................................128
Erico Verissimo
.........................................................................................................................129
Lúcio Cardoso
...........................................................................................................................130
Marques Rebelo
.......................................................................................................................131
Sérgio Buarque de Holanda e as Raízes do Brasil
........................................................140
Gilberto Freyre e Casa Grande & Senzala
........................................................................141
João Cabral e a Geração de 45
...........................................151
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A poesia da Geração de
45...................................................................................................151
Alguns nomes de destaque dessa geração
...................................................................153
A poesia de João Cabral de Melo Neto
............................................................................153
A ficção depois de 45 (o romance experimental): Clarice Lispector
.....................................................................165
Conceituação do romance experimental pós-45
........................................................165
A voz feminina e singular da prosa de Clarice
..............................................................166
Principais obras
........................................................................................................................167
Clarice cronista
.........................................................................................................................169
A linguagem ficcional de Guimarães
...............................................................................179
Grande Sertão: veredas
.........................................................................................................181
Gabarito
.....................................................................................191
Referências
................................................................................199
Anotações
.................................................................................209
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Apresentação
O momento da Literatura brasileira sobre o qual nos debruçamos
neste livro é, talvez, o mais importante de nossas letras. Não só
pelo fato de se tratar de um período que gerou nossos maiores
autores de todos os tempos; mas, também, por esta produção quase
toda buscar responder à demanda geral de um país que tinha como
projeto se configurar dentro da modernidade, se empenhando em
harmoni- zar sua voz nacional, nem que fosse em contracanto, com a
orquestra das nações modernas e civilizadas.
Só para termos uma ideia da grandeza do momento a que nos
referimos, é o período em que poetas como Augusto dos Anjos, Manuel
Bandeira, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles,
Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Oswald de Andrade,
Jorge de Lima, João Cabral de Melo Neto concebem suas obras. E, na
prosa, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Clarice
Lispector, Guimarães Rosa, Mário e Oswald de Andrade delineiam seus
geniais textos inventivos.
Nosso percurso começa definindo o “Momento pré-moderno”, em que
esti- los pós-românticos se desdobram numa ambiência sociocultural
fortemente Belle Époque, num sincretismo que pavimenta as bases
para a revolução modernista. Pois, pouco a pouco, “As vanguardas
europeias” adentram nosso universo artístico, trazendo a maior
parte do instrumental técnico, ampliando as visões de mundo que se
consolidarão a partir dos anos 20. Será “A fase heroica: a Semana e
os principais manifestos”, em que os artistas definitivamente
colocarão em xeque o passadismo literário, devorando as múltiplas
novidades das rupturas vanguardistas.
É o momento em que “A obra de Manuel Bandeira”, “A obra de Mário de
Andrade” e “A obra de Oswald de Andrade” se consolidam, com suas
linguagens específicas, cada qual absorvendo e recriando as
informações estrangeiras, com o fim de produzir uma literatura
brasileira sem ufanismos, firmemente fincada na realidade cultural
do Brasil profundo, por meio de conceitos ainda hoje produti- vos,
como o de antropofagia.
Depois, tem início o “Segundo momento modernista”: estabilização da
cons- ciência criadora nacional: a poesia” e “A prosa dos anos 30”,
em que vemos as con- quistas técnicas das vanguardas, já
devidamente incorporadas, adquirirem uma força ideológica e um
engajamento de mudança político-social intensas. Para tal, muito
contribuiu “O ensaísmo social” de Gilberto Freyre e de Sérgio
Buarque de Holanda, em suas tentativas de definir o perfil
psicológico e cultural do povo brasileiro.
Por fim, na terceira fase modernista, que se entremostra com “João
Cabral e a Geração de 45”, com “A ficção depois de 45 (o romance
experimental): Clarice Lispec- tor” e com “A obra experimental de
Guimarães Rosa”, temos um balanço das primeiras conquistas do
Modernismo, a partir de um espírito mais universalizante e
existencial, abrindo já perspectivas para as possibilidades de uma
arte pós-modernista.
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Como vemos, trata-se de um convite aos nossos leitores para uma
viagem muito especial: a de (re)conhecimento da alma do Brasil e do
corpo cultural do nosso povo, por meio do ágil veículo verbal,
multitemporal e mágico da literatura.
André Gardel
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A obra de Mário de Andrade (1893-1945) é uma das mais importantes e
inovadoras do nosso Modernismo. Nascido em São Paulo, onde viveu a
maior parte de sua vida, o autor de Pauliceia Desvairada morou no
Rio de Janeiro e fez várias viagens pelo país, na busca de entender
a realidade nacional e dialogar com a cultura brasileira.
Nesta aula, vamos conhecer algumas das faces mais criativas do
artis- ta múltiplo e inovador que é Mário de Andrade. Conheceremos
o poeta moderno e o ficcionista autor de clássicos narrativos como
Amar, Verbo Intransitivo e Macunaíma. Estudaremos o teórico da
música modernista de câmara, o turista aprendiz do Brasil e suas
viagens etnográficas, como também o missivista1 compulsivo e o
homem público preocupado com a arte e a educação do seu país.
A poesia de Mário de Andrade Eu Sou Trezentos...
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, Mas um dia afinal eu
toparei comigo... Tenhamos paciência, andorinhas curtas, Si um deus
morrer, irei no Piauí buscar outro!
Abraço no meu leito as milhores palavras, E os suspiros que dou são
violinos alheios; Eu piso a terra como quem descobre a furto Nas
esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, Mas um dia afinal eu
toparei comigo... Tenhamos paciência, andorinhas curtas, Só o
esquecimento é que condensa, E então minha alma servirá de
abrigo.
(ANDRADE apud LAFETÁ, 1982, p. 17)
1 Pessoa que escreve cartas.
A obra de Mário de Andrade
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78
Literatura Brasileira II
Esse poema “Eu sou trezentos” faz parte do livro Remate de Males2,
publicado por Mário de Andrade em 1930. Segundo o crítico João Luis
Lafetá (LAFETÁ, 1982, p. 17), o volume reúne textos que foram
[...] escritos durante os Anos 20, em diversos estilos: desde o
vanguardismo dos primeiros poemas até a lírica equilibrada e
contida que ele fazia então, passando pela fase do nacionalismo
literário. “Eu sou trezentos” alude a essa diversidade de
linguagens e modos de ser, próprios de quem já escrevera contos,
romances e ensaios sobre vários assuntos. Mas pode ser lido também
como símbolo da diversidade da cultura brasileira (amálgama de
culturas de procedências variadas), e ainda como símbolo da
personalidade fragmentada e dividida do homem contemporâneo.
Publicado após os quatro primeiros livros de poesia de Mário de
Andrade (Há uma Gota de Sangue em Cada Poema, Pauliceia Desvairada,
Losango Caqui e Clã do Jabuti), o livro Remate de Males contém
“composições de intenso lirismo, que mostram a habilidade técnica a
que o autor já chegara àquela época, elimi- nando qualquer
gratuidade que houvesse nos seus primeiros versos” (LAFETÁ, 1982,
p. 18).
Essa gratuidade pode ser aferida no primeiro livro do poeta
paulista3, ainda preso, no geral, a resquícios da estética
parnasiana e simbolista-decadentista. A partir de Pauliceia
Desvairada (1922) – o seu segundo volume de poemas e o primeiro
livro de nossa poesia moderna –, Mário de Andrade conquista o verso
livre4 e, sob a influência das vanguardas europeias, cria uma
maneira inovadora de ler a cidade que o cerca: “Essa nova maneira
de ser desvairada que a cidade assume traduz uma sintaxe feita de
ritmos da palavra e do pensamento, da música, dos ruídos da cidade,
da sua plasticidade. Isso imprime na sua superfície fronteiras
dançantes” (SOUSA, 1995, p. 162).
Para que o leitor tenha a dimensão de tais fronteiras dançantes e,
também, das associações livres de imagens e de sons criadas pelo
poeta, leremos a seguir o poema “Inspiração”, cuja epígrafe
estabelece diálogo com a tradição literária portuguesa, por meio da
citação de Fr. Luís de Sousa5, em pleno processo de construção de
nossa modernidade (ANDRADE apud LAFETÁ, 1982, p. 14):
2 Este título remete a um encontro do poeta com um senhor nortista,
na viagem feita à região Norte, em 1927, conforme ele registra em
seu livro O Turista Aprendiz: “Perguntei aonde ele ia. – Pra Remate
de Males, sim senhor” (ANDRADE, 2002, p. 93). 3 Há uma Gota de
Sangue em Cada Poema, publicado em 1917, antes da Semana de Arte
Moderna de 1922. 4 Para o poeta e ensaísta Mário de Andrade, a
conquista do verso livre significa trocar a métrica tradicional da
poesia pela “aquisição de ritmos pessoais” (ANDRADE, 1972b, p. 28).
5 Sacerdote católico e escritor português.
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A obra de Mário de Andrade
79
Inspiração
Onde até na força do verão havia tempestades de ventos e frios
de
crudelíssimo inverno. Fr. Luís de Sousa
São Paulo! Comoção de minha vida... Os meus amores são flores
feitas de original... Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e
ouro... Luz e bruma... Forno e inverno morno... Elegâncias sutis
sem escândalos, sem ciúmes... Perfumes de Paris... Arys! Bofetadas
líricas no Trianon... Algodoal!...
São Paulo! Comoção de minha vida... Galicismo a berrar nos desertos
da América!
Mário de Andrade foi poeta, roman- cista, contista, ensaísta,
crítico de arte e professor de literatura e de música.
D om
ín io
p úb
lic o.
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80
Literatura Brasileira II
O ficcionista Além dos poemas, dos diários, das cartas, das
crônicas e dos contos, Mário
de Andrade é um autor cuja obra de ficção apresenta as formas do
romance e da rapsódia6. Como contista, ele publicou dois livros:
Primeiro Andar (1926) e Be- lazarte (1934), além dos Contos Novos,
que aparecem nas suas Obras Completas. Como romancista, destaca-se
o seu livro Amar, Verbo Intransitivo (1927), no qual o autor faz “o
uso de conceitos psicanalíticos” (LAFETÁ, 1982, p. 34) e incorpora
elementos da linguagem expressionista. O livro possui um enredo
“muito sim- ples” (LAFETÁ, 1982, p. 34): “Souza Costa, rico
industrial e fazendeiro paulistano, contrata Elza... uma professora
de alemão de 35 anos, com a finalidade aparente de ensinar alemão
aos filhos, mas na verdade com a missão de seduzir e iniciar
sexualmente o adolescente Carlos, filho mais velho da
família”.
Ao narrar as aulas que a professora profere para o seu aluno, Mário
cria o clima de desvio e sedução que acontece entre ambos, trazendo
para o seu romance as ideias que a psicanálise acabara de
apresentar, por meio da obra de Freud. Na leitura que faz do
romance, Lafetá aborda, principalmente, a culpa que atinge de modo
sutil os personagens (LAFETÁ, 1982, p. 35):
Ocorre aqui um “esquecimento” semelhante ao que Freud chama de ato
falho, isto é, algo de reprimido que vem à tona sob outra forma, e
isso de maneira inconsciente para a pessoa que o comete. No caso, o
ato falho consiste em que o sentimento de culpa por estarem fazendo
algo “às escondidas” desperta o desejo de revelar o “segredo” (para
livrar-se da culpa) [...]
Na cena a seguir, vemos como um clima de sensualidade e afeto se
instala entre a professora e o aluno adolescente (ANDRADE apud
LAFETÁ, 1982, p. 37): “Botou a cara gostosa no colo dela, aonde
nascem os aromas que atarantam. Lhe beijou as roupas. Depois sentiu
um medo grande dela, vergonha desmedida, se refugiou dela nela. Pra
se esconder. Fräulein sufocou-o contra o peito, com os seus braços
enrolados”.
Macunaíma Em 1942, Mário de Andrade profere uma conferência – O
Movimento Mod-
ernista –, no Rio de Janeiro, iniciada da seguinte forma:
“Manifestado especial- mente pela arte, mas manchando também com
violência os costumes sociais e políticos, o movimento modernista
foi o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de
um estado de espírito nacional” (ANDRADE, 1972b, p. 231).
6 Justaposição e síntese criativa de fragmentos de cantos épicos,
tradicionais e populares de um país. O termo é oriundo da linguagem
da música, adaptado aqui ao universo literário com o intuito de
abarcar a exuberância criativa da narrativa marioandradina, que não
se restringe apenas a um gênero e a um estilo definido, e sim ao
entrecruzamento, paródico e criativo, de vários.
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A obra de Mário de Andrade
81
E é justamente o desejo de criação de um estado de espírito
nacional o ideário que move e permeia toda a obra de Mário de
Andrade, nas mais diferentes formas e gêneros estéticos a que se
dedicou. Sob esta perspectiva, destaca-se Macunaíma, texto no qual
a manifestação e a síntese desse “estado de espírito nacional”
parece surgir com mais vigor, a ponto de ser considerado “sua
obra-pri- ma, uma narrativa de estrutura inovadora, ao nível do
enredo, da caracterização das personagens e do estilo” (LAFETÁ,
1982, p. 43).
Lançado em 1928, um pouco depois da publicação dos contos de
Primeiro Andar (1926), do romance Amar, Verbo Intransitivo (1927),
e após a viagem que o poeta fez à região Nordeste do Brasil em
1927, o livro Macunaíma é uma rapsó- dia. A narrativa é centrada na
vida do “herói sem nenhum caráter”, que vive com a mãe e os irmãos
“às margens do mítico rio Uraricoera...” (LAFETÁ, 1982, p. 43). Em
tom irreverente, fazendo colagens e paródias de lendas, mitos,
textos parnasianos, canções folclóricas e populares, o narrador nos
conta, de modo mágico-poético, sem encadeamento linear discursivo,
a saga cheia de peripécia de Macunaíma, que acaba, mais tarde, indo
para São Paulo atrás de um amuleto encantado, para depois, por fim,
voltar para o interior, morrer e virar constelação... Juntando,
assim, numa mesma ambiência mítica e crítica, a riqueza cultural
híbrida dos universos urbano, rural e selvagem do Brasil.
Segundo o crítico Haroldo de Campos, o livro “foi escrito de um
jato: em seis dias” (CAMPOS, 2004e, p. 167), embora tenha havido
mais três redações posteri- ores. Para a obra, Mário escreveu dois
prefácios, mas não publicou nenhum. Em ensaio que serviu de
prefácio às edições espanhola e francesa do livro, o poeta das
Galáxias estuda “a imaginação estrutural” e cita o prefácio inédito
de 1926, escrito pelo próprio autor (ANDRADE apud CAMPOS, 2004e, p.
171-172):
O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a
preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a
entidade nacional dos brasileiros. [...] Pois quando matutava
nessas coisas topei com Macunaíma no alemão de Koch-Grünberg. E
Macunaíma é um herói surpreendentemente sem caráter. (Gozei) Vivi
de perto o ciclo das façanhas dele [...] Este livro afinal não
passa de uma antologia do folclore brasileiro. [...]
Campos nos ensina que, para escrever o seu Macunaíma, Mário de
Andrade consultou o segundo volume da obra do naturalista alemão
Koch-Grünberg, que “[...] abrange mitos cosmogônicos e lendas de
heróis, contos, fábulas de animais e narrações humorísticas”
(CAMPOS, 2004e, p. 172) do mundo indígena latino-americano. Ainda
segundo Campos, ao trabalhar a linguagem da prosa, o poeta
brasileiro criou uma “fala nova”, cuja oralidade parece refletir o
caráter e o discurso do povo brasileiro. Diz o crítico (CAMPOS,
2004e, p. 179):
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82
Literatura Brasileira II
[...] uma das riquezas de Macunaíma é justamente essa “fala nova”
(“impura” segundo os padrões castiços de Portugal), feita de um
amálgama de todos os regionalismos, mescla dos modos de dizer dos
mais diferentes rincões do país, com incrustações de indigenismos e
africanismos, atravessada por ritmos repetitivos de poesia popular
e desdobrada em efeitos de sátira [...]
A música modernista de câmara e a canção popular
Mário de Andrade foi, ainda, compositor, musicista, professor de
piano e teórico da música brasileira. Sem dúvida alguma, uma
personalidade riquíssima, empenhando todo o seu esforço pessoal na
tarefa de projetar para o Brasil uma alma nacional moderna, fazendo
jus ao seu poema que citamos anteriormente: “Eu sou trezentos”. Na
condição de teórico musical, Mário foi o mentor da pos- tura
estética e ideológica dos principais compositores eruditos da
música mod- ernista de câmara7 que, como os literatos, buscavam
conceber uma arte autenti- camente brasileira, oriunda de fonte
popular. No seu livro Ensaio Sobre a Música Brasileira, o poeta
paulista desenvolve as principais linhas de pensamento que serviram
de base teórica para a produção erudita de câmara modernista.
E o que Mário de Andrade indica como programa para o nacionalismo
musi- cal? Que os compositores devem, para criarem suas peças,
beber na fonte da música folclórica brasileira, anônima e rural,
misturando-a com a sofisticação europeia clássico-romântica de suas
formações eruditas. O produto seria uma música estilizada que
apresentaria a fisionomia oculta de um Brasil puro e au- têntico,
fortificado pela alta cultura europeia, repleta de história e
tradição, ge- rando, assim, uma arte nacional a um só tempo
primitiva e elevada, definidora da nação e servindo para exportação
de uma cultura brasileira no mesmo nível da do resto dos países
civilizados.
Contudo, o projeto de Mário deixa conscientemente de lado a música
popular urbana comercial de massas, que está se impondo no mercado
musical, que se propaga pela novidade da mídia do rádio, das festas
populares, dos shows e en- contros musicais pelas ruas, que
representa a ascensão e a lenta inserção das class- es pobres no
universo segregado das grandes cidades. Por sua forte carga
erótica, irônica, lúdica, híbrida – produto da troca e incorporação
de gêneros musicais de várias nacionalidades, que gera o samba, o
maxixe, a marchinha, gêneros dota- dos de uma raiz brasileiríssima
inquestionável –, rebelde a qualquer passividade
7 A música de câmara clássica se distingue da música orquestral ou
coral pelo seu caráter intimista, executada por um conjunto com
pequeno número de componentes. A formação mais conhecida e
tradicional de música de câmara é o quarteto de cordas.
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A obra de Mário de Andrade
83
diante de um projeto imposto de cima para baixo, a música de um
Sinhô, Noel Rosa, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, Caninha, Ismael
Silva não se encaixaria na proposta marioandradina.
O povo homogêneo e sem contradições, bom e rústico, passível de
conceber uma arte pura para ser utilizada pelos compositores
eruditos é, antes de tudo, produto de uma idealização com fins
políticos e sociais. A música miscigenada e heterogênea dos
operários, marginais, descamisados, negros, subempregados do espaço
urbano, ligada à dança e à crítica social, não caberia em tal
projeto nacional populista. O que motivava Mário era a construção
de uma cultura mod- ernista para a nação que, inevitavelmente,
teria a mediação dos intelectuais, o filtro erudito. No entanto,
sua paixão pela música era tamanha que, em sua pri- vacidade,
conhecia e adorava todo o cancioneiro urbano comercial de massas, o
mesmo que renegou como componente de base para a construção de sua
idealizada música nacionalista de câmara. Atitude que não cabe no
conceito de contradição, pois, na verdade, o poeta, mais de uma
vez, afirmou que tinha que subjugar seu gosto pessoal em nome da
construção de uma alma, considerada por ele a melhor para o
Brasil.
O antropólogo aprendiz A dimensão do antropólogo Mário de Andrade
pode ser lida no livro O Turista
Aprendiz. Neste diário de viagens, no qual transforma a sua
experiência vivida em texto estético, o autor narra e descreve as
viagens etnográficas que fez às regiões Norte e Nordeste do Brasil,
em 1927, “empenhado em entender a reali- dade brasileira” (ANDRADE,
2002, p. 15). Os dois principais espaços representa- tivos das
nossas raízes tropicais, que servem de fonte para sua escrita
cultural8, são: a Amazônia (onde o poeta descobre a elegância
discreta das índias) e o Nor- deste (onde o pesquisador dos ritmos
brasileiros ouve a música – e se encanta profundamente, como se
tivesse encontrado o elo perdido da brasilidade – do coquista9
Chico Antônio, além de trocar informações estéticas com o poeta po-
tiguar Henrique Castriciano).
No texto introdutório que escreve para O Turista Aprendiz, a
pesquisadora Telê Porto Ancora Lopez diz: “O confessional do diário
e o referencial pertencente ao
8 No curto prefácio que escreve em 1943 para O Turista Aprendiz –
livro que deixou inédito –, Mário de Andrade assume estar
“resolvido a [...] es- crever um livro modernista, provavelmente
mais resolvido a escrever que a viajar” (ANDRADE, 2002, p. 49). Daí
porque este diário, ao estabelecer inusitadas relações entre a
natureza e a cultura, pode ser lido como a escritura dos espaços
culturais pelos quais o antropólogo transita. 9 O nome admite
variações como coqueiro ou tocador de coco e designa o artista
popular que canta, acompanhado ao ganzá, as suas narrativas e
reflexões poéticas. Trata-se de uma arte sofisticadíssima na qual
palavra, ritmo e melodia se entrelaçam numa dinâmica musical apenas
aparente- mente simples, pois se apresenta cheia de sutis
modulações semânticas e sonoras. De origem africana, é também nome
de dança.
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84
Literatura Brasileira II
dado de viagem, embora filtrados pela arte, ainda permanecem com
elemen- tos do real, dado o hibridismo do gênero mas a seu lado,
firme, intromete-se a ficção” (LOPEZ, 2002, p. 31).
Mário de Andrade.
.
Em Maio de 1927, com o seu livro Macunaíma10 em fase de redação,
Mário de Andrade deixa São Paulo em direção ao Rio de Janeiro. Da
então capital do país, o poeta partiria rumo às regiões Norte e
Nordeste do Brasil. Na viagem à região Norte, o poeta passa por
Belém do Pará, vai até o Peru, e navega pelo Rio Madeira, chegando
à Bolívia (ANDRADE, 2002, p. 51). Na região Nordeste, Mário de
Andrade viaja pelos estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba,
perman- ecendo por mais tempo em Natal, onde o historiador e
folclorista Luís da Câmara Cascudo o hospeda, colocando-o em
contato com a arte e a cultura potiguares.
No diário poético e etnográfico que resulta dessas viagens, o
antropólogo mod- ernista nomeia pessoas, registra os elementos da
cultura e escreve os exageros e as surpresas da paisagem, atento às
manifestações artísticas e etnográficas da vida local. Nessa
escrita, Mário de Andrade aciona uma leitura comparativa entre os
elementos rústicos e os inovadores da vanguarda, o dado primitivo e
a referência moderna. No trânsito por esses espaços, o antropólogo
aprendiz move-se entre a raiz e a antena, com o intuito de
apreender e conceber um Brasil em sua totalidade, em sua máxima
abrangência estética e cultural.
10 Com repercussão em todo o país, o livro Macunaíma: o herói sem
nenhum caráter foi lançado em 1928, ano no qual Mário de Andrade
realiza a sua segunda viagem ao Nordeste do Brasil.
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A obra de Mário de Andrade
85
As cartas: documentos íntimos e culturais Mário de Andrade é um dos
autores brasileiros que mais exerceu a epistologra-
fia11. Suas cartas foram endereçadas para os autores e intelectuais
brasileiros mais representativos do século XX, como Manuel
Bandeira, Henriqueta Lisboa, Fernando Sabino, Câmara Cascudo, Pedro
Nava, Álvaro Lins, Murilo Miranda, Murilo Rubião, Prudente de
Moraes Neto, Guilherme Figueiredo e Anita Malfatti, dentre
outros.
A correspondência trocada com esses autores, advindos de universos
tão dís- pares como, por exemplo, a poesia, a antropologia, a
pintura, a crítica literária, transforma as cartas que o poeta
escreveu em documentos íntimos e culturais, que retratam a vida da
inteligência brasileira da primeira metade do século XX.
Estudaremos, a seguir, as cartas que Mário de Andrade enviou para
Carlos Drum- mond, e que o poeta mineiro publicou em A Lição do
Amigo – cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade,
anotadas pelo destinatário.
O contexto histórico e estético da correspondência entre os dois
gênios de nossa literatura modernista apresenta as cidades de São
Paulo e Belo Horizonte como cenários de suas trocas vivenciais e
artísticas. As cartas traçam um arco temporal que vai de 1924 –
quando Mário, generosamente, responde a uma carta enviada de Minas
Gerais por Drummond, então um poeta desconhecido – até o ano de
1945, quando o poeta paulista morre acometido por um ataque
cardíaco (LAFETÁ, 1982, p. 10).
As cartas entremostram tons que se alternam entre o confessional, o
coloquial e o ensaístico, e tematizam, principalmente, as questões
pertinentes à poesia, ao Brasil e ao movimento modernista. A
leitura dessa correspondência nos ajuda a entender o contexto
estético e intelectual do Brasil moderno. São várias as referên-
cias à Semana de Arte Moderna (que aconteceu em São Paulo de 11 a
18/02/1922), as alusões aos demais autores modernos e às revistas
que serviram de suportes para o Modernismo, entre as quais podemos
citar A Revista, Terra Roxa e Klaxon.
Além das revistas modernas, os livros de ambos os autores são
constante- mente comentados nas cartas que trocam entre si. Mário
comenta detalhada- mente o primeiro livro de Drummond, Alguma
Poesia, que seria publicado em 1930; e, acerca de suas obras
escritas até então, nos informa: “A preocupação
11 Gênero literário que possui na escritura de epístolas (cartas)
sua forma.
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86
Literatura Brasileira II
de falar como brasileiro fala já vem de Pauliceia12, aonde pus isso
no prefácio. A Escrava13 foi uma quebra na evolução...” (ANDRADE,
1982, p. 41-42).
Além de serem textos repletos de informações referenciais e
metalinguísticas a respeito da poesia, são recorrentes também,
nesta correspondência, as ideias nacionalistas do poeta paulista,
como podemos perceber logo na primeira carta enviada ao poeta
mineiro: “Nós temos que dar uma alma ao Brasil...” (ANDRADE, 1982,
p. 5). Esse desejo é ratificado nas cartas seguintes, nas quais
Mário diz: “Como poetas a gente não se pertence mais, amigo, tem
que se entregar às mis- erinhas dos homens da sociedade” (ANDRADE,
1982, p. 81). O desejo constante de “transcender” o universo
pessoal em prol dos temas relacionados à nação é lido na atitude de
Mário ao anunciar o anseio de “[...] tornar o menos pessoal
possível minhas coisas pra que se tornem gerais” (ANDRADE, 1982, p.
97).
No terreno da intimidade, Mário de Andrade toca em pontos
delicadíssimos da alma de Drummond: “[...] é certo que uma pessoa
da sua sensibilidade e da sua volúpia de consciência não pode ter a
felicidade comum que é feita de in- sensibilidade e de
inconsciência” (ANDRADE, 1982, p. 37). Na lição que profere ao
amigo mineiro, as certezas do poeta paulista são expressas de forma
clara: “Eu acho covarde a posição contemplativa diante da vida”
(ANDRADE, 1982, p. 91). Essa assertiva anuncia, de certa forma, o
homem público e atuante na vida nacional, como veremos a
seguir.
A atuação como homem público Mário de Andrade é um autor apaixonado
pela vida brasileira. Ele desenvolve,
em sua vasta produção artística, várias ideias relacionadas às
conexões entre a arte brasileira e as ideias de nação. Essa paixão
pelo Brasil o transforma em uma das principais personalidades
públicas da nossa cultura, e pode ser assim relembrada (LAFETÁ,
1982, p. 5): “como lembra Sérgio Milliet14, o amor sexual ou
platônico é inteiramente sublimado pelo poeta no amor à cidade de
São Paulo e ao Brasil, que ele conheceu muito bem, principalmente
através de estudo”.
Esse conhecimento do Brasil se dá também através das viagens
etnográficas que o autor empreendeu às cidades históricas de Minas
Gerais, ao Amazonas e ao
12 Referência ao livro Pauliceia Desvairada, publicado por Mário de
Andrade em 1922. 13 Referência ao livro A Escrava que não é Isaura,
publicado por Mário de Andrade em 1925. 14 Crítico, poeta, tradutor
e professor. Criou com Mário de Andrade e Paulo Duarte o
Departamento de Cultura de São Paulo.
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A obra de Mário de Andrade
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Nordeste15 - “Nordeste de impaciente amor sem metáforas” (“A
meditação sobre o Tietê”). Além da publicidade proporcionada por
essas viagens, a atuação do poeta como homem público pode ser
aferida nos cargos que ele assumiu e que estão relacionados ao
universo das artes, da educação e da cultura (LAFETÁ, 1982, p.
5).
Sempre preocupado com as questões culturais e educacionais, Mário
de An- drade é nomeado, em 1934, diretor do Departamento de Cultura
do Município de São Paulo. Dois anos depois, ele colabora na
criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Ainda na década de 30, o autor afasta-se do De- partamento de
Cultura paulista e passa a ser catedrático de Filosofia e História
da Arte e diretor do Instituto de Artes da Universidade do Distrito
Federal, no Rio de Janeiro (LAFETÁ, 1982, p. 10). É a época do
exílio carioca de Mário.
Na então capital do país, o poeta colabora com a programação
cultural do ministro Gustavo Capanema e trabalha como consultor
técnico do Instituto Na- cional do Livro (ANDRADE, 1983, p. 10).
Reside, em 1939, na Rua Santo Amaro, no bairro da Glória, num
prédio onde existe hoje uma placa informando a antiga residência do
autor de Macunaíma.
Texto complementar
A meditação sobre o Tietê (ANDRADE apud LAFETÁ, 1982, p.
26-28)
Água do meu Tietê, Onde me queres levar? - Rio que entras pela
terra E que me afastas do mar... É noite. E tudo é noite. Debaixo
do arco admirável Da Ponte das Bandeiras o rio Murmura num banzeiro
de água pesada e oliosa. É noite e tudo é noite. Uma ronda de
sombras, Soturnas sombras, enchem de noite de tão vasta O peito do
rio, que é como si a noite fosse água,
15 Nas duas viagens ao Nordeste, Mário de Andrade era hóspede de
Câmara Cascudo na cidade de Natal. Com o historiador e folclorista
potiguar, manteve importante correspondência acerca de questões
estéticas e culturais brasileiras. As cartas trocadas entre os dois
foram reunidas, pelo escritor Veríssimo de Melo, no livro Cartas de
Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo (Villa Rica, 1991).
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88
Literatura Brasileira II
Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões As altas torres
do meu coração exausto. De repente O ólio das águas recolhe em
cheio luzes trêmulas, É um susto. E num momento o rio Esplende em
luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas, Ruas, ruas, por onde os
dinossauros caxingam Agora, arranha-céus valentes donde saltam Os
bichos blau e os punidores gatos verdes, Em cânticos, em prazeres,
em trabalhos e fábricas, Luzes e glória. É a cidade... É a
emaranhada forma Humana corrupta da vida que muge e se aplaude. E
se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra. Mas é um
momento só. Logo o rio escurece de novo, Está negro. As águas
oliosas e pesadas se aplacam Num gemido. Flor. Tristeza que timbra
um caminho de morte. É noite. E tudo é noite. E o meu coração
devastado É um rumor de germes insalubres pela noite insone e
humana. Meu rio, meu Tietê, onde me levas? Sarcástico rio que
contradizes o curso das águas E te afastas do mar e te adentras na
terra dos homens, Onde me queres levar?... Por que me proíbes assim
praias e mar, por que Me impedes a fama das tempestades do
Atlântico E os lindos versos que falam em partir e nunca mais
voltar? Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra, Me
induzindo com a tua insistência turrona paulista Para as
tempestades humanas da vida, rio, meu rio!... Já nada me amarga
mais a recusa da vitória Do indivíduo, e de me sentir feliz em mim.
Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante, E fui por tuas
águas levado, A me reconciliar com a dor humana pertinaz, E a me
purificar no barro dos sofrimentos dos homens. Eu que decido. E eu
mesmo me reconstituí árduo na dor Por minhas mãos, por minhas
desvividas mãos, por Estas minhas próprias mãos que me traem, Me
desgastaram e me dispersaram por todos os descaminhos,
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A obra de Mário de Andrade
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Fazendo de mim uma trama onde a aranha insaciada Se perdeu em cisco
e polem, cadáveres e verdades e ilusões.
Mas porém, rio, meu rio, de cujas águas eu nasci, Eu nem tenho
direito mais de ser melancólico e frágil, Nem de me estrelar nas
volúpias inúteis da lágrima! Eu me reverto às tuas águas espessas
de infâmias, Oliosas, eu, voluntariamente, sofregamente, sujado De
infâmias, egoísmos e traições. E as minhas vozes, Perdidas do seu
tenor, rosnam pesadas e oliosas, Varando terra adentro no espanto
dos mil futuros, À espera angustiada do ponto. Não do meu ponto
final! Eu desisiti! Mas do ponto entre as águas e a noite, Daquele
ponto leal à terrestre pergunta do homem, De que o homem há de
nascer. Eu vejo; não é por mim, o meu verso tomando As cordas
oscilantes da serpente, rio. Toda a graça, todo o prazer da vida se
acabou. Nas tuas águas eu contemplo o Boi Paciência Se afogando,
que o peito das águas tudo soverteu. Contágios, tradições,
brancuras e notícias, Mudo, esquivo, dentro da noite, o peito das
águas, fechado, mudo, Mudo e vivo, no despeito estrídulo que me
fustiga e devora. Destino, predestinações... meu destino. Estas
águas Do meu Tietê são abjetas e barrentas, Dão febre, dão morte
decerto, e dão garças e antíteses. Nem as ondas das suas praias
cantam, e no fundo Das manhãs elas dão gargalhadas frenéticas,
Silvos de tocaias e lamurientos jacarés. Isto não são águas que se
beba, conhecido, isto são Águas do vício da terra. Os jabirus e os
socós Gargalham depois morrem. E as antas e os bandeirantes e os
ingás, Depois morrem. Sobra não. Nem siquer o Boi Paciência Se muda
não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!... e os corpos Podres
envenenam estas águas completas no bem e no mal. Isto não são águas
que se beba, conhecido! Estas águas São malditas e dão morte, eu
descobri! e é por isso Que elas se afastam dos oceanos e induzem à
terra dos homens,
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Literatura Brasileira II
[...]
Dicas de estudo Para outras abordagens acerca da obra de Mário de
Andrade, recomendo:
assistir ao filme Macunaíma, baseado no romance homônimo do autor,
e dirigido por Joaquim Pedro de Andrade em 1969. Relançado em DVD
em 2006, o filme tem os atores Grande Otelo e Paulo José nos
principais papéis, e possibilita uma gama de leituras relacionadas
a temas díspares como a luta armada, o Tropicalismo16, as ideias de
arte, identidade e na- ção, sem perder o foco no roteiro original,
que possui no folclore brasileiro a sua base;
ouvir Mário de Andrade – poesia e som. Gravado por Tete Medina e
Paulo Afon- so Grizolli em 1971, pela gravadora Polygram, a obra é
composta de 14 textos do poeta paulista, como “Ode ao burguês”, “O
poeta come amendoim” e um fragmento do “Prefácio
Interessantíssimo”, dentre outros;
assistir à minissérie Um Só Coração, produzida pela TV Globo em
2004, e lançada depois em DVD. Com roteiro de Maria Adelaide Amaral
e Alcides Nogueira, a obra comemora os 450 anos de fundação da
cidade de São Pau- lo, e apresenta o contexto da Semana de Arte
Moderna e seus participantes. Mário de Andrade aparece como
personagem nessa obra cujo roteiro é vol- tado para as questões da
modernidade e da realidade nacional.
16 Movimento artístico e cultural influenciado pelas estéticas de
vanguardas e pela cultura de massas, cujos principais
representantes são os poetas compositores Caetano Veloso, Torquato
Neto, Tom Zé e Gilberto Gil. As obras de Glauber Rocha (no cinema)
e José Celso Martinez Corrêa (no teatro) também contribuíram muito
para a conformação estética e ideológica geral do movimento.
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A obra de Mário de Andrade
91
Estudos literários 1. Que relações podemos tecer entre Mário de
Andrade, poeta moderno, e
Mário de Andrade, antropólogo das viagens etnográficas?
2. Por que as cartas escritas por Mário de Andrade podem ser
consideradas como documentos históricos e culturais?
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A obra de Mário de Andrade 1. Mais do que diferenças, podemos tecer
relações de semelhanças e de
aproximações entre o Mário de Andrade como poeta moderno e o Mário
de Andrade como antropólogo. Podemos dizer que o Mário de Andrade
poeta alimenta-se do Mário de Andrade antropólogo, e vice- versa.
Exemplos disso estão disponíveis em Pauliceia Desvairada, livro no
qual o poeta incorpora a fala brasileira à sua linguagem literária,
que depois conheceria de modo mais abrangente nas viagens
etnográficas realizadas às cidades históricas de Minas Gerais e às
regiões Norte e Nordeste. Outro fato concreto que aproxima o poeta
e o antropólogo está num dos seus livros de poemas mais cultuados –
Remate de Males, publicado em 1930 – cujo título o poeta revela, em
O Turista Aprendiz, haver sido colhido da boca de um senhor nativo
da Região Norte.
2. As cartas escritas por Mário de Andrade podem ser consideradas
como documentos históricos e culturais porque ultrapassam a esfera
da in- timidade e se abrem a múltiplas camadas significativas, para
além da tonalidade pessoal e confessional. Ao transcender o que é
considerado íntimo e particular, o autor alcança o universo da
projeção política e social, tratando de temas como as diferentes
relações entre cultura e nação; o patrimônio histórico nacional e
os elementos da moderni- dade; a nossa tradição artística e
cultural e as inovações de vanguarda. Ao se enredar por tais
tópicos, o texto da carta ganha tonalidade en- saística, passando a
ter uma dimensão histórica, antes outorgada ape- nas ao ensaio e à
resenha estética como espaços de exercícios críticos e
referenciais.
Gabarito
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