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Antropologia da Comunica9lo Visual Massimo Canevacci Antropologia do Cinema Massimo Canevacci Hitchcock IT ruffaut Entrevistas Truffaut Hollywood Entrevistas Michel Ciment Hollywood 1936 Blaise Cendrars A Imagem-Tempo Cinema II Gilles Deleuze A Linguagem Cinematogr.ifica Marcel Martin o vao dos ADjos: Bressane, Sganzerla Estudo sobre a crillfilo cinematografica Jean-Claude lkrnardet Primeiros Passos o que eArle Jorge Coli o que e Cinema Jean-Claude lkrnardet o que e Fotografia Claudio Araujo Kubrusly o que e Teatro Fernando Peixoto Encanto Radical Griffith o nascimento de um cinema Ismail Xavier Hitchcock o mestre do medo Inacio Araujo ANDREBAZIN o CINEMA ENSAIOS Eloisa de Araujo Ribeiro Ismail Xavier editora brasiliense

Andre Bazin - O Cinema Ensaios

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Page 1: Andre Bazin - O Cinema Ensaios

Antropologia da Comunica9lo Visual Massimo Canevacci

Antropologia do Cinema Massimo Canevacci

Hitchcock IT ruffaut Entrevistas Fran~ois Truffaut

Hollywood Entrevistas Michel Ciment

Hollywood 1936 Blaise Cendrars

A Imagem-Tempo Cinema II Gilles Deleuze

A Linguagem Cinematogr.ifica Marcel Martin

o vao dos ADjos: Bressane, Sganzerla Estudo sobre a crillfilo cinematografica Jean-Claude lkrnardet

Cole~o Primeiros Passos

o que eArle Jorge Coli

o que e Cinema Jean-Claude lkrnardet

o que e Fotografia Claudio Araujo Kubrusly

o que e Teatro Fernando Peixoto

Cole~o Encanto Radical

Griffith o nascimento de um cinema Ismail Xavier

Hitchcock o mestre do medo Inacio Araujo

ANDREBAZIN

o CINEMA ENSAIOS

Tradu~ao: Eloisa de Araujo Ribeiro

Introdu~ao:

Ismail Xavier

editora brasiliense

Page 2: Andre Bazin - O Cinema Ensaios

Copyright © by Les Editions du Cerf, 1985 Titulo original: Qu'est-ce que Ie cinema?

Copyright © da trad~ao brasileira: Editora Brasiliense S.A. Nenhuma parte desta public~ao pode ser gravada, armazenada em sistemas eletronicos, fotocopiada,

reproduzida por meios mecanicos ou outros quaisquer sem autoriz~ao previa do editor.

ISBN: 85-11-22033-X Primeira ed~ao, 1991

Indic~ao editorial: Jean-Claude Bemardet Prepar~ao de originais: Juliana Jardim Barboza

Revisao: Vania L. Amato e Juliana Jardim Barboza Capa: Elizabeth Laffayete Ferreira

Os capitulos I e XIX foram traduzidos por Hugo Sergio Franco para public~ao na coletanea "A Experiencia do Cinema"

(GraaIlEmbrafilme, 1983). Agradecemos a Editora paz e Terra a cessilo dos direitos de trad~ao.

A tradutora agradece a equipe da Cinemateca do Museu de Arte Modema do Rio de Janeiro, que colaborou gentilmente na

pesquisa dos titulos brasileiros dos fi/mes.

IJ Rua da Consola<:ao, 2697

01416 Sao Paulo SP Fone (011) 881-3066 - Fax 881-9980

Telex: (11) 33271 DBLM BR

IMPRESSO NO BRASIL

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SUMARIO

Introdw;ao, Ismail Xavier ............................................. 7 Advertencia ............................................................... 15 Prefacio .................................................................... 17

I. Ontologia da imagem fotografica ...... ................. 19 II. 0 mito do cinema total ........................... ··· .. ··.. 27

III. 0 cinema e a explora~ao .................................. 33 IV. ,0 mundo do silencio .................................. ..... 42 V. M. Hulot e 0 tempo ........................................ 47

.' VI. Montagem proibida ......................................... 54 VII. A evolu<;ao da linguagem cinematografica ........... 66

,VIII. Por urn cinema impuro - Defesa da adapta<;ao .... 82 IX. 0 Journal d'un cure de campagne e a estilistica

de Robert Bresson ....................................... 105 X. Teatro e cinema ............................................. 123

XI. 0 caso Pagnol ............................................... 166 XII. Pintura e cinema ............................................ 172

XIII. Urn filme bergsoniano: Le mystere Picasso .......... 178 XIV. Alemanha ano zero ......................................... 187 XV. Les dernieres vacances ..................................... 191

XVI. 0 western ou 0 cinema americano por excelencia .. 199 XVII. Evolu<;ao do western ....................................... 209

XVIII. Urn western exemplar: Sete homens sem destino ... 219 XIX. A margem de "0 erotismo no cinema" ............... 225 • XX. 0 realismo cinematografico e a escola italiana da

Libera<;ao .................................................. 233 XXI. La terra trema ............................................... 258

/:

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• AND~BAZI N

J' XXII . Ladroo de bicic/eta ................................ .. ...... 264 "XXIII . De Sica diretor ........ . . .. ........ ...... ..................... 218 XX IV. Uma grande obra: Umbuto D ........... .. ............. 29S XXV. Cobirio, ou a viagem aos confins do neo.rea1ismo . 299

XXVI. Defesa de Rossellini ........ . .......... ... .................. 308 X>CVU. Europa" ........................................ ........ ..... 318

{ndice de ftlmes citados ,......... .. .. . ....... ..... ..... .. . .. .... ....... 321

':4 IUI/fdo do Cfftico ndo i (rozer numa bondeja de prato urna IItrdade que nlio

exisre. mas profongar 0 mhima possfvel, no infeligencio e no 5eruibilidode dos que

o leem, 0 impacto do obro de ane."

ANDld! BAZI""

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INTRODU<;AO

Ismail Xavier

Em Nick's movie - Lightning over water (1980), Wim Wen­ders presta homenagem a Nicholas Ray: de comum acordo com o cineasta, registra 0 cotidiano deste amigo doente, a quem rest a pouco tempo de vida. Logo de inicio, 0 filme revel a a sua regra e, a par do inusitado da situal;ao, nao nos incomoda a patente encenal;ao presente ao longo das seqiH!ncias: filma-se e monta-se como numa ficl;aO e 0 esquema denuncia, sem remorso, 0 caniter de "repetil;ao para a camara" de muitas passagens. Mas nem tudo e tao claro; aos poucos se instala uma ambigiiidade que nos desa­fia - encenal;ao? espontaneidade? - e sentimos a forl;a deste laboratorio que tera urn fim proximo: Nicholas Ray vai morrer. As imagens na tela reall;am como poucas 0 peso, 0 sentido de pre­senl;a preterit a ("isso foi") que indicia a morte quando olhamos a reprodul;ao mecanica, este mesmo peso tematizado por Roland Barthes, em A ciimara clara, retomando, em outra chave, os temas da Piedade e da Morte na fotografia, muito caros a Andre Bazin. Sem duvida, ha este efeito em Nick's movie, mas estamos no cinema (nao na foto) e Nicholas Ray se move, existe, persiste diante da camara, e dural;ao, fluxo do tempo, como nos lembra­ria 0 proprio Bazin. Indice de morte, preserval;ao de uma dina­mica viva: os dois efeitos se tencionam dentro de certo equilibrio mas ha, perto do final de Nick's movie, urn climax que inviabiliza qualquer residuo contemplativo face ao passado em que Wenders e Ray viveram a experiencia. 0 dia-a-dia se faz drama, se condensa e, nest a intensidade, se presentifica de modo mais pleno: estamos no quarto do hospital, Nicholas Ray esta sentado junto a sua cama e conversa com Wenders atras da camara; ele sente dores, passa mal e a conversa fica muito tensa pois se tern a impressao de que tudo pode se precipitar a qualquer instante. Nicholas Ray

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pede para ele dizer "corta" ao fotografo, nao agiienta mais a situa-9aO; Wenders replica "diga voce para cortar" e, enquanto dura este dialogo para decidir quem comanda este momenta que e vida (sua espessura esta na amea9a) e representa9ao (a camara sela 0 acordo), somos colocados diante de uma passagem extraordinaria do cinema. Ray acaba por dizer "corta" (seu ultimo gesto de dire­tor) e desaparece do filme que tera outra seqiiencia. Ele morreu alguns dias depois desta "cena" que tern suscitado muita discus­sao pelo aspecto moral de uma filmagem no limite da morte (no filme, a morte se afigura possivel ali, diante de nos).

Presente nesta discussao, uma problematica tipicamente baza­niana: a da presen9a da morte (0 mesmo vale para 0 sexo) no cinema. A profana9ao de urn instante que deveria ser unico, 0 horizonte de obscenidade da duplica9ao medmica da experiencia individual irredutivel posta em serie, exibida em sessoes corridas. o jogo foi feito ao longo dos dias mas Wenders e Ray entenderam haver urn limite para a experiencia de registro consentido e, mesmo esticando a corda alem do que muitos gostariam, 0 interdito da morte se fez valer e esta "cena" do hospital traz a tona, drama­tiza, tudo 0 que de mais fundo esta ai implicado. Quando se ClSS!st~ ao filme de Wenders e se procura assimilar 0 impacto da '~cena"~ vern a experiencia direta da for9a deste residuo, deste rastro do real na imagem cinematografica. E se constata a vigencia de ques­toes que decadas de analise do discurso e disseca90es da imagem nao eliminaram de nossa pauta teorica, deixando patente 0 retorno de formula90es de urn dos maiores criticos do cinema: a feicao peculiar do m.undo na tela, 0 poder da imagem cinematogrMica de preservar a autenticidade da dura9ao, !~azer a espessura de urn in stante vivido. Percorrer a principal cole9ao dos textos de An­dre Bazin e explorar estas e outras questoes; repensar nossa rela-9ao com 0 cinema auxiliados por quem nos ofereceu uma reflexao na aparencia simples mas de amplitude extraordinaria.

Em termos de cinema e fotografia, podemos concordar com Bazin, escrever contra ele, emprestar algumas n090es e ideias, recha9ar outras. Impossivel ignora-Io. De Christian Metz a Pas­cal Bonitzer, de Roland Barthes a Gilles Deleuze, a teo ria do cinema e 0 pensamento da imagem tern dialogado com este cri­tico notavel que nos anos 40 e 50, proferindo palestras em cine­clubes e escrevendo artigos em revistas, entre elas a catolica Esprit e os Cahiers du Cinema (que ajudou a criar em 1951), con­duziu a analise do filme a urn outro patamar. Sem nunca ter escrito urn tratado, uma suma de seu pensamento, ele, de fato, nos legou uma teoria, uma concep9ao da historia do cinema,

INTRODUC;Ao 9

uma estilistica capaz de dizer muito bern porque Orson Welles e Jean Renoir sao especiais entre os maiores cineastas. 1

Ensaista de mao cheia, Bazin expos suas ideias partindo quase sempre de questoes suscitadas por urn filme, urn cineasta ou urn conjunto de obras. Pensamento em ato, alinhavou n090es, juizos, sem nunca perder 0 toque da interven9ao pessoal, sempre em con­tato direto com a atualidade, atento ao novo que exige urn inter­prete e ao dado da tradi9ao que solicita novo exame, uma inver­sao de sentido face a novas circunstancias. Diante do impacto de Cidadtio Kane e do cinema norte-americano que 0 fim da II Guerra tornou disponiveis no mercado europeu, diante da revolu-9aO gerada pelo neo-realismo italiano, foi Bazin quem trouxe a mais rica formula9ao critica capaz de esclarecer 0 significado das transforma90es entao em andamento, numa cria9ao que, no desdo­bramento, mostrou-se uma teoria do cinema moderno (ver "A evo­IU9ao da linguagem dnematograJica" e a serie de artigos sobre 0 neo-realismo na parte final deste livro). Diante da tradi9ao teo rica das vanguardas de 1920 e da formula9ao classica de Andre Mal­raux em 1940 (a arte do cinema come9a com a decupagem da cena), foi Bazin quem subverteu de forma radical a questao da montagem e do "especifico filmico", superando lugares-comuns sobre as rei a­c;Oes entre 0 cinema e a teatro, criando urn novo referencial de

-papcldecisivo na forma9ao dos jovens que, em 1959, lideraram a Nouvelle Vague (ver "Montagem proibida", "Por urn cinema impuro - defesa da adapta9ao" e "Teatro e cinema").

o pos-guerra frances foi extremamente proficuo em critica e teoria cinematogrMicas. Havia 0 novo clima criado pel a libera9ao; havia urn pensamento marcado pela n09ao de compromisso, enga­jamento e 0 existencialismo, em suas variadas acep90es (Sartre, Merleau-Ponty, Emmanuel Mounier), definia urn horizonte de reflexao que atingia todas as esferas, a do cinema em especial. A guerra tornara mais patente a importancia da nova tecnica no mundo contemporaneo; desde os anos 30, a trajetoria politic a da Europa definira uma "batalha das imagens", mostrara a for9a dos veiculos de comunica9ao no engendramento de uma retorica exercida sem treguas na vida cotidiana. Na Fran9a e na Italia, aquela conjuntura de vito ria sobre 0 fascismo e de reconstru9ao do mundo dentro de uma nova ordem encontrou expressao numa analise da cultura conduzida nos termos do humanismo renovado. No cinema, a confian9a no homem como sujeito da historia gerada pela libera9ao produz urn interregno de reconcilia9ao intelectual e emocional com a moderniza9ao, dando ensejo a urn estilo de refle­xao como 0 de Bazin. Nele se articulam fe religiosa e humanismo

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tecnico a conceber a prodw;:ao industrial da imagem como uma promessa de conhecimento, urn "estar em casa" no planeta, uma ex­plora~ao iluminadora dos segredos do mundo. Tal humanismo tec­nieo tern algo da fe democratica, da concep~ao idealizada da cien­cia como gesto de amor a natureza e propicia, digamos, urn momento feliz em que a cinefilia se vive, sem contratempos, como amor a vida, aten~ao ao mundo. Atraves dele, 0 espirito de missao de Bazin pode se deslocar da aspirada vida de professor - dado que balizou sua forma~ao - para 0 terre no da critica militante, toda ela urn formidavel elogio ao cinema sonoro, ao avan~o das tecnicas da reprodu~ao como materializa~ao de sonhos da humani­dade (ver "0 mito do cinema total", "0 cinema e a explora~ao").

Nao por acaso, a questao central dessa critica e a da "voca­~ao realista" do cinema, nao propriamente como veicula~ao de uma visao correta e fechada do mundo, mas como forma de olhar que desconfia da ret6rica (montagem) e da argumenta~ao exces­siva, buscando a voz dos pr6prios fen6menos e situa~6es. Realismo, entao, como produ~ao de imagem que deve se inclinar diante da experiencia, assimilar 0 imprevisto, suportar a ambiguidade, 0

aspecto multi focal dos dramas. Tal produ~ao de imagem requer urn estilo, implica numa escolha. A forma deste realismo tern seus procedimentos-chave. Esses mesmos que os construtores do cinema moderno (Renoir, Welles, Wyler, Rossellini) estavam, ao ver de Bazin, afirmando, a par da diversidade de circunstancias e "men­sagens": 0 "plano-sequencia" (apresenta~ao da cena sem cortes, numalmica tomada), os movimentos de camara, 0 uso da profun­didade do campo visivel (tridimensionalidade), 0 respeito a dura­~ao continua dos fatos, a minimiza~ao dos efeitos de montagem. Tal cinema de "situa~6es em bloco", sem a analise previa exigida pela montagem do cinema classico, traduz 0 ideal da "compreen­sao" baziniana: antes de ser julgado 0 mundo existe, esta ai em processo; ha uma riqueza das coisas em sua interioridade que deve ser observada, insistentemente, ate que se expresse. Para tanto, e preciso que 0 olhar nao fragmente 0 mundo e saiba observa-lo de forma global, na sua dura~ao, podendo entao alcan­~ar a intui~ao mais funda do que de essencial cada fen6meno ou vivencia traz dentro de si.

Ha, sem duvida, a matriz bergsoniana neste ideal, urn pouco a revelia de Bergson na adesao ao mundo mecanico da tecniea. Tal aten~ao a duree resulta do papel central do fil6sofo frances na forma~ao do critico, presen~a vital anterior a leitura dos textos de Sartre sobre a imagina~ao e 0 imaginario, anterior mesmo ao contato de Bazin com Emmanuel Mounier (urn dos fundadores

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INTRODUc;:Ao II

da Esprit) no final dos anos 30, quando 0 entao estudante teve vivo interesse pelo Personalismo de que Mounier, urn dos te6ricos do existencialismo cat6lico frances, era 0 porta-voz. Com sua pro­fissao de fe no cinema, Bazin traduz urn movimento de reconcilia­~ao do pensamento religioso com 0 mundo moderno e pode obser­var a tela sem a moldura moralista de desconfian~a na imagem e no que nela e apego a esfera da carne. Ha mesmo urn interesse pel a natureza que lembra 0 cientista apaixonado pel a empiria, mas the acrescenta uma fenomenologia da ambiguidade, uma no~ao de facetas do mundo a resgatar que faz da ciencia urn canal de intimidade com~ os meandros da Cria~ao (a ponto de, em cri­tica do n!! 2 dos Cahiers, ele lembrar que e preciso ler em filigrana a evidencia da gra~a, pois "os signos de Deus nao sao sempre sobrenaturais").

Tal confian~a na imagem cinematogrMica, Bazin a partilha com os primeiros te6ricos do cinema - Louis Delluc, Jean Eps­tein - com a ressalva de uma op~ao realista, estranha ao ideario da vanguarda dos anos 20, que deixa Bazin mais em paz com 0

cinema industrial. Tal confian~a era urn tra~o recorrente na fortis­sima tradi~ao te6rica francesa, ate que os anos 60 viessem abala­la ao alterar os termos do pensar 0 cinema e a politica. Na pri­meira metade do seculo, era comum nessa tradi~ao identificar 0

cinema com urn sopro de autenticidade na cultura, recusa de arti­ficios. Tal postura marcou a recep~ao dos criticos franceses a Hollywood cujos generos mais populares foram saudados como urn vento de juventude, simplicidade, intimidade com a natureza (0 western, tudo 0 que se afigurava como 0 Outro da Europa). Por esta via, a produ~ao industrial se legitimou, consolidando sua posi~ao central na cinefilia parisiense, dado que, nas revistas de cinema, afastou as formula~6es mais apocalipticas face a cultura de massa e Hollywood (ate 1968). Se no p6s-guerra a alternativa neo-realista e exaltada, isto nao implica, para Bazin, no recha~o a outros modos de produ~ao: seu movimento e de respeito a fatura individual, fei~6es pa:-ticulares; a pertinencia a urn sistema de pro­du~ao nao e motivo para recusas em bloco. Flexivel, sua marca e o exercicio da critica que evita simplesmente "aplicar" pressupos­tos ideol6gicos, apostando mais na acuidade do olhar, na sensibili­dade ao estilo, talentos que a sua escrita soube expressar de forma admiravel, gerando insights criticos de grande consequencia, fonte de urn carisma intelectual que deu enorme suporte a sua vulnera­vel postura de missionario, a sua figura camiida cuja constela~ao de valores humanistas, fosse-outra a inteligencia, talvez nao supe­rasse 0 risco da ingenuidade.

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Na fala de seus contemporaneos, e con stante a referencia a integridade de Bazin; e unanime nos que 0 conheceram a men~ao a sua generosidade, compreensao, notaveis num homem cuja saude precaria, com freqiiencia, the impos limites.2 Pelos testemunhos, sua postura diante do cinema nao se desliga de urn "modo de ser" que se expressa de formas variadas: ha 0 sabor dos epis6dios gera­dores de urn folclore simpatico em tomo de seu amor pel as espe­cies da natureza (Bazin chegou a ter em cas a urn filhote de croco­dilo; do Brasil, levou urn papagaio); ha a incrivel dedica~ao com que soube se dar a todos, sendo emblematico 0 epis6dio de Truf­faut - este enfant sauvage que Bazin ajudou a tirar de urn refor­mat6rio, adotou e conduziu para uma vida criativa de escritor e cineasta.

Nisso tudo ha forte coerencia, a qual implica uma rela~ao de empatia com 0 mundo, de tal intensidade que a referencia ao olhar nao se da aqui apenas como metafora espacial a designar atitudes de espirito mas qualifica 0 movimento mesmo de uma existencia. A tonica deste olhar, urn amigo resumiu muito bern ao lembrar que "seus olhos foram sempre muito ageis, a vontade, no movi­mento da percep~ao a reflexao, do objeto a ideia". A observa~ao e de 1959 e seu autor, Roger Leenhardt, como outros amigos, pres­tava nos Cahiers du Cinema nQ 91 sua homenagem a Bazin, logo ap6s a sua morte, aos 40 anos, em novembro de 1958. Leenhardt nao faz parte da nova gera~ao de criticos que justamente a partir desse mesmo ana mergulharia na pratica do cinema para trans­forma-Io. Seu artigo nao e, portanto, a homenagem dos afilhados - Truffaut, Godard, Rivette, Chabrol, Rohmer. E 0 tributo do mestre que, escrevendo sobre cinema na revista Esprit, havia mar­cado a forma~ao de Bazin no final dos anos 30, inicio dos 40. Com sua presen~a, a homenagem dos Cahiers, em 1959, ata os dois extremos de urn percurso da cultura cinematografica francesa marcado pelo pensamento de Bazin. Quando compos seus primei­ros grandes ensaios entre 1945 e 1947, ele foi explicito no dialogo com Leenhardt e Andre Malraux de "Esbo~o de uma psicologia do cinema" (1940) e Le musee imaginaire; ao fundar, com Jac­ques-Doniol Valcroze e Lo Duca, os Cahiers, havia a consciencia de continuar 0 trabalho de Jean George Auriol, 0 diretor da Revue du cinema (1946/1949), critico que, des de os anos 30, represen­tava urn momento de reconcilia~ao da teoria francesa com 0 cinema narrativo sonoro ap6s 0 trauma que roubara 0 impeto a vanguarda de 20. Bazin morreu cedo demais, mas em 1958 ja deixara sua marca no pensamento daqueles que balizariam os anos 60, ligando seu nome a constela~ao de temas que teve na Nouvelle Vague uma

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resposta pratica decisiva. A par de suas analises da linguagem (a teoria do "plano-seqiiencia"), ele contribuiu para a "politica dos autores" liderada pelos Cahiers, discutindo seus principios com os colegas mais jovens que iriam levar a pratica 0 primado da auto­ria no cinema. Nao por acaso, foram auto res (Welles e Renoir) 0

tern a dos textos que concebeu em forma de livro (0 sobre Renoir, escrevia quando morreu); casos isolados dentro de sua vasta pro­du~ao que permaneceu elJl artigos s6 organizados em obras p6stu­mas, pelo esfor~o de Truffaut ou dos colaboradores dos Cahiers.

Os textos aqui reunidos compoem a cole~ao que, a partir de 1958, evidenciou a envergadura do te6rico Andre Bazin, mostrando o quanto a sua visao do cinema nao estava apenas apoiada em sua sensibilidade ao talento, ao estilo, as nuances da linguagem, mas implicava numa ontologia, investiga~ao do especifico filmico. A pergunta "0 que e 0 cinema?" nao poderia admitir a asser~ao definitiva mas seu pensamento, de ensaio a ensaio, revel a urn con­junto de tra~os que definem, sem duvida, uma coen!ncia. No recuo da interroga~ao, ele discute a fotografia, a reprodu~ao tecnica, e retoma reflexoes de Andre Malraux para inserir 0 cinema na hist6-ria da arte, esfera onde Bazin 0 ve cumprir urn papel redentor. Em "Ontologia da imagem fotografica", ele observa que a pers­pectiva da Renascen~a constitui urn "pecado original": retirou a inocencia da representa~ao e reduziu a arte a imita~ao da aparen­cia, ao ilusionismo que 0 barroco veio radicalizar. Quando a apa­rencia assume urn valor em si mesma, a arte sacrifica a sua dimen­sao estetica (a expressao de realidades espirituais) e se psicologiza, curvando-se ao desejo de duplica~ao, a imita~ao que quer salvar o ser pela aparencia, a exorcizar 0 tempo, como no antigo Egito 0

embalsamento era a condi~ao da etemidade. Par~ _Bazin, a foto­grafia e 0 cinema invertem os termos desta equii~ao, pois ai e a pr6prfa tecnica de base que incorpora tal desejo, tal "complexo da mumia", antes do uso da tecnica por urn sujeito. Se 0 cinema e linguagem, fato de discurso, e preciso frisar que, antes de suas articula~oes e de sua sintaxe, ele tern uma rela~ao imediata com 0

mundo ancorada na natureza da tecnica, no automatismo com que a imagem se imp rime na pelicula, produzindo, nao uma seme­lhani;a como as ja conhecidas na tradi~ao pict6rica, mas urn "molde da dura~ao", urn decalque do movimento. Tal imagem tern for~a de realidade nao apenas porque e precisa na reprodu~ao da aparen­cia, mas em razao de sua genese peculiar, baseada no processo fotoquimico. Aqui, a reprodu~ao nao e pecado, nao resulta de esco­lha do artista. No cinema, 0 ilusionismo nao 0 e plenamente; 0

objeto deixou efetivamente seu rastro na pelicula e crer em sua exis-

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14 ANDRE BAZIN

tencia ou ficar seduzido pel a sua palpabilidade niio constitui obsta­culo. Apoiados na fon;:a psicologica deste rastro do mundo em seu corpo, a fotografia e 0 cinema constroem a sua estetica a partir dai, explorando seu poder essencial de reprodU(;:iio do real e libe­rando, ao mesmo tempo, as artes plasticas de seu afii de imita~iio I precisa. Na pintura, escra~iz~r-~e a aparencia e macular_ a arte;

, no cinema, macular a aparencla e perder 0 solo da expressao, anu­lar 0 especifico e todas as suas promessas de revela~iio. -- Por diferentes caminhos, encontramos a mesma aposta de Bazin. Ela se desdobra em formula~oes certamente discutiveis como tern mostrado a produ~iio teorica mais recente, empenhada em assinalar os limites do seu idealismo, na teoria da imagem e do cinema moderno, nas expectativas historicas. Vivemos 0 seu futuro e tais limites estiio claros, 0 jogo esta feito. 0 essencial a destacar aqui e sua lucidez e coerencia como expressiio de urn momento onde 0 melhor da critica de cinema vivia a constela~iio humanist a e seus correlatos de esperan~a, pouco atenta, por exem­plo, ao mundo infernal de regressoes, controles e domina~oes que a teo ria critica de Adorno e Horkheimer desenhava para os filhos do iluminismo na era da industria cultural. Distante deste e de outros diagnosticos sombrios(?), a cinefilia podia abrigar a aposta de Bazin, viver 0 mundo da reprodu~iio medinica como promessa de reden~iio, sem a melancolia barroca de uma reflexiio mais recente (penso em Barthes a prenunciar a morte no dic da maquina), sem viver 0 vazio do simulacro que a polui~iio imagetica de hoje nos reserva. Podia entiio esperar, como ocorrera no inicio do seculo, a harmonia de ciencia e arte, espirito e materia, tecnica e estetica, esta utopia da modernidade expressa de forma original na obra de Bazin, canto de cisne dos evangelhos do cinema, sem duvida o mais brilhante.

NOTAS

I. Em 1950, Bazin publicou urn livro sobre Welles (Paris, Editions du Chavanne) e morreu antes de terminar 0 livro sobre Jean Renoir, depois editado por Franc;ois Truffaut (Paris, Editions Champes Livre, 1971). 2. Torno como referencia a biografia escrita por Dudley Andrew - Andre Bazin, Nova York, Columbia University Press, 1990, 2~ edic;ao -, os prefacios de Truf­faut a dois livros de Bazin que organizou - Le cinema de ['occupation et de la resistance (Paris, Union Generale d'Editions, 1975) e 0 cinema da crueldade (Sao Paulo, Martins Fontes, 1989) - e os artigos de Paulo Emilio publicados no Suple­mento Literario de 0 Estado de S. Paulo, incluidos na coletanea Critica de cinema no Suplemento Litenirio vol. II (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982).

ADVERTENCIA

Em 1958 seis anos depois da cria~iio da cole~iio "Setima Arte", Andre 'Bazin publicou 0 primeiro volume de uma serie de quatro sob 0 titulo generico de QU'est-ce que Ie cinema?" 0 prefa­cio, cujo essencial conservamos, indicava claramente seu t:or: "0 titulo niio e a promessa de resposta, mas antes 0 enunctado de urn problema que 0 autor se colocara ao lon~o destas pagina~".

Para ele, prcitica e teoria remetem uma a outra numa leltura em que a "ingenuidade" interrogativa constitui urn momento de uma compreensiio rigorosa. E sem duvida esse rigor, sem descartar a emo~iio, que as segura desde 0 primeiro volume 0 sucesso da obra.

A morte de Andre Bazin niio Ihe permitiu dar os ultimos reto­ques ao quarto volume, sobre 0 neo-realismo italiano. F~i .seu amigo Jacques Rivette quem 0 fez, em 1962, prestando uma u!tlma homenagem aquele que foi a consciencia de toda uma gera~ao de criticos e de cineastas.

A obra em quatro volumes teve varias reedi~oes, sinal de uma demanda sempre reiterada.

Em 1975, reunimos em urn unico volume os principais artigos. Toda escolha e urn risco. Assumimos esse risco com a senhora Janine Bazin e aconselhados por Fran~ois Truffaut.

Dez anos mais tarde quando cresce 0 interesse por Bazin na Fran~a e em outros lugar~s, propomos as novas gera~oes de cinefi­los esta obra fundamental, com a mesma formula que faz dela seguramente a coletanea mais significativa. . .

E nosso desejo fazer com que os leitores compartllhem 0 mtenso amor pelo cinema que animava Andre Bazin, cuja obra iluminou esta cole~iio.

Le Cerf, 1985 * 0 que e 0 cinema? (N.T.)

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PREFAcIO

Este livro reune artigos publicados des de 0 final da guerra. Nao dissimulamos 0 perigo do empreendimento, que e principal­mente 0 de incorrer a critica de presuncao, oferecendo a posteri­dade reflexoes de circunstancias mais ou menos inspiradas pela atua­lidade. Tendo, porem, a sorte de exercer seu culpado oficio num jornal e em diferentes revistas e semamirios, 0 autor desfrutou tal­vez da possibilidade de escolher artigos menos diretamente determi­nados pelas contingencias da atualidade jornalistica. Oai resuita, em compensacao, que 0 tom e sobretudo as dimensoes dos artigos aqui reunidos serao bern variados; os criterios que nos guiaram sem mais de fundo que de forma, urn artigo de duas ou tres paginas publicado num semanario podia, na perspectiva deste livro, ter tanta importancia quanto urn longo estudo para revista, ou pelo menos dar ao edificio a pedra angular util a solidez da fachada.

E bern verdade que poderiamos e talvez deveriamos ter refun­dido os artigos na continuidade de urn ensaio. Renunciamos a isso por receio de cair no artificio didatico, preferindo confiar no lei­tor, deixando-lhe a tarefa de descobrir sozinho, se ela existe, a jus­tificacao intelectual da aproximacao dos textos.

o titulo da serie, Qu'est-ce que Ie cinema?, nao e bern a pro­messa de resposta, mas antes 0 enunciado de urn problema que 0

autor se colocara ao longo destas paginas. Estes livros nao preten­derao, portanto, oferecer uma geologia e uma geografia exausti­vas do cinema, mas apenas conduzir 0 leitor a uma sucessao de sondagens, exploracoes, sobrevoos feitos por ocasiao dos filmes propostos a reflexao cotidiana do critico.

Do monte de papeis rabiscados diariamente, muitos s6 servem para fazer fogo; outros, que tinham em seu tempo urn pequeno

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18 ANDRE BAZIN

valor no que se refere ao estado do cinema contemporaneo, hoje nao teriam mais que urn valor de interesse retrospectivo. Eles foram eliminados, pois se a historia da critica ja nao passa de uma miga­lha, a de urn critico particular nao interessa a ninguem, sequer a ele proprio, a nao ser como exercicio de humildade. Restavam arti­gos ou estudos necessariamente datados pelas referencias dos fil­mes que serviram de pretexto a eles, mas que nos pareceram, com razao ou sem ela, conservar apesar do recuo urn valor intrinseco. Jamais hesitamos, naturalmente, em corrigi-Ios, quer na forma ou no fundo, quando nos pareceu util. Aconteceu tambem de fun­dirmos varios artigos que tratavam do mesmo tema a partir de fil­mes diferentes, ou, ao contrario, cortar paginas ou paragrafos que poderiam se repetir dentro da coletanea; na maio ria das vezes, porem, as corre<;oes sao menores e se limitam a abrandar as pon­tas da atualidade que chamariam a aten<;ao do leitor sem proveito para a economia intelectual do artigo. Pareceu-nos, entretanto, quando nao necessario ao menos inevitavel, respeitar essa ultima. A medida - por mais modest a que seja - que urn artigo critico procede de urn certo movimento do pensamento, que tern seu impulso, sua dimensao e seu ritmo, ele se aparenta tambem com a cria<;ao literaria e nao poderiamos, sem quebrar 0 conteudo com a forma, coloca-Io em outro molde. Pelo menos achamos que 0

balan<;o da opera<;ao seria deficitario para 0 leitor e preferimos deixar subsistir lacunas em rela<;ao ao plano ideal da coletanea, a tapar os buracos com uma critica digamos ... conjuntiva. A mesma preocupa<;ao nos levou, em vez de inserir reflexoes atuais a for<;a nos artigos, a fazer notas de pe de pagina I.

Contudo e apesar de uma escolha, que esperamos nao ser excessivamente indulgente, era inevitavel que 0 texto nem sempre fosse independente da data de sua concep<;ao ou que elementos de circunstancias fossem insepaniveis de reflexoes mais intern po­rais. Em suma, e apesar das corre<;oes a que foram submetidos, achamos justo indicar todas as vezes a referencia original dos arti­gos que forneceram a substancia das paginas que virao a seguir.

A.B., 1958

1. Na presente edicao, as notas foram agrupadas no final de cada capitulo. (N.E.)

I ONTOLOGIA

DA IMAGEM FOTOGRAFICAI

Uma psicanalise das artes plastic as consideraria talvez a pni­tica do embalsamamento como urn fato fundamental de sua genese. Na origem da pintura e daescultura, descobriria 0 "complexo" damumia. A religiao egipcia, toda ela orientada contra amorte, SUbordinava a sobrevivencia a perenidade material do corpo. Com isso . satisfazia uma necessidade fundamental da psicologia humana: a d~fes-a contra 0 tempo. A mortena...o. e senao a vitoria do tempo. Fixar artificialmente as aparencias carnais do ser e salva-Io da Cor­rentez.a da dura<;ao: apruma-Io para a vida. Era natural que tais ap~lfencias fossem salvas na propria materialidade do corpo, sem suas carnes e ossos. A primeira estatua egipcia e a mumia de urn homem curtido e petrificado em natrao. Mas as piramides e 0 labi­rinto de corredores nao eram garantia suficiente contra uma even­tual viola<;ao do sepulcro; havia que se tomar ainda outras precau­<;oes contra 0 acaso, multiplicar as medidas de prote<;ao. Por isso, perto do sarcOfago, junto com 0 trigo destinado a alimenta<;ao do morto, eram colocadas estatuetas de terracota, especies ~ mumias de re~o§i~ao capazes de substituir 0 corpo caso este fosse destruido. As~m serev·el3:,-a partir de suas origens religiosas, a f'!!leao primordial da estatuaria: salvar 0 ser pel a apa~~ia. E pro­vavelmente pode-se considerar urn outro aspecto do mesmo pro­jeto, tornado na sua modalidade ativa, 0 urso de argila crivado de flechas da caverna pre-historica, substituto magico, identifi­cado a fera viva, como urn voto ao exito da ca<;ada.

E ponto pacifico que a evolu<;ao paralela da arte~_da dviliza­<;ao destiiuhi as artes plastic as de suas fun<;Oes magicas (Luis XIV niio se fez embalsamar: contenta-se com 0 seu retrato, pintado por Lebrun). Mas esta evolu<;ao, tudo 0 que conseguiu foi subli-

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mar, pela via de urn pensamento 16gico, esta necessidade incoerci­vel de exorcizat 0 tempo. Nao se acredita mais na identidade onto-16gica de modeloceJ~tIato, porem se ad mite que este nos ajuda a recordar aquelee, portanto, a salva-Io de uma segunda morte espi­ritual. A-fubrlca~ao da imagem chegou mesmo a se libertar de qualquer utilitarismo antropocentrico. 0 que conta nao e mais a sobrevivencia do homem e sim, em escala mais ampla, a cria~ao de urn universo ideal a imagem do real, dotado de destinoJempo­r(l.l aut.6nomo. "Que coisa va- a:-ptntura", se por tras de nossa admira~ao ahsurda nao se apresentar a necessidade primitiva de vencer 0 tempo pela perenidade da forma! Se a hist6ria das artes plasticas nao e somente a de sua estetica, mas antes a de sua psi co­logia, entao ela e essencialmente a historia da semelhan~a, ou, se se quer, do realismo.

* * * A fotografia e 0 cinema, situados nestas perspectivas sociolo­

gicas, explicariam tranqiiilamente a grande crise espiritual e tec­nica da pintura modema, que se origina por volta de meados do seculo passado.

Em seu artigo de Verve, Andre Malraux escrevia que "0 cinema nao e senao a instancia mais evoluida do realismo plastico, que principiou com 0 Renascimento e alcan~ou a sua expressao limite na pintura barroca".

y E verdade que a pintura universal alcan~ara diferentes tipos I de equilibrio entre 0 simbolismo e 0 realisnio das formas, mas no seculo xv 0 pintor ocidental come~ou a se afastar da preocu-

( pa~ao primordial de tao s6 exprimir a realidade espiritual por meios aut6nomos para combinar a sua eXIJressao com a imita~ao mais ou menos integral do mundo exterior. 0 acontecimento deci­sivo foj sem duvida a inveucao do primeiro sistema cientifico e,

'-"de- certo modo, ja mecanico: a perspectivCi (a camara escura de Da Vinci prefigurava a de Niepce). Ele permitia ao artista dar a ilusao de urn espa~o de tres dimensoes onde os objetos podiam se situar como na nossa percep~ao direta.

) Desde entao, a pintura viu-se esquartejada entre duas aspira­

~oes: uma propriamente estetica - a expressao das realidades espi­rituais em que 0 modele se acha transcendido pelo simbolismo jdas formas -, e outra, esta nao mais que urn desejo puramente I psicol6gico de substituir 0 mundo exterior pelo seu duplo. Esta necessidade de ilusao, alcan~ando rapidamente a sua propria satis­fa~ao, devorou pouco a pouco as artes plasticas. Porem, tendo

ONTOLOGIA DA IMAGEM FOTOGRAFICA 21

a perspectiva resolvido 0 problema das formas, mas nao 0 do movimento, era natural que 0 realismo se prolongasse numa busca da expressao dramatica no instante, especie de quart a dimensao psiquica capaz de sugerir a vida na imobilidade torturada da arte

~ barroca. 2

J E claro que os grandes artist as sempre conseguiram a sintese dessas duas tendencias: hierarquizaram-nas, dominando a reali­dade e absorvendo-a na arte. Acontece, pOft!m, que nos achamos em face de dois fen6menos essencialmente diferentes, os quais uma critica objetiva precis a saber dissociar, a fim de compreender a evolu~ao pict6rica. A necessidad~_de ilusao nao cessou~ a partir

fdO secul01CYIl. d~ ins!iiarinteriormente a pintura. Necessidade de natureza mental, .em_sLmesma __ oao estetica, cuja origem s6 se poderia buscar na mentalidade magica, ma~~.!!ecessidade eficaz, cilia atra~ao abalou profundamente 0 equilibrio das artes plasticas.

~. A polemica quanto ao realismo na arte provem desse mal­I entendido, dessa confusao entre 0 estetico e 0 psicol6gico, entre i 0 verdadeiro realismo, que implica exprimir a significa~110 a Urn i 56-tempo concretae essencial 00 miirido, e 0 pseudo-realismo do I, trompe l'a!i] (ou do trompe ['esprit), que se conteriill -com-1i -ilusae­(las formas. 3 Eis porque a arte medieval, por exemplo, parece nao s()frer tal conflito: violentamente realista e altamente espiritual ao mesmo tempo, ela ignorava esse drama que as possibilidades tecnicas vieram revelar. A perspectiva foi 0 pecado original da pin­tura ocidental.

* * * Niepce e Lumiere foram os seus redentores. A fotografia, ao

redimir 0 barroco, liberou as artes plasticas de sua obsessao pel a semelhan~a. Pois a pintura se esfor~ava, no fundo, em vao, por nos iludir, e esta ilusao bastava a arte, enquanto a fotografia e 0 cinema sao descobertas que satisfazem definitivamente, por sua pr6pria essencia, a obsessao de realismo. Por mais habil que fosse /L--,

o pint or, a sua obra era sempre.hipotecada por-uma -inevitavclsub- - ~ jetividade. Diante da imagem uma duvida persistia, por causa da presen~a do homem. Assim, 0 fen6meno essencial na passagem -da pintura barroca a fotografia nao reside no mero aperfei~oa-mento material (a fotografia ainda continuaria por muito tempo _(~

inferior a pintura na imita~ao das cores), mas num fato psicol6-gico: a satisfa~ao completa do nosso afa de ilusao por uma repro-du~ao mecanica da qual 0 homem se achava excluido. A solu~ao nao estava no resultado, mas na genese. 4

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22 "'NDR~ BA.ZIN

Eis PQL.Q.UICC:I~~~~~~~~~~~~~~~~~~~fo urn (enameno rc "f"ncontraveis antes a objelivw.ade de ~ no sCculo XIX que tnlCla para valeT a crise do realismo.~a qu~ ~ boje 0 mito. abalando aQ..Jll.C5mo ,cro.lHUJplQ as condi~ de existencia formal das artes .p1isticas uam~ fURdam tos sociol6gicos. Liberado do complexo de semelhan~. o plntor modemo 0 rel~ga i massa.s que entAo passa a Identma· 10, pormn-ta"do. com a fotoMafia. e por outro com ague)a pin­lura ~ue a tanto sc .oliea. -

• • • A oriR.inalidade da (Olografla em rela AD a intuTa reside,

eQiL na sua objetivida e essenclal. Tanto e que 0 conjunlo de len­lCS que constuul 0 olho fOlografico em substituiltAo ao olho humano denomina-se precisamente "objetiva". Pela primeira vez, entre 0 objelo inicial e a sua representa~a.o nada se inlerpOe, a nAo ser urn outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do Mundo exterior se forma. automaticamente. sem a intervencilo criadora do homem, segundo urn rigoroso determinismo/A_~rso.

~~::~!~~~~entra em somente pel. Todas as

anes se fundam sobre a hornem; unicamente na foto· grafia c que fruirnos da sua ausencia. Ela age sobre n6s como urn fenOrneno "natural", como uma nor ou um cristal de neve cuja beleza c inseparavel de sua origem vegetal ou telurica.

Esta genese automatica subveneu radicalmente a psicologia da imagern. A objetividade da fOlografia confere·lhe um poder de credibilidade ausente de qualquer obra pic16rica. Sejam quais forem as obj~Oes do nosso espirito critico, somos obrigados a crer na existencia do objet,o representado, Iiteralmente re·presen· tado, quer dizer, tornado presente no tempo e no A f.Q!9::-gralia se beneficia de . de

mesmo, a pintura ja nao passa de uma tecnica infe· rior da semelhan~a, urn sucedllneo dos procedimentos de repro· du~!o. 56 a objetiva nos da, do objeto, uma imagem capaz de

ONTOLOGIA OA IMAGEM FOTOGRAFICA 21

,

o Janto iudirio de Turim.

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24 ANDRE BAZlN

"desrecalcar", no fundo do nosso inconsciente, esta necessidade de substituir 0 objeto por algo melhor do que urn decalque aproxi­mado: 0 proprio objeto, porem liberado das contingencias tempo­rais. A imagem pode ser nebulosa, descolorida, sem valor docu­mental, mas ela provem por sua genese da ontologia do modelo; ela e 0 modelo. Dai 0 fascinio das fotografias de albuns. Essas sombras cinzentas ou sepias, fantasmagoricas, quase ilegiveis, ja deixaram de ser tradicionais retratos de familia para se tornarem inquietante presenc;a de vidas paralisadas em suas durac;6es, liber­tas de seus destinos, nao pelo sortilegio da arte, mas em virtu de de uma medinica impassivel; pois a fotografia nao cria, como a arte, eternidade, ela embalsama 0 tempo, simples mente 0 subtrai a sua propria corrupc;ao.

* * *

Nesta perspectiva, 0 cinema vern a ser a consecuc;ao no tempo da objetividade fotografica. 0 filme nao se content a mais em con­servar para nos 0 objeto lacrado no instante, como no ambar 0

corpo intacto dos insetos de uma era extinta, ele livra a arte bar­roca de Slla catalepsia convulsiva. Pela primeira vez, a imagem aas coisas e tambem a imagem da durac;ao delas, como que uma mumia da mutac;ao.

As categorias7 da semelhanc;a que especificam a imagem foto­grafica determinam, pois, tambem a sua estetica em relac;ao a pin­tura. As virtualidades esteticas da fotografia residem na revelac;ao do real. 0 reflexo na calc;ada molhada, 0 gesto de uma crianc;a, independia de mim distingui-Ios no tecido do mundo exterior; somente a impassibilidade da objetiva, despojando 0 objeto de habitos e preconceitos, de toda a ganga espiritual com que a minha percepc;ao 0 revestia, poderia torna-lo virgem a minha atenc;ao e, afinal, ao meu amor. Na fotografia, imagem natural de urn mundo que nao sabemos ou nao podemos ver, a natureza, enfim, faz mais do que imitar a arte; ela imita 0 artista.

E pode ate mesmo ultrapassa-lo em criatividade. 0 universo estetico do pintor e heterogeneo ao universo que 0 cerca. A mol­dura encerra urn microcosmo essencial e substancialmente diverso. A existencia do objeto fotografado participa, pelo contrario, da existencia do modelo como uma impressao digital. Com isso, ela se acrescenta real mente a criac;ao natural, ao inves de substitui-la por uma outra.

Foi 0 que 0 surrealismo vislumbrou, ao recorrer a gelatina da placa sensivel para engendrar a sua teatrologia plastica. E que,

ONTOLOGlA DA lMAGEM FOTOGRAFlCA 25

para 0 surrealismo, 0 efeito estetico e insepanlvel da impressao mecanica da imagem sobre 0 nosso espirito. A distinc;ao logica entre 0 imagimirio e 0 real tende a ser abolida. Toda imagem deve ser sentida como objeto e todo objeto como imagem. A fotografia representava, pois, uma tecnica privilegiada para a criac;ao surrea­lista, ja que ela materializa uma imagem que participa da nature­za: uma alucinac;ao verdadeira. A utilizac;ao do trompe l'a?il e a precisao meticulosa dos detalhes na pintura surrealista sao disto a contraprova.

A fotografia vern a ser, pois, 0 acontecimento mais importante da historia das artes plasticas. Ao mesmo tempo sua libertac;ao e manifestac;ao plena, a fotografia permitiu a pintura ocidental desembarac;ar-se definitivamente da obsessao realista e reencon-

• trar a sua autonomia estetica. 0 "realismo" impressionista, sob 'sells alibis cientificos, e 0 oposto do trompe l'a?il. A cor, alias, \ ~orl!ca forma porque ,esta nao mais possuia -irnporT[n- ' CIa ImltatlVa. E quando, com Cezanne, a forma se reapossar da . ~o sera, em todo caso, segundo a geometria ilusionista da perspectiva. A imagem medinica, ao opor a pintura uma con~' correncia que atingia, mais que a semelhanc;a barroca, a identi­dade do modelo, por sua vez obrigou-a a se converter em seu pro­prio objeto.

Nada mais vao doravante que a condenac;ao pascaliana, uma vez que a fotografia nos permite, por urn lado, admirar em sua reproduc;ao 0 original que os nossos olhos nao teriam sabido amar, e na pintura urn puro objeto cuja referencia a natureza ja nao e mais a sua razao de ser.

* * *

Por outro lado, 0 cinema e uma linguagem.

NOTAS

1. Estudo retomado a partir de Problemes de la peinture, 1945. 2. Seria interessante, desse ponto de vista, acompanhar nos jornais ilustrados de 1890 a 1910 a concorrencia entre a reportagem fotografica, ainda nas suas origens, e 0 desenho. Este ultimo atendia sobretudo a necessidade barroca do dramatico (cLLe Petit Journal II/ustre). 0 sentido do documento fotografico s6 se impos aos poucos. Constata-se e, de resto, ait'm de uma certa saturac;ao, urn retorno ao dese­nho dramatico do tipo "Radar".

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26 ANDRI: BAZIN

3. Talvez a critica comunista, em particular, devesse, antes de dar tanta importan­cia ao expressionismo realista em pintura, parar de falar desta como se teria podido faze-Io no seculo XVlII. antes da fotografia e do cinema. Importa muito poueo, talvez, que a Russia Sovietiea produza rna pintura se ela ja produz born cinema: Eisenstein e 0 seu Tintoretto. Importa, isso sim, Aragon querer nos eonvencer a toma-Io por urn Repine. 4. Seria 0 caso, porem, de se estudar a psicologia dos generos plasticos menores, como a modelagem de mascaras mortuarias, os quais apresentam, tambem eles, urn certo automatismo na reprodw;ao. Nesse sentido, poder-se-ia considerar a foto­grafia como uma modelagem, urn registro das impressoes do objeto por interme­dio da luz. 5. Mas sera mesmo "a massa" que se acha na origem do divorcio entre 0 estilo e a semelhan~a que efetivamente constatamos hoje em dia? Nao seria antes 0 ad vento do "espirito burgues", nascido com a industria e que serviu justamente de ponto de repulsao para os artistas do seculo XIX, espirito que se poderia definir pela redu­~ao da arte a categorias psicologicas? Por sinal, a fotografia nao foi historicamente a sucessora direta do realismo barroco e Malraux observa muito a proposito que a principio ela nao tinha outra preocupa~ao que nao a de "imitar a arte", eopiando ingenuamente 0 estilo pictorico. Niepce e a maioria dos pioneiros da fotografia buscavam, alias, copiar por esse meio as gravuras. Sonhavam produzir obras de arte sem serem artistas, por decalcomania. Projeto tipico e essencialmente burgues, mas que confirma a nossa tese, elevando-a, por assim dizer, ao quadrado. Era natu­ral que a obra de arte fosse a principio 0 modelo mais digno de imitac;;ao para 0

fotografo, pois aos seus olhos ela, que ja imitava a natureza, ainda a "melhora­va" de quebra. Foi preciso algum tempo para que, tornando-se ele proprio artista, compreendesse que nao podia imitar senao a natureza. 6. Seria preciso introduzir aqui uma psicologia da reliquia e do souvenir, que se beneficiam igualmente de uma transferencia de realidade proveniente do complexo da mumia. Assinalemos apenas que 0 Santo Sudario de Turim realiza a sintese entre reliquia e fotografia. 7. Emprego 0 termo "categoria" na acep~ao que the da M. Gouhier em seu livro sobre 0 teatro, quando distingue as categorias dramaticas das esteticas. Assim como a ten sao dramatica nao implica nenhuma qualidade artistica, a perfeic;;ao da imita~ao nao se identifica com a beleza; constitui somente uma materia-prima sobre a qual 0 fato artistico vern se inscrever.

II o MITO DO CINEMA TOTAL1

o que, paradoxalmente, a leitura do adminivel livro de Geor­ges Sadoul sobre as origens do cinema2 revela e, apesar do ponto de vista marxista do autor, 0 sentimento de uma inversao das rela­c;oes entre a evoluc;ao economica e tecnica e a imaginac;ao dos pes­quisadores. Parece que tudo se passa como se devessemos inverter a causalidade historica que vai da infra-estrutura economica as superestruturas ideologicas e considerar as descobertas tecnicas fundamentais como acidentes providenciais e favoniveis, porem essencialmente secundarios, em relac;ao a ideia preliminar dos inventores. 0 cinema e urn fenomeno idealista. A ideia que os homens fizeram dele ja estava armada em seu cerebro, como no ceu platonico, e 0 que nos admira e mais a resistencia tenaz da materia a ideia, do que as sugestoes da tecnica a imaginac;ao do pesquisador.

Alias, 0 cinema nao deve quase nada ao espirito cientifico. Seus pais nao sao de modo algum eruditos (com excec;ao de Marey, mas e significativo que Marey so se interessasse pel a analise do movimento e de modo algum pelo processo inverso, que permitia recompo-lo). Ate mesmo Edison nao passa de urn bricoleur genial, urn monstro do concurso Lepine. Niepce, Muybridge, Leroy, Joly, Demeny, 0 proprio Louis Lumiere sao monomaniacos, desvaira­dos, bricoleurs ou, no melhor dos casos, industriais engenhosos. Quem nao ve que os desenhos animados do maravilhoso, sublime, E. Reynaud, sao apenas 0 result ado de uma perseguic;ao tenaz a uma ideia fixa? Explicariamos bern mal a descoberta do cinema partindo das descobertas tecnicas que 0 permitiram. Ao contra­rio, uma realizac;ao aproximativa e complicada da ideia precede quase sempre a descoberta industrial, que e a (mica a poder tor-

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CronofOlografia de J. E. Marey. Martha da Irops. I""'"" do Ciamooooa f,_

nar via vel sua aplicac;:!o pTatica. Assim, se hoje nos pareee evi· dente Que 0 cinema, em sua forma mais e1ementar, precisava utili­zar urn suporte transparenle, Oex.ivel e resistcme, uma emulsao sensivel. seea, capaz de rlXar uma imagem instanlanea (seoda 0 Testa apenas arranjos medl.n.icos bern menos complicados que urn re16gio do seculo XVIII). percebemos que lodas as etapas decisi­vas da invenc;:ao do cinema rcram transpostas antes dessas coodi­~Oes serem preenchidas. Muybridge. gracas a dispendiosa fantasia de urn amador de cavalos, consegue realizar, em 1877 e 1880, urn imenSQ complexo que Ihe permilira impressionar, com a imagem de urn cavalo galopando, a primeira serie cinemalografica. Ora, ele precisou se comentar, para tal resultado. com 0 col6dio umido sobre placa de vidro (isto e, com s6 uma das tres condi~Oes essen­dais: instantaneidade, emulsao seea, suporte flexlvel). Depois da descoberta da gelatina-brometo de prata, mas antes do apareci­menlo no comercio das primeiras fitas de celul6ide, Marey cons­tr6i com seu fuzil fotografico uma verdadeira c.!i.mera para placas de vidro. Enfim, mesmo depois da existencia comercial do filme em celul6ide. 0 pr6prio Lumiere teatara, em principio, empregar filme de papel.

E s6 consideramos aQui a forma defmiliva e completa do cinema fotografico. A sintese de movimentos elementares cientifi­camente estudados pela primeira vez por Plateau nao tinha a menor necessidade do desenvolvimento industrial e econ6mico do sttulo X1X. Como observa acertadamente Sadoul, desde a anti­guidade nada se opunha a realiz.a~10 do phenakistic6pio ou do zootr6pio. E claro Que sAo os trabalhos de urn autentico erudito, Plateau, que estAo na origem das mulliplas inven~Oes mecinicas

\ o MITO 00 CINEMA TOTAL 29

Que permitiram 0 uso popular de sua descoberta. Mas se.~ra 0 cinema fotogJ:afico .• t~mo~ .mo.ti:vos para marmos admiradoL co)Jl o lifo de a descoberta preceder de . ~..as...cond.i~Oes iCs:­rucarlndispensaveis para sua rea1iza~ao, s~ria 'preciso explicar, em- OOfttrapartida, que, com todas as condi~Oes ja reunidas ha muito tempo (a persistencia retiniana era urn fen6meno conheddo de longa data), a invencAo tenha !evado tanto tempo para surgir. Convem notar que, sem QU Quer reia~10 cientificamente necessa-ria , os trabalhos de Plateau sAo quase comemporAneos aos de Nicephore Niepce, como se a aten~o dos pesquisadores tivesse ~ Y esperado, durante sCeulos, para se interessar pela sintese do movi- ' mento Que a quimica - independente da 6tica - se interessasse, por seu lado. pela fixa~Ao automatica da imagem .3 Insisto em Que tal coincidencia hist6rica na.o parece poder de modo algum ser explicada pela evolu~o dentlfica econ6mica ou indusl rial . 0 cinema fOlogrMico poderia perfeitamente ter se intrometido num phenakistisc6pio imaginado desde 0 sCeulo XVI. 0 atraso na inven~o deste e lAo perturbador quanlo a exislencia dos precurso-res daquele.

Mas. se examinarmos minuciosamente os trabalhos e 0 sentido da pesquisa deles. tal como transparece nos pr6prios aparelhos e, ainda mais indiscutivelmente, DOS escritos e comentarios que os acompanham, constatamos que esses precursores eram antes de tudo profetas. Queimando etapas, sendo Que a primeira delas ja era para eles materialmenle intransponivei, a maioria deles vai visar diretamente ao mais alto. A imagina~Ao deles identifica a ideia cinematografica com uma represenlac;10 total e integral da realidade; ela tern em vista, de saida, ;u.estit.~a.o_de_Jlma...iiUiAo 4-~Ad&-6:teriol, com-o-som, a cof""e-o-relevo. ...J

Quanto a esse ultimo. urn historiador do cinema, P. Potoniee, pode inclusive sustentar que "na.o foi a descoberta de fOlografia e sim a da estereoscopia (introduzida no comercio pouco antes das primeiras experi!ncias da fotografia animada, em 18SI) que abriu os olhos dos pesQuisadores. Percebendo os personagens im6-veis no espaco, os fot6grafos se deram conla de que Ihes faltava movimento para ser a imagem da vida e a c6pia fiel da nature­za". De qualquer forma, quase todos os inventores procuram unir 0 som e 0 relevo a animacllo da imagem. Seja Edison, cujo Kinetosc6pio indjvidual devia ser acoplado a urn fon6grafo com caixas acusticas, ou Demeny e seus retratos falanles. ou ate mesmo Nadar que, pouco tempo antes de realizar a primeira reportagern fotografica sobre Chevreul. escrevia: "Meu sonho ever a fotogra-

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30 ANDRE BAZIN

fia registrar atitudes e mudan~as de fisionomia de urn orador a medida que 0 fonografo registra suas palavras" (fevereiro de 1887). A cor ainda nao e evocada porque as primeiras experien­cias de tricromia serao mais tardias. Mas E. Reynaud ja pintava ha muito tempo suas figurinhas e os primeiros filmes de Melies sao coloridos a mao. Os textos sao abundantes, mais ou menos delirantes; neles, os inventores nao evocam nada menos que 0

cinema integral, que da ilusao completa da vida e do qual ainda hoje estamos longe; conhecemos 0 trecho de L 'etre future, no qual Villiers de l'Isle-Adam, dois anos antes de Edison empreen­der suas primeiras pesquisas sobre a fotografia animada, the atri­bui esta fantastica realiza~ao: " ... a visao, carne transparente mila­grosamente fotocromada, dan~ava, em trajes de lantejoulas, uma especie de dan~a mexicana popular. Os movimentos mostravam­se com 0 proprio matiz da vida, gra~as ao procedimento de foto­grafia sucessiva que pode captar dez minutos dos movimentos sobre lentes microscopicas, refletidos em seguida por urn potente lampascopio... Subitamente uma voz homogenea e como que compassada, uma voz tola e dura se fez ouvir. A dan~arina can­tou 0 alza e 0 hole de seu fandango".

o mito guia da inven~ao do cinema e, portanto, a realiza~ao daquele que domina confusamente todas as tecnicas de reprodu­~ao medinica da realidade que apareceram no seculo XIX, da foto­grafia ao fonografo. E 0 mito do realismo integral, de uma recria­~ao do mundo a sua imagem, uma imagem sobre a qual nao pesa­ria a hipoteca da liberdade de interpreta~ao do artista, nem a irre­versibilidade do tempo. Se em sua origem 0 cinema nao teve todos os atributos do cinema total de amanha, foi, portanto, a contra­gosto e, unicamente, porque suas fadas madrinhas eram tecnica­mente impotentes para dota-Io de tais atributos, embora fosse 0

que desejassem. Se as origens de uma arte deixam transparecer algo de sua

essencia, e valido considerar os cinemas mudo e falado como as etapas de urn desenv6lvimento tecnico que realiza pouco a pouco o mito original dos pesquisadores. Compreende-se, nessa perspec­tiva, que seja absurdo considerar 0 cinema mudD como uma espe­cie de perfei~ao primitiva, da qual 0 realismo do som e da cor se afastaria cada vez mais. A primazia da imagem e historica e tecni­camente acidental, 0 saudosismo de alguns pelo mutismo da tela nao remonta 0 bastante na infancia da setima arte; os verdadeiros primitivos do cinema, aqueles que so existiram na imagina~ao de uns dez homens do seculo XIX, pens am na imita~ao integral da

o MlTO DO CINEMA TOTAL 31

natureza. Logo, todos os aperfei<,:oamentos acrescentados pelo cinema so podem, paradoxalmente, aproxima-los de suas origens. o cinema ainda nao foi inventado!

Seria, portanto, inverter, ao menos do ponto de vista psi colo­gico, a ordem concreta da causalidade, 0 fato de situar as desco­bertas cientificas ou as tecnicas industriais, que irao tomar urn lugar tao grande no desenvolvimento do cinema, no principio de sua invenr;iio. OSilue ml!nos tiveram confian~a no futuro do cinema como arte e mesmo como industria foram, precisamente, os dois industriais, Edison e Lumiere. Edison contentou-se com seu kine­toscopio individual e, se Lumiere recusou judiciosamente a Melies a venda de sua patente, foi porque provavelmente pensava ter mais lucro se ele mesmo a explorasse, mas efetivamente como urn brinquedo, dQ qual mais dia menos dia 0 publico se cansaria. Quanto aos. verdadeiros eruditos, como Marey, so serviram ao cinema incidentalmente, pois tinham outro objetivo preciso, que, quando atingido, os deixou satisfeitos. Os famlticos, os maniacos, os pioneiros desinteressados, capazes, como Bernard Palissy, de queimar seus moveis para obter alguns segundos de imagens vacilantes, nao sao nem industriais, nem eruditos, mas possessos de sua imagina~ao. Se 0 cinema nasceu, is so se deve a convergen­cia da obsessao deles; isto e, de urn mito: 0 do cinema total. Assim fica explicado tanto 0 atraso das aplica~5es oticas da persistencia retiniana por Plateau, quanto 0 constante avan<,:o da sintese do movimento sobre 0 estado das tecnicas fotograficas. Ambos estao dominados pela imagina<,:ao do seculo. E claro que encontraria­mos outros exemplos, na historia das tecnicas e das inven~5es, da convergencia das pesquisas, mas e preciso distinguir aquelas que resultam precisamente da evolu~ao cientifica e das necessida­des industriais (ou militares), daquelas que, obviamente, as prece­demo Desse modo, 0 velho mito de icaro precisou esperar 0 motor de explosao para descer do ceu platonico. Ele existia, porem, na alma de cada homem desde que contemplou 0 passaro. De certo modo, pode-se dizer a mesma coisa do mito do cinema, mas seus avatares ate 0 secul~XIX tern apenas uma longinqua rela~ao com aquele ao qual hoje em dia participamos, e que foi 0 promotor do aparecimento das artes mecanicas, caracteristicas do mundo contemporaneo.

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TlJbu, de Fri«irkh Murnau. Do pudor i Ira~ia.

renovado pelos novos meios de comunicac;:Ao. e que se poderia chamar de 0 eXOlismo do inslanlineo. cocontrava. provavelmeme, sua expressAo mais lipica num filme de mOntagens do inicio do cinema (alado, em Que a terra inteira era lanc;:ada oa tela num que­bra..a~ de imagens visuais e sonaTas, urn dos primeiros exilos da nova arle: Me/odie der Well, de Walter Ruumann .

Dcpois. e apesar das exc:~Oes ainda imponantes, com~a a decadencia do filme ex6tico, caracterizada por uma busea cada vez mais descarada do espel8cular e 0 sensacional. Ja nao basta cac;:ar 0 lelo, se ele nllo come as carregadores. Em L 'Afrique vous porle, urn negro era devorado por urn crocodilo; em Trader horn, Dutro era atacado por urn rinoceronte (acho que dessa Vel a perse­guic;:Ao foi urn truque, mas a inten~!o era a mesma). Desse modo se criava 0 milO da Africa povoada de selvagens e de bichos fero­zes. Isso acabaria em TOf1,an e As minas do rei Sa/ambo.

• • • Assistimos, desde 0 fim da guerra, a urn retorno evidente A

autenticidade documenlAria. TeDdo sido 0 cicio do exotismo con-

o CINEMA E A EXPLORACAo " c1uido pelo absurdo, 0 publico exige hoje acreditar no que ve, e sua cODfiam;a e controlada pelos outros meios de informa~!o de que dispOe - 0 n\dio, 0 livro, a imprensa. 0 renascimento do "ci­nema de 10nga travessia" se deve, essencialmenle, aliAs, A recente renovac!o da explora~ao. cuja mlSlica poderia certamente consti­tuir a variante do exotismo nosso p6s-guerra (conforme Elerno llu­mol. E esse novo ponto de partida que da aos filmes de viagem contemporaneos seu estil0 e orienta~ao. Eles se deixam innuenciar, antes de tudo, pelo carater da explora~lo moderna, que pretende quase sempre ser cientlfico e etnografico. Se 0 sensacional nlo e, por principio, eliminado, fica, pelo menos, subordinado a ioten­~lo objetivamente documeotaria do empr((:ndimento. 0 resultado e que ele fica reduzido a quase nada, pois raramente. como vere­mos, a camera pode ser testemunha dos momentos mais perigosos de uma expedi~lo. Em compensa~ao, 0 elemento psicol6gico e humano passa para 0 primeiro plano, seja em relac!o aos pr6prios autores, cujo comportamento e rea~Oc:s ante a tarefa a ser reali­zada coostituem uma especie de etnografia do explorador, uma psicologia experimental da aventura, seja em relac;lo aos povos avizinhados e estudados, que finalmente nao sao mais tratados como uma variedade de animais ex6ticos, havendo. ao contrArio. urn esfor~o de melhorar a descri~llo para compr((:nde-Ios.

Oai 0 filme nao ser mais 0 unico, e sem duvida sequer 0 prin­cipal documento que lraz para 0 publico as realidades da expedi­c!o. Hoje em dia ele e quase sempre acompanhado de urn Iivro ou de uma serie de cooferencias com proj~Oes. Da sala Pleyel e QUase em toda pane Da Franca. sem falar das emissOes de radio e de televisao. E isso pela justa razlo, fora as ec<>nOmicas, que ele DAo pode, com efeito. dar conta dos objetivos da explora~lo, ~nem tampouco de seus principais aspectos materiais. Alias, 0 filme e antes concebido como uma conferencia ilustrada, na qual a pre­sen~a e a fala do coDferencista-testemunha completa e autentifica perpctuamente a imagem.

• • • Darernos, antes de tudo, urn exemplo, As avessas, deua evolu­

~Ao, que prova suficieDlemente a morte do docurnentArio reconsti­luldo. E urn filme ingles em tecnicolor, intitulado Epopiia tr6gica, que relata a expedi~llo do capitAo Scott em 1911 e 1912, precisa­mente a do L 'eterne/ silence. Lembremos 0 carAter her6ico e emo­cionante do empreendimento: Scott partiu para a conquista do P610 Sui com urn equipamento revolucionario na ~a. mas ainda

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experimental; alguns carros movidos por lagarta, poneis e cachor­ros. A aparelhagem mecanica e a primeira a trai-Ios; foi preciso abater pouco a pouco os poneis; quanto aos cachorros, eles ja nao eram suficientes para as necessidades da expedir;ao; os cinco homens, que deveriam ir do ultimo acampamento de base ao Polo, puxavam eles proprios seus trenos com 0 material: quase dois mil quilometros de ida e volta. Entretanto, eles alcanr;aram seu obje­tivo, mas foi para encontrar hL .. a bandeira norueguesa, fincada ha poucas horas por Amundsen. A volta foi uma longa agonia, os tres ultimos sobreviventes morreram de frio em suas tendas por falta de querosene para alimentar os candeeiros. Foram encontra­dos alguns meses mais tarde por seus companheiros do acampa­mento de base da costa, que puderam reconstituir toda a odisseia grar;as ao diario de viagem escrito pelo chefe e as placas fotografi­cas impressionadas.

A expedir;ao do capitao Scott marca talvez a primeira tenta­tiva - infeliz - de aventura cientifica moderna. Scott fracassou onde Amundsen teve exito, por desejar abandonar as tecnicas tra­dicionais e empiricas da viagem polar. Seus infelizes carros movi­dos por lagarta sao, no entanto, os ancestrais dos Weasels, de Paul-Emile Victor e de Liotard. Ela tambem ilustra, pela primeira vez, uma pratica corrente hoje em dia: a reportagem cinematogra­fica organicamente prevista na expedir;ao, ja que 0 operador H. G. Ponting trouxe dela 0 primeiro filme de explorar;ao polar (ele ficou, alias, com as mads congeladas quando, sem luvas e com 0

termometro marcando 30 graus negativos, recarregava seu apare­Iho). E claro que Ponting nao seguiu Scott em sua longa cami­nhada para 0 Polo, mas trouxe, com L 'eterne/ silence, urn teste­munho emocionante da viagem de barco, dos preparativos e da vida do acampamento de base, e do tragico final da expedir;ao, que permanece 0 arquetipo do genero.

Pode-se compreender que a Inglaterra tenha orgulho do capi­tao Scott e queira prestar-Ihe homenagem. No entanto, acho que nao vi quase nenhum outro empreendimento tao chato e tao absurdo quanto a Epopeia tragica. 0 filme deve ter custado quase tao caro quanto a expedir;ao polar, de tanto luxo e cuidado que se teve com sua realizar;ao. Levando em conta a data da filmagem (1947-48), ele e tam bern uma obra-prima em tecnicolor. Todas as maquetes em estudio constituem uma proeza de truques e imita­r;oes. E para que? Para imitar 0 inimitavel, reconstituir aquilo que por essencia so ocorre uma vez: 0 risco, a aventura, a morte. Obviamente 0 tratamento dado ao "roteiro" nao melhora muito

o CINEMA E A EXPLORM;Ao 37

as coisas. A vida e a morte de Scott sao contadas da maneira mais academica. Sem falar da moral da historia, que nao passa de uma moral de escoteiro elevada a dignidade de instituir;ao nacional. 0 verdadeiro principio do fracasso do filme nao e esse, mas seu anacronismo tecnico. Esse anacronismo tern duas causas.

Em primeiro lugar, a competencia cientifica do homem da rua em materia de expedir;ao polar. Competencia criada pelas reporta­gens na imprensa, no radio, na televisao, no cinema ... Em relar;ao aos conhecimentos do espectador medio, 0 filme corresponde ao certificado de estudos elementares. Situar;ao constrangedora quando se pretende ser educativo. E claro que a expedir;ao de Scott ainda estava bern proxima da explorar;ao, a ciencia so fazia ali uma timida tentativa que se revelou alias desastrosa. E era justamente por isso que os autores deveriam ter tido a preocupacao de expli­car mais 0 contexto psicologico da aventura. Ao espectador que foi ver no cinema em frente Groen/and, de Marcel Ichac e Langue­pin, Scott parecera urn imbecil obstinado. E claro que Charles Frend, 0 diretor, se- esforr;ou em algumas cenas, extremamente dida­ticas alias, para dar conta das condicoes sociais, morais e tecnicas d~_genese da expedir;ao, mas ele 0 fez apenas em relar;ao a Ingla­terra de 1910, quando era preciso, por urn artificio qualquer de roteiro, comparar com nossa epoca, pois e a essa que, inconscien­temente, 0 espectador vai se referir.

Em segundo lugar, e principalmente, a generalizar;ao do cinema de reportagem objetiva des de 0 final da guerra, que retificou de maneira decisiva 0 que esperamos da reportagem. 0 exotismo, com todas suas sedur;oes espetaculares e romanticas, da lugar ao gosto da relacao despojada do fato pelo fato.

a filme que H. G. Ponting rodou durante a viagem e 0 ances­tral a urn so tempo de Kon-Tiki e de Groenland, das insuficien­cias do primeiro mas tam bern da vontade de reportagem exaustiva do segundo. A unica fotografia de Scott e de seus quatro compa­nheiros no Polo Sul, encontrada na bagagem deles, e por si so muito mais apaixonante que 0 filme a cores de Charles Frend.

Avaliamos melhor ainda a vaidade de seu empreendimento quando sabemos que 0 filme foi rodado nas geleiras da Noruega e da Suica. So a ideia de que a paisagem, sem duvida alguma pare­cida, nao pertence real mente a Antartica ja bastaria para despro­ver a imagem de qualquer potencial dramatico. Seu eu fosse Char­les Frend, eu teria pelo menos dado urn jeito de inventar algum pretexto para mostrar algumas imagens do filme de Ponting. Era

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urn problema de roteiro. Em rela~ao a essa realidade bruta, obje­tiva, 0 filme talvez encontrasse 0 sentido daquilo de que ele nao pode em momenta algum se gabar.

* * *

o filme que Marcel Ichac e Languepin trouxeram da GroenHln­dia pode ser considerado, em compensa~ao, como uma das duas formas extremas que a reportagem de viagem moderna tomou, da qual L 'elernel silence e 0 ancestral. A expedi~ao Paul-Emile Victor, cuidadosamente preparada, corria sem duvida alguns ris­cos, mas 0 minimo possivel de imprevistos. 0 servi~o cinematogni­fico era integrado a ela como uma especialidade suplementar. A decupagem poderia ate mesmo ter sido escrita desde 0 inicio, como 0 program a cotidiano da equipe. 0 cineasta, em todo caso, tinha toda a liberdade com seus meios, ele era a testemunha of i­cial como 0 meteorologista ou 0 geologo.

Ao contnirio dessa integra~ao do filme de expedi~ao, 0 filme de Tor Heyerdahl nos oferece 0 exemplo de outro tipo de report a­gem: !1JzveJl!J:lJiJ de 4on: TjJsi e 0 mais belo filme, mas ele nao existe! Como ruinas, cujas poucas pedras gastas bastam para reer­guer as arquiteturas e as esculturas desaparecidas, as imagens que nos sao propostas constituem 0 vestigio de uma obra virtual com a qual mal ousamos sonhar.

Eu me explico. E conhecida a aventura extraordimiria de alguns jovens eruditos noruegueses e suecos decididos a provar que, contrariamente as hipoteses cientificas geralmente admitidas, o povoamento da Polinesia podia ter sido feito por migra~oes maritimas do leste ao oeste, isto e, a partir da costa do Peru. 0 melhor meio de acabar com as obje~oes era recome~ar a opera~ao nas mesmas condi~oes em que, ha milenios, elas tinham podido se produzir. Nossos navegadores de improviso construiram uma especie de jangada conforme os documentos mais antigos a que se podia ter acesso sobre as tecnicas indigenas. Incapaz de ser diri­gida por seus proprios meios, a jangada indo a esmo como urn destro~o, deveria ser levada pela corrente maritima e pelos ventos alisios ate os atois polinesios, a uns 7000 quilometros de la. Que essa espantosa expedi~ao tenha sido totalmente bem-sucedida depois de mais de tres meses de navega~ao solitaria e apesar de umas 12 tempestades, e seguramente uma constata~ao bern recon­fortante para 0 espirito e que entra para as fa~anhas de urn mara­vilhoso moderno. Evocamos Melville e Conrad. Da aventura, nos­sos viajantes trouxeram urn livro comovente e desenhos muito bern

o CINEMA E A EXPLORA\=AO 39

humorados. Mas e evidente que, em 1952, a unica testemunha a altura do empreendimento so podia ser cinematografica. E ai que

" entra a reflexao do critico. Nossos jovens tinham uma camera. Mas eram amadores.

Sabiam usa-Ia mais ou menos como eu e voce. Visivelmente nao tinham, alias, previsto 0 uso comercial do filme, como detalhes

, desastrosos 0 provam; filmaram tudo com a velocidade do cinema -< mudo, isto e, 16 quadros por segundo, quando a proje~ao sonora

impoe 24 quadros. Resultado: foi preciso reduplicar as imagens, IC 0 filme pula mais que uma pes sima proje~ao de provincia por

)', .. volta de 1910. Acrescentem a isso os erros de exposi~ao e sobre­tudo a amplia~ao para 35 mm, que na~ melhora em nada a quali­

r ~ade da fotografia. I

'L E isso nao e 0 mais grave. Como 0 objetivo do empreendi-mento nao era de modo algum, sequer como acessorio, fazer urn filme da expedi~ao, as condi~oes de filmagem eram as piores pos­siveis. Quero dizer que a camera praticamente nao podia distin­guir-se do operador ocasional confinado num extremo da janga­da, ao nivel da agua. Nada de travellings, naturalmente, nada de plonges, apenas a possibilidade de fazer pianos de conjunto do "navio" a partir de uma boia sacudidapelas.ondas.. Finalmente ~retudo, quando acontecia alguma coisa importante (uma tem­pestade, por exemplo), a equipe tinha mais 0 que fazer em vez de filmar. De modo que nossos amadores desperdi~aram visivel­mente grande numero de bobinas filmando 0 papagaio fetiche e as ra~oes alimentares da Intendencia americana, mas quando uma baleia se precipita acid ental mente sobre a jangada, a imagem e tao breve que e preciso reduplica-Ia dez vezes na mesa de trucagem para que se tenha tempo de percebe-Ia.

E no entanto ... Kon-Tiki e admiravel e comovente. Por que? Porque sua realiza~ao se identifica totalmente com a a~ao que ele relata com tanta imperfei~ao; porque ele nao e senao urn aspecto da aventura! As imagens nebulosas e tremidas sao como a memo­ria objetiva dos atores do drama. 0 tubarao-baleia vislumbrado nos reflexos da agua nos interessa pel a raridade do animal e do espetaculo - mas malo distinguimos! - ou, antes, por que a imagem foi feita ao mesmo tempo em que urn capricho do mons­tro podia aniquilar 0 navio e atirar a dlmera e 0 operador a 7000 ou 8000 metros de profundidade? A resposta e faci!: nao e tanto a fotografia do tubarao, mas antes a do perigo.

Resta que, contudo, mesmo admirando essas ruinas antecipa­das de urn filme que nao foi rodado, nos nao poderiamos nos satis-

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A o~ellluro de KOII-Tiki. fFOIa 11.11: 0.)

fazer com elas. lmaginemos. por exemplo, 0 esplendor fotognlfico dos filmes de Flaherty (pensem no lubarilo-martelo de Man of Aran cochilando nas aguas da Irlanda). Mas urn pouco de rene­Kilo nos mete numa enrascada. Com efeito, esse espetaculo s6 e tao materialmente imperfeito ja que 0 cinema n1l.0 alterou as con­di~Oes da experiencia que ele relata. Para filmar em 35 mm com os recuos necessarios a uma decupagem coerente, teria side pre­elsa construi r outro lipo de jangada e, por que nilo, fazer urn barco como as outros. Ora, a fauna do Pacifico, fervilhante em

o CINEMA E A EXPLORA<;AO 41

volta da jangada, 56 estava ali justamente porque ela linha as qua­lidades de urn destrO(:o: motor e helice a teriam espantado. 0 para­ISO maritimo teria side imediatamente abolido pela ciencia.

De fato, esse genero de filme 56 parle ser urn compromisso mais ou menos eficaz entre as exigencias da a~ilo e as da reporta­gem. 0 testemunho cinematogrMico e 0 que 0 homem pode arran­car do acontecimento que, ao mesmo tempo, requeria sua partici­paCilo. Mas esses destro~os salvos da tempestade silo incomparavel­mente mais emocionantes que 0 relato sem falhas e sem lacunas da reportagem organizada_ Pois 0 filme nilo e constituido apenas por aquilo que vemos. Suas imperfei~Oes atestam sua autenticidade, os documentos que faltam sil.o 0 cunho negativo da aventura, sua inscri~il.o entalhada.

E claro que faltam muitas imagens ao Annapurna. de Marcel !chac, e particularmente aquelas pelas quais ele deveria culminar: a ascensil.o terminal de Herzog. de Lachenal e de Lionel Terray. Sabemos, porem, por Que elas estil.o ausentes: uma avalanche arrancou a ca.mera das milos de Herzog, levando tambem suas luvas. 0 filme abandona, portanto, os tres homens na hora da partida do acampamento II, embrenhando-se no nevoeiro. para s6 encontra-los 36 horas mais tarde, saindo da cerra~a.o . cegos e com as membros congelados. Dessa subida aos infernos de gelo , o Orfeu modemo nAo pode salvar sequer 0 olhar de sua camera. Com~a entAo 0 10DgO calvario da descida, Herzog e Lachenal amarrados como duas mumias nas costas de seus Sherpas, e desta vez 0 cinema ali esta. veu de VerOnica sabre 0 rosto do sofrimento humano.

o relata de Herzog e sem duvida incomparavelmente mais pre­ciso e mais completo. A mem6ria e 0 mais fiel dos filmes, 0 unico que podemos impressionar em qualquer altitude e au! a morte exc1usivamente. Mas quem nilo ve a diferen~a entre a lembran~a e essa imagem objet iva que a eterniza concrelamente!

NOTA

I . Sinlese de dois arti&05 publicadO!l no F"ro/lCr-Obstrvottur, em abril de 19S) e janeiro de 1954.

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IV o MUNDO DO SILENCIO'

Ha seguramente urn aspecto derris6rio na critica de 0 !nunda do silencio. Pois. afinal, as belezas do filme slio antes de tudo as da natureza e critica-Io seria 0 mesmo, portama, que criticar Deus. No maximo. desse ponto de vista, nos e permilido indicar Que tais belezas silo, com efeila, inefaveis e constituem a maior revelacllo ji feita por nosso pequeno planeta aD homem desde as tempos her6icos da exploraclo terreslre. Podemos tambem obser­vat que pelo mesmo motivo as filmes submarinos sao a (mica novi­dade radical no documenlario desde as grandes filrnes de viagem dos anos 20 e 30. Mais precisamenle uma das duas novidades; a segunda senda constitulda pela conce~o modema dos filmes sobre a artt; porem, tal novidade se deve a forma, enquanto a dos filmes submarinos pertence, se ouso dizer, ao fundo. Urn fundo que nos e pr6ximo.

Nlo penso, contudo, que 0 interesse fascinante desses docu­mentarios proceda apenas do carater inedito de sua descoberta e da riqueza das formas e cores. A surpresa e 0 pitoresco sao, por certo. a materia de nosso prazer, mas a beleza das imagens advem de urn magnetismo bern mais poderoso. que polariza toda nossa consciencia: e que sao a realiza~lo de toda uma mitologia da agua, cuja execu~o material por esses super-homens subaquAticos encon­Ira em n6s mesmos secrelas, profundas e imemoriais conivencias.

NAo tentarei sequer es~ar sua descri~o ou analise. Indica­rei apenas que nAo se trata do simbolismo ligado a 'gua superfi­cial, m6vel , nuente, lustral. mas antes do oceano. da agua consi­derada como outra metade do universo, meio de (res dimensOes. mais estavel e homogeneo alias que 0 aereo. e cujo envolvimento nos libera da gravidade. Tal Libera~o dos la~os terrestres estA sim-

o MUNDO DO SIL£NC IQ "

o mundo do s"~ftCjo, de J.cqUQ'Vv~ CU!>lCllU c Louis Malle.

bolizada tanto no fundo pelos peixes quanto pelos passaros, mas, tradicionalmente, e por razOes evidentes, 0 sonho do homem quast 56 se manifestava no ceu seco, solar. aereo. 0 mar cintilante de luz nAo era para 0 pacta mediterrlneo2 senlo urn lelhado tranqililo por onde caminham pombas. aquele das velas e nlo das focas.l

Stria final mente a ciencia, mais forte que nossa imagina~o, que iria, revelando ao homem sua virtualidade de peixe, realizar o velho milo do voo. muito mais satisfeito pelo escafandrista autO­nomo do que pe10 mecanismo barulhento e coletivo do avilo. tao sem gra~a Quanto urn submarino, tAo perigoso quanto urn escafan­dro de cabo e capacele. No admirAvel quadro de Bruegel, fcaro caindo na Agua na indiferen~a agresle prefigura CouSleau e seus companheiros mergulhando ao longo de falesias medilerrlneas, ignorados pelo campones que ara seu campo tomando-os por banhistas.

Baslava, antes de ludo, liberar-se dessa gravidade as avessas que e 0 principio de Arquimedes. e entlO acomodar-se, alraves do modificador de pressao, a profundidade para se encontrar nAo mais na situa~lo fugaz e arriscada do mergulhador. mas na sirua­~Io de Netuno, senhor e habitante das aguas. 0 homem voava enfim com seus pr6prios bra~$l

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.. ANDRI:: BAZIN

Mas enquanto 0 azul de cima e quase vazio e estcril, aberto apenas no infinito para a luz. das estfelas au para a .arid~z dos aslTOS mort OS, 0 espal;O de baixo e 0 da vida. oode rnlstenosas e invisiveis nebulosas de pllnnoR renetern 0 eco do radar. Dessa vida nlio somos mais Que urn grao abandonado entre outros na praia ocdnica. Dizem as bi61ogos que 0 homem e urn anima1

1 marinho que carrega seu mar em seu interior. Nada de espanloso, portanlO, que 0 mergulho Ihe de tami>em, provavelmente, 0 vago sentimento de volta as origens.

Diriam que estOll delirando. Gostaria Que dessem autras expli· ca~Oes as minhas sugestOes. mas nllo hA duvid.a de Que a bel,eza do mundo submarinho nao se reduz a sua vanedade decorauva, nem lampouCQ as surpresas que ele nos reserva. Foi a inteli¥en~ia de Cousteau e de sua equipe que compre:e:ndeu, desde 0 miclo, Que a ~iea da explora~Ao submarina ~~.l_~_J~~ferirem, ~ poe:Sla, era parte integrante do aconte:cimento e que, gerada pela ciencia ela sO se rnOs(rava a ele atrave5"(fa a(riiiir~......QJfus.Writo ¥human~. Um dia vir! provavelmenle em Que oos tornaremos insen¥ siveis a esse amontoado de imagens de:sconhe:cidas. Ainda que 0 bali~ro nos prome:ta muitas descobertas. Aur nosso. EnQuanto iS50. vamos aproveitar.

• • • NAo de deduzir dessas afirmacOes por demais gerais que 0

mundo do sillndo e belo a priori e que os realizadores sO tenham o merito de ter ida debaixo d'agua busear as imagens. A Quali­dade do IiIme deve muito a inteligencia da realiza~Ao de Louis Malle. Ela nos da um born exemplo dos artificios autorizados no documeotario e a comparac;a.o com Q Co!!.!..'ne!!!e ~os ~eus~ e sig¥

}

nificaliva. Ouvi queixas de que certas sequenclas Imphcavam_ numa mISe-en-sane invislvel_ Notadamente,.a p~etensa exploraC;Ao

o navio naufragado por urn nadador sobtano. Que supOe, de rato n~nas a presen~a de vArias cAmer~ como lambem.. uma verdadeira de:cupagelTU'm estUdio.

Oe:vo dizer que esse genero de cena nAo e 0 melhor do IiIme, pois e por demais propositalmente poetico. M~ ~sa e uma cri~ica de fundo_ Quanto a forma, e perreltamente leglUma. Com delta. a re:constituic;Ao e admissivel sob duas condi~Oes: 1) que nAo se procure enganar 0 espectador; 2) que a natureza do aconte:cimento nAo seja contraditoria com sua reconstiluiC;Ao. Assim. em 0 Con­rin~fII~ dos d~a. procuram......collSlantememe....iazer com que q ­qu~amos a presen~a da equipe de cinegrafistas enos apresentam

1 I o MUNoo 00 SIL£NCIO

. .. Auim. em 0 rolllint!:IIIt!: dlW dtwn, procuram futl' com qut!: esqu~mO$ • Pf~ do cineul .... MO$lr.r r:m prirnciro pllnO urn "setv.&r:m" conl­~ de c:a~ irnplka ror~enle que 0 indivlduo nlo t urn selvl&em, J' Qut!: nlo COfIOU I CI~ do oper.dor.

como sinceras e natura.ls.situas:Oes que nAo poderiam ~_I~j~ foram reconstituidas. Mostrar em primeiro plano um "selvaaem" cortador de ca~ vigiando a ehegada dos brancos impliea forca­samente que 0 indivlduo nilo e urn selvagem. ja que nl0 cortou a cabe:(;a do operador.

Em contrapanida. e perfeitamente permitido re:conSlituir a descoberta de urn navio naufragado pois 0 aeonte:cimento se pro· duziu e se reproduzira, e sO urn minima de m~n-sdn~ permite fazer eompre:e:nder e sugerir as em~Oes do explorador. No mAximo pode-se exigir do cineasta que ele nAo procure ocultar a manobra. Mas nlo poderiamos criticar Costeau e Malle, que varias vezes ao 100go do filme nos mOSlram seu material e sAo fdmados rodando eenas. Basta, portanto, renetir um poueo para nlo se deixar enga­nar mais do que 0 prazer 0 exige_

Admito. portanto, por razOes ja ditas. que essas seqfi~ncias iocomodem. 0 que me parece, com efeito, a melhor parte do ntme e a organizac;Ao a post~riori dos acontecimentos imprevistos. a tim

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de apresenta-los clara e logicamente sem prejudicar sua autentici­dade. Desse ponto de vista, 0 melhor momenta e constituido pela sequencia inteira das baleias e, sobretudo, a morte do filhote ferido pela helice e logo devorado pelos tubaroes. Os cineastas nunca perdem 0 controle do acontecimento, mas ao mesmo tempo sua grandeza e maior do que eles e a poesia das imagens e mais forte e mais rica em interpreta~ao do que a que eles podem the atribuir.

Ha urn momento grandioso quando, depois de ter avizinhado os cachalotes e procurado com bast ante crueldade 0 contato que iria provocar dois acidentes na manada, sentimos que pouco a pouco os homens se tornam solidarios do sofrimento dos mamife­ros feridos contra 0 tubarao que, afinal de contas, e apenas urn peixe.

No fundo, 0 problema desse tipo de documentario e duplo. Ele se reduz a uma questao de tecnica e a urn problema de moral. Trata-se a urn so tempo de trapacear para ver melhor, e todavia nao enganam 0 espectador. Kon- Tiki era urn filme sublime, mas nao existia por razOes obvias. A "Calypso", porem, nao e uma jan­gada. Perfurada de vigias sob a linha de flutua~ao, equipada com urn quarto de roda de proa, ela se aparentava mais com 0 "Nauti­lus"; aproximando-se do ideal que consiste em dispor de urn lugar de observa~ao exaustiva que nao modi fica 0 aspecto e a significa­~ao do objeto observado.

NOTAS

I. Franee-Observateur, mar~o de 1956.

2. Alusao a Paul Valery. (N.T.) 3. Trocadilho com foes (velas) e phoques (focas). (N .T.)

V M. HULOT E 0 TEMPOl

E urn lugar-comum constatar a pouca genialidade do cinema camico frances. Pelo menos trinta anos. Pois convem lembrar que foi na Fran~a que surgiu, desde os primordios do seculo, a escola ~rlesca que faria de Max Linder seu heroi por excelencia, e cuja formula foi retomada em Hollywood, por Mack Sennett. Ali, ela se desenvolve de maneira ainda mais prospera, pois permitiu a forma~ao de atores como Harold Lloyd, Harry Langdon, Buster Keaton, Laurel e Hardy (0 Gordo e 0 Magro) e, sobretudo, de Charles Chaplin. E sabido, porem, que Chaplin reconheceu Max Linder como seu mestre. Entretanto, 0 burlesco frances, com exce­Gao dos ultimos filmes de Max Linder realizados em Hollywood, praticamente nao foi alem de 1914, abafado em seguida pelo sucesso esmagador - e justificado - do cinema camico ameri­cano. Desde 0 cinema falado, mesmo sem contar com Chaplin, Hollywood manteve-se senhor absoluto do cinema camico: em prin­cipio na tradi~ao burlesca, regenerado e enriquecido com os W. C. Fields, os irmaos Marx e ate mesmo, em segundo plano, com o Gordo e 0 Magro, enquanto aparecia urn novo genero aparen­tado com 0 teatro: "a comedia americana".

Na Fran~a, ao contrario, a fala s6 serviu para uma desastrosa tentativa de adapta~ao do vaudeville dos bulevares. Quando nos perguntamos 0 que sobressai na ordem do camico desde os anos 30, vemos tao-somente dois atores, Raimu e Fernandel. Coisa curiosa, porem, esses dois monstros sagrados do riso quase que so interpretaram filmes ruins. Se nao tivesse havido Pagnol e os quatro ou cinco filmes validos que the devemos, nao poderiamos citar uma unica fita digna de seus dons (com exce~ao, em ultimo caso, do curioso e desconhecido Valente a muque, de Christian

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Jaque, e acrescentemos, de quebra, a amavel mas superficial cria-9ao de Noel-Noel. E significativo que depois do fracasso de 0 Ultimo Milionario, em 1934, Rene Clair tenha trocado os estudios franceses pelos da Inglaterra, e depois por Hollywood. Vemos, portanto, que 0 que faltava ao cinema frances nao era sequer os autores bern dotados, mas urn estilo, uma concep9ao comica.

Foi intencionalmente que deixei de mencionar 0 unico esfor90 original para tentar regenerar a tradi9ao burlesca francesa; refiro­me aos irmaos Prevert. Alguns pretendem ver em L 'affaire est dans Ie sac, Adieu Leonard e Le voyage surprise urn renascimento do cinema comico. Seriam, segundo eies, obras geniais e incompre­endidas. Como 0 publico que as vaiou, nao consigo me convencer disso. Tentativa interessante, e claro, mas fadada ao fracasso por seu intelectualismo. Para os Prevert, a gag e uma ideia cuja visua­liza9ao vern sempre posteriori, de modo que so e engra9ada apos uma opera~ao mental, da gag visual a sua inten~ao intelectual. E o processo das historias sem palavras e e por isso que urn dos nos­sos melhores chargistas, Maurice Henry, nunca conseguiu impor­se como gagman. A essa estrutura intelectual demais da gag, que suscita 0 riso apenas por tabela, e preciso acrescentar 0 carater urn pouco aflitivo do humor que requer do espectador uma cum­plicidade injustificada. 0 comico cinematografico (como sem duvida 0 teatral) nao pode funcionar sem uma certa generosidade comunicativa; a private joke nao tern nada a ver com ele. So urn filme que procede do humor prevertiano ultrapassa a veleidade para se aproximar do exito: e Familia ex6tica, mas existem nele outras referencias, e Marcel Carne lembrou-se com presteza da Opera dos pobres e inspirou-se no humor ingles.

Sobre esse pobre pano de fundo historico, Carrossel da espe­ram;a surgiu como urn exito inesperado e excepcional. A historia desse filme realizado as pressas, baratissimo e que nenhum distri­buidor queria, e conhecida. Foi 0 best-seller do ana e teve urn lucro dez vezes maior que seu pre~o de custo.

Tati ficou logo famoso. Mas havia duvidas se 0 exito de Car­rossel da esperam;a nao esgotava 0 genio de seu aut or . Os acha­dos eram sensacionais, urn comico original, embora reencontrasse precisamente 0 melhor veio do cinema burlesco; mas, por urn lado, diziam que se Tati fosse mesmo genial ele nao teria vegetado 20 anos nos music-halls, e por outro, a propria originalidade do filme fazia recear que seu autor nao a pudesse manter uma segunda vez. Veri amos provavelmente outras aventuras do popular carteiro e a volta de Don Camillo, que so serviriam para lastimar que Tati tivesse sido esperto 0 bastante para parar ali.

M. HULOT E 0 TEMPO 49

Ora, Tati nao apenas nao explorou 0 personagem que tinha criado e cuja popularidade era uma mina de ouro, mas demorou quatro anos para nos apresentar seu segundo filme, que longe de perder com a compara~ao, relega Carrossel da esperam;a ao estado de rascunho elementar. A importancia de As jerias do sr. Hulot nao poderia ser superestimada. Trata-se nao apenas da obra comica mais import ante do cinema mundial desde os irmaos Marx e W. C. Fields, mas tambem de urn acontecimento na historia do cinema falado.

Como todos os grandes comicos, antes de nos fazer rir, Tati cria urn universo. Urn mundo se ordena a partir de seu persona­gem, cristaliza com a solu~ao supersaturada em torno do grao de sal que e ali jogado. E claro que 0 personagem criado por Tati e engra9ado, mas quase que acessoriamente e, em todo caso, sem­pre relativamente ao universo. Ele pode estar pessoalmente ausente das gags mais comicas, pois M. Hulot e tao-somente a encarna~ao metafisica de uma desordem que se perpetua muito tempo depois de sua passagem.

Se, entretanto, queremos partir do personagem, vemos de saida que sua originalidade, em rela~ao a tradi~ao da commedia dell'arte que prossegue atraves do burlesco, reside numa especie de nao-acabamento. 0 heroi da commedia dell'arte represent a uma essencia comica, sua fun~ao e clara e sempre parecida com ela. 0 que e proprio a M. Hulot, ao contrario, parece ser nao ousar existir inteiramente. Ele e uma veleidade ambulante, uma discri~ao de ser! Ele eleva a timidez a altura de urn principio onto­logico! E, naturalmente, a leveza de toque de M. Hulot sobre 0

mundo sera precisamente a causa de todas as catastrofes, pois nunca se aplica conforme as regras das conveniencias e da eficacia social. M. Hulot e 0 genio da inoportunidade. Isso nao quer dizer, no entanto, que seja desastrado e desajeitado. Muito pelo contra­rio, M. Hulot e pura gra~a, e 0 Anjo estabanado, e a desordem que ele introduz e a da ternura e da liberdade. E significativo que os unicos personagens do filme, a urn so tempo graciosos e total­mente simpaticos, sao as crian~as. Isso porque sao os unicos que nao realizam urn "dever de ferias". M. Hulot nao lhes causa espanto, e urn irmao deles, sempre disponivel, que ignora, como eles, as falsas vergonhas do jogo e as primazias do prazer. Se ha apenas urn dan~arino no baile de mascaras, ele sera M. Hulot, tranqiiilamente indiferente ao vazio a seu redor. Foram guardados, sob as ordens do Comandante aposentado, urn estoque de fogos de artificio; 0 fosforo de M. Hulot ateara fogo no barril de polvora.

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so ANDR£ BAZIN

Mas 0 que seria M. Hulot sem as ferias? Imaginamos perfeita· mente uma profissao, ou pelo menos uma ocupa~Ao. para (odos os habitantes provis6rios dessa praia esquisita. Poderlamos dizer a origem dos carras e dos trens que convergem no inlcio do mme para X-suT-Mer e logo a inveslem como se (osse urn sinal miste­rioso. Mas 0 carro de M. Hulot. urn Amilcar, nAo tern idade e na verdade nAo vern de lugar algum: ele sai do Tempo. Podemos facilmente imaginar que M. Hulot desaparece durame dez meses no ano e reaparece espontaneamente em /ondu enchaine2 no dia 1'1 de julho, quando enrim as re16gios de ponto param e se forma, em cenos lugares privilegiados do litaral e do interior , urn tempo provis6rio. entre parenteses, uma dura~ao frouxamente palpitante. fechada em 5i mesma, como 0 cicio das mares. Tempo de repeli· ~o de gestos imiteis, quase im6vel, estagnado na hora da seSla. Mas tambem tempo ritual, ritmado pela liturgia va. de urn prazer convencional mais rigoroso que as horas de trabalho.

Por isso nAo poderia haver "roteiro" para M. Hulot. Uma hist6ria sup6e urn sentido, uma orientacAo do tempo indo da causa ao efeito, urn com~o e urn tim. As ferias de M. Hulot s6 podem ser, ao contrario, uma sucessa.o de acontecimentos a urn s6 tempo coerentes em sua significaca.o e dramaticamente independentes. Cada uma das aventuras e desventuras do her6i com~aria pela f6rmula: "Mais uma vez M. Hulot". Nunca, sem duvida, 0 tempo tinha side a esse ponto a materia-prima, quase 0 pr6prio objeto do filme. Bern melhor e bern mats que nos filmes experimentais que duram 0 pr6prio tempo da acllo, M. Hulot nos esclarece sobre a dimensllo temporal de nossos movimentos.

Nesse universo de ferias, os atos cronometrados ganham uma postura absurda. M. Hulot e 0 unico que nunca chega na hora em lugar nenhum, pois e 0 unico que vive a fluidez do tempo em que os outros se obstinam em restabelecer uma ordem varia: a que e ritmada peJo bater da porta de batentes do restaurante. Eles s6 conseguem adensar 0 tempo, a imagem do monte de malvavisco ainda quente eslirando lentamente no balcAo do doceiro e que atormenta tanto M. Hulot, Sisifo dessa massa de caramelo cuja queda renova perpetuamente sua iminencia.

Mais que a imagem, parem, a banda sonora da ao filme sua densidade temporal . E esse e a grande achado de Tali, a mais ori­ginal tecnicamente. Foi dito algumas vezes, sem rwo, que ela era constitulda de uma especie de magma sonoro sobre 0 quaJ flu­tuariam por momentOs trechos de frases. paJavras precisas e, por isso mesmo, mais ridiculas. Essa e a impressAo que urn ouvido

M. HULOT E 0 TEMPO "

Jacques Tali. em As Rrias do sr. Hulo, .

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52 ANDRE BAZIN

desatento pode ter. De fato, raros sao os elementos sonoros indis­tintos (como as indica<;oes do alto-falante da esta<;ao, mas ai a gag e realista). Toda a astucia de Tati, ao contnirio, consiste em destruir a clareza pela clareza. Os dililogos nao sao de modo algum incompreensiveis, mas insignificantes, e essa insignificancia e reve­lada pel a pr6pria precisao deles. Tati consegue isso sobretudo deformando as rela<;oes de intensidade entre os pIanos sonoros, chegando mesmo por vezes a conservar 0 som de uma cena no extracampo sobre urn acontecimento mudo. Em geral, seu cenario sonoro e constituido de elementos realistas: trechos de dialogos, gritos, reflexoes diversas, sendo que nenhum deles e posto rigoro­samente em situa<;ao dramatica. E em rela<;ao a esse fundo que urn ruido intempestivo ganha urn relevo absolutamente falso. Por exemplo, durante a reuniao do hotel, na qual os pensionistas leem, conversam ou jogam baralho: Hulot joga pingue-pongue e a boli­nha faz urn barulho desmedido, ela que bra esse meio-silencio como uma bola de bilhar; cada vez que ela quica, achamos que 0

barulho aumenta. Na base do filme ha urn material sonoro auten­tico, gravado efetivamente numa praia, sobre 0 qual sons artifi­ciais - nao menos precisos, alias - se superpoem, mas constante­mente defasados. Da combina<;ao desse realismo e das deforma­<;oes, nasce a irrefutavel inanidade sonora desse mundo, entretanto humano. Sem duvida, jamais 0 aspecto fisico da fala, sua anato­mia, tinha sido colocada tao impiedosamente em evidencia. Habi­tuados que somos a the atribuir urn sentido mesmo quando ela nao tern nenhum, nao tomamos dela a distancia ironica que acon­tece de tomarmos pela visao. As palavras aqui passeiam nuas com uma indecencia grotesca, despojadas da cumplicidade social que as vestia com uma dignidade ilus6ria. Acreditamos ve-Ias sair do radio como bolinhas vermelhas em fila, outras se condensar em nuvenzinhas em cima da cabe<;a das pessoas, e entao se deslocar no ar, amerce dos ventos, ate chegar debaixo do nosso nariz. Mas 0 pior e que ten ham justamente urn sentido que uma aten<;ao renitente, urn esfor<;o para eliminar, com os olhos fechados, os ruidos adventicios, acaba lhes restituindo. Acontece tam bern de Tati introduzir subrepticiamente urn som totalmente falso, sem que, misturado nesse emaranhado sonoro, pensemos em protestar. Assim, e dificil identificar, na sonoplastia dos fogos de artificio, o do bombardeio, se nao nos esfor<;armos voluntariamente. E 0

som que da densidade ao universo de M. Hulot, seu relevo moral. Perguntem de onde vern, no final do filme, essa grande tristeza, esse desencanto desmedido, e talvez descobrissem que vern do silen-

M. HULOT E 0 TEMPO 53

cio. Ao longo do filme, os gritos das crian<;as que brincam acom­panham inevitavelmente as vistas da praia, e pela primeira vez 0

silencio delas significa 0 fim das ferias. M. Hulot fica sozinho, ignorado por seus companheiros de

hotel que nao the perdoam ter estragado seus fogos de artificio; ele se volta para dois garotos, troca com eles alguns punhados de areia. Subrepticiamente, porem, alguns amigos vern se despedir dele, a velha inglesa que conta os pontos no tenis, 0 menino do senhor do telefone, 0 marido passeador ... Os que viviam e subsis­tiam ainda, em meio a essa multidao presa em suas ferias, uma pequena chama de liberdade e de poesia. A suprema delicadeza desse final sem des enlace nao e indigna do melhor Chaplin.

Como toda grande situa<;ao comica, a de As jerias do sr. Hulot e 0 result ado de uma observa<;ao cruel. Une si jolie petite plage, de Yves Allegret e Jacques Sigurd, nao passa de literatura infantil perto da de Jacques Tati. Nao parece, no entanto - e tal­vez seja a mais segura garantia de sua grandeza -, que a comici­dade de Jacques Tati seja pessimista, nao mais, pelo menos, do que a de Chaplin. Seu personagem afirma, contra a tolice do mun­do, \!ma leveza incorrigivel; ele e a prova de que 0 imprevisto sem­pre pode ocorrer e bagun<;ar a ordem dos imbecis, transformar uma camara de ar em coroa mortuaria e urn enterro em passatempo.

NOTAS

1. Esprit, 1953.

2. Fusao, efeito em que uma imagem e progressivamente substituida por outra (jading, em ingies). (N.E.)

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VI MONTAGEM PROIBIDAI

Crin blanc, 0 balao vermelho, Une fee pas comme les autres

Ja com Rim Ie petit tine Albert Lamorisse afirmara a originali­dade de sua inspira~ao. Rim e talvez, junto com Crin blanc, 0

unico filme verdadeiro para crian~a que 0 cinema ja produziu. E claro que existem outros - pouco numerosos, alias - que convem em diferentes graus a jovens espectadores. Os sovieticos fizeram urn esfor~o particular nesse campo, mas me parece que filmes como Au loin une voile se dirige antes a adolescentes. A tentativa de produ~ao especializada de J. A. Rank resultou num fracas so total, economic a e esteticamente. De fato, se quisessemos consti­tuir uma cinemateca ou urn catalogo de programas que convem a urn publico infantil, s6 poderiamos colocar nele alguns curtas­metragens, especialmente realizados com exito desigual, e alguns filmes comerciais, dentre os quais os desenhos animados - cuja inspira~ao e tema sao de uma puerilidade suficiente: em particular certos filmes de aventura. Nao se trata de uma produ~ao especi­fica mas simples mente de filmes inteligiveis por urn espectador co~ idade mental inferior a 14 anos. E sabido que muitas vezes os filmes americanos nao ultrapassam esse nivel virtual. E 0 que acontece com os desenhos animados de Walt Disney.

Bern se ve, no entanto, que tais filmes nao tern nada que possa se comparar com a verdadeira literatura infantil (pouco abundan­te, alias). Jean-Jacques Rousseau, antes dos discipulos de Freud, ja havia advertido que ela nao era de modo algum inofensiva: La Fontaine e urn moralista e a Condessa de Segur uma diab6lica av6 sadomasoquista. Ja e not6rio que os contos de Perrault encerram os simbolos mais inominaveis e devemos admitir que a argument a­~ao dos psicanalistas e dificilmente refutavel. No mais, nao e pre­ciso recorrer ao sistema deles para perceber, em Alice no pais das

MONT AGEM PROIBIDA 55

maravilhas ou nos Contos de Andersen, a profundidade deliciosa e aterrorizante que esta no principio de sua beleza. Os auto res tern urn poder de sonho que se confunde, por sua natureza e intensi­dade, com 0 da infancia. Tal universo imaginario nao tern nada de pueril. Foi a pedagogia que inventou para as crian~as as cores sem perigo, mas basta ver 0 uso que fazem delas para ficar fixado no seu verde paraiso povoado de monstros. Os autores da verda­deira literatura infantil sao apenas, portanto, acess6rios e rara­mente educativos (talvez Jules Verne seja 0 unico). Sao poet as cuja imagina~ao tern 0 priviit!gio de ter permanecido no compri­mento de onda onirico da infancia.

Por isso e sempre facil dizer que, em certo sentido, a obra deles e nefasta e s6 convem, na realidade, aos adultos. Se com isso querem dizer que ela nao e edificante, tern razao, mas e urn ponto de vista pedag6gico e nao estetico. Ao contrario, 0 fato de o adulto ter prazer em le-Ia, e talvez mais completamente que a crian~a, e urn sinal da autenticidaade e do valor da obra. 0 artista que trabalha espontaneamente para a infancia encontra segura­mente 0 universal.

* * *

o balao vermelho ja e talvez mais intelectual e por isso mesmo menos infantil. 0 simbolo aparece mais claramente em filigrana no mito. Sua associa~ao com Une fee pas comme les autres, entre­tanto, faz justamente aparecer a diferen~a entre a poesia valida para as crian~as e para os adult os e a puerilidade, que s6 poderia satisfazer os primeiros.

Mas nao e nesse terreno que desejo me situar para falar disso. Este artigo nao sera uma verdadeira critica e s6 evocarei ocasio­nalmente as qualidades artisticas que atribuo a cada uma das obras. Meu prop6sito sera novamente 0 de analisar, a partir do exemplo surpreendentemente significativo que elas of ere cern, certas leis da montagem em sua rela~ao com a expressao cinematografica e, mais essencialmente, sua ontologia estetica. Desse ponto de vista, ao contrario, a aproxima~ao de 0 balao vermelho e de Une fee pas comme les autres poderia ser premeditada. Ambos demons­tram maravilhosamente, em sentidos radical mente opostos, as vir­tudes e os limites da montagem.

Come~arei pelo filme de Jean Tourane para constatar que ele e de cabo a rabo uma extraordinaria ilustracao da famosa experi­cncia de Kulechov sobre 0 primeiro plano de Mosjukine. Sabemos que a ambi~ao de Jean Tourane e fazer ingenuamente urn Walt

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56 ANDRE BAZIN

Disney com animais verdadeiros. Ora, e evidente que os senti men­tos humanos conferidos aos animais sao (pelo menos no essencial) uma proje<;ao de nossa propria consciencia. So lemos em sua ana­tomia ou comportamento os estados de alma que mais ou menos inconscientemente lhes atribuimos, a partir de certas semelhan<;as exteriores com a anatomia ou com 0 comportamento do homem. Nao se deve, por certo, desconhecer e subestimar essa tendencia natural da mente humana, que so foi nefasta no campo cientifico. E preciso ainda observar que a ciencia mais moderna redescobre, por engenhosos meios· de investiga<;ao, uma certa verdade do antropomorfismo: a linguagem das abelhas, por exemplo, provada e interpretada comprecis~6 pelo entomologista Von Fricht, ultra­passa de longe as mais loucas analogias de urn antropomorfismo impenitente. 0 erro cientifico esta em todo caso bern mais do lado dos animais-maquinas de Descartes que dos semi-antropomorfos de Buffon. Mas, para alem desse aspecto primario, e evidente que o antropomorfismo pro cede de urn modo de conhecimento analo­gico, cuja simples critica psicologica nao poderia explicar e sequer condenar. Seu dominio estende-se, pois, da moral (as Fdbulas de La Fontaine) ao mais alto simbolismo religioso, passando por todas as zonas da magi a e da poesia.

o antropomorfismo nao e, portanto, condenavel a priori, independente do nivel em que se situa. Devemos infelizmente admi­tir que, no caso de Jean Tourane, ele e 0 mais baixo. A urn so tempo 0 mais falso cientificamente e 0 menos transposto estetica­mente, se ele se inclina, sobretudo, a indulgencia, na medida em que sua importancia quantitativa permite uma estupenda explora­<;ao das possibilidades do antropomorfismo em compara<;ao com as da montagem. 0 cinema vern, com efeito, multiplicar as inter­preta<;oes estaticas da fotografia por aquelas que surgem da apro­xima<;ao dos pIanos.

Pois e importante notar que os animais de Tourane nao sao adestrados, mas apenas domesticados, e nao realizam praticamente nada do que os vemos fazer (quando parece que 0 fazem, houve algum truque: mao fora do quadro dirigindo 0 animal ou patas falsas animadas como marionetes). Todo engenho e talento de Tourane consiste em faze-los permanecer mais ou menos imoveis na posi<;ao em que foram colocados durante a filmagem; 0 cena­rio ao redor, a fantasia, 0 comentario ja bastam para conferir a postura do animal urn sentido humano que a ilusao da montagem vern entao dar precisao e ampliar de modo tao consideravel que, por vezes, 0 cria quase que totalmente. Toda uma historia e assim

MONTAG EM PROIBIDA 57

arquitetada, com numerosos personagens com rela<;oes complexas (tao complexas, alias, que 0 roteiro fica muitas vezes confuso), dotados de diferentes caracteristicas, sem que os protagonistas tenham feito outra coisa que permanecer quietos no campo da dimera. A a<;ao aparente e 0 sentido que the damos praticamente nunca preexistiram ao filme, sequer na forma parcelar dos frag­mentos de cena que constituem tradicionalmente os pIanos.

E digo mais, nessas circunstancias era nao apenas suficiente mas necessario fazer esse filme "de montagem". Com efeito, se os bichos de Tourane fossem animais espertos (a exemplo do cachorro Rintintin), capazes de realizar por adestramento a maio­ria das a<;oes que a montagem the credita, 0 sentido do filme seria radical mente deslocado. Nosso interesse recairia entao sobre as proezas e nao sobre a historia. Em outras palavras, ele passaria do imaginario ao real, do prazer pela fic<;ao a admira<;ao de urn numero de music-hall bern executado. E a montagem, criadora abstrata de sentido, que mantem 0 espetaculo em sua irrealidade necessaria.

Ja em 0 balijo vermelho, eu constato e yOU demonstrar que ele nao deve e nao pode dever nada a montagem. 0 que nao deixa de ser paradoxal, visto que 0 zoomorfismo conferido ao objeto e ainda mais imaginario do que 0 antropomorfismo dos bichos. 0 balao vermelho de Lamorisse, com efeito, realiza realmente diante das cameras os movimentos que 0 vemos realizar. Trata-se, e obvio, de urn truque, mas que nao deve nada ao cinema enquanto tal. A ilusao, aqui, surge como na prestidigita<;ao da realidade. Ela e con­creta e nao result a dos prolongamentos virtuais da montagem.

Que importancia tern isso, dirao, se 0 resultado e 0 mesmo: fazer com que acreditemos que ha urn balao na tela capaz de seguir seu dono como urn cachorrinho! Mas e justamente porque na montagem 0 balao magico so existiria na tela, quando 0 de Lamorisse nos remete a realidade.

Convem, talvez, abrir urn parentese a fim de observar que a !. natureza abstrata da montagem nao e absoluta, pelo menos psico­

logicamente. Do mesmo modo que os primeiros espectadores do cinematografo Lumiere recuavam com a chegada do trem na esta­<;ao da Ciotat, a montagem, em sua ingenuidade original, nao e percebida como artificio. 0 habito com 0 cinema sensibilizou pouco a pouco 0 espectador, e grande parte do publico seria hoje capaz, se the pedissemos para pres tar urn pouco de aten<;ao, de distinguir as cenas "reais" das sugeridas unicamente pel a monta­gem. E verdade que outros procedimentos, tais como a transparen-

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M-IORi';. SAl ll\;

o bDl40 W'm/dho. de Albert Lamorisse .... 0 loomorrt'imo dos obJetos.

cia, permitem mostrar, no mesmo plano, dois elementos, por exem· plo, 0 tigre e a vedete, cuja contigUidade apresentaria na realidade alguns problemas. A ilusAo e ai mais perfeita, mas pode ser desco­hena e, em todo caso, 0 importante nAo e que 0 lruque seja ou nllo invisivel, mas que haja ou nllO truque, do mesmo modo que a heleza de urn falso Vermeer nAo poderia prevalecer contra sua inautenticidade.

Objetarllo Que os balOes de Lamorisse sAo. no entanto. truca­dos. Isso e 6bvio, pois se nllo 0 fossem estariamos em presen~a de urn documentano sobre urn milagre ou sobre 0 faquirismo, e o filme seria bern diferenle. Ora, 0 ba/40 verme/ho e urn conto cinemalogrMico, uma pura inven~lIo da mente, mas 0 que impona e que essa hist6ria deva tudo ao cinema, justamente porque no essencial ela Dada Ihe deve .

~ bern passlvel imaginar 0 batao vermelho como urn relato Iiteririo. Mas, por mais bern escrito que se possa imaginar, 0 Jivro nllo c.hegaria aos pes do ftlme. pois 0 charme deste e de oulra nalu­reza . No entanto. a mesma hislOria, por mais bern ftlmada que

MQNTAGEM PROIBIDA 19

fosse, poderia nAo ter mais realidade na tela do que no Iivro; seria na hip6test de Lamorisse decidir recorrer as ilusOes da montagem (ou eventualmente da Iransparencia). 0 filme se Iransformaria entao num relato em imagens (como 0 conlO 0 seria em palavras) 30 inves de ser 0 que e, vale diter, a imagem de urn como OU, se preferirem, urn documentirio imaginirio.

Essa expressAo me parece ser em definitivo a Que melhor define o proptlsito de Lamorisse, J2foximo e no entanto diferente do de Cocteau quando realiza. com Lt! sang d'un patte, urn documenti· rio sobre a imagina~Ao (aliis, sobre 0 sonho) . Encontramo-nos, ponanto, embrenhados. pela renexAo, numa serie de paradoxos. A montagem, que tantas vezes e tida como a essencia do cinema, e, nessa conjuntura, 0 procedimento Iileririo e anli-cinematogra. fico por excelencia. A especificidade cinematografica, apreendida pelo menos uma vet em eSlado puro, reside, ao conlririo. no mero respeito fotografico da unidade do espa~o .

t: Mas e preciso aprofundar a anilise. pois poderemos observar,

m razAo, que se 0 00140 vermelho nAo deve essencialmente I ada! montagem, ele recorre a ela acidenta/mente. Pois, afinal e Contas. se Lamorisse gastou SOO.OOO (rancos com balOes verme­

Ihos, foi para nao faltar substitutos . Do mesmo modo, Crin blanc era duplamente milico, ja Que, de fato , varios cavalos com 0 mamo aspecto, embora mais ou menos selvagens, compunham na tela urn unico cavalo. Essa constata~Ao vai nos permitir chegar mais perto de uma lei essencial da estillstica do filme .

Considerar os filmes de Lamorisse como obras de pura fic~lIo seria tral-Ios, como tam hem, por exemplo, Le rideau cramoisi. A credibilidade deles est! certamente Ligada a seu valor documental. Os acontecimentos que eles representam sAo parcialmenle verda· deiros . Para Crin blanc. a paisagern de Camargue. a vida dos cria· dores e dos pescadores, os coslumes das manadas, constiluem a base da fabula. 0 ponto de apoio 56lido e irrefutavel do milO. Porern, sobre essa realidade fundamentam·se justamente uma dia­letica do irnaginario, cujo interessante simbolo e a duplica~o de Crin blanc. Assim. Crin blanc e a urn 56 tempo 0 verdadeiro cavalo que pasta nos campos salgados de Camargue, e 0 animal de sonho que nada etemamente em cornpanhia do menino Folco. Sua realidade cinematogrMica nllo poderia dispensar a realidade documentaria. mas era preciso, para que ela se tomasse verdade de nossa imaginacAo, Que se destruisse e renascesse na propria rea. Iidade.

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60 ANORt:: BAZIN

A realiza~a.o do filme exigiu com certeza varias proezas. 0 garoto escolhido por Lamorisse Runca tinha se aproximado de urn cayala. Fai preciso, (n(retanIO, lhe ensinar a mantar em pCla. Mais de uma cena, dentre as mais espetaculares, roram rodadas QUast scm tTUqUes e, em todo Caso, a despeito de certas perigos. E. no entanto, basta pcnsar nelas para compreender Que se 0 que a tela mOSlra e expressa tive5se que seT verdade. realizado efetiva­mente dianlc da camera, 0 filme deixaria de existir. pois deixaria no ffie5ffiO inslanle de seT urn milo. E a parte de truque, a margem de subterfugio necessaria a 16gica do relato que permite ao imagi­nArio integrar a urn 56 tempo a realidade e suhstitui-Ia. Se hou­vesse apenas urn cavalo selvagem submetido peoosamenle as exi­gcneias da filmagem, 0 filme seria apenas uma facanha, urn numero de adestrarnento. como 0 cavalo branco de Tom Mix: podemos ver 0 que ele perderia com isso. 0 que e preciso. para a plenitude estetica do empreendimento. e que possamos acreditar na realidade dos acontecimenlos. sabendo que se trata de truque. E claro que 0 espectador nao precisa saber que havia Ires OU qua­tro cavalos2 ou que era preciso puxar 0 focinho do animal com urn rio de nAiloR para que virasse a ca~a de modo adequado. o importante e que possamos dizer. ao mesmo tempo. que a mate­ria-prima do filme e autEnlica e que, no emanto. "e cinema" . Assim. a tela reproduz 0 nuxo e renuxo de nossa imaginal;Ao. que se nulre da realidade a qual ela projeta se substituir; a fibula nasct: da experiencia que ela transcende.

Mas. reciprocamente. e preciso que 0 imaginirio tenha na tela a densidade espacial do real. A mOnlagem 56 pede ser utilizada ai denuo de limites precisos. sob pena de atemar contra a pr6pria ontologia da fabula cinematograrica. Por exemplo. nAo e perm i­tide ao realizador escamotear. com 0 campo/ contra-campo. a difi­culdade de mostrar dois aspectos simultineos de uma ac;Ao. Foi 0 que Albert Lamorisse compreendeu perfeitamente na sequEncia da cal;a ao coelho. em que vemos sempre simultanearnenle. no campo. 0 cavaJo, 0 menino e 0 coelho, mas ele quase comete um erro na sequEncia da captura de Crin blanc, quando 0 menino e arrastado pelo cavalo galopando. Pouco importa que 0 animal _ que vemos naquele momento. de longe, arrastar 0 pequeno Folco - seja 0 falso Crin blanc, tampouco que para essa opera­\tAo arriscada 0 pr6prio Lamorisse tenha substituido 0 garoto, mas me incomoda que no final da sequencia, quando 0 animal val mais devagar e para, a cAmera nAo me mostre irrefulavclmente a proximidade fisica do cavalo e da crian~. Uma panorAmica ou

MONTAOEM PROIBJDA

C,in blQrIr .. . ~ a duplica~o do cavllo que permile , realidlde se Iflnstor­mar em imliinaclo. (F'_~~

"

urn travelling para tras poderia fazS-lo. Essa simples precau~o leria autenticado retrospectivamente todos os pianos anteriores enquanlO os dois pianos sucessivos de Folco e do cavaJo, escamo: teando uma diriculdade que no enlanto se tomou benigna naquele momemo do episOdio, yarn romper a bela nuidez espaciaJ da ac;ao.)

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62 ANDR~ BAZIN

Se nos esfor~mos agora para dennir a dificuldade. me pareo: Que poderiamos estabelecer em lei estetica 0 seguinte principia: "Quando 0 essencial de urn acontecimento depende de urna pre­sen~ simuhlnea de dais ou mais fatores da a~o, a montagem fica proibida". Ela rctoma seus direitos a cada vez que 0 sentido da at;lo nAo depende mais da contiguidade fisica, mesmo se cia e implicada. Por exemplo, Lamorisse podia moslrar, como 0 fez, em primeiro plano, a ca~ do cavalo virando para 0 menino como Que para obedect.l0, mas ele deveria. no plano precedenlc, ligar pelo mesmo enquadramenlo as dais proUlgonislas.

Nl0 de trata de modo algum, entrdanto, de retamar obrigato­riamenle ao plano--sequencia, nem de renunciae aos recursos expres­sivos e is evenlUais facilidades da mudam.a de plano. As presen­les observat;Oes 0110 tern por objeto a forma. mas a natureza do relato ou, mais exatamente, certas interdependencias da natureza e da forma. Quando Orson Welles tratava eertas cenas de Soberba num unico plano e quando, ao contrArio . retalha a montagem ao extremo em OrilhlJes do possado, trata·se apenas de uma mudan(:a de estilo que nllo modifiea essencialmente 0 tema. Eu diria ate que Ftst;m diabOlico, de Hitchcock, poderia indiferentemente ter uma decupagem classica, qualquer que seja a importancia artistica que se possa vincular a decisllo adotada. Em eompensacJo. seria inconcebivel que a famosa cena da ca~ a foca de Nanook. 0 tsquim6 nllo nos mostrasse, num mesmo plano. 0 cacad~ 0

Pouco importa, porem, que 0 resto da sequencia o gue deve ser respeitado e

momento em sua sua mera

i geralmente compreeodeu, a ollo ser em alguns lugares onde a obra perde, com efeito, sua consistencia. Se a imagem de Nanook espreitando sua ca~ na boca do buraco de gelo e uma das mais belas do cinema. a pesca do crocodilo, visi­velmente realizada "na montagem" em Louisiana story, e urn desastre. Em compensa(:Ao. no mesmo filme, 0 plano-sequencia do crocodilo abocanhando a gar(:a, filmado numa imica panorA­mica, e simplesmente admirAvel. Mas a reciproca e verdadeira: basta, para que 0 relato reeneontre a realidade, que urn unico de seus pianos convenientemente escolhidos reuna os elementos dis­persados anteriormente pela montagem.

~ sem duvida mais diflcil definir a priori os generos de lema, ou ate mesmo as circunSlincias as quais essa lei se aplica. 56 me arriscarei prudentemenle a dar algumas indi~. Em primeiro

MONTAGEM PR01BIDA

Lo~ukma Slory ... Em compensa.;io. 0 plano-seqilfncla do crocodilo aboca­nbanda. Pr;I, filmado numa (lnic. panortmica, ~ simplesmcnlt admirtvel .

6J

lugar, issa e verdade para todos as filmes documentarios cujo objeto e reportar fatos que perdem todo 0 interesse se 0 aconteci­mento nAo ocorreu realrnente diante da camera. iSlo e, 0 documen­tario aparentado com a rtportagem. Em Ultima instAncia. as atua­lidades tam~m_ 0 fato de a nO(:fto de "atualidades recORStitui­das" ter podido ser admitida no inicio do cinema moura bern a reaJidade da evolu~o do publico. NAo e 0 que acontece com os documentarios exclusivamente didAticos, eujo prop6sito nllo e a representa(:Ao. mas a explica(:Ao do aeontecimento. Esses ultimos podem, natural mente, comporlar seqaencias ou pianos provenien­les da primeira categoria. Considere-se. por exemplo, urn docu­mentArio sabre a preslidigita~Ao! Se 0 seu objelivo e mostrar os passes de magica extraordinarios de um celebre virtuoso, sera essen­cial proceder por pianos unicos, mas se 0 filme deve entAo txpli­car urn desses numeros. a decupagem se impOe. 0 casa e claro, passemos adianle!

Muito mais interessante e, evidentemente. 0 caso do filme de fie~o, indo do devaneio, como Crin blanc, ao documentario leve­mente romanceado, como Nanook, 0 esquimo. Trata-se, entAo.

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64 ANDRE BAZIN

como foi dito acima, de fic<;:6es que s6 ganham sentido ou, em ultima instancia, s6 tern valor pela realidade integrada ao imagina­rio. A decupagem e, portanto, comandada pelos aspectos dessa realidade.

Enfim, no filme de puro relato, equivalente do romance ou da pe<;:a de teatro, e provavel ainda que certos tipos de a<;:ao recu­sem 0 emprego da montagem para atingir sua plenitude. A expres­sao da dura<;:ao concreta e evidentemente contrariada pelo tempo abstrato da montagem (e 0 que ilustram tao bern Cidadao Kane e Soberba). Mas, sobretudo, certas situa<;:6es s6 existem cinemato­graficamente na medida em que sua unidadc espacial e evidenciada, e, particularmente, as situa<;:6es c6micas fundadas nas rela<;:6es do homem com os objetos. Como em 0 balao vermelho todos os truques sao permitidos, exceto a facilidade da montagem. Os bur­lescos primitivos (notadamente Keaton) e os filmes de Chaplin con­tern muitos ensinamentos a esse respeito. Se 0 burlesco triunfou antes de Griffith e da montagem, foi porque a maioria das gags dependiam de uma comicidade do espa<;:o, da rela<;:ao do homem com os objetos e com 0 mundo exterior. Chaplin, em 0 circo, esta efetivamente na jaula do lean e ambos estao juntos no qua­dro da tela.

NOTAS

I. Cahiers du Cinema, 1953 e 1957.

2. Do mesmo modo, pareee, 0 eaehorro Rintintin devia sua existeneia cinematogra­fica a varios caehonos polieiais com 0 mesmo aspecto, adestrados para cumprir perfeitamente cada uma das proezas que Rintintin era capaz de realizar "sozinho" na tela. Cada uma das a.;:oes tendo 0 dever de ser real mente executada sem recur so it montagem, esta s6 intervinha em segundo grau para elevar it potencia imagin:iria do mito os caehonos hem reais, eujas qualidades Rintintin possuia.

3. Serei melhor compreendido evoeando este exemplo: ha num filme ingles medio­cre, Quand les vautours ne voleront plus, uma sequencia inesq~ecivel. 0 filme reconstitui a hist6ria, veridiea alia~, de urn jovem casal que eria e organiza lJ.a Africa do Sui, durante a guerra, uma reserva de animais. Para tal, 0 marido e a mulher viveram com seus filhos no meio do malo. A passagem a qlle aludo come.;:a do modo mais conveneionaL 0 garoto, que se afastou do acamparnento sem que os pais soubessem, encontra urn leaozinho momentaneamente abandonado pela mae. Scm consciencia do perigo, ele pega 0 animalzinho no colo para leva-Io con­sigo. No entanto, a leoa, advertida pdo ruido ou pelo cheiro. relOrna a toea e segue a pista da crian~a que ignora 0 perigo. Ela 0 segue a certa disrancia. A situa­~ao come.;:a a ser vista do acampamento, de onde os pais allitos percebem seu filho e a fera que vai provavelmente se lan.;:ar de urn instante para outro sobre 0 impru-

MONTAGEM PROIBIDA 65

dente sequcstrador de seu filllote. Paremos urn instante na de,cri~ao. Ate aqui tudo foi feito na montagem paraJela e 0 suspense ingenuo aparece como dos mais convencionais. Mas eis que, para nossa estupefa~ao, 0 realizador abandona os pIa­nos proximos, isolando os protagonistas do drama para nos oferecer simultanea­mente, no mesmo plano geral, os pais, a crian~a e a fera. Esse enquadramento tinico, onde qualquer truque e inconcebivel, autentica, imediata e retroativamente a montagem bern banal que 0 precedeu. Vemos, desde entao, scmpre no mesm~ plano geral, 0 pai mandando 0 filho se imobilizar (a certa distancia a fera tam bern se imobiliza), colocar no gramado 0 leaozinho e continuar a andar sem preeipita­~ao. A leoa, entao. vern tranquilamente recuperar seu filhote e 0 leva de volta para 0 malO, enquanto os pais, tranqiiilizados, se precipitam para 0 garoto.

Evidentemente, eonsiderando-a apenas enquanto relato, a sequencia teria, a rigor, a mesma significaC;ao aparente se tivesse sido fihnada inteiramente em pre­gando as faeilidades materiais da montagem, ou ainda da "transparencia". Mas tanto num quanta noutro caso, a cena nunca teria se desenrolado em sua reali­dade fisica e espacial diante da camera. De modo que, apesar do carater concreto de cada imagem, ela teria apenas valor de relato e nao de realidade. Nao haveria diferen~a essencial entre a sequencia cincmatogratica e 0 capirulo de urn romance que relatasse 0 mesmo episodio imaginario. Ora, a qualidade dramatica e moral do episodio seria evidentemente de uma rnediocridade extrema, enquanto que 0

enquadramento final, que implica colocar em situa~ao real os personagens, nos leva no mesma lance para os apices da emo~ao cinematogratica. Naturalmente, a proeza s6 foi possivel pclo fato de a leoa ser urn poueo domestieada e ter vivido, antes de 0 filme ser rodada, na famillaridade do casal. Pouco importa; 0 problema nao e sc 0 garoto correu real mente 0 risco representando, mas apenas que sua representa~ao foi tal que respeilou a unidade espacial do acontecimento. 0 realismo reside aqui na homageneidade do espa~o. Vemos, portanta, que ha casos nos quais, lange de constituir a essencia do cinema, a montagem e sua nega~ao. A mesma cena, sendo tratada pela montagem ou em plano de conjunlO, pode ser tao-somente literatura ruim ou tornar-se cinema de verdade.

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VII A EVOLUC;AO DA LINGUAGEM

CINEMATOGRAFICA t

Em 1928, a arte muda estava em seu apogeu. 0 desespero dos melhores daqueles que assistiram ao desmantelamento des sa per­feita cidade da imagem pode ser explicado, se nao justificado. Na via estetica na qual ela estava entao engajada, parecia-Ihes que o cinema tinha se tornado uma arte supremamente adaptada ao "delicado inc6modo" do silencio e que, portanto, 0 realismo sonoro s6 podia condenar ao caos.

De fato, agora que 0 emprego do som demonstrou 0 bastante que nao veio para aniquilar 0 Antigo Testamento cinematografico, mas realiza-Io, caberia perguntar se a revolw;ao tecnica introdu­zida pela banda sonora corresponde realmente a uma revolw;ao estetica em outros termos, se os anos de 1928-1930 sao efetiva­mente ~s do nascimento de urn novo cinema. Encarada-do ponto

-de vista da decupagem, a hist6ria do filme nao deixa aparecer, com efeito, uma solw;ao de continuidade tao facilmente quanto se poderia pensar, entre 0 cinema mudD e 0 falado. Em compensa­~ao, poderiamos revelar os parentescos entre certos realizadores dos anos 1925 e outros de 1935, e sobretudo do periodo 1940-1950. Por exemplo, entre Erich Von Stroheim e Jean Rcnoir ou Orson Welles, Carl Theodor Dreyer e Robert Bresson. Ora, tais afinida­des mais ou menos claras provam, em primeiro lugar, que uma ponte po de ser lan~ada por cima da falha dos anos 30, q~~~_~rtos_ valores do cinema mudD persistem no cinema falado, mas, princi­- I d" d" "f I d " pa mente, que se trata menos e opor 0 mu 0 ao a a 0

do que, em ambos, familias de estilo, concep~oes fundamental­mente -diferentes da expressao cinematografica.

Sem me dissimular a relatividade de uma simplifica~ao critica que as dimensoes deste estudo me impoem, e considerando-o

A EVOLU<;:Ao DA L1NGUAGEM CINEMATOGRAFICA 67

menos uma realidade objetiva do que uma hip6tese de trabalho, eu distinguirei no cinema ge 1920 a 1940 duas gran des tendencias opostas: os diretores que acreditam na imagem e os que acreditam na realidade.

Por imagem, entendo de modo bern geral tudo aquilo que a representapio na tela po de acrescentar a coisa representada. Tal contribui~ao e complexa, mas podemos reduzi-Ia essencialmente a dois grupos de fatos: ~lastica da imagem e os recursos da mon­tagem (que nao e outra coisa senao lLQIganiza~ao das imagens no tempo). Na plastica, e preciso compreender 0 estilo do cenario e da maquiagem, de certo modo ate mesmo da interpreta~ao, aos quais se acrescentam a ilumina~ao e, por fim, 0 enquadramento que fecha a composi~ao. Quanto a montagem, oriunda principal­mente, como se sabe, das obras-pnm~s--de -Griffith, Andre Mal­raux dizia, em Psicologia do cinema, que ela constituia 0 nasci­mento do filme como arte: 0 que 0 distingue realmente da simples fotografia animada. Na realidade, enfim, uma linguagem.

A utiliza~ao da montagem pode ser "invisivel"; eo caso mais freqiiente no filme americano classico anterior a guerra. Os cortes dos pIanos nao tern outro objetivo que 0 de analisar 0 aconteci­mento segundo a 16gica matematica ou dramatica da cena. E sua 16gica que torna tal analise insensivel; 0 espirito do espectador adota natural mente os pont os de vista que 0 diretor the propoe, pois sao justificados pela geografia da a~ao ou pelo deslocamento do interesse dramatico.

A neutraliqade dessa decupagem "invisivel" nao da conta, porem, de todas as possibilidades da montagem. Em contraparti­da, elas podem ser apreendidas perfeitamente, em tres procedimen­tos conhecidos geralmente pelo nome de "montagem paralela", "montagem acelerada" e "montagem de atra~oes". Criando a montagem paralela, Griffith conseguia dar conta da simultanei­dade de duas a~oes, distantes no espa~o, por uma sucessao de pia­nos de uma e da outra. Em La roue, Abel Gance nos da a ilusao da acelera~ao de uma locomotiva sem recorrer a imagens reais de velocidade (pois afinal, as rodas poderiam rodar sem se deslocar), pela simples multiplica~ao de pianos cada vez mais curtos. Enfim, a montagem de atra~oes, criada por Eisenstein, cuja descri~ao nao e tao facil, poderia ser definida grosseiramente como 0 refor~o do sentido de uma imagem pela aproxima~ao de outra imagem que nao pertence necessariamente ao mesmo acontecimento: os fogos de artificio em 0 velho e 0 novo, que sucedem a imagem do touro. Nessa forma extrema, a montagem de atra~oes foi rara-

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68 ANDRE BAZIN

mente utilizada, ate mesmo por seu criador, mas podemos conside­rar bern proxima em seu principio a pratica mais geral da elipse, da comparal;ao ou da metafora: sao as meias jogadas na cadeira ao pe da cama, ou ainda 0 leite que trans borda (Crime em Paris, de H. G. Clouzot). Existem, naturalmente, combinal;oes variaveis desses tres procedimentos.

Quaisquer que sejam, pode1ll9s reconhecer nelas 0 tral;o co­mum que e a propria definil;io da montageII): a crial;30 de urn sentido que--as- irriageiis nao contem objetivamente e que procede unicamente de suas relal;oes. A celebre experiencia de Kulechov com 0 mesmo plano de Mosjukine, cujo sorriso parecia mudar de expressao conforme a imagem que 0 precedia, ill.\lI!le perfeita­mente as propriedades da montagem.

-- - As montagens de Kulechov, a de Eisenstein ou de Gance nao mostravam 0 acontecimento: aludiam a ele. Eles tiravam, sem duvida, pelo menos a maioria de seus elementos da realidade que queriam descrever, mas a significal;ao final do filme residia muito mais na organizal;ao dos elementos que no conteudo objetivo deles. A materia do relato, qualquer que seja 0 realismo individual da imagem, surge essencialmente de suas relal;oes (Mosjukine sorrindo + crianl;a morta = piedade), isto e, urn resultado abstrato cujos elementos concretos nao comportam as premissas. Do mesmo modo, podemos imaginar: meninas + macieiras floridas = espe­ranl;a. As combinal;oes sao incontaveis. Porem, todas tern em comum 0 fato de sugerir a ideia por. intermedio da metafora ou da associal;ao de ideias. Assim, entre 0 roteiro propriamente dito, objeto ultimo do relato, e a imagem bruta, se intercala uma etapa suplementar, urn "transformador" estetico. 0 sentido nao esta na imagem, ele e a sombra projetada pela montagem, no plano de consciencia do espectador.

Resumindo: tanto pelo conteudo plastico da imagem quanto pelos recursos (fa-montagem, 0 cinema dispoe de todo urn arse­nal de procedimentos para impor aos espectadores sua interpreta­I;ao do acontecimento representado. Podemos considerar que, no final do cinema mudo, esse arsenal estava completo. Por urn lado, 0 cinema sovietico levou as ultimas conseqiiencias a teoria e a pratica da montagem, enquanto que a escola alema fez com que a plastica da imagem sofresse todas as violencias possiveis (ce­nario e iluminal;ao). E claro que, alem do alemao e do sovietico, outros cinemas tambem contam, mas seja na Franl;a, na Suecia ou na America, nao parece que a linguagem cinematografica carel;a de meios para dizer 0 que ela tern a dizer. Se 0 essencial

A EVOLU<.-'Ao DA LINGIJAGEM CINI:-.MA !(KiRAI-ICA 69

da arte cinematografica consiste em tudo 0 que a plastica e a montagem pod em acre~centar a uma realidade dada, a arte muda e uma arte completa. 0 som so poderia descmpenhar, no maximo, urn papel subordinado e complementar: em contraponto a imagem visual. Mjls esse possivel enriquecimento, que no melhor dos casos so poderia ser menor, corre 0 risco de nao ter muito peso no prel;o do lastro de realidade suplementar introduzido an mesmo tempo pelo som.

* * * E que acabamos de consideraCQ_expressionismo da montagem

e da imagem como 0 essencial da arte cinematografica. E e precisa­mente essa nOl;ao geralrnente admitida que questionam implicita­mente, des de 0 cinema mudo, realizadores como Erich Von Stro­heim, F. M. Murnau ou R. Flaherty. A montagern nao desempe­nha em seus filmes praticamente nenhum papel, a nao ser 0 papel totalmente negativo da elimina.;ao inevit<lvcl numa realidade abun­dante demais. A camera nao pode ver tudo ao mesrno tempo mas, do que escolhe ver, ela se esforl;a ao menos para nao perder nada. o que conta para Flaherty, diante de Nanook ca~ando a foca, e a relal;ao entre Nanook e 0 animal, a amplitude real da espera. A montagem poderia sugerir 0 tempo; Flaherty se limit a a nos mos­trar a espera, a dural;ao da ca(,:a e a propria substanda da imagem, seu verdadeiro objeto. No filme, esse epi~odio s6 admite, portanto, urn unico plano. Podemos negar que ele e, par isso mesmo, muito mais emocionante do que uma "rnontagem de atral;oes"?

Murnau nao se interessa tanto pelo tempo, mas pel a realidade do espal;O dramatico: a montagem nao desempenha, nem em Lobi­somem (Nosferatu) nem em Aurora, rrenhum papel decisivo. No entanto, poderiamos pensar que a plastica da imagem a aproxima de urn certo expres~iollismo. mas seria uma visao superficial. A composil;ao de sua imagem nao e de modo algum pictural, ela Ilao acrescenta nada it realidade, nao a deforma, muito pelo contra­rio, ela se esforp para des velar suas estruturas profundas, para fazer aparecer relac;oes preexi~tente5 que se tornam constitutivas do drama. Assim, em Tabu, a entrada no campo da imagem pelo lado esquerdo da tela de uma nau identlfica-se absolutamente com o destino, sem que Murnau jogue com 0 rigoroso realismo do filme, Com cenario totalmente natural.

Mas foi seguramente Stroheim quem mais se opos a urn so tempo ao expressionismo da imagem e am artificios da montagem. Nele, a reaJidade confessa seu sentido como 0 suspeito sob 0 inter-

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ANDR~ BAZIN

rogat6rio incansAvel do comissArio. 0 principio de sua mise-en-scene e simples: olhar 0 mundo de bern peno e com bastame insistencia para que ele acabe revelando sua crueldade e feiUra. Poderlamos imaginar facilmenle, em Ultima instincia. urn filme de Stroheim composlo de urn unico plano tAo longo e grande quanto quisesscmos.

A escolha desses tres diretores nAo e exaustiva . Cenamente encontrariamos em ouuos autores, aqui e ali, elementos de cinema nAo expressionista e nos quais a momagem nlio tern vez. Alias, ate me5mo em Griffith. Mas talvez esses exemplos sejam suficien­tes para indicar a existencia, no imago do cinema mudo, de uma ane cinematografica precisameme comraria a que e identificada com 0 cinema por excelencia; de uma linguagem cuja unidade semantica e sintatica nlio e de modo a1gurn 0 plano; na qual a ima­gem vale, a principio, nlio pelo que acrescenla mas pelo que revelo da realidade. Para tal tendencia, 0 cinema mudo nlio passava, de fato, de urna enfermidade: a realidade, menos urn de seus elemen­tos. Vinualmente, tanto Duro e maldi~40 como a Joana d'Arc, de Dreyer, ja slio, ponanto, filmes falados. Se deixar de con­side ar-a montagem e a composi~lio plastica da ima~ CQmo~ pr6pria essencia da Iingu8gem cinematografica, 0 aparecj!!l.ento do som nlio constitui mws rachadura estetica que divide dais aspec­toS ra lcalmente diferentes da selima ane. Urn ceno cinema pen­iO"ii'"ler morrido com a banda sonora; nlio foi de modo algum " 0

cinema": 0 verdadeiro plano de clivagem estava noutra pane, con­tinuava - e continua - sem ruptura. a atravessar 3S anos da his­t6na da linguagem cinematografica.

• • • Sendo, assim, a unidade estetica do cinema mudo questionada

e repartida entre duas tendencias intima mente inimigas, reexami­nemos a hist6ria dos ultimos 20 anos.

De 1930 a 1940. parece ter se instituido peto mundo afora, e principalmenle a partir da America, uma certa comunidade de expresslio na Iinguagem cinematografica. E 0 triunfo em Holly­wood de cinco ou seis generos que asseguram enllio sua massa­cranle superioridade: a comedia americana (A mulher fat. 0 he­mem, 1936), 0 burlesco (lrmlios Marx), 0 filme de danc;:a e 0 music­hall (Fred Astaire e Ginger Rogers, os Ziegfeld follies), 0 filme policial e de gAngsteres (Scorface, a vergonha de uma no¢o, 0 fugi,;'tIo, 0 delalor), 0 drama psicol6gico e de costumes (Esquina do pecado. Jezebel), 0 filme fanlastico ou de terror (0 medico e o monslro, 0 homem in'tlisf'lt!l, Frankenstein), 0 western (No lempo

A EVOLUCAO DA L1NGUAGEM CINEMATOORA FICA

Dc 1930 a 1940, i 0 lriunro em Hollywood de Cn"lCO OU scis aencros que as5C­&uram sua massacranle supcrioridade. Aqui. urn polkial: SNr/~. II ""10-"hll dr umll tJlIf4o. (f'_ 'a.M.)

71

das diUgencias, 1939). 0 segundo cinema do mundo e, sem duvida a1guma, no mesrno periodo, 0 frances; sua superioridade se afirma aos poucos numa tendencia que podemos chamar grosseiramente de realismo noir ou realismo poCtico, dominado por quatro nomes: Jacques Feyder. Jean Renoir, Marcel Came e Julien Duvivier.

lio sendo nossa intem;Ao premiar, sena inutil demorarmo-nos

ts cinemas sovietico. ingles, a1emlio e italiano. cujo periodo con­

derado e relativamente menos significativo para eles do que os z anos seguimes. As producOes americanas e francesas bastam,

[

todo caso, para definir claramente 0 cinema falado anterior a guerra como uma arte que alcan~ou visivelrnente 0 equilibrio e a rnaturidade.

Primeiro, quanto ao fundo: grandes generos com regras bern elaboradas, capazes de agradar 0 maior publico internacional e interessar tambem uma elite culta, conlanto que ela nAo fosse 0

prior; bostil ao cinema. Segundo, quanto a forma : estilos da fotografia e da decupa­

gem perfeitamente claros e de acordo com 0 tema; uma total recon-

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72 ANDRE BAZIN

cilia<;ao da imagem e do som. Revendo hoje filmes como Jezebe/, de William Wyler, No tempo das diligencias, de John Ford, ou 0

Tragico amanhecer, de Marcel Carne, teremos a sensa<;ao de uma arte que encontrou seu perfeito equilibrio, sua forma de expressao ideal e, reciprocamente, admiramoi> neles os temas dramaticos e morais que, sem duvida, nao foram totalmente cdados pelo cinema, mas ao menos elevados por ele a uma grandeza, a uma eficacia artistica que, sem ele, nunca teriam atingido. Em suma, todas as caracteristicas da plenitude de uma arte "classica".

Compreendo que se possa, com razao, defender a tese que a originalidade do cinema do pos-guerra, em rela<;ao ao de 1939, re­side na promo<;ao de certas prodw;:oes nacionais e, em particular, no brilho of usc ante do cinema Italiano e no aparecimento de urn cinema britanico original e liberado das influencias hollywoodia­nas; que dai se tire a conclusao Gue 0 fenomeno realmente impor­tante dos anos 1940-1950 e a intrusao de sangue novo, de uma materia ainda inexplorada; em suma, que a verdadeira revolu<;ao foi feita muito rna is a nivel dos temas do que do estilo; do que o cinema tern para dizer ao mundo, mais do que da maneira de 0

dizer. 0 "neo-realismo" nao e a principio urn humanismo antes de ser urn estilo de mise-en-scene? E esse estilo nao se definiria essencialmente por urn desaparecimento frente a realidade?

Tampouco temos a int('n<;ao de elogiar nao sei que preeminen­cia da forma sobre 0 fundo. "A arte pel a arte" nao e menos herege no cinema. Talvez, ainda mais! Mas a tema novo, forma nova! E saber como 0 filme nos diz alguma coisa e mais uma maneira de compreender melhor 0 que ele quer nos dizer.

Em 1938 ou 1939, portanto, 0 cinema falado conhece, sobre­tudo na Fran<;a e na America, uma maneira de perfei<;ao classica, fundada, por urn lado, sobre a maturidade dos generos dram<iti­cos elaborados durante dez anos ou herdados do cinema mudD e, por outro, sobre a estabi!iza<;ao dos progress os tecnico~. O~ anos 30 foram a urn so tempo os do sam e da pelicula panCrOmatlCa. Sem duvida 0 equipamento dos estudios nao parou de ser aperfei­<;oado, mas tais melhoras eram apenas de detalhe, nenhuma delas abria possibilidades radic:alrnente novas para a mise-en ',\( (~ne. Tal situa<;ao, alias, nao mudou desde 1940, a nao ser talvez no que toca a fotografia, gra<;as ao aumento da sensibilidade da pelicula. A pancromatica desequilibrou os valores da imagem, as emulsoes ultra-scnsiveis permitiram que seus contornos fossern modificados. Podendo rodar em estudio com diafragmas muito mais fechados,

..

A EVOLlJ~'Ao OA L1N(,lJAGEM C1NEMATO(JRAHCA 73

o operador pode, se fosse 0 caso, eliminar as imagens nebulosas dos pianos de fundo que geralmente eram de rigor. Mas poderia­mos, certamente, encontrar exemplos anteriores do emprego da profundidade de campo (como em Renoir); ela sempre foi possi­vel em cenas de extern a e ate mesmo em estudio, mediante algu­mas proezas. Bastava querer. De modo que se trata, no fundo, menos de urn problema tecnico - cU,ia solu<;ao, e verdade, foi enormemente facilitada - do que de uma busca de estilo, sobre a qual voltaremos a falar. Em suma, desde a vulgariza<;ao do emprego da pancromlitica, 0 conhecimento dos recursos do micro­fone e da generaliza<;ao do guindaste no equipamento dos estu­dios, podemos considerar adquiridas as condi<;oes tecnicas necessa­rias e suficientes para a arte cinematografica a partir dos anos 30.

Ja que os determinismos tecnicos foram praticamente elimina­dos, e preciso entao procurar noutra parte os sinais e os princi­pios da evolu<;ao da linguagem: no questionamento dos temas e, por conseguinte, dos estilos necessarios a sua expressao. Em 1939, o cinema falado chegara ao que os geografos chamam de perfil em equilibrio de urn rio. Isto e, a curva matematica ideal que e 0

resultado de uma erosao suficiente. Atingido 0 perfil de equilibrio, o rio flui sem esfor<;o de sua fonte a sua embocadura e cessa de escavar ainda mais seu leito. Mas, casu ocorra algum movimento geologico que aumente excessivamente a peneplano, modifique a altitude da fonte, a agua come<;a a trabalhar novamente, penetra nos terrenos subjacentes, embrenha-se, mina e escava. Por vezes, tratando-se de camadas de calcario, todo urn novo relevo se esbo<;a em baixo-relevo quase invisivel sobre 0 planalto, mais complexo e irregular no casu de seguirmos 0 cur so da agua.

EVOLUC;:Ao DA DECUPAGEM CINEMATOGRAFICA A PARTIR DO CINEMA FALADO

Em 1938, encontramos quase em toda parte 0 mesmo tipo de decupagem. Se chamamos, urn pouco convencionalmente, "expres­sionista" ou "simbolista" 0 tipo de filmes mudos fundados na composi<;ao plastica enos artificios da montagem, poderiamos qualificar a nova forma de relato de "analitica" e "dramfltica". Consideremos, para retomar urn dos elementos da experiencia de Kulechov, uma mesa posta e urn pobre diabo faminto. Podemos imaginar a seguinte decupagem em 1936:

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1. plano geral enquadrando a urn s6 tempo 0 ator e a mesa; 2. traveling para a frente terminando no rosto que exprime

uma mescla de maravilhamento e desejo em primeiro plano; 3. serie de primeiros pIanos de viveres; 4. retorno ao personagem enquadrado de pe, que avan9a len­

tamente em dire9ao da camera; 5. ligeiro traveling para tnis a fim de permitir urn plano ame­

ricano do ator apanhando uma asa de galinha. Quaisquer que sejam as variantes que se possa imaginar para

essa decupagem, haveria ainda pontos comuns: 1. a verossimilhan9a do espa90, no qual 0 lugar do persona­

gem esta sempre determinado, mesmo quando urn primeiro plano elimina 0 cenario;

2. a inten9ao e os efeitos da decupagem sao exclusivamente dramaticos ou psicol6gicos.

Em outros termos, encenada num teatro e diante de urn audi­t6rio, a cena teria exatamente 0 mesmo sentido, 0 acontecimento continuaria a existir objetivamente. As mudan9as de ponto de vista da camera nada acrescentariam. Apresentam apenas a realidade de maneira mais eficaz. Em principio, quando permitem que seja melhor vista, salientando em seguida 0 que merece ser salientado.

E claro que, como 0 diretor de teatro, 0 diretor de cinema dis­poe de uma margem de interpreta9ao para onde pode dirigir 0 sen­tido da a9ao. Mas e apenas uma margem e, como tal, nao poderia modificar a 16gica formal do acontecimento. Consideremos, em contrapartida, a montagem dos leoes de pedra em 0 Jim de Sao Petersburgo; aproximadas com habilidade, uma serie de escultu­ras dao a impressao de urn unico animal que se ergue (como 0 povo). Esse admiravel achado de montagem e impensavel em 1932. Em Furia, Fritz Lang introduz ainda em 1935, ap6s uma sucessao de pIanos de mulheres tagarelando, a imagem de galinhas cacare­jando num patio. E uma sobrevivencia da montagem de atra90es que ja chocava na epoca e que, hoje, parece totalmente heteroge­nea ao resto do filme. Por mais decisiva que seja a obra de urn Carne, por exemplo, em sua valoriza9ao dos roteiros de eais de sombras ou de Tnigico amanhecer, sua decupagem permanece ao nivel da realidade que ele analisa, e apenas uma maneira de ve-Ia bern. Por isso, assistimos ao desaparecimento quase total dos tru­ques visiveis, tais como a superposi9ao, e ate mesmo, sobretudo na America, do primeiro plano cujo efeito fisico por demais vio­lento tornaria a montagem sensivel. Na comedia americana tipica, o diretor retorna toda vez que pode ao enquadramento dos perso-

A EVOLUc;:Ao DA LINGUAGEM CINEMATOGRAFICA 75

nagens acima dos joelhos, que se verifica mais de acordo com a aten9ao espontanea do espectador, 0 ponto de equilibrio natural de sua acomoda9ao mental.

De ~ato, tal pratica da montagem tern suas origens no cinema mudo. E mais ou menos 0 mesmo papel que ela desempenha em Griffith, em 0 lirio partido, por exemplo, pois, com Intoleriin­cia, Griffith ja introduz a concep9ao sintetica da montagem que o cinema sovietico levara as suas ultimas conseqiiencias e que se vera, menos exclusivamente, aceita por toda parte no final do cinema mudo. Compreende-se, alias, que a imagem sonora, muito menos maleavel. que a imagem visual, tenha levado a montagem para 0 realismo, eliminando, cad a vez mais, tanto 0 expressionismo plastico quanto as rela90es simb6licas entre as imagens.

Assim, por volta de 1938, os filmes eram, de fato, quase sem exce9ao, decupados segundo os mesmos principios. A hist6ria era descrita por uma sucessao de pIanos cujo numero variava relativa­mente pouco (cerca de 600). A tecnica caracteristica des sa decupa­gem era 0 campo/contra-campo: e, por exemplo, num dialogo, a tomada alternada, conforme a 16gica do texto, de urn ou outro interlocutor.

Foi esse 0 tipo de decupagem, perfeitamente conveniente aos melhores filmes dos an os 30 a 39, que a decupagem em profundi­dade de campo de Orson Welles e de William Wyler veio questionar.

A notoriedade de Cidadao Kane nao poderia ser exagerada. Gra9as a profundidade de campo, cenas inteiras sao tratadas numa unica tomada, a camera ficando ate mesmo im6vel. Os efei­tos dramliticos, que anteriormente se exigia da montagem, surgem aqui do deslocamento dos atores dentro do enquadramento esco­Ihido de uma vez por todas. E claro que Orson Welles nao "inven­tou" a profundidade de campo, como tampouco Griffith inventou o primeiro plano; todos os primitivos do cinema a utilizavam e por razoes 6bvias. A imagem nebulosa s6 apareceu com a mon~a­gem. Ela nao era apenas uma sujei9ao tecnica consecutiva ao emprego dos pIanos pr6ximos, mas a conseqiiencia 16gica da mon­t~gem, sua equivalencia plastica. Se, a tal momento da a9ao, 0 dlretor faz, por exemplo, como na decupagem acima imaginada, urn primeiro plano de uma fruteira, e normal que a isole tam bern no espa90 pel a focaliza9aO. A imagem nebulosa do fundo confirma portanto 0 efeito da montagem, ela pertence apenas acessoria­mente ao estilo da fotografia, mas essencialmente ao do relato. Jean Renoir ja a tinha perfeitamente com preen dido quando escre­veu em 1938, isto e, depois de A besta humana e A grande i/usao

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e antes de A regra do jogo: "Quanto mais avanc;o em minha pro­fissao, mais sou levado a fazer a mise-em-scene em profundidade em relac;ao a tela; quanto mais isso funciona, mais eu evito criar o confronto entre dois atores colocados obedientemente diante da camera como no fot6grafo". E, com efeito, se procurarmos 0 precursor de Orson Welles, nao sera Louis Lumiere ou Zecca, mas Jean Renoir. Em Renoir, a busca da composic;ao em profun­didade da imagem corresponde efetivamente a I1ma sup res sao par­cial da montagem, substituida por frequentes panoramica5 e entra­das no quadro. Ela supoe 0 respeito a continuidade do espac;o dramatico e, naturalmente, de sua durac;ao.

E evidente, para quem sabe ver, que os planos-seqiiencia de Welles em Soberba nao sao de modo algum "0 registro" passive de uma ac;ao fotografada num mt:smo quadro, mas, ao contrario, que a recusa de cortar 0 acontecimento, de anahsar no tempo a area dramatica, e uma operac;ao positiva cujo efeito e superior ao que a decupagem classica poderia ter produzido.

Basta comparar dois fotogramas em profundidade de campo, urn de 1910 e 0 outro de um filme de Welles ou de Wyler, para compreender s6 ao ver a imagem, mesmo separada do ~ilme: ~ue sua func;ao e bern diferente. 0 enquadramento de 1910 Identlflca­se praticamente com a quart a parede ausente do palco do teatro ou, pelo menos em cenas externas, com 0 melhor ponto de vista sobre a ac;ao, enquanto que 0 cenario, a iluminac;ao e 0 angulo dao, a segunda paginac;ao, uma legibilidade diferente. Na superfi­cie da tela, 0 diretor e 0 operador souberam organizar um tabuleiro de xadrez dramatico, do qual nenhum detalhe e excluido. Encontra­remos os exemplos mais claros disso, se nao os mais originais, em Per/ida, no qual a mise-en-scene ganha urn rigor depurado (em Welles a sobrecarga barroca torna a analise mais complexa). A colocac;ao de urn objeto em relac;ao aos personagens e tal que 0

espectador nao pode escapar a sua significac;ao. Significac;ao que a montagem teria detalhado num desenrolar de pianos sucessivos.2

Em outros termos, 0 plano-sequencia em profundidade de campo do diretor moderno nao renuncia a montagem - como poderia renunciar sem recair num balbucio primitivo; ele a integra a composic;ao plastica. 0 relato de Welles ou de Wyler nao e menos cxplicito que 0 de John Ford, mas de tern sobre 0 ultimo a vanta­gem de nao renunciar aos efeit05 particulares que se pode tirar da unidade da imagem no tempo e no espac;o. Nao e indiferente, com efeito (pelo men05 numa obra que consegue ter estilo), que urn acontecimento seja analisado por fragmentos ou representado em

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A EVOLU<;:Ao DA LINGUAGEM CINEMATOGRAFICA 77

sua uni?~de fisica: Seria evidentemente absurdo negar os progres­sos declSlvos trazldos pelo emprego da montagem na linguagem da tela, mas eles foram adquiridos em detrimento de outros valo­res, nao menos especificamente cinematograficos.

Por isso, a profundidade de campo nao e uma moda de opera­dor com 0 emprego de filtros ou de tal estilo de iluminac;ao, mas uma aquisic;ao capital da mise-en-scene: urn progresso dialetico na historia da linguagem cinematografica.

E isso na~ e apenas urn progresso formal! A profundidade de campo bern utilizada nao e somente uma maneira a urn so tempo mais economica, mais simples e mais sutil de valorizar 0 acontecimento; ela afeta, com as estruturas da linguagem cinema­tografica, as relaC;oes intelectuais do espectador com a imagem e, com isso, modifica 0 senti do do espetaculo.

. 0 assunto deste artigo levaria a analisar as modalidades psi co­lOgIC as dessas relac;oes, quando nao suas relac;oes esteticas, mas podera ser suficiente observar grosso modo:

1. que a profundidade de campo coloca 0 espectador numa relac;ao com a imagem mais proxima do que a que ele mantem com a realidade. Logo, e justo dizer que, independente do proprio conteudo da imagem, sua estrutura e mais realist a .

2. que cia implica, por conseguinte, uma atit~de mental mais ativa e ate mesmo uma contribuic;ao positiva do espectador a mise-en-scene. Enquanto que, na montagem analitica, ele so pre­cisa seguir 0 guia, dirigir sua atenc;ao para a do diretor, que esco­lhe para ele 0 que deve ser visto, the e solicitado urn minimo de escolha pessoal. De sua atenc;ao e de sua vontade depende em parte 0 fato de a imagem ter urn sentido;

3. das duas proposic;oes precedentes, de ordem psicologica, decorre uma terceira que pode ser qualificada de metafisica.

Analisando a realidade, a montagem supunha, por sua pro­pria natureza, a unidade de sentido do acontecimento dramatico. Sem duvida, outro encaminhamento analitico seria possivel, mas entao teria sido urn outro fHme. Em suma, a montagem se opoe essencialmente e por natureza a expressao da ambiguidade. E 0

que a experiencia de Kulechov demonstra justamente por absurdo, dando a cada vez urn sentido preciso ao rosto cuja ambiguidade autoriza as tres interpretac;oes sucessivamente exclusivas.

Em contrapartida, a profundidade de campo reintroduz a am­biguidade na estrutura da imagem, se nao como uma necessidade (os filmes de Wyler sao pouco ambiguos), pelo menos como uma possibilidade. Por isso nao e um exagero dizer que Cidaddo Kane

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" ANDR£ BAZIN

o plano-l«Iilmcia do dirdOf moderno 010 renuncia l ~Onlagtm. ele • Ime­sn" I Ufo plUtica. A cma do suktdio frKaS58do em Cidad40 Krln~.

s6 pode seT cona:bido em profundidade de campo. A incerteza em que permanecemos da chave espiritual ou da interprela~o esta, a principia. inscrita nos pr6prios contornos da i~agem. .

- - :..!- Nolo que Welles se pralba recorrer aos procecilJ1lento,s expresSlo­niSlas da montagem, mas justamentc a utiliza~o ocaslonaJ deles. entre as "pianos-sequencia". em profundidade de campo, Ihes CO?­fere urn sentido novo. A montagem constiluia outrora a pr6pna materia do cinema, a textura do roteira. Em Cidadllo Kane, urn encadeamento de superposic;:Oes opOc:-se a continuidade de uma cena representada numa (mica tomada, cle e ouua m~alidade do relata. explicitamente abstrata. A montagem acelerada Jogava com o tempo e com 0 espac;o; a de WeUes nAo procura nos enganar, ao contrlrio, se propOe, por contraste, como uma condensa~lo temporal, 0 equivalente, por exemplo, do imperfeito frances ou do frequentativo ingles. Assim, a "montagem rapida" e a "mont~­gem de atracOes", as superposicOes que 0 cinema falado nlo mm empregara durante dez anos, voltam a ler um usa posslvel em rela­~o ao rwismo temporal de urn cinema sem montagem. Se nos demoramos no caso de Orson Welles, foi porque a data de seu apa­recimento cinemalogrifico (1941) marca bern 0 comClCO de urn

1\ EVOLUC;Ao 01\ LINOUI\GEM C INEMI\TOORAFICI\ 19

novo periado, e tambem porque seu caso e 0 mais espetacu!ar e 0

mais significativo em seus pr6prios excessos. Entretanto, Cidadllo Kane se insere num movimento de conjunto, num vasto desloca­mento geol6gico dos fundamentos do cinema, que confirma quase em tada parte, de algum modo, essa revo! u~ao da linguagem.

Eu encontraria uma confirmacAo disso, por caminhos diferen­tes, no cinema italiano. Em Paua e em Alemanha ano zero, de Roberto Rossellini, e em LodrOes de bidcleta, de Vittorio de Sica, o neo-realismo italiano opOe-se is formas anteriores do realismo cinematogrifico pelo despojamenlo de todo expressionismo e, em particular, pc:la ausencia total dos efeitos de montagem. Como em Welles, e apesar das oposiCOes de estilo, 0 neo-rea1ismo tende a dar ao rume 0 senlido da ambigiiidade do real . A prcocupacAo de Rossellini dianle do rOSIO da crianca de Alemanha ano uro e justamente oposta a de Kulechov diante do primeiro plano de Mosjukine. Trala-se de conservar seu misterio . NAo devemos nos iludir com 0 fato de a evolucAo neo-realista nAo parecer se tradu­zir, a principio. como nos Estados Unidos, por alguma revolucAo na tecnica da decupagem. ~o..muitos os meiQS para atin ir 0

~o.:J2sAe..RosseJ1ini e os de Dc Sica saQ menos ~ ~~ visam acabat com a '!!.Q!lL8M...m e a fazer entrar na tela L verdadeira continuidade da realid~e-.-Zavattini nAo sonha com outra coisa que fi at a vida de urn homem a quem nada acontece! 0 mais "esteta" dos neo-realistas, Luchino Visconti. reveJava - tAo cJarameote. alias. quanto Welles - 0

projeto fundamental de sua arte em La terra trema, filme com­posto quase unicamente de pianos-sequencia, no qual a preocupa­CAo de acambarcar a totalidade do acontedmento se traduz peJa profundidade de campo e por interminaveis panorimicas.

NAo poderiamos, porem, passar em revisla todas as obras que participam dessa evolucAo da linguagem desde 1940. E hora de ten­tar uma sintese dessas renexOes. Os U1timos dez anos parecem marcar os progressos dccisivos no campo da expresslo cinemato­grAfica. Foi propositalmente que parecemos perder de vista, a par­tir de 1930, a tendencia do cinema mudo ilustrada p8rticularmenle por Erich Von Slroheim, F. W. Murnau. R. Flaherty e Dreyer. NAo que parecesse extinta com 0 cinema falado . Pois, muito pelo conuArio. pensamos que cia representava 0 veio mais fecundo do cinema dilO mudo, 0 unico que, precisamente porque 0 essenciaJ de sua estetica nAo estava vinculado A montagem, atrala 0 realismo sonoro como urn prolongamento natural. ~ bern verdade, porern, que 0 cinema falado de 1930 a 1940 nlO Ibe deve quase nada a nAo seT' a ex~o gloriosa e retrospectivamente profCiica de Jean

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80 ANDRt;: BAZIN

I Em La /("Q l~mQ. de Luchino Visconti, a preocupa~"o de at;ambarcar a totalidade dos acontecimtnlO$ 5C Iradul pela profundidadt de campo e por inlerminivc:is panorlmicas. (r"", _ )

Renoir, 0 unico cujas pesquisas de mise-en-scene esforcam-se, ate A regra do jogo. para encontrar. para aiem das facilidades da momagern, 0 segredo de urn relato cinematografico capaz de expressar tudo sem retalhar 0 mundo, de revelar 0 sentido oculto dos seres e das coisas sem quebrar sua unidade natural.

Nao se trata, contudo, de iancar sobre 0 cinema de 1930 a 1940 urn descredito que nio resistiria, alias, de modo algum. a evidencia de algumas obras-primas mas simplesmente de inlrodu­zir a ideia de urn progresso dialetico cuja grande arliculacao e marcada pelos anos 40. E verdade que 0 cinema falado anunciou a morte de uma certa estetica da linguagem cinematografica, mas somente daqueJa que 0 distanciava mais de sua voca~Ao realiSla. Da montagem, no entanto, 0 cinema falado tinha conservado 0 essencial, a descri~o descontinua e a anaIise dramatica do evento. Renunciou it mettfora e ao simbolo para esfon;ar-se na ilus!o da representa~Ao objet iva. 0 expressionismo da montagem desapare­ceu qua.se que completamente, mas 0 realismo relativo do estilo

A EVOLU<;AO OA LlNGUAGEM CINEMATOORAFICA 81

de decupagem, que lriunfa geralmente por voila de 1937, impli. cava numa IimilacAo congenila da qual nAo podemos nos dar conla enquanto os assuntos tratados Ihe eram perfeitamente apro­priados. ~ 0 que acontecia na comedia americana, que atioge sua perfei~ao no Ambito de uma decupagem em que 0 realismo do tempo nAo desempenhava papel algum. Essencialmente 16gica, como 0 vaudeville e 0 jogo de palavras, perfeitameote convencio­nal em seu conteudo moral e sociol6gieo, a comedia amerieana s6 tinba a ganhar com 0 rigor descritivo e linear, com os recu rsos rltmicos da decupagem c1assiea.

Foi, provavelmente, sobretudo com a tendencia Stroheim­Murnau , quase eclipsada de 1930 a 1940, que 0 cinema reata mais ou menos conscientemente durante os ultimos dez anos. Mas ele nao se limita a prolongA-la, busca tambem ali 0 segredo de uma regenerescencia realista do relato; cste toma-se novamente capaz de integrar 0 tempo real das coisas, a dura~ao do evento ao qual a decupagem c1assiea substituia insidiosamente urn tempo intelec­tual e abstrato. Longe, porem, de eliminar definitivamente as con­quistas da montagem, ele Ihes da, ao contrario, uma relatividade e urn sentido. t: apenas em relaclo a urn realismo acrescido a ima­gem que urn suplemento de abslracAo torna-5e passive!. 0 repert6-rio estilistico de urn direlor como Hitchcock, por exemplo, estende· se dos poderes do documento bruto as superposicOes e aos closes. Mas os primeiros pianos de Hitchcock nllo sAo os de C. B. de Mille em Engonor e perdoor. SAo apenas uma figura de esti lo entre outras. Em OUltOS lermos, no tempo do cinema mudo, a monta­gem tvOCtlVO 0 que 0 realizador queria dizer; em 1938, a decupagem descreviaj hoje, enfim, podemos dizer que 0 diretor escreve direla­mente em cinema. A imagem - sua eslrulura plastica, sua organi­za~ao no tempo -, apoiando-se num maior reaiismo, dispOe assim de muito mais meios para innelir, modificar de dentro a reaJidade. o cineasta nlo e somente 0 concorrente do pintor e do drarnaturgo. mas se iguala enfim ao romancista.

NOTAS

I. Este mudo mull. da sloles!: de Ir& artigos. 0 primeiro esc:rilo para 0 livro ani­verstrio VlII,t IIIIS tk cilllmo It VelliK' (I9S2). 0 squndo, intilUlldo "A decupqem e lUI ev~l~o". publicado no n' 93 (julho de 19S5) da revisla L 'A,e Nou~, eo lercelro nos Colliers du Cinlmo (nf I, 19SO). 2. IlUStratOes precisas dm. IllAIi5e podem SO" encoolradali no proprio nlUdo sobre Wi1.Uam Wyler.

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VIII POR UM CINEMA IMPUROI

Defesa da adapta<;ao

Tomando alguma disHincia critica da produ<;ao dos ultimos dez ou 15 anos, aparece rapidamente como urn dos fenomenos que domina sua evolu<;ao 0 recur so cada vez mais significativo ao patrimonio litenirio e teatral.

Nao e de hoje, e claro, que 0 cinema vai angariar seu bern no romance e no teatro; mas nao parece ser da mesma maneira. A adapta9ao do Conde de Monte Cristo, de Os miseraveis ou de Os tres mosqueteiros nao segue a me sma ordem que a da Sympho­nie pastorale, de Jacques Ie JataUste (Les dames du bois de Bou­logne), de Adu/tera ou do Journal d'un cure de campagne. Alexan­dre Dumas ou Victor Hugo fornecem tao so mente aos cineastas personagens e aventuras cuja expressao liteniria e em larga escala independente. Javert ou d' Artagnam fazem desde entao parte de uma mitologia extra romanesca, gozam, de certo modo, de uma existencia autonoma, cuja obra original nao passa de uma mani­festa9aO acidental e quase superflua. Por outro lado, continuam sendo adaptados romances por vezes excelentes, mas tratados como sinopses bern desenvolvidas. Sao igualmente personagens de uma intriga, e ate mesmo - 0 que e urn grau a mais - uma atmosfera, como em Simenon, ou urn clima poetico como em Pierre Very, que 0 cineasta vai procurar no romancista. Mas, ainda ai, poderiamos imaginar que 0 livro nao tinha sido escrito e que o escritor seja apenas urn roteirista particularmente prolixo. Isso e tao verdadeiro que muitos romances americanos do tipo "Serie noir" sao visivelmente escritos com dupla finalidade e em vista de uma possivel adapta9aO por Hollywood. E preciso ainda obser­var que 0 respeito a literatura policial, quando ela apresenta alguma

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POR UM CINEMA IMPURO 83

originalidade, torna-se cada vez mais imperativo; as liberdades com 0 autor nao deixam de vir acompanhadas de certa rna consci­encia. Mas quando Robert Bresson, antes de levar as telas Jour­nal d'un cure de campagne, que e sua inten9aO seguir 0 livro pagina por pagina, se nao frase por frase, vemos que se trata de algo totalmente diferente e que valores novos estao em jogo. 0 cineasta ja nao se contenta em plagiar - como fizeram no final das contas, antes dele - Corneille, La Fontaine ou Moliere; pro­poe-se a transcrever para a tela, numa quase identidade, uma obra cuja transcendencia ele reconhece a priori. E como poderia ser dife­rente, quando essa obra esta subordinada a uma forma tao evo­luida da literatura que os herois e a significa9ao de seus atos depen­dem intimamente do estilo do escritor, a partir do momento em que estao confinados como que num microcosmo cujas leis, rigoro­samente necessarias, deixam de vigorar no exterior, a partir do momenta em que 0 romance abandonou a simplifica~ao epica, e ja nao e uma matriz de mitos, mas 0 lugar de interferencias sutis entre 0 estilo, a psicologia, a moral ou a metafisica?

Com 0 teatro, 0 sentido des sa evolu9ao e ainda mais acen­tuado. Como 0 romance, a literatura dramatica sempre se deixou violentar pelo cinema. Mas quem ousaria comparar 0 Hamlet, de Laurence Olivier, com emprestimos retrospectivamente burlescos que 0 filme de arte fez outrora, ao repertorio da Comedie-Fran­raise? Sempre foi uma tenta9ao para 0 cineasta fotografar 0 tea­tro, visto que este ja e urn espetaculo; mas 0 resultado e conhe­cido. E e aparentemente com razao que a expressao "teatro filma­do" se tornou 0 lugar-comum da injuria critica. Pelo menos 0

romance requeria uma certa margem de cria~ao para passar da escritura a imagem. 0 teatro, ao contrario, e urn falso amigo; suas semelhan9as ilusorias com 0 cinema enredavam este numa via de resguardo, 0 lan~avam num barranco de todas as facilidades. Se, no entanto, 0 repertorio dramMico do Boulevard, por exemplo, esteve na origem de raros filmes passaveis, foi porque 0 diretor tomou algumas vezes com a pe9a liberdades analogas aquelas que se autorizou com 0 romance, retendo apenas essencialmente per so­nagens e uma a9aO. Ainda ai, porem, 0 fenomeno - que parece fixar, ao contrario, em principio inviolavel 0 respeito do carater teatral do modelo - e radicalmente novo.

Os filmes que acabamos de citar, e outros, cujos titulos serao certamente logo mais lembrados, sao numerosos demais e de qua­lidade muito pouco contestavel para figurar como exce90es confir-

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mando a regra. Muito pelo contnirio, tais obras balizam ha dez anos uma das mais fecundas tendencias do cinema contemporaneo.

"Isto e cinema", proelamava outrora Georges Altmann na capa de um livro consagrado a glorifieac;ao do cinema mudo, de Pastor de olmos a 0 velho e 0 novo. Sera preciso, de agora em diante, considerar como velharias os dogmas e as esperanc;as da primeira critiea cinematografica que briga pela autonomia da setima arte? Sera que 0 cinema, ou 0 que resta dele, e hoje incapaz de sobreviver sem as muletas da literatura e do teatro? Estaria em vias de se tornar uma arte subordinada e dependente, de um numero extra, de alguma arte tradicional?

o problema apresentado a nossa reflexao nao e, no fundo, tilo novo assim: e, a principio, 0 da influencia reciproca das artes e da adaptac;ao em geral. Se 0 cinema tivesse dois ou tres milhoes de anos, sem duvida veriamos mais elaramente que ele nao escapa as leis comuns da evoluc;ao das artes. Mas ele so tem 60 anos e as perspectivas historic as estao prodigiosamente esmagadas .• O que se estende normalmente numa durac;ao de uma ou duas civiliza­c;oes, reduz-se aqui numa vida humana. E isso nao e a principal causa de erro, pois essa evoluC;ao acelerada nao e de modo algum contemporanea a das outras artes. 0 cinema e jovem, mas a litera­tura, 0 teatro, a musiea, a pintura sao tao velhos quanto a histo­ria. Do mesmo modo que a educac;ao de uma crianc;a se faz por imitac;ao dos adultos que a rodeiam, a evoluc;ao do cinema foi necessariamente inflectida pelo exemplo das artes consagradas. Sua historia, des de 0 inicio do seculo, seria portanto a result ante dos determinismos especifieos da evoluc;ao de qualquer arte e das influencias exercidas sobre ele pelas artes ja evoluidas. E mais, 0

imbr6glio desse complexo estetico e agravado pelos incidentes sociologicos. 0 cinema impoe-se, com efeito, como a unica arte popular numa epoca em que 0 proprio teatro, arte social por exce­lencia, nao toea senao uma minoria privilegiada da cultura ou do dinheiro. Talvez os ultimos 20 anos do cinematografo contem em sua historia como cinco seculos em literatura: e pouco para uma arte, muito para nosso sen so critieo. Tentemos, pois, circunscre­ver 0 campo destas reflexoes.

Notemos em primeiro lugar que a adaptac;ao, considerada mais ou menos como 0 quebra-galho mais vergonhoso pel a critica modern a , e uma constante da historia da arte. Malraux mostrou o que 0 Renascimento pictorial devia, em sua origem, a escultura gotiea. Giotto pinta em relevo; Mich.elangelo recusou voluntaria-

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mente os recursos da cor a oleo, 0 afresco sendo mais conveniente a uma pintura escultural. E, sem duvida, isso nao passou de uma etapa logo ultrapassada em direc;ao a liberac;ao da pintura "pura". Dirao, porem, que Giotto e inferior a Rembrandt? Mas 0 que sig­nificaria tal hierarquia? Negarao que 0 afresco em relevo tenha sido uma fase necessaria e por isso esteticamente justificada? 0 que dizer tam bern das miniaturas bizantinas ampliadas na pedra para dimensoes dos tim panos de catedrais? E se considerassemos agora 0 romance, sera preciso criticar a tragedia classica por adap­tar para a cena a pastoral romanesca, ou a Mme. Lafayette pelo o que ela deve a dramaturgia raciniana? E 0 que e verdade para a tecnica 0 e, ainda mais, para os temas que circulam livremente atraves das mais variadas expressoes. Esse e urn lugar comum na historia literaria ate 0 seculo XVIII, quando a nOC;ao de plagio mal comec;ava a aparecer. Na Idade Media, os gran des temas cris­taos sao encontrados no teatro, na pintura, nos vitrais etc.

o que provavelmente nos eng ana no cinema, e que, ao contra­rio do que ocorre geralmente num cielo evolutivo artistico, a adap­tac;ao, 0 emprestimo, a imitac;ao nao parecem situar-se na origem. Em contrapartida, a autonomia dos meios de expressao, a origina­lidade dos temas nunc a foram tao grandes quanto nos primeiros 25 ou 30 anos do cinema. Podemos admitir que uma arte nascente tenha procurado imitar seus primogenitos, para depois manifestar pouco a pouco suas proprias leis e temas; mas nao compreende­mos bem que ela ponha uma experiencia cada vez maior a servic;o de obras alheias a seu talento, como se essas capacidades de inven­C;ao, de criac;ao especifica estivessem em razao inversa de seus pode­res de expressao. Dai a considerar essa evoluc;ao paradoxal como uma decadencia s6 ha um passo, que quase toda a critica nao hesi­tou em dar no inicio do cinema falado.

Era, porem, desconhecer os dados essenciais da hist6ria do filme. Constatar que 0 cinema tenha aparecido "depois" do ro­mance ou do teatro nao significa que ele se alinhe atras deles e no mesmo plano. 0 fen6meno cinematografico nao se desenvol­veu de modo algum nas condic;oes sociol6gicas em que as artes tra­dieionais subsistem. Seria 0 mesmo que dizer que 0 baile popular e 0 be-bop sao herdeiros da coreografia elassica. Os primeiros cine­astas extorquiram efetivamente seus bens da arte da qual iriam conquistar 0 publico, ou seja, do circo, do teatro mambembe e music-hall que fornecerao, aos filmes burlescos em particular, uma tecnica e interpretes. E conhecida a frase atribuida a urn certo Zecca, que descobre urn certo Shakespeare: "Nao e que esse ani-

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mal nao viu as coisas bonitas!", Zecca e seus companheiros nao corriam 0 risco de serem influenciados por uma literatura que, exatamente como 0 publiCo ao qual se dirigiam, nao liam. Em compensa<;ao, foram influenciados pela literatura popular da epoca, a qual devemos, com 0 sublime Fantomas, uma das obras-primas da tela. 0 filme recriava as condi<;oes de uma autentica e grande arte popular, ele nao desdenhou as formas humildes e despreza­das do teatro mambembe ou do romance folhetim. Houve, e ver­dade, uma tentativa de ado<;ao desse filho que seguiu a profissao do pai pelos belos senhores da Academia da Comedie-Franraise; mas 0 fracasso do filme de arte confirma a vaidade desse empreen­dimento contra a natureza. A rna sina de Edipo ou do principe da Dinamarca era para 0 cinema principiante como "nossos ances­trais os gauleses" para os negrinhos de uma escola primaria da mat"a africana. Se encontramos, hoje, algum interesse e charme nisso, e como 0 interesse pelas interpreta<;6es paganizadas e inge­nuas da liturgia catolica por uma tribo selvagem que comeu seus missionarios.

Se os evidentes emprestimos (0 saque sem vergonha das tecni-cas e do pessoal do music-hall anglo-saxao de Hollywood) do que subsistia, na Fran<;a, de urn teatro popular nas feiras enos buleva­res, nao provocou contesta<;oes esteticas, foi porque, em principio, ainda nao existia critica cinematografica. E tam bern porque os avatares dessas formas de arte ditas inferiores nao escandalizavam ninguem. Ninguem se preocupava em defende-Ias, a nao ser os inte­ressados que tinham mais conhecimento de sua profissao do que preconceitos filmologicos.

Quando 0 cinema tomou efetivamente 0 lugar do teatro, ele o fez, portanto, reatando, num salta sobre urn ou dois seculos de evolu<;ao, com as categorias dramaticas mais ou menos abandona­das. Sera que os mesmos historiadores eruditos que nao ignoram nada da farsa no seculo XVI notavam sua vitali dade, entre 1910 e 1914, nos estudios de Pathe e Gaumont e sob 0 jugo de Mack Sennet?

Sem duvida, nao seria dificil proceder a mesma demonstra<;ao no que concerne ao romance. 0 filme de episodios, que adapta a tecnica popular da novela, reencontra de fato as velhas estruturas do conto. Foi 0 que senti pessoalmente ao rever Os vampiros, de Feuillade, numa dessas sessoes cujo segredo Henri Langlois, 0 sim­patico diretor da Cinemateca Francesa, tern. Naquela noite, so urn dos dois projetores funcionava. Alem do mais, a copia aprc-

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sentada nao era legendada e suponho que nem 0 proprio Feuillade teria encontrado seus assassinos. As apostas estavam abertas para saber quem eram os mocinhos e quem eram os bandidos. Fulano, que parecia ser urn bandido, revelava-se vitima no rolo seguinte. Enfim, a luz da sala, acesa a cad a dez minutos para recarregar 0

projetor, multiplicava os episodios. Apresentada desse modo, a obra-prima de Feuillade revelava de maneira brilhante 0 principio estetico de seu charme. Cada interrup<;ao provocava urn "Ah!" de decep<;ao e a retomada uma esperan<;a de alivio. A historia, da qual 0 publico nao compreendia nada, impunha-se a sua aten­<;ao e ao seu desejo, pela pura e simples exigencia do relato. Ela nao era de modo algum uma a<;ao pre-existente cortada arbitraria­mente por entreatos, mas uma cria<;ao indevidamente interrompi­da, uma fonte inesgotavel cujo fluxo teria sido retido por uma misteriosa mao.

Dai 0 mal-estar insuportavel provocado pelo "a seguir no pro­ximo capitulo" e a espera ansiosa, nao tanto dos proximos aconte­cimentos mas do escoamento de urn relato, da retomada de uma cria<;ao suspensa. Alias, 0 proprio Feuillade nao procedia de outra maneira para fazer seus filmes. Ignorando a cad a vez a continua­<;ao, ele rodava gradativamente, conforme a inspira<;ao matinal, o episodio seguinte. Autor e espectador estavam na mesma situa­<;ao: a do rei e a de Scheherazade; a obscuridade renovada da sala de cinema era a mesma das Mil e uma noites. 0 "a seguir" do verdadeiro folhetim, como do velho filme de episodios, nao e por­tanto uma sujei<;ao exterior a historia. Se Scheherazade tivesse con­tado tudo de uma so vez, 0 rei, tao cruel quanto 0 publico, teria mandado executa-l a ao amanhecer. Tanto urn quanto 0 outro pre­cisam sentir a potencia do charme por sua interrup<;ao, saborear a deliciosa espera do conto que se substitui a vida cotidiana, que nao e mais que a solu<;ao de continuidade do sonho.

Vemos, portanto, que a pretensa pureza original dos primiti­vos do cinema nao resiste muito a aten<;ao. 0 cinema falado nao marca 0 limiar de urn paraiso perdido para alem do qual a musa da setima arte, descobrindo sua nudez, teria come<;ado a se cobrir com trap os furtados. 0 cinema nao escapou a lei comum: ele a sofreu a seu modo, que era 0 unico possivel dentro de sua conjec­tura tecnica e sociologica.

. E. ponto pacifico, porem, que nao basta ter provado que a malOfla dos filmes primitivos nao eram emprestimos e saques, para ter ao mesmo tempo justificado as formas atuais da adapta-

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.. ANORt BAZIN

~o. Destituido de sua posic;:lo habitual, 0 advogado do "cinema puro" podera ainda afi rmar que, quanto mais 0 comercio entre as anes se da a nlvel das formas primilivas. mais ele e fadl. ~ bern possivel que a (arsa deva ao cinema urn novo vigor, mas, justa­menle, sua dicacia era sobretudo visual - e roi por ela. alilis, e depois pelo music-hall, que a antiqUissima lradiclo da mimica se perpetuou. Quanto mais avan~amos na hist6ria e na hierarquia dos generas, mais as diferencia~ se accntuam, como na evolu­c;:30 animal. nas cxtremidades dos ramos que procedem de urn (ronco comurn. A polivalenda original desenvolveu suas virtualida­des e, desde entlo, e1as esl:io ligadas a rafmas por demais sutis e complexas para que passamos lesa-Ias sem comprometer a pr6pria obra. Giotto pode pintar em releva sob a influencia direta da escul­tura arquitetura1. mas Raphael e Vinci ja se opOem a Michelan­gelo por fazer da pintura uma arte radiealmente autonoma.

Nao e certo que tal obj~ao resista inteiramente a uma discus­sao detalhada. e que formas evoluidas nao continuem a reagi r umas sobre as outras, mas e verdade que a hist6ria da arte evolui no sentido da autonomia e da especificidade. 0 conceito de arte pura (poesia pura. pintura pura etc.) nao e desprovido de sentido; ele se refere a uma rea1idade ~tetica tao difleil de definir quanto de contestar. Em todo caso. se certa mistura das artes ainda e pos­sivel. como a mistura dos generos. nao decorre dai que qualquer mescla seja bem-sucedida. Ha eruzamentos fecundos, que adicio­nam as quaJidades dos genitores, hi tam~m sedutores hibridos, mas estereis, hA enfim acasaJamentos monstruosos, que 56 engen­dram quimeras. Desistamos, portanto. de invocar os precedentes da origem do cinema e retomemos 0 problema ta1 como parecc: se coloca! hoje.

Sc: a crltica deplora freqiiememente os empr~timos que 0 cinema faz a literatura. a existencia da influencia inversa e gera1-mente tida tanto por legitima quanto por evidente. E quase um lugar-comum afirmar que 0 romance contemporaneo, e particular­mente 0 romance americano, sofreu a influencia do cinema. Dei· xemos naturalmente de lado livros em que 0 empresLimo direto e deliberadamente visivel e, por i550 mesmo, menos signlficativo, como Loin de rueil. de Raymond Queneau . 0 problema e saber se a arte de Dos Passos, Caldwell. Hemingway ou Ma1raux pro­cede da tkniea cinematografica. Na verdade. nao acreditamos muito nisso. Scm duvida, e como nao padena ser de outra maneira, os novos mOOos de percep<:l.o impostos pela teia, maneiras de ver

POR UM CINEMA IMPURO

£Spo/f, de MalraL1,l: 0 que ieria 0 cmema $I! ele se: InJplrasse dos roman­Cd ... "innuenciados" pelo cinem. . V--,

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como 0 primeiro plano, ou estruturas de relalo, como a monta­gem, ajudaram 0 romancisla a renovar seus acess6rios tknicos. Mas. na medida em que se confessa as referencias cinematogrAfi­cas, como em Dos Passos, elas slo ao mesmo tempo recusaveis: acrescentam-se simplesmente ao aparato de procedimentos com os quais 0 escrilor constr6i seu universo particular. Mesmo admi­tindo que 0 cinema lenha desviado 0 romance sob a inOuencia de sua gravitac;ao estetica, a a~lo da nova arte nAo ultrapassou, sem duvida, a que 0 teatro pode exercer, por exemplo, sobre a lite­ratura no 5&:ulo passado. A influencia da arte vizinha dominante e provavelmente uma Id imuu1vel. E claro que, num Graham Gre­ene, poderiamos acreditar diseernir semelhanc;as irrecusaveis. Se olharmos, porern. com mais aten~ao, perceberemos que a prelensa tknica cinemalogrifiea de Greene (nlo esqu~amos que ele foi, durante vArios anos, critieo de cinema) e, na realidade, a que 0 cinema nao emprega. De modo que nos perauntamos constame­mente, quando "visualizamos" 0 eSlilo do romaneista, por que os cineastas se privam tolamente de uma tknica que Ihes conviria llo bern. A originalidade de urn mme como £Spa;r. de Malraux, e de nos revelar 0 que seria 0 cinema se se inspirasse nos roman-

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90 ANDRE BAZIN

ces... "influenciados" pelo cinema. Que conclusao tirariamos disso? Se nao que seria preciso, antes, inverter a proposi~ao habi­tual e se interrogar sobre a influencia da literatura moderna sobre os cineastas.

o que se entende, com efeito, por "cinema" no problema cri­tico que nos interessa? Se e urn modo de expressao por represent a­~ao realista, por mero registro de imagens, uma pur a visao exte­rior opondo-se aos recursos da introspec~ao ou da analise roma­nesca classica, entao e preciso observar que os romancistas anglo­saxoes ja haviam encontrado no behaviorismo as justifica~oes psi­cologicas de tal tecnica. Mas, alem disso, 0 critico literario tern ideias imprudentemente preconcebidas do que e 0 cinema a partir de uma defini~ao bern superficial de sua realidade. Nao e porque a fotografia e sua materia-prima que a setima arte esta fadada a dialetica das aparencias e a psicologia do comportamento. Se e verdade que ela so pode apreender seu objeto do exterior, ha mil maneiras de agir sobre sua aparencia para eliminar qualquer equi­voco e fazer dela 0 signo de uma, e apenas uma, realidade inte­rior. Na verdade, as imagens da tela sao, em sua imensa maioria, implicitamente de acordo com a psicologia do teatro ou do romance de analise classica. Elas supoem, junto com 0 sen so comum, uma rela~ao de causalidade necessaria e sem ambigiiidade entre os sen­timentos e suas manifesta~oes; postulam que tudo esta na conscien­cia e que a consciencia pode ser conhecida.

Se entendemos, ja com mais sutileza, por "cinema" as tecni­cas de relato aparentadas com a montagem e com a mudan~a de plano, as mesmas observa~oes continuam sendo validas. Urn ro­mance de Dos Passos ou de Malraux nao se opoe menos aos fil­mes com que estamos acostumados do que a Fromentin ou a Paul Bourget. Na realidade, a epoca do romance americano nao e tanto a do cinema, mas a de uma certa visao do mundo, visao in­formada sem duvida pel as rela~oes do homem com a civiliza~ao tecnica, mas cuja influencia 0 proprio cinema, fruto dessa civiliza­~ao, sofreu menos do que 0 romance, apesar dos alibis que 0 cine­asta pode fornecer ao romancista.

Alias, em seu recurso ao romance, 0 cinema inspirou-se na maio­ria das vezes nao nas obras em que alguns querem ver sua influen­cia previa, como pode parecer logico, mas em Hollywood, na litera­tura de tipo vitoriano, e na Fran~a, nos senhores Henry Bordeaux e Pierre Benoit. Melhor - ou pior - quando urn cineasta ameri­cano se ataca excepcionalmente a uma obra de Hemingway, como Por quem os sin os dobram, e de fato para trata-Ia num estilo tradi­cional que conviria igualmente a qualquer romance de aventura.

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POR UM CINEMA IMPURO 91

Tudo se passa, portanto, como se 0 cinema estivesse cinqiienta anos mais atrasado do que 0 romance. Se nos atermos a uma influencia do primeiro sobre 0 segundo, entao sera preciso supor a referencia a uma imagem virtual que so existe atras da lente do critico e em rela~ao a seu ponto de vista. Seria a influencia de urn cinema que nao existe, do cinema ideal que 0 romancista faria ... se fosse cineasta; de uma arte imaginaria que ainda esperamos.

E, meu Deus, essa hipotese nao e tao absurda. Vamos rete­la, pelo menos como esses valores imaginarios que em seguida sao eliminados da equa~ao que ajudaram a resolver. Se a influen­cia do cinema sobre 0 romance moderno pode iludir bons espiri­tos criticos, foi porque, com efeito, 0 romancista utiliza hoje tec­nicas de relato, porque ele adota uma valoriza~ao dos fatos, cujas afinidades com os meios de expressao do cinema sao indubitaveis (seja que as tomou emprestado diretamente, seja, como nos pen­samos, que se trata de uma especie de convergencia estetica que polariza simultaneamente varias formas de expressao contempora­neas). Porem, nesse processo de influencias ou de corresponden­cias, 0 romance foi mais longe na logica do estilo. Foi ele, por exemplo, quem mais sutilmente tirou partido da tecnica da mont a­gem, e da subversao da cronologia; foi ele, sobretudo, quem sou be elevar a uma autentica significa~ao metafisica 0 efeito de urn obje­tivismo inumano e como que mineral. Que camera ficou tao exte­rior a seu objeto quanto a consciencia do heroi de 0 estrangeiro, de Albert Camus? Na verdade, nao sabemos se Manhattan trans­fer ou La condition humaine teriam sido muito diferentes sem 0

cinema, mas em compensa~ao estamos certos que Thomas Garner e Cidadiio Kane nunca teriam sido concebidos sem James Joyce e Dos Passos. Assistimos, no apice da vanguarda cinematogrMica, a multiplica~ao dos filmes que tern a ousadia de se inspirar num estilo romanesco, que poderia ser qualificado de ultra-cinematogra­fico. Nessa perspectiva, 0 reconhecimento do emprestimo e secun­dario. A maioria dos filmes em que pensamos no momenta nao sao adapta~oes de romance, mas certos episodios de Paisa devem muito mais a Hemingway (os pantanos) ou a Saroyan (Napoles), do que Por quem os sinos dobram, de Sam Wood, ao original. Em compensa~ao, 0 filme de Malraux e 0 equivalente rigoroso de alguns epis6dios de L 'Espoir e os melhores dentre os filmes ingleses recentes sao adapta~oes de Graham Greene. A mais satis­fatoria, a meu ver, e a fita, baseada modestamente em Le Rocher de Brighton, que passou quase desapercebido, enquanto John Ford se perdia na suntuosa trai~ao de Dominio dos btirbaros.

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" ANDR~ BAZIN

A sombr(l do P'ltlbulo , de Chrillian J.que (com Maria Casarb no papel de SanKVmn.). Tr.i~1o do essential ou sedulora ;ntrodu"lo .. obra de Stmdhal? (J'GOo ___ I

Saibamos ver portanto. em primeiro lugar I aquila Que as melho­res rumes contemporineos devem aos romancistas modernos e, stria facil demonstra-Io, ate e sobretudo em Ladr6es de bicicielo. EntlO. longe de nos escandaJizarmos com ~ adapta~Oes. veremos nelas, se n!io, ai de mim, uma certa garanua, pelo menos urn pos­siveJ fator de progresso do cinema. Tal como nele mesmo, enrim, o romancista 0 transforma!

Voces me dirlo, talvez: isso podc valer para as romances modernos, se 0 cinema nAo faz outra coisa que nAo encantrar Dele, multiplicado por 100, 0 bern que e1e Ihes fez; mas de que vale 0 raciodnio Quando 0 ci neasta pretende se inspirar em Gide a u em Stendha1? E por que nllo, em Proust au Mme. La Fayette?

E por q'ue nlo, com efeilo? J acques Bourgeois analisou de maneira brilhanle, num artigo da Revue du Cinema, as afinidades de Em busca do tempo perdido com os meios de expresslo cinema­togn\ficos. Na realidade, os verdadeiros obstaculos que devem ser vencidos, na hip6te5e de tais adaptacOO, nl0 sAo de ordem este-

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tica; nAo dependem do cinema como arte, mas como fato sociol6-gico e como industria. 0 drama da adaplacAo e 0 da vulgarizacAo. Pudemos ler num artigo publicitirio do interior esta definicAo do filme A sombra do po/(bulo: "Baseado no celebre romance de capa e espada". A verdade sai por vezes da boca dos comercian­les de filme que nunca leram Stendhal. Devemos condenar por isso 0 filme de Christian Jaque? Sim, na medida em que traiu a obra, e em que acreditamos que tal uaiclo nAo era fatal . NAo, se consideramos, em primeiro lugar, que essa adaptacAo e de quali­dade superior ao mvel medio dos filmes, e que ela conslitui ain­da, afinal de conlas, uma sedutora introduc10 a obra de Stendhal, a qual ela certamente rendeu novos leitores. ~ absurdo indignar­se com as degradacOO sofridas pelas ohras-primas literarias na tela. pelo menos em nome da literatura. Pois, por mais aproxima­tivas que sejam as adaptaCOes, elas nAo podem causar danos ao original junto a minoria que 0 conhece e aprecia; quanto aos igno­rantes, das duas uma: ou se contentarAo com 0 filme, que certa­mente vale por urn outro, ou terAo vontade de conhecer 0 modelo, o que e urn ganho para a literatura. Esse racioclnio est! conrir­mado par tOOas as eslatisticas da e(ticAo. que aeun urn aurnenlO surpreendente da venda das obras literarias depois da adaptat;ao pelo cinema. NAo, na verdade a cuhura em geral e a literatura em particular nada tern a perder com a aventura!

Resta 0 cinema! E penso, com efeito, ser cablvel anigir-se com o modo como ualamas por demais frequentemente 0 capital Iitera­rio; no enlanto, mais do que por respeito a Iiteratura. porque 0 cineasta 56 teria a ganhar com a fidelidade. Bern mais evoluldo. dirigindo-se tamhem a urn pubtico relativamente culto e wgente, o romance propOe ao cinema personagens mais complexos e, nas relaCOes enue a forma e 0 fundo, urn rigor e uma sutileza As quais a tela nAo esta acastumada. E evidente que, se a matma e1abo­rada, sobre a qual uabalham roteiristas e diretores, tern a priOri uma qualidade intelectual bern superior a media cinematografica, dois empregos sao passiveis: ou a diferenca de nivel e 0 prestigio artlstico da obra original servem meramente da cau(:Ao ao filme, de reservat6rio de ideias e de aarantia de qualidade - e 0 caso de Amore.r de Carmem, de A sombra do patlbulo ou de 0 idio/a -, ou os cineastas se esfor~am honestamente pela eQuivalSncia inte­gral , tentam ao menos nlo mais inspirar-se no Livro, nAo somente adapta-Io, mas traduzi-Io para a tela - e 0 caso, par exemplo. de Sitifonia pas/oral, de Adil(tera, de 0 (dolo co/do ou Le Jour­nal d'un curi de campagne. NAo aped.rejemos os fabricantes de

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.. ANDR£ BAZIN

imagens que "adaptam" simpHficando. A trai~llo deles. como dis­semos, e relativa e a literatura nada perde com isso. Mas sAo obviamente as segundos que dio esperanl;:8 ao cinema. Quando as comportas da repress. sAo abenas. 0 nivel media da Agua que se estabelece e poueo mais elevado do que 0 do canal. Quando se flIma "Madame Bovary" em Hollywood. por maior que seja a di­ferem;a de nlvel estetico entre urn filme americana media e a obra de Flaubert, 0 rcsultado e urn filme americana standard que s6 tern, afioat, 0 mal de se chamar ainda Madame Bavory. E nlio pode seT diferente se confrontannos a obra literaria com a eoarme e poderosa Massa da industria cinematografica: e 0 cinema que nivela tudo. Quando, ao contrario, gr8.,as a alguma convergencia proplcia de circunslllncias, 0 cineasla pode se propor a (ralar 0 livra diferentemente de urn roteiro de serie, e urn pouco como se todo 0 cinema se elevasse em dir~Ao da literatura. E 0 caso de Madame Bovary, de Jean Renoir, ou de Une partie de campagne. E verdade que esses dois exernplos nAo sAo muito bons, nAo por causa da quaJidade dos rumes, mas prttisamente porque Renoir e rnuito rnais tiel ao espirito do que ao texto da obra. 0 que nos toea nela e que seja paradoxalmente compativel com uma indepen­d~ncia soberana. E isso porque Renoir tern a justincativa de uma geniatidade certamente tAo grande quanto a de Flaubert e de Mau­passant. 0 fenOrneno ao qual assistimos e enUio com para vel ao da traduc;Ao de Edgar Allan Poe por Baudelaire.

Seria seguramente preferlvel que todos os diretores fossern geniais; poderiamos pensar que nAo haveria rnais problema de adaptacrlo. 13. e born demais que 0 critico possa contar algumas vezes com 0 talento delas! Ele basta para oossa tese! Nilo e proi­bido imaginar 0 que teria sido Adullera rodado por Jean Vigo, mas felicitemo-nos assim mesmo com a adaptalOAo de Claude Autant-Lara. A fidelidade a obra de Radiguet nAo somenle obri­gou os roteiristas a nos propor personagens interessantes, relati­vamente complexos, mas os incitou a quebrar algumas conven­I;Oes morais do espelaculo cinematografico, a expor-se ao risco (sabiamente calculado, mas quem pode censura.-Ios por iss01) dos preconceitos do publico. Ela alargou 0 horizonte intelectual e moral do espectador e abriu os caminhos para outros filmes de qualidade. Entretanto, isso nAo e tudo, e e errOneo apresentar a fidelidade como uma sujeil;!o, necessariamente negativa, a leis este­ticas a1heias. 0 romance tern sem duvida seus pr6prios meios, sua matena e a linguagem, nSo a imagem, sua alOSo confidencial sobre o leitor isolado n&o e a mesma que a do nt.me sobre a mullidAo

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G?ard ~hilipt ~ Micheline Prcsle an Adu!lwtI, de Claude AUUlnt.Lara. A ~ QflCmatopiflCa ~ direiarnm.l~ proportional' ftddidade. r- u.to..oo

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~as salas escuras. Mas justamente as diferenl;8S de estruturas este­tleas tomam ainda mai, delicada a procura das equival~ncias elas requerem .ainda mai, invenlOAo e imaginal;Jo por parte do cin~sta que al!"eJa ~ealmente a semelhan~. Podemos afirmar que, no domlmo da hnguagem e do estilo, a cri8l;lo cinemalografica e dire­tamente proporcional • fidelidade. Pelas mesmas razOes que fazern COm que a tradu~o jjteral 01.0 valha nada, com que a tradul;!o

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.. A,NDRIl BAZIN

livre demais nos par~ condenavel, a boa adapta~o deve conse· guiT reslituir 0 essencial do texto e do espirito. Sabemos. parern, que intimidades com a lingua e com sua genialidade pr6pria exi· gem uma boa tradu~o. Por exemplo, podemos considerar espe<:i­ficamente IiterArio 0 efeitO dos famosos passados simples de Andre Gide e pensar Que sAo sutilezas que 0 cinema nAo poderia lradu­ziT. Ora, nAo e ceno que DelanDoy. na Sin/onia pasloral, nlo tenha encontrado 0 equivalente em sua mise-en-sane: a neve sem­pre prescntt estA carregada de urn simbolismo sulil e polivaltnte Que modifica insidiosamente a at:Ao, a afeta de ceno modo com urn coeficienle moral permanente, cujo valor nAo e talvez U.o dire­rente daquele que 0 escritor procurava pelo emprego apropriado dos tempos. Ora, a ideia de envolver essa aventura espiritual com neve, de ignarar sistematicamente a aspecta estival da paisagem, e urn achado especificamente cinematografico, ao qual 0 diretor pode ser conduzido por uma inteligencia bem-sucedida do texto. o exemplo de Bresson em Le Journal d'un curl de campagne e ainda mais convincenle: sua adaplac;Ao atinge a fidelidade vertigi­nosa por urn respeito sempre criador. Albert Seguin chamou jus­tamenu: a alen~o para 0 falO de que a viol€ncia caracterllilka de Bernanos nlo teria de modo algum 0 mesmo valor na Hteratura e no cinema. A tela faz urn uso tlo corriqueiro dela que, de atgum modo, ela aparece ali depreciada, a urn 56 tempo provocante e convencional. A verdadeira fidelidade ao tom do romancista exi­gia, portanto, uma especie de inversAo da violencia do texto. A verdadeira equivalencia da hiperboJe de Bernanos eram a e!ipse e as litotes, da decupagem de Robert Bresson.

Quanto mais as qualidades literarias da obra sAo importanles e decisivas, mais a adaplac;Ao perturba seu equilibrio, mais tambem ela exige urn talento criador para roconstruir de acordo com urn novo equiUbrio, de modo algum identico, mas equivalente ao antigo. Considerar a adaptaC;Ao de romances como urn exerclcio preguicroso com 0 qual 0 verdadeiro cinema, 0 "cinema puro", nAo leria nada a ganhar, e, ponanta, urn contra-senso entico des­mentido por lodas as adaptac;Oes de valor. SAo aqueles que menos se preocupam com a fidelidade em nome de pretensas exigencias da tela que traem a urn 56 tempo a Iiteratura e 0 cinema.

Mas a demonstrac;lo mais con vincente desse paradoxo foi fornecida ja hi alguns anos por toda uma serie de adaptac;Oes teatrais que vieram provar. apesar das variedades das origens e

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Em Smforrill pa$UNfll, de Jean Otl.nnoy (com Mkh~le M orpn), • prtSttl~ constante da neve ~ 0 equivaleme nl mise-en-s«ne loti pauadCK $imples de Andr~ Gide. (F .... ,.....,

dos estilos, a relatividade do velho preconceito crltico contra 0 "teatro filmado" . Sem analisar por enquanto as r816c:s esteticas dessa evolucAo, pode ser suficiente constatar que ela e intima­mente tributana de urn progresso decisivo oa linguagem da tela .

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~ <:erta que a fidelidade eficaz de urn Cocteau au de urn Wyler nAc e 0 fata de uma regressao, mas muite pelo conlrario. de urn desenvolvimento da inteligencia cinemalogrMica. Seja como, no aUlor de Pecado original, a mobilidade surpreendentementc perspi­caz da cimera, au como em Wyler 0 ascetismo da decupagem. 0

despojamento extrema da fotografia, a utilizacAo do plano futo e do campo em pro(undidade. 0 exito sempre procede de urn con­trole excepciona1; mais ainda, de uma invencyAo na expresslo que eo conlrario perfeito de urn registro passivo da eoisa teatra1. Para respeitar 0 tealTO, nlo basta fotografa-Io. "Fazer tcatro" de maDeira vAlida e mais diflcil que "(azef cinema". e foi nisso que, ale entao, a maioria dos adaptadores tioha se empenhado. Ha cern vezes mais cinema. e melhor. num plano fLXO de Pirjida au de Macbnh - reinado de san8ue, do que em lodos 05 fralle/fin8s em externa, em todos 05 cenarios naturais, em qualquer exotismo geo­gratico, em lodos os avessos de cenario atraves dos quais a tela ate entio tinha se esfor~ado em vio para nos fazer esquecer a cena. Longe de a conquista do repert6rio teatral pelo cinema ser urn sinal de decadencia, ela e, ao contrario, uma prova de maturidade. Adap.­tar, entim, nio e mais trair, mas respeitar. Fazendo uma compara­~io de circunstdncias na ordem material: foi preciso, para alcan~ar essa alta fidelidade cstetica, que a expressao cinematografica flZCSse progressos comparaveis aos da 6tica. Ha uma distancia tio grande entre 0 Filme de Arte e Hamlet quanto entre 0 primitivo condensa­dor da lanterna magica e 0 jogo completo de lentes de uma obje­tiva moderna: sua complica~o imponente nao tern, no entanto, outro objeto que 0 de compensar as deformacOes, as aberracOe:s, as difracOes, os renexos pelos quais 0 video e respoDsave!, islO e, tornar a camera escura tao objetillQ quanto passive!. A p3Ssagem de uma obra teatral para a tela comurn requeria, no plano csteti­co, uma ciencia da fidelidade comparavel a do operador na repro­du~o fOlogratica. Ela e 0 termo de urn progresso e 0 inicio de urn renascimento. Se: 0 cinema e hoje capaz de se opor eticazmente ao domlnio romanesco e teatral, e porque, em principio, ele estA bastaote seguro de si e e senhor de seus meios para desaparecer diante de seu objelo. E porque pode, eofim, almejar a fidelidade - nao uma tidelidade ilus6ria de decalcomania - pela inteligSncia Intima de suas pr6prias e5lruturas esteticas. condicAo previa e neces­sAria para 0 respeito das obras que ele invcsle. Longe de a multi­plica~o das adaptacOes de obras IiterArias muito distantes do cinema inquielar 0 critico preocupado com a purez.a da sec.ima ane, elas sao, 80 conlririo. 8 garantia de seu progresso.

POR UM CINEMA IMPURO

Jean SimmolU e LaurellCt: Olivier em Ham/" . 0 rilmc de OliVier t 0 marco - provisOrio - de urn proarcsso que cometa com 0 FUme de Ane: "0 de uma cilncia cia fidelidadc" . (!'aIe>_1

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"Mas enfim, dirao ainda os noslalgicos do Cinema com urn C maiusculo, independente, especlfico, aUl6nomo, livre de qual­quer compromisso, por que colocar tama arle a servico de urna causa que nAo precisa disso. por que plagiar romances quando podemos ler 0 livro e Fedra, quando basta ir A Comldj~FrQnfOise?

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Por mm satisfat6rias que sejam as adaptac;:6es. 0 scnhor nAo pode­ria sustentar que elas slo melhores que 0 original, e tampouco me1hores que urn ftlme com a mesma qualidade artIstica sebee urn lema especificamente cinematogrMico'? 0 senbor diz: AduJlera. o Idolo ooldo, Pecodo original, Hamiel, va It... eu contraponho Em buseD do ouro, 0 encourofQdo POlenkim, 0 /frio partido, Scar/oce, a vergonha de uma na~40. No lempo das diliglncias QU

ate mesmo Cidad40 Kane. outras tantas obras·primas que nlo exis­tiriam sem 0 cinema. que slo uma contribuic;:lo insubstituivel ao patrim6nio da arte. Mesmo se as melhores adaptac;:Oes nlo slo mais uma trai~o ingenua au uma prostituiClo indigna, Testa que nlo passam de talento jogado fora. Progresso. 0 scnhor diz, mas que com 0 tempo 56 pode tamar esleril 0 cinema, reduzindo-o a SeT apenas urn anexo da literatura. De ao teatro e ao romance 0 que Ihes cabe, e ao cinema 0 que sempre seni 56 dele."

A ultima obj~o seria lcoricamente valida, se nAo negligen­ciasse a relatividade hist6riea que e preciso levar em conta numa arte em plena eyolu~lo. £ certo que, tendo aliAs a mesma quali­dade, urn roteiro original e preferlvel a uma adapta~Ao. Ninguem pensa em contestar isso. Se Charlie Chaplin e 0 "Moliere do cine­rna" , n6s nAo sacrificaremos Monsieur Verdoux a uma adapta~o do Misanlropo. Oesejemos. partanto, ter 0 mais freqiientemente passive! filmes como Tr6gico amanhet:er, A regra do jogo ou Os me/horts anas de nossas vidos. Mas slo apenas voto platOnieos e cria~oes intelectuais que nAo mudam nada da evolu~o do cinema. Se este recorre cada va mais A Iiteratura (e ate mesmo A pintura e ao jomalismo). e urn fato que 56 podemos registrar e lentar com­prec:nder, pais e bern passivel que nlo possamos agir sabre ele. Dentro de tal conjunlura, se 0 falo nlo cria absalutamente 0 direito, pe)os menos ele exige do critico uma opinilo favorivel. Mais uma vel. nlo nos deixemos enganar aqui pela analogia com as outras artes, principalmente aquelas que sua evolu~o em dire­~o de urn emprego individualista tornou quase independentes do cODSuntidor. LautreamOnl e Van Gogh puderam criar, incompreen­didos e ignorados por sua epoca. 0 cinema nlo pode existir scm urn mInimo (e esse minimo e imenso) de audiencia imediata. Mesmo quando 0 cineasta afronta 0 gosto do publico, sua audacia 56 e valida na medida em Que e possivel admitir que 0 espectador esta equivocado sobre aquilo que deveria ,ostar e daquilo que goslara urn dia. A (mica compar~Ao contemporlnea passivel seria com a arquitetura. pois uma casa 56 tern sentido quando habitavel. 0 cinema tambem e uma arte funciooal. Segundo outro sistema de

POR UM CINEMA IMPURQ 101

Nln,utm pensa mI contestar que:. tendo I mesma quahdade:, um rOIe:no ori· Jinll i pre:ferivc:l a una .daplatla. Aqui, Or m~/hort':f "lias tk IIassas lIidll$. de: William Wyler . ~ "J(.O.)

referenda, se devena dizer do cinema que sua existencia precede sua es.sencia. E dessa existincia Que a crltica deve partir, ale mesmo em suas extrapolat;:Oes mais avent urosas. Como em hist6ria. e mais ou menos com as mesmas ressalvas. a constala~o de uma mudan~ ultrapassa a realidade e ja apresenta urn julgamemo de valor. Foi 0 que as pessoas Que amaldi~oaram 0 cinema faJado em sua origem nlo quiseram admitir, Quando ele ja possuia sobre a arte muda a incomparavel vantagem de SubSlil ui-la .

Mesmo se esse pragmatismo crltico nlo parece ao leitor su fi­cientemente fundamenlado, pelo menos poderAo admitir que ele justifica a humildade e a prudincia met6dica diante de Qualquer sinal de evolu~lo do cinema; elas podem ser $uficienles para intro­duzir a tentativa de explica~lo com a Qual gostarlamos de conduit .

As obras-primas. as Quais eostumamos nos referir para exem­plificar 0 verdadeiro cinema - aquele que nAo deve nada ao tea-

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tro e a literatura, pois teria sabido descobrir tern as e uma lingua­gem especifica -, sao provavelmente tao adminlveis quanto inimi­taveis. Se 0 cinema sovietico nao nos da mais 0 equivalente do 0 encourarado Potenkim, Hollywood, de Aurora, de Aleluia, de Scarface, a vergonha de uma nardo, de Aconteceu naquela noite, ou ate mesmo de No tempo das diligencias, nao e de modo algum porque a nova gera9ao de diretores e inferior a antiga; trata-se, alias, em sua grande maioria, dos mesmos homens. Tampouco que, acreditamos, os fatores economicos ou politicos da produ9ao tomam estereis sua inspira9ao. Mas, antes, que a genialidade e 0 talento sao fenomenos relativos e so desenvolvem com referencia a uma conjuntura historica. Seria facil demais explicar 0 fracasso do teatro de Voltaire dizendo que ele nao tinha a cabe9a tragi­ca; era 0 seculo que nao a tinha. Tentar prolongar a tragectia raci­niana era urn empreendimento improprio, oposto a natureza das coisas. Perguntar-se 0 que 0 autor de Fedra teria escrito em 1740 nao tern nenhum sentido, pois 0 que chamamos de Racine nao e urn homem que responde a essa identidade, mas "o-poeta-que­escreveu-Fedra" . Racine sem Fedra e urn anonimo ou uma cria9ao intelectual. Do mesmo modo, e inutil no cinema lastimar que ja nao temos hoje Mack Sennet para continuar a grande tradicao comica. A genialidade de Mack Sennet foi ter feito filmes burle-sc

cos no momento em que eles eram possiveis. Alem do mais, a qua­lidade da produ9ao Mack Sennet morreu antes dele, e alguns de seus alunos ainda estao bern vivos: Harold Lloyd e Buster Keaton, por exemplo, cujas raras apari90es nos ultimos 15 anos nao passa­ram de desastrosas exibi90es em que nada subsistia do estro de entao. Somente Chaplin, e porque sua genialidade era realmente excepcional, soube atravessar urn ter90 de seculo de cinema. Mas a custo de que avatares, de que total renova9ao de sua inspira9ao, de seu estilo e mesmo de seu personagem? Constatamos aqui, como uma luminosa evidencia, a estranha acelera9ao da dura9ao estetica que caracteriza 0 cinema. Urn escritor pode se repetir, no fun do e na forma, durante meio seculo. 0 talento do cineasta, se ele nao sabe evoluir com sua arte, nao dura mais que urn ou dois lustros. Por isso a genialidade, menos flexivel e menos consciente do que talento, entra freqiientemente em extraordinarias falencias: as de Stroheim, de Abel Gance, de Pudovkin.

E claro que as causas desses desacordos profundos entre 0 artista e sua arte - que envelhecem brutalmente urn genio e 0 reduzem a nao ser mais que uma soma de manias e megalomanias

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inuteis - sao multiplas, e nao iremos analisa-Ias aqui. Gostaria­mos, no entanto, de reter uma delas, que interessa mais direta­mente nosso intento.

Ate por volta de 1938, 0 cinema (em preto-e-branco) esteve em constante progresso. Progresso tecnico, em primeiro lugar (ilu­mina9ao artificial, emulsao pancromatica, travelling, som), e, por conseguinte, enriquecimento dos meios de expressao (primeiro plano, montagem, montagem paralela, montagem rapida, elipse, reenquadramento etc.) Paralelamente a essa rapida evolu9ao da linguagem, e numa estreita interdependencia, os cineastas desco­briam os temas originais que a nova arte encorpava. "Isto e cine­rna!" nao designa nada mais que esse fenomeno, que dominou os 30 primeiros anos do filme como arte: 0 maravilhoso acordo entre uma tecnica nova e uma mensagem inaudita. Tal fenomeno tomou diversas formas: a estrela, a revaloriza9ao, 0 renascimento da epopeia, da comedia dell'arte etc. Mas ele era intimamente tri­butario do progresso tecnico, era a novidade da expressao que abria 0 caminho aos novos temas. Durante 30 anos a historia da tecnica cinematografica (entendida no sentido amplo) se confun­diu praticamente com ados roteiros. Os grandes diretores sao a principio criadores de formas ou, se se quer, retoricos. 0 que nao significa que fossem partidarios da arte pela arte, mas apenas que, na dialetica da forma e do fundo, a primeira era entao determi­nante, tal como a perspectiva ou a cor a oleo subverteram 0 uni­verso pictorico.

Urn recuo de dez ou 15 anos nos basta para discemir os sinais evidentes do envelhecimento do que foi 0 apanagio da arte cinema­tografica. Assinalamos a morte rapida de certos generos, no entanto maiores, como 0 buriesco, mas 0 exemplo mais caracteristico e sem duvida 0 da vedete. Certos autores tern sempre 0 favor comer­cial do publico, mas essa predile9ao nao tern, contudo, nada em comum com 0 fenomeno de sociologia sagrada da qual os Rodol­fos Valentino ou as Gretas Garbo foram os idolos dourados.

Tudo se passa, portanto, como se a tematica do cinema tivesse esgotado 0 que ela podia esperar da tecnica. 1a nao basta inven­tar a montagem rapid a ou mudar 0 estilo fotografico para emocio­nar. 0 cinema entrou insensivelmente na epoca do roteiro; vale dizer: de uma inversao da rela9ao entre 0 fundo e a forma. Nao que esta se tome indiferente, muito pelo contrario - provavel­mente ela nunca foi mais rigorosamente determinada pela materia, mais necessaria, mais sutil -, mas toda essa ciencia tende ao desa­parecimento e a transparencia diante de urn tema que apreciamos

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hoje em dia por ele mesmo, e com 0 qual somos cada vez mais exigentes. Como os rios que escavaram definitivamente seu leito e s6 tern for9a para levar suas aguas para 0 mar sem arrancar urn grao de areia de suas margens, 0 cinema se aproxima de seu perfil de equilibrio. Ja se foram os tempos em que bastava fazer "cinema" para ter os meritos da setima arte. Esperando que a cor ou 0 relevo deem provisoriamente a primeira forma e criem urn novo cicio de erosao estetica, 0 cinema nao pode conquistar mais nada na superficie. S6 Ihe resta irrigar suas margens, ins i­nuar-se entre as artes nas quais ele cavou tao rapidamente suas gargantas, investi-las insidiosamente, infiltrar-se no subsolo para abrir galerias invisiveis. Vini talvez 0 tempo das ressurgencias, isto e, de urn cinema de novo independente do romance e do teatro. Talvez, porem, porque os romances serao escritos diretamente em filmes. Esperando que a dialetica da hist6ria da arte Ihe resti­tua essa desejavel e hipotetica autonomia, 0 cinema assimila 0 for­midavel capital de assuntos elaborados, aglomerados a sua volta pelas artes ribeirinhas ao longo dos seculos. Apropria-se deles por­que precisa, e porque desejamos reencontra-los atraves dele.

Desse modo, nao se substitui a elas, ao contrario. 0 exito do teatro filmado serve ao teatro, como a adapta9ao do romance serve a literatura: Hamlet na tela s6 pode aumentar 0 publico de Sha­kespeare, urn publico que pelo menos em parte gostaria de escuta-10 no palco. Le Journal d'un cure de campagne, visto por Robert Bresson, multiplicou por dez os leitores de Bernanos. Na verdade, nao ha concorrencia e substitui9ao, mas adjun9ao de uma dimen­sao nova que as artes pouco a pouco perderam desde a Renascen9a: a do publico.

NOTA

I. Extraido de Cinema, um rei! ouvert sur Ie monde. Guilde du Livre. Lausanne.

b

IX

o JOURNAL D'UN CURE DE CAMPAGNE E A ESTILisTICA DE ROBERT BRESSONl

Se 0 Journal d'un cure de campagne impoe-se como uma obra­prima com uma evidencia quase fisica, se toca 0 "critico", como muitos espectadores ingenuos, e antes de tudo porque atinge a sen­sibilidade, nas formas provavelmente mais elevadas de uma sensi­bilidade inteiramente espiritual, portanto, mais 0 coral;ao que a inteligencia. 0 fracas so momentaneo de Les dames du bois de Boulogne procede da relal;ao contraria. Essa obra nao poderia nos tocar sem que tivessemos, se nao desmontado, ao menos sen­tido a inteligencia e como que apreendido a regra do jogo. Mas se 0 exito de Le journal d'un cure de campagne se impoe de saida, o sistema estetico que 0 sustenta e justifica nao deixa de ser 0

mais paradoxal, talvez ate mesmo 0 mais complexo, cujo exemplo o cinema falado nos forneceu. Dai 0 leitmotiv das criticas pouco aptas para compreende-lo, mas que, no entanto, gostam do filme: "incrivel", "paradoxal", "exito sem exemplo e inimitavel" ... , quase todas implicando uma renuncia a explical;ao e 0 alibi puro e simples de uma obra de genio. Mas tambem, as vezes, naqueles cujas preferencias esteticas sao aparentadas as de Bresson e que poderiamos considerar de antemao seus aliados, uma decepl;ao profunda, provavelmente, a medida que esperavam outras auda­cias. Constrangidos, e tambem irritados pela consciencia daquilo que 0 diretor nao tinha feito, perto demais dele para modificar imediatamente seus julgamentos, preocupados demais com seu estilo para encontrar a virgindade intelectual que teria dado livre campo a emOl;ao, eles nem 0 compreenderam, nem 0 admiraram. Em suma, nas duas extremidades do leque critico: os que estavam menos preparados para compreender 0 Journal, mas que, por is­so mesmo, gostaram ainda mais dele (embora sem saber por que),

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e as happy few que, esperando outra coisa. nAo gostaram e en­tenderam mal . Foram ainda as "a1heios" ao cinema, puros lite­ratas, como urn Alben Seguin ou urn Fram,;ois Mauriac que, admirados de (trem gostado tanto do filme, souberarn faztr ta­bula rasa de seus preconceitos e discernir melhor as verdadeiras inten~Oes de Bresson.

E preciso dizer que Bresson fez de tudo para nao deixar pistas. A decisa.o de fidelidade que cle fueou desde 0 inlcio da adapta~o. a vonlade proclamada de seguir 0 Iivro frase por frase, orientavam ha muito tempo a aten~o nesse senlido. 0 fdme 56 podia confinna­la. Ao contrario de Aurenche e Bost, que sc: preocupam com a 6tica da tela e com 0 novo equilibria dramatico da obTa, Bresson, ern vez de desenvolver personagens tpis6dicos. como as pais de Adultero, as suprime; ele poda em torno do essencial, dando assim a impressAo de uma fidelidade Que s6 sacrifica 0 lexlO com urn res­peilO allivo e com mil remorsos antedpados. Ainda que s6 simpli­ficando, nunca acrescenlando 0 que quer Que seja. Certamente nao e urn exagero pensar Que se Bernanos tivesse sido roteirisla, ele leria tornado mais Iiberdade com seu livro. TaniO assim que reeo­nheeeu 0 direito a seu evenTual adaptador de usA-lo em funcao das exigencias cinemalograficas: "de imaginar novamenle sua hist6ria".

Mas se elogiamos Bresson por ter side mais reaJisla Que 0 pr6-prio rei, e porQue sua "fidelidade" e a ronna mais insidiosa, mais penetrante da Iiberdade criadora. $em duvida alguma, com ereito _ e a opiniao de Bernanos e a do born sensa estelico - Que nao se pede adaptar sem transpor. As lraducOes fieis nao do as lite­rais. As modificacOes que Aurenche e Bost inOigiram a Adultera sao quase todas, em direito, perreitamente juslificadas. Urn perso­nagem nao e 0 mesmo visto pela cllmera e evocado pelo roman­dsta. Valery condenava 0 romance por ser obrigado a dizer "a marquesa tomou 0 chi As cinco horas". Nesse caso, 0 romandsta pode ler pena do cineasla que e obrigado, aJem disso , a mostrar a marquesa. Por isso, por exemplo, os pais dos her6is de Radi­guet evocados vagamente no romance, ganham importlncia na lela. Tanto Quanlo com os personagens e com 0 desequilibrio Que a evidencia nsica deles introduz na ordenacAo dos aconleeimentos. o adaptador deve ainda se preocupar com 0 texto. Mostrando 0 que 0 romancista conta, ele deve uansrormar 0 resto em dialogo, e ate mesmo os pr6prios diAJogos. Ha poucas chances, com efeito, de Que as replicas escritas no romance nAo mudem de valor. Pro­nunciadas ao ~ da letra pelo ator, sua eficacia, a pr6pria signifi­cacao ~riam desnaturadas.

JOURNAl. D'UN CURl': DE CAMPAONE

Jou"..,1 d'ull cure IX call1pO,_ (Jean Riv':1~ c: Oludc Laydu). 8c:rnanos elCl'eveu: ''Os ub ou quauo c:odhos que cle havia malado ronn.vam, DO

rundo de sua boIsa, urn moniC de lama CIISIflIilcnlada c 01 pfiOi elnzmlOi honivds de Ie v£r". 0 filme de Brcuon t "Iilcri.rio", 0 rom..nc:c (bOo de imqcm. r-U.G.C.)

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E e esse mesmo 0 ereito paradoxal da fidelidade textual no Journal. Enquanto que os personagens do Iivro emtem concreta­mente para 0 leitor, que a brevidade eventual da evocac!o deles frita pelo padre Ambricourt nAo e de modo algum ressentida como uma frustrac!o, urna limilacAo A existencia e ao conheci­mento Que temos deles, Bresson est' sempre, enquanto os mostra, sublraindo-os a nossos olhares. Ao poder de evocac!o concreta do romancista, 0 ftIme substitui a incessante pobreza de uma ima­gem que se furta pelo simples fato de nlo se desenvolver. 0 livro de Remanos esta cheio, aliAs, de evocacrOes pitorescas, excessivas, concretas, violentamente visuais, Exemplo: "0 senhor Conde sa; daqui. Pretexto: a chuva. A cada passo a agua jorrava de suas lon­&as bolas. Os tres ou quatro coelhos que havia matado raziam no (undo de sua bolsa urn monte de lama ensangiientada e pelos cin­zas hOrriveis de ~ ver. Pendurou 0 alforje na parede e, enquanto coover-san comigo, eu via atrav~ da rede de cordas, eotre esta pele arrepiada, urn olbo ainda Umido, muito meigo, que me f1xava".

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Tem-se a impressao de ja ter visto isso em algum lugar. Nao pro­cure: poderia ser um Renoir. Compare com a cena do Conde levando os dois coelhos ao prebisterio (e verdade que se trata de uma outra pagina do livro, mas justamente 0 adaptador deveria ter aproveitado, condensando as duas cenas, para tratar a primeira no estilo da segunda). E se tivessemos ainda alguma duvida, as declarar;oes de Bresson bastariam para descarta-Ias. Obrigado a suprimir, na versao standard, a terr;a parte de sua primeira monta­gem, sabemos que ele, com um afavel cinismo, acabou declarando­se encantado com isso (no fundo, a unica imagem que Ihe interessa e a virgindade final da tela. Voltaremos a falar disso). "Fiel" ao livro, Bresson deveria ter feito um filme bem diferente. Com a decisao de nao acrescentar nada ao original - 0 que ja era uma maneira sutil de trair par omissao - pelo menos, ja que se restrin­gia a recortar, ele podia escolher sacrificar a que havia de mais "Ii­terario" e conservar as numerosas passagens onde 0 filme ja estava pronto, que pediam claramente a realizar;ao visual. Ele tomou sis­tematicamente a partido oposto. Dos dois, eo filme que e "Iitera­rio" e 0 romance cheio de imagens.

o tratamento do texto e ainda mais significativo. Bresson re­cusa-se a transformar em dialogos (nao ouso sequer dizer "de ci­nema") os trechos do livro em que 0 padre relata, atraves de suas recordar;oes, certa conversa. Ha ai uma primeira inverossimilhanr;a, pais Bernanos nao nos garante de modo algum que 0 padre escre­veu palavra par palavra a que tinha ouvido; e ate provavel que seja 0 contrario. De qualquer modo, e supondo que ele deva se lembrar exatamente da con versa, ou que Bresson decide conservar no presente da imagem 0 carater subjetivo da lembranr;a, resta que a eficacia intelectual e dramatica de uma replica nao e a mesma se for lid a au realmente pronunciada. Ora, nao apenas ele nao adapta, sequer discretamente, as dialogos a exigencia da interpreta­r;ao, mas ainda, quando acontece de a texto original ter 0 ritmo e a equilibria de um verdadeiro dialogo, ele faz de tudo para impe­dir a ator de valoriza-Io. Muitas replicas dramaticamente excelen­tes sao desse modo abafadas no modo de falar recto tono imposto a interpretar;ao.

* * *

Muitas coisas foram elogiadas em Les dames du bois de Boulogne, mas muito pouco a adapta~ao. 0 filme foi tratado pra­ticamente pela critica como um roteiro original. Os meritos ins6li­tos do dialogo foram atribuidos em bloco a Cocteau, que nao pre-

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cisa disso para sua gl6ria. Foi por nao terem relido Jacques Ie fata­liste, pois poderiam ter descot rto ali se nao 0 essencial do texto ao menos um sutil jogo de escunde-esconde com a palavra po; palavra de Diderot. A transposi~ao moderna fez pensar, sem que achassem necessario verificar, de perto, que Bresson tivesse tomado liberdades com a intriga para s6 conservar sua situar;ao e, se se q~er, u~ certo _tom do seculo XVIII. Como alem dis so ele supri­mm dOts ou tres adaptadores, poderiamos achar que estavamos ainda mais distantes do original. Ora, recomendo aos [as de Les dames du bois de Boulogne e aos candidatos a roteiristas rever 0

filme tendo is so em mente. Sem diminuir 0 pape! - decisivo -do estilo da mise-en-scene no exito do empreendimento, e impor­tante ver bern sobre 0 que ele se ap6ia: urn jogo maravilhosamente sutil de interferencias e de contrapontos entre a fidelidade e a trai­~ao. Criticaram, por exemplo, em Les dames du bois de Boulogne, com tanto born senso quanto com incompreensao, a defasagem ~a psicologia dos personagens em rela~ao a sociologia da intriga. E bern verdade, com efeito, que em Diderot sao os costumes da epoca que justificam a escolha e a eficacia da vinganr;a. E tambem verdade que essa vinganr;a, no filme, e proposta como um postu­lado abst~~to cujo fundamento 0 espectador moderno nao com pre­ende. FOt 19ualmente em vao que os defensores bern intenciona­dos procurariam encontrar nos personagens urn pouco de substan­c!a soci~l. A pr?sti~uir;ao e 0 proxenetismo no conto sao fatos pre­CISOS cUJa referencla social e concreta e evidente. A de Les dames du bois de Boulogne, nao se apoiando em nada, fica ainda mais misteriosa. A vinganr;a da amante ferida e derris6ria e se limit a a fazer 0 casamento infiel com uma deliciosa danr;arina de cabare. Tampouco poderiamos defender a abstrar;ao dos personagens como urn resultado das elipses calculadas da mise-en-scene, pois ela aparece primeiro no roteiro. Se Bresson nao nos diz mais nada sobre os personagens, nao e somente porque nao quer, mas por­que nao poderia; como Racine nao poderia nos descrever 0 papel de parede dos apartamentos onde seus her6is pretendem se retirar. Dirao que a tragectia classica nao precisa dos alibis do realismo e que isso e uma diferenr;a essencial entre 0 teatro e 0 cinema. E verdade, mas e justamente por isso que Bresson nao faz surgir sua abstrar;ao cinematografica unicamente do despojamento do evento, mas do contraponto da realidade com ela mesma. Em Les dames du bois de Boulogne, Bresson especulou sobre 0 desterro de urn conto realista em outro contexto realista. 0 resultado e que os rea­lismos destr6em-se urn ao outro, as paixoes se destacam da crisa­lida dos caracteres, a a~ao dos alibis da intriga, e a tragedia

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L#:s domn du bois de Bouio8f1t (Maria Casares t Paul Bernard). BaSlou 0 barulho de um pira·brisa do autom6vel sobre urn talO de Diderot para ra.zt1" destc um diAlogo raciniano. (f .... a .............. 1

dos ralsas brilhantes do drama. Bastou 0 barulho do para-brisa do autom6vel sabre urn texto de Diderot para fazef dele urn dia!ogo radniano.

Sem duvida. Bresson Runca nos apresenta toda a realidade. Mas sua eSliliza~o nao e a abstra~ao a priori do sirnbolo. ela se constr6i ntlma dialetica do concreto e do ahstrato pela a~a.o reci­proca de elementos contradit6rios da imagem. A realidade da chuva. 0 rwdo de uma cascata, 0 da terra que derrama de urn vasa quebrada. 0 trote de urn cavalo sabre 0 cal~amento, nllo se opOem apenas as simplifica~Oes do cenar-io. a convenca.o dos cos­tumes e, mais ainda. ao t.om iilenlrio e anacronico dos diAlogos; a necessidade da intromissAo deles nilo e a da amitese dramatica ou do contraste decorativo: eles estilo ali por sua indiferenca e sua perfeila situacilo de "alheios", como 0 grAo de areia na maquina para prender 0 mecanismo. Se 0 arbitrario da escolha deles parece uma abstracAo, e entAo a do concreto integral; ela arranha a ima­gem para denunciar a transparencia como uma poeira de diamanle. E a impureza em estado puro.

JOURNAL D'UN CURe DE CAMPAGNE III

Esse movimento dialelico da mise-en-scene se repete. alias, no pr6prio cerne dos elementos que acreditariamos. em principio. serem puramente estilizados. Assim, os dois apartameotos habita­dos pelas Damas quase ntio tern m6veis, mas sua nudez calculada tern alibis. Dos quadros vendidos. restam as molduras, mas nAo poderiamos duvidar delas como de urn detalhe realista. A bran­cura abstrata do novo apartamento nada tern em comum com a geometria de urn expressionismo teatral. pais se ele e branco e por­que foi reformado e ainda se sente 0 cheiro da pintura fresca. Seria tambern precise evocar 0 elevador, 0 telefone na portaria ou, para 0 $Om. 0 zurnzum das vozes dos homens que sucede a bofetada de Agnes e cujo texto e 0 mais tradicional passivel. mas com urna qualidade sonora de uma exlraordinaria jusleza?

Se evoco Les dames du bois de Soulogne a prop6sito do Jour­nal. e porque nAo e inutil frisar a semelhanca profunda do meca­nismo da adaptacAo, que as diferencas evidentes da mise-€n-scene e as Iiberdades maiores que Bresson parece ler tornado com Dide­rot podem enganar. 0 estilo do Journal denota uma pesquisa ainda mais sistematica, urn rigor quase insustentavelj ele se desenvolve em condicOes tecnicas totalmente diferentes, mas veremos que 0 empreendimento pennanece no (undo 0 rnesrno. Trata-se sernpre de alcancar a essencia do relato ou do drama, a abstrar;a.o estetica rnais estrita sem recurso ao expressionismo, atraves de urn jogo alternado da literatura e do realismo, que renova os poderes do cinema atravts de sua aparente negacAo. A fidelidade de Bresson a seu modelo do e em todo caso apenas 0 alibi de uma liberdade munida com correntes; se ele respeita 0 texto. e parque de 0 serve melhor que inuleis ousadias. porque esse respeito e. em ultima anAlise. rnais do que urn constrangirnento apurado, urn momento dialetico da criacAo de urn estilo.

• • • De nada adianta criticar Bresson pelo paradoxo de urn servi·

lisrno textual que 0 estilo de sua mise-en-scene viria par outro lade desrnentir. ja que e justamente dessa contradiCilo que Bresson tira seus efeitos. " Seu filme". escreve por exemplo Henri Agel. "e em Ultima analise uma coisa impensavel quanto 0 seria uma pagina de Victor Hugo retranscrita no estilo de Nerval." Mas nAo poderiamos imaginar. ao contra rio. as conseqiH~ncias poer.icas desse acasalamento monslruoso, 0 ins6lito cintilar dessa traducAo. nilo apenas numa lingua diferenle (como a de Edgar Allan Poe por Ma1Jarme). mas de urn estilo e de uma materia no estilo de outro artista e na materia de outra arte'!

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Vejamos, alias, de mais perto 0 que, no Journal d'un cure de campagne, pode parecer mal feito. Sem querer elogiar Bresson a priori por todos os pontos fracos de seu filme, pois alguns (ra­ros) se volt am contra ele, e certo que nenhum dentre eles e alheio a seu estilo. Eles sao sempre apenas a falta de jeito na qual urn supremo refinamento pode culminar e, se acontece a Bresson de se felicitar por eles, e porque ve ai, e com razao, a garantia de urn hito mais profundo.

E 0 que acontece com a interpreta~ao, que em geral julgam ruim, com exce~ao de Laydu e parcial mente de Nicole Ladmiral, concordando, entretanto, quando gostam do filme, que e urn ponto fraco menor. E preciso ainda explicar por que Bresson, que dirigiu Hio perfeitamente seus atores em Anjos do pecado e em Les dames du bois de Boulogne, parece por vezes aqui tao desajei­tado quanto urn principiante em 16mm, que contratou a tia e 0

tabeliao da familia. Sera que acreditam que e mais facil dirigir Maria Casares contra seu temperamento que amadores d6ceis? E verdade, com efeito, que certas cenas sao mal interpretadas. E sur­preendente que nao sejam as menos comoventes. Mas e que 0 filme escapa completamente as categorias da interpreta~ao. Nao se dei­xem enganar pelo fato de os interpretes serem quase todos amado­res ou principiantes. Le Journal nao esta menos distante de Ladroes de bicicleta do que de Entree des artistes (0 tinico filme que pode­mos comparar com ele e 0 martfrio de Joana D'Arc, de Carl Dre­yer). Nao e pedido aos atores para interpretar urn texto - que seu fraseado literario faz com que seja, alias, impossivel de ser inter­pretado - e tampouco para vive-Io: mas somente para dize-Io. Por isso 0 texto recitado off do Journal se encadeia com tanta faci­lidade com 0 que os protagonistas realmente pronunciarao; nao existe nenhuma diferen~a essencial de estilo e de tom. Tal decisao nao se opoe apenas a expressao dramatica do ator, mas ate mesmo a qualquer expressividade psicol6gica. 0 que nos pedem para ler em seu rosto nao e 0 reflexo momenHineo do que ele diz, e sim uma permanencia de ser, a mascara de urn destino espiritual. Esse filme "mal interpretado" nos deixa, contudo, 0 sentimento de uma necessidade imperiosa dos rostos. A imagem mais caracteris­tica a esse respeito e a de Chantal no confessionario. Vestida de preto, enfurnada na penumbra, Nicole Ladmiral so deixa aparecer uma mascara cinza, hesitando entre a noite e a luz, gasto como 0

cunho na cera. Como Dreyer, Bresson se apegou naturalmente as qualidades mais carnais do rosto que, justamente na medida em que ele nao interpreta, nao e a marca privilegiada do ser, 0 rastro mais legivel da alma; nada no rosto escapa a dignidade do signo.

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Nao e para uma psicologia, mas antes para uma fisiognomonia existencial que ele nos convida. Dai 0 hieratismo da interpreta~ao, a lentidao e ambiguidade dos gestos, a repeti~ao obstinada dos comportamentos, a impressao de desacelera~ao onirica que se grava na memoria. Nada de relativo poderia acontecer com esses perso­nagens, enviscados que estao em seu ser, essencialmente ocupados em perseverar ali contra a gra~a ou em arrancar sob seu fogo a tunica de Nessus do velho. Eles nao evoluem: os conflitos interio­res, as fases do combate com 0 anjo nao se traduzem claramente na aparencia deles. 0 que vemos se parece antes com a concentra­~ao dolorosa, com espasmos incoerentes do parto ou da muda. Se Bresson despoja seus personagens, e no sentido proprio.

Oposto a analise psicol6gica 0 filme tambem nao deixa de ser, por conseguinte, alheio as categorias dramaticas. Os aconte­cimentos nao se organizam segundo leis de uma mecanica das paixoes cuja realiza~ao satisfaria 0 espirito; a sucessao deles e uma necessidade no acidental, urn encadeamento de atos livres e de coincidencias. A cada instante, como a cada plano bastam seu destino e sua liberdade. Eles se orientam talvez, mas separada­mente, como os graos de limalha sobre 0 espectro do fma. Se a palavra trageclia vern aqui a baila, e as avessas, pois so poderia ser uma tragedia do livre arbitrio. A transcendencia do universo de Bernanos-Bresson nao e a do fatum antigo, tampouco a da pai­xao raciniana, e sim a da Gra~a que todos podem recusar. Se, con­tudo, a coerencia dos acontecimentos e a eficacia causal dos seres nao parecem ser menos rigorosas do que numa dramaturgia tradi­cional, e porque respondem, com efeito, a uma ordem, a da profe­cia (talvez fosse preciso dizer da repeti~ao kierkegaardiana), tao diferente da fatalidade quanto a causalidade 0 e da analogia.

A verdadeira estrutura segundo a qual 0 filme se desenrola nao e a da trageclia e sim a da "Interpreta~ao da Paixao" ou, melhor ainda, a do Caminho da Cruz. Cada sequencia e uma est a­~ao. A chave nos e revelada pelo dialogo na cabana entre os dois padres, quando 0 de Ambricourt descobre sua preferencia espiri­tual pelo Monte das Oliveiras. "Nao e 0 bastante que Nosso Senhor tenha me feito a gra~a de me revelar hoje, pela voz de meu velho mestre, que nada me arrancaria do lugar escolhido por mim desde toda a eternidade, que eu era prisioneiro da Santa Ago­nia." A morte nao e a fatalidade da agonia, apenas seu termo e sua liberta~ao. A partir dai saberemos a que ordem soberana, a que ritmo espiritual respondem os sofrimentos e os atos do padre. Eles figuram sua agonia.

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Em ArUM do ~odo, Robert Bresson r("V~lotl-~ ('xcd,,"! .. diretor de :l.IOres: Icmbremos do peTsonagem d. madre: superiora (Sylvie) e da poslulante (Re­n~ Faure). tFaoo UIu:Io f

Cabe ta1vez assina1ar as anaiogias cristol6gicas que abundam no final do filme, pais elas tern motivos para passar desapercebi· das. Eo que ocorre com as dais desmaios durante a noite: a queda na lam3, v6mitos de vinho e de sangue (onde sllo encontrados, numa sintese de metAforas comoventes com as Quedas de Jesus, o sangue da Paix.ll.o. a esponja de vinagre e as n6doas de escarro). E mais: 0 veu de Veronica. a tocha de Serafila; enfim, a morte na agua-furtada, G61gota derris6ria onde 0110 faltam 0 born e 0 mau ladrAo. Esqu~amos imediatamente essas aproximacOes que sllo necessariamente Iraldas pela rormuJacAo. Seu valor estetico procede de seu valor teol6gico, ambos opOem-se a explicitar;ao. Tendo, tanto Bresson quanto Bemanos, evitado a alusao simb6-!ica, nenhuma das situar;Oes, cuja referenda evangelica e entretanto 6bvia, esta ali por sua semelhanr;a; ela passui sua significar;ao pr6-pria, biografica e contingente; a simililUde cristol6gica e apenas secundaria por proj~ao sobre 0 plano superior da analogia. A vida do padre de Ambricourt nao imila de modo a1gum a de seu Modelo, ela a repete e figura. Cada urn carrega sua cruz e cada cruz e diferente da outra, mas todas sao A da Paixao. Na testa do padre os suores da febre sao sangue.

JOURNAL D'UN CURe DE CAMPAQNE '" Assim, provavelmente pela primeira vez, 0 cinema nos oferece

nao somente urn filme cujos unicos acontecimentos verdadeiros, cujos (micos movimentos sensiveis sao os da vida interior, porem, mais ainda, uma dramaturgia nova, espedficamente religiosa, ou melhor, teol6gica: uma fenomenoiogia da Salvar;ao e da Grar;a .

• • • Notemos. alias, que nesse empreendimento de redur;!o da psi­

calogia e do drama, Bresson eof renta diaieticamente dais ripos de realidade pura. Por urn lado, como ja virnos, 0 rosto do inter­prete livre de quaJquer simbolismo expressivo, reduzido a epi­derme, rodeado por uma natureza sem artificio; por outro, 0 que se deveria chamar de "realidade escrita". Pois a fidelidade de Bresson ao texto de Bernanos, nao apenas sua recusa em adapta-10, mas sua preocupar;Ao paradoxal em sublinhar seu carater lite­rario e. 00 fundo, a mesma escolha arbitraria que aquela que rege os seres e 0 cenario. Bresson trata 0 romance como seus per­sonagens. Ele e urn fate bruto, uma realidade dada que nao se deve de modo algum tentar adaptar a situacao, torcer conforme esta ou aquela exigtncia momentanea do sentido. mas ao COntra­rio, confirrnar em seu ser. Bresson suprime, nunca condensa. pois 0 que resta de urn texto cortado e ainda urn fragmento origi­nal; como 0 bloco de marmore procede da pedreira, as palavras proounciadas no filme continuam a ser do romance. Sem duvida seu fraseado literario, deliberadamente frisado. pode ser visto como uma pesquisa de estilizaCao artistica, 0 pr6prio contrario do realismo, pois a "realidade" n!o e aqui 0 conteudo descritivo moral ou intelectual do texto, e sim 0 pr6prio texto ou, rnais pre­cisamente, seu estilo. Compreende-se que essa realidade de segundo grau da obra original e a que a camera caplUra diretamente nao podem se encaixar uma na outra, se prolongar. confundir; ao con­trario, a pr6pria comparacao acusa a heterogeneidade de suas essencias. Cada uma joga, portanto, sua partida paralela. com seus meios, na sua materia e estilo pr6prios. Mas e provavelmente por tal dissociar;ao de elementos. que a verossimilhan~ poderia confundir, que Bresson consegue eliminar a tal ponto 0 acidental. A discorda.ncia ontol6gica entre duas ordens de fate concorrentcs,

confrontadas na tela. evidencia a unica medida comum a elas: a alma. Todos dizem a mesma coisa e a pr6pria disparidade da express!o, da maleria, do estilo deles. a especie de indiferem;a que rege as relac6es do interprete e do texto. da rala e dos rostos, e a garantia mais certa da profunda cumplicidade deles: a linguagem que nAo pode ser a dos labios e, necessariamente. a da alma.

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,,, ANOR£ 8AZ1N

Provavclmcntc nao ha, em lodo 0 cinema frances (au sera pre­ciso dizcr litcralura?). muitos momentos de beleza mws intensa que a ceRa do medalhAo entre 0 padre c a condessa. No cntanlO, cia nada deve ao desempenho dos interpretes, lampouco ao valor dramAtico au psicol6gico das replicas, c sequer a sua significa(:ao intrinseca. 0 verdadciro diAlogo que penlua essa lula entre 0 padre inspirado e 0 desespero de uma alma e por essencia indizlvel. Os choques decisivos da esgrima intelectual deles nos escapam; as pala­vras acusam au preparam 0 ardenle golpe de miseric6rdia. Nada, porlanlo, de uma rCI6rica da conversao; se 0 rigor irresistivcl do diAlogo, sua crescente tcnsllo e depois seu apaziguamcnlo final nos dcixam a certcza de termas sido as testemunhas privilegiadas de uma tempestadc sobrenatural, as palavras pronunciadas sito, ent retanto, apenas os tempos mortos, 0 C(:O do silencio que ~ 0 verdadeiro di3.l0go dessas duas almas, uma alusAo ao segredo delas: o lado coroa - se ouso dizer - da Cara de Deus. Se 0 padre se recusa mais tarde a se justificar redigindo a carta da condessa, nAo e somenle por humildade ou gosto pelo sacrificio, mas antes porque os signos senslveis silo tAo indignos de beneficia-Io quanto de se vollarem contra ele. 0 testemunho da condessa nAo e. em sua essencia , menos rti:usavel que 0 de Chantal e ninguem tem 0 direito de evocar 0 de Deus.

• • • A teeniea de mise-en-sclne de Bresson s6 pode ser bem jul­

gada a nlvel de seu prop6sito estelico. Por pior que a tenhamos explicado, talva possamos agora, contudo. compreender melhor o paradoxo mais surpreendente do mme. ~ claro que cabe a Mel­ville, com Le silence de fa mer, 0 merito de ter sido 0 primeiro a ousar encarar 0 texto na imagem. ~ notavel que a vontade de fide­lidade literal foi tambtm a causa disso . Mas a propria estrutura do Iivro de Vercors era excepcional. Com 0 Journal, Bresson faz mais que confirmar e demonstrar 0 cabimento da experiencia de Melville, ele a leva as ultimas conseqiiencias.

Devemos dizer do Journal que ele e urn filme mudo com legendas faladas? A fala, como vimos. nAo se insere na imagem, como urn componente realista; mesmo pronunciada realmente por urn personagem, e quase no modo rti:itativo de opera. A primeira vista 0 mme e, de certo modo. constituldo. por urn lado, pelo texto (reduzido) do romance e, por outro . ilustrado com imagens que nito pretendem de modo algum substitul-Io. Nem tudo que t dito t m05trado, mas nada do que t mostrado esta dispensado de

JOURNAL O'UN CUR£ DE CAMPAGNE

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118 ANDRE BAZIN

ser dito. Em ultima instancia, 0 born senso critico pode acusar Bresson de substituir pura e simplesmente 0 romance de Be!nanos por uma montagem radiofOnica e uma ilustra~ao muda. E desta suposta degrada~ao da arte cinematografica que precisamos agora partir para compreender bern a originalidade e a audacia de Bresson.

Em primeiro lugar, se Bresson "retorna" ao cinema mudo, nao e de modo algum, apesar da abundancia de primeiros pianos, para reatar com urn expressionismo teatral, fruto de uma enfermi­dade, e sim para, ao contrario, encontrar a dignidade do rosto humano tal como Stroheim e Dreyer 0 tinham compreendido. Ora, se ha urn valor, urn unico, ao qual 0 som se opunha, em principio, por essencia, este era a sutileza sintaxica da montagem e 0 expres­sionismo da interpreta~ao, isto e, ao que procedia efetivamente da enfermidade do cinema mudo. Mas faltava muito para que todo 0 cinema mudo se dissesse tal. A nostalgia de urn silencio que fosse gerador benefico de urn simbolismo visual confunde inde­vidamente a pretensa primazia da imagem com a verdadeira voca­~ao do cinema que e a primazia do objeto. A ausencia de banda sonora em Ouro e maldiriio, Lobisomen (Nosferatu) ou em 0 martirio de Joana D'Arc tern significa~ao contraria ao silencio de Caligari, dos Nibelungos, ou de Eldorado; ela e uma frustra~ao. e nao 0 ponto de partida de uma expressao. Os primeiros existem apesar do silencio, nao gra~as a ele. Nesse sentido, 0 aparecimento da banda sonora e apenas urn fen6meno tecnico acidental, nao a re­volu~ao estetica que se pretende. A lingua do cinema como a de Esopo e equivoca e so ha, apesar das aparencias, uma historia do cinema antes como depois de 1928: a das rela~oes do expressio­nismo e do realismo; 0 som iria arruinar provisoriamente 0 pri­meiro antes de adaptar-se, por sua vez, a ele, mas ele se inscrevia diretamente no prolongamento do segundo. E verdade, paradoxal­mente, que e hoje nas formas mais teatrais, logo nas mais falan­tes, do cinema falado que se deve procurar a ressurgencia do anti~o simbolismo e que, de fato, 0 realismo pre-sonoro de urn Stroh elm quase nao tern discipulos. Ora, e em rela~ao a Stroheim e a Renoir que devemos situar, evidentemente, 0 empreendimento de Bresson. A dicotomia do dialogo e da imagem que se reporta a ele so tern sentido numa estetica aprofundada do realismo sonoro. E tao err6-neo ver ai uma ilustra~ao do texto quanto urn comentario da ima­gem. 0 paralelismo deles continua a dissocia~ao da realidade sen­sivel. Prolonga a dialetica bressoniana entre a abstra~ao e a reali­dade gra~as a qual nos so tocamos, em definitivo, unicamente a realidade das almas. Bresson nao retorna de modo algum ao expres-

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sionismo do cinema mudo: ele suprime, por urn lado, urn dos componentes da realidade, para reporta-la deliberadamente estili­zada, numa banda sonora parcialmente independente da imagem. Em outros termos, e como se a mixagem definitiva contivesse rui­dos gravados diretamente, com uma fidelidade escrupulosa, e urn texto recto tona pos-sincronizado. Esse texto, porem, como disse­mos, e uma segunda realidade, urn "fato estetico bruto". Seu rea­lismo e seu estilo, quando 0 estilo da imagem e em primeiro lugar sua realidade e 0 estilo do filme, precisamente, a discordancia deles.

Bresson mostra definitivamente como e esse lugar-comum cri­tico segundo 0 qual a imagem e 0 som nunca deveriam se dupli­car. Os momentos mais comoventes do filme sao justamente aque­les em que 0 texto deveria dizer exatamente a mesma coisa que a imagem, e isso porque 0 diz de outra maneira. De fato, 0 som nunca esta aqui para completar 0 acontecimento visto: ele refor~a e multiplica como a caixa de ressonancia do violino 0 faz com as vibra~oes as cordas. Faita, porem, dialetica a essa metafora, pois nao e tanto uma ressonancia que 0 espirito percebe, mas antes uma defasagem como a de uma cor nao superposta ao desenho. E e nas margens que 0 evento libera sua significa~ao. E porque 0

filme e inteiramente construido sobre essa rela~ao que a imagem atinge, sobretudo no final do filme, tal potencia emocional. Seria inutil procurar os principios de sua dilacerante beleza unicamente em seu conteudo explicito. Acho que existem poucos filmes cujas fotografias separadas sejam mais decepcionantes; a frequente ausencia de composi~ao plastic a delas, a expressao constrangida e estatica dos personagens traem absolutamente seu valor no desen­rolar do filme. No entanto, nao e a montagem que elas devem 0

incrivel suplemento de eficacia. 0 valor da imagem procede pouco daquilo que a precede ou a segue. Ela acumula antes uma energia estatica, como as laminas paralelas de urn condensador. A partir dela, e em rela~ao a banda sonora, organizam-se as diferen~as de potencial estetico cuja tensao torna-se insustentavel. Assim, a rei a­~ao da imagem e do texto progride no final em prol deste ultimo, e e com muita naturalidade, sob a exigencia de uma logica impe­riosa que, nos ultimos segundos, a imagem se retira da tela. Ao ponto em que Bresson chegou, a imagem nao pode dizer mais sobre isso senao desaparecendo. 0 espectador foi progressivamente conduzido a essa noite dos sentidos cuja unica expressao possivel e a luz na tela branca. Eis, portanto, a que tendia 0 pretenso cinema mudo e seu realismo altivo: a volatizar a imagem e a dar lugar unicamente ao texto do romance. Experimentamos, porem,

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12" "NORI! 8AZ1N

o valor du irnage:ru do JOllmDI d',m Cllri dr «lmpu,M procedt pouco daquilo que u precede 01.1 U que. /"- !J .O. V).

com urna evidencia estetica irrecusAvel. urn exilO sublime do cinema puro. Tal como a pagina branca de Mallarme ou 0 silentio de Rim­baud e urn estado supremo da linguagem, a tela scm imageRs e enlregue a literatura marta 0 triURJO do realismo cinematografico. Sobre 0 pana branco da tela a cruz negra, desajeitada como ~ de uma participa~o. imica tral;o vislvel deixado pela assun~lo da Ima­gem, testemunho daquilo de que sua realidade era apenas signo.

• • • Com 0 Journal d'un cure de campagne abre-sc uma nova rase

da adapt~o cinematognUica. Ate entAo 0 mme tendia a lie subs-

JOURN ..... L O'UN CU Re DE CAMP .... GNE 121

lituir ao romance como sua tradUI;Ao estelica numa outra Iingua­gem. "Fidelidade" significava. entao, rcspeito do cspirito mas tam­bern busca de equivalenlcs necessarios, levando em conta, por exemplo, exigSncias dramaticas do espetaculo ou da eficacia mws direta da imagem. Alias falta muito, infelizmente, para que tal preocupa~o seja ainda a regra mais geral. E, porem, a ela que cabem os meritos de Adultera ou de Sin/onia pastoral. Na melhor das hip6teses, tais fUmes "valem" 0 livro que thes serviu de modelo.

Ao lado dessa f6nnula assinalemos tambem a existSncia da adapta~o livre como a de Renoir em Une partie de campagne ou em Madame Bovary. 0 problema, porem, e resolvido de modo diferente: 0 original 010 passa de uma fonte de inspira~o; a fide· lidade: uma afinidade de temperamento, urna simpatia fundamen. tal do cineasta pelo romancista . Em vez de pretender substituir 0 romance, 0 filme se propOe a existir ao lado dele; a formar urn par com ele, como uma eslrela dupla. Tal hip6tese, que alias s6 tern senlido quando endossada pelo gSnio, nlo se opOe a urn exito cinernatografico superior a seu modelo Iiterario, como 0 de Rio sagrado, de Renoir.

o Journal d'un cuti de campagne. parem. e wnda OUlea coisa. Sua dialetica da fidelidade e da criaclo se reduz, em ultima ana­lise, a uma dialhica entre a cinema e a literatura. JA nlo se lrata de traduzir, por mais fiel, mais inteligentemente que seja, tam· pouco de se inspirar Iivremente, com urn respeito apaixonado, tendo em vista urn fLlme que copie a obra, e sim de construir sobre a romance, aleaves do cinema, urna obra secundAria. Nlo urn filme "comparavel" ao romance, au "digno" dele, mas um ser estetico novo que e como que 0 romance multiplicado pelo cinema.

Talvez a unica opera~o comparavel da qual temos 0 exemplo fosse: ados filmes de pintura. Os pr6prios Emmer ou Alain Res· nais slo fieis ao original ; a materia·prima deles e a obra ja supre· mamenle e1aborada do pintor, a realidade deles nlo e 0 tema do quadro. mas a pr6prio quadro, como vimos que a de Bresson e o pr6prio luto do romance. Porem, a fidelidade da Alain Res· nais a Van Gogh, que e, em primeiro lugar, e ontologicamente. a da fidelidade fotografica, nlo e senlo a condiClo primordial de uma simbiose entre 0 cinema e a pintura. Por isso, comumente as pintores nlo compreendem nada disso. Ver nesses filmes ape-­nas urn rneio inteLigente, eficaz, ate mesmo vMido de vulgari.uu.Ao (0 que sAo a mais), e ignorar a biologia estetica deles.

Esta cornpara~o 56 e. no enlanlo, parcialmente vAlida, pois os rllmes de pintura estAo condenados em prindpio a ser sempre

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ANDRE BAZIN

urn genero estetico menor. Acrescentam ao quadro, prolongam a existencia deles, permitem que transbordem a moldura, m.as nao pod em pretender ser 0 pr6prio quadro.2 Van Gogh, .de ,~lam R~s­nais e uma obra-prima menor a partir de uma obra plctonca malOr que ele utiliza e explicita, mas que nao substitui. T~ li~ita<;ao con­genita tern principalmente duas causas. Em pnmelf~ l~gar, _ a reprodu<;ao fotognifica do quadro, ao menos por pro] e<;ao , nao pode pretepder substituir 0 original ou identificar-se co~ ele;, c~so pudesse faze-lo, seria para destruir melhor s~a autonomla estetlc~, ja que os filmes de pintura partem preclsamente da nega<;ao daquilo que a funda: a circunscri<;ao no espa<;o, pela mol dura e pel a intemporalidade. E porque 0 cinema, como arte do esp~<;o e do tempo, e 0 contnirio da pintura, que ele tern alguma COlsa a acrescentar a ela.

Esta contradi<;ao nao existe entre 0 romance e 0 cinema. Nao somente ambos sao artes do relato e, portanto, do tempo, mas nao e sequer possivel afirmar a priori que a imagem cinemat.ogra­fica e inferior em sua essencia a imagem evocada pela escntura. E mais provavel que seja 0 contrario. Mas a questao nao e essa. Basta que 0 romancista, como 0 cineasta, tenda a sugestao do desenrolar de urn mundo real. Colocadas essas similitudes essen­ciais, a pretensao de escrever urn romance em cinema nao e absurda. 0 Journal d'un cure de campagne, porem, vern nos reve­lar que e ainda mais frutuosO especular sobre suas diferen<;as do que sobre seus pontos comuns, de acusar a existencia do romance pelo filme que 0 dissolver nele. Seria pouco dizer, da obra em segundo grau que surge dai, que ela e por essencia "fiel" ao origi­nal, ja que em principio ela e 0 romance. Ela. e sobret~do, na? sem duvida "melhor" (tal juizo nao teria sentldo), porem, efetl­vamente "~ais" que 0 livro. 0 prazer estetico que se pode sentir com 0 filme de Bresson, se 0 merito cabe evidentemente, no essen­cial, a genialidade de Bernanos, contem tudo.o que 0 romance podia oferecer e, alem disso, sua refra<;ao no cmema. .

Depois de Bresson, Aurenche e Bost nao sao malS que os Viollet-Le-Duc da adapta<;ao cinematografica.

NOTAS

I. Cahiers du Cinema, n 2 3, junho de 1951. 2. Pelo men os ate Le mystere Picasso, que, como veremos, enfraquece talvez essa proposi<;i!.o critica.

X TEATRO E CINEMA 1

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Se salientar as afinidades entre 0 cinema e 0 romance se tor­nou relativamente comum na critica, 0 "teatro filmado" passa ainda no mais das vezes por uma heresia. Enquanto tinha por advogado e por exemplo principalmente as declara<;6es e a obra de Marcel Pagnol, podia-se considerar seus poucos exitos como mal-entendidos decorrentes de conjunturas excepcionais. 0 teatro filmado continuava vinculado a lembran<;a retrospectivamente bur­lesca do "filme de arte" ou as explora<;6es derris6rias de bulevar no "estilo" Berthomieu.2 Ainda durante a guerra, 0 fracasso da adapta<;ao para a tela de uma excelente pe<;a como Le voyageur sans bagages, cujo tema poderia ter passado por cinematografico, dava argumentos aparentemente decisivos para a critic a do "tea­tro filmado". Foi preciso a serie de exit os recentes que vao de Per­lida a Macbeth - reinado de sangue, passando por Henrique V e Pecado original, para demonstrar que 0 cinema estava a altura de adaptar legitimamente as mais diversas obras dramaticas.

Na verdade, entretanto, 0 preconceito contra 0 "teatro filma­do" nao teria talvez de invocar tantos argumentos hist6ricos quanto pensamos, se nos basearmos unicamente nas adapta<;6es declaradas de obras teatrais. Seria conveniente, em particular, reconsiderar a hist6ria do cinema, nao mais em fun<;ao dos titulos, e sim das estruturas dramaticas do roteiro e da mise-en-scene.

Urn pouco de historia

Enquanto condenava irremediavelmente 0 "teatro filmado", a critica prodigalizava, com efeito, seus elogios a formas cinemato­gnificas nas quais uma analise mais atenta deveria, no entanto,

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'" A.NDR~ BAZIN

Laurence Olivier em He"rique V, filme de Laurence Olivier: S~akespeare

Prisioneiro e 0 teauo tambem, tef(:ad05 de lod05 05 lad05 pel0 cinema. (I'_~ I\IIP Uooo)

revelar avatares da arte dramAtiea . Obnubilada pela heresia do "mme de arte" e de suas seqiielas. a alll.ndega deixava passar com o carimbo de "cinema puro" as verdadeiros aspectos do . teauo cinematografico. com~do pela comedia americana. Examinando com mais ateof;io, esla 010 e menos "teatral" que a adaptayAo

TEATRO E CINEMA '" de qualquer ~a de bulevar au da Broadway. Construlda sobre o cOmico de palavra e de situa~ao, eta muitas vezes nlo r«OITe a nenhum artificio propriamente cinematogrAfico; a maioria das cenas e em estudio e a decupagem cmprega unicamente 0 campo/ contra-<:ampo para valorizar 0 diMago. Seria preciso aqui se esten­der sobre 0 pano de .fundo sociol6gico que permitiu 0 brilhante desenvolvimento da comedia americana durante uns dez anos. Acho que de modo algum enfraquecem uma relacAo virtual entre tcatro e cinema. 0 cinema dispensou de certo modo 0 teatro de uma existencia real preliminar. NAo havia necessidade dela, jt que escritores capazes de esc rever ~as podiam vende-las diretamente para a tela. Mas esse e urn fenOmeno totalmente acidental, histori­camente em relaCllo com uma conjuntura econOmica e sociol6gica precisa e, parece, em vias de desaparecimento . Hi IS anos vemos, paralelamente ao decllnio de urn certo tipo de comedia americana, multiplicarem-se as adapta¢es de pecas cOrnicas que obtiveram sucesso na Broadway. No campo do drama psicol6gico e dos cos­tumes, urn Wyler nllo hesitou em retomar pura e simplesmente a peca de Lillian Hellman, Little foxes, e a traze-Ia "ao cinema" num cenario qua~e leatral. ~ fato, a preconce:ito contra a lealro fLImado nunca exisliu nos Estados Unidos. As condicOes de produ­cAo hollywoodianas, porem, nllo se apresentaram, pdo menos ale 1940, da mesma manetra que na Europa. Tratou-se bern mais de urn {catro "cinematogrtfico" limitado a generos precisos e que 56 (eve, ao menos durante a primeira dbda do cinema falado, que fazer poucos emprestimos ao palco. A crise que Hollywood sofre hoje jt a levou a recorrer com mais frequencia ao teatro escrito. Mas, na comedia americana, a tealro, invislvel , estava vir­tualmente prescnte .)

E verdade que nllo podemos invocar exitos comparaveis a comedia americana na Europa e especialmente na FranCa. Tirando o caso bern particular, que merece urn estudo especial, de Marcel Pagnol;' a contribuicAo do palco de buJevar para a tela foi desas­trosa. Mas 0 teatro filmado nAo com~a com 0 cinema falado: remontemos urn pouca mais, precisamente a epoca em que 0 "rtlme de arte" jt desvia a atenclo para seu fracasso. Triunfava entlo Melies, que no fundo 56 viu no cinema urn aperfeicoamento do maravilhoso teatral: 0 truque nAo e para ele seolo urn prolonga­menlo da prestidigitaclo. A maioria dos grandes oomicos france­ses e americanos vem do music-hall au do bulevar. Basla olhar Max Linder para compreender tudo que ele deve a sua experiencia tcatral. Como a maioria dos cOrnicos da epoca, ele represcnta deli-

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126 ANDRE BAZIN

beradamente "para 0 publico", pisca 0 olho para a sala, a faz tes­temunha de seus embara90s, nao hesita diante do aparte. Quanto a Carlitos, independentemente mesmo de sua divida para com a mimica inglesa, e evidente que sua arte consiste em aperfei90ar, gra9as ao cinema, a tecnica do comico do music-hall. Nesse ponto, o cinema ultrapassa 0 teatro, porem continuando-o, como que livrando-o de suas imperfei90es. A economia da gag teatral est a subordinada a distancia do palco a sala e, sobretudo, a dura9ao dos risos que lev am 0 ator a prolongar seu efeito ate a extin9ao deles. 0 palco 0 incita, portanto, impoe-Ihe ate mesmo a hiper­bole. So a tela podia permitir a Carlitos atingir essa matematica perfeita da situa9ao e do gesto, em que 0 maximo de clareza expressa-se no minimo de tempo.

Quanto revemos filmes burlescos bern antigos, como a serie dos Boireau ou dos Onesime, por exemplo, nao e apenas 0 desem­penho do ator que aparenta 0 teatro primitivo, mas a propria estru­tura da historia. 0 cinema permite levar as ultimas conseqiiencias uma situa9ao elementar a qual 0 palco impunha restri90es de tempo e de espa90 que a mantinha numa fase de evolu9ao de certo modo larvaria. 0 que po de levar a crer que 0 cinema veio inventar ou criar inteiramente fatos dramaticos novos, e que ele permitiu a metamorfose de situa90es teatrais que, sem ele, nunca teriam che­gada a fase adulta. Existe no Mexico uma especie de salamandra capaz de se reproduzir no estado de larva e que ali permanece. Injetando-Ihe hormonio apropriado, puderam fazer com que atin­gisse a forma adulta. Do mesmo modo e sabido que a continui­dade da evolu9ao animal apresentava lacunas incompreensiveis ate que os biologos descobrissem leis da pedomorfose que lhes ensi­nou, nao somente a integrar as formas embrionarios do individuo a evolu9ao das especies, mas ainda a considerar certos individuos, aparentemente adultos, como seres bloqueados em sua evolu9ao.5

Nesse sentido, certos generos de teatro tern por fundamento situa-90es dramaticas congenitamente atrofiadas antes do aparecimento do cinema. Se 0 teatro e mesmo, como pretende Jean Hytier,6 uma metafisica da vontade, 0 que pensar de urn filme burlesco como Onesime et Ie beau voyage, onde a obstina9ao em continuar, em meio as mais absurd as dificuldades, nao se sabe bern que lua­de-mel, cujo objetivo desaparece depois das primeiras catastrofes, confina a uma especie de loucura metafisica, a urn delirio da von­tade, a uma canceriza9ao do "fazer" que por si so se engendra contra qualquer razao. Sera que poderiamos empregar aqui a ter­mino10gia psicologica e falar de vontade? A maioria dos filmes burlescos sao antes a expressao linear e continua de urn projeto

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fundamental do personagem. Dependem de uma fenomenologia da obstina9ao. Boireau, 0 empregado, fara a faxina ate que a cas a caia em ruinas. Onesime, marido migrador, prosseguira sua lua­de-mel ate embarcar para 0 horizonte em seu inseparavel bau de vime. A a9ao ja nao precisa de intriga, de incidentes, de saltos, de qiiiproquos e de surpresas; ela se desenrola implacavelmente ate se destruir. Segue inelutavelmente uma dire9ao a uma especie de catarse elementar da catastrofe, como 0 balao de tripa de boi que a crian9a enche com imprudencia e que acaba the estourando na cara, para nosso alivio e talvez para 0 dela.

Alias, quando nos referimos a historia dos personagens, das situa90es e dos procedimentos da farsa tragica, e impossivel dei­xar de ver que 0 cinema burlesco foi sua subita e brilhante res sur­gencia. Genero em vias de extin9ao desde 0 seculo XVII, a farsa "em carne e osso" quase que so sobreviveu, bastante especiali­zada e transformada, no circo e em certas formas de music-hall. Isto e, precisamente onde os produtores de filmes burlescos, sobre­tudo em Hollywood, foram recrutar seus atores. Porem, a logica do genero e dos meios cinematograficos ampliou imediatamente o repertorio da tecnica deles: permitiu os Max Linder, os Buster Keaton, os Gordo e 0 Magro, os Carlitos; entre 1905 e 1920, a farsa conheceu urn brilho unico em sua historia. Falo da farsa tal como sua tradi9ao a perpetuou desde Plauto e Terencio, e ate mesmo a commedia deWarte com seus temas e tecnicas. Darei ape­nas urn exemplo: 0 tema classico da bacia se encontra espontane­amente num velho Max Linder (1912 ou 13), no qual podemos ver 0 jovial don Juan, sedutor de uma lavadeira, obrigado a mer­gulhar num tanque cheio de roupas coloridas para escapar a puni-9ao do marido enganado. E certo que, em tal caso, nao se trata nem de influencia nem de reminiscencias, mas da reconcilia9ao de urn genero com sua tradi9ao.

o texto, 0 texto!

Vemos com est as breves evoca90es que as rela90es do teatro e do cinema sao mais anti gas e mais intimas do que geralmente se pensa e, sobretudo, que nao se limitam ao que comum e pejora­tivamente se designa sob 0 nome de "teatro filmado". Vemos ainda que a influencia - tao inconsciente quanto inconfessada - do repertorio e das tradi90es teatrais foi decisiva sobre os gene­ros cinematograficos tidos por exemplares na ordem da pureza e da "especificidade".

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o problema, pon:m, nao e exatamente 0 mesmo que 0 da adaptac;ao de uma pec;a tal como geralmente 0 entendemos. Con­vern, antes de prosseguirmos, distinguir do fato teatral, 0 que pode­ria ser chamado de 0 fato "dramatico".

o drama e a alma do teatro. Mas acontece de ele habitar nou­tra forma. Urn soneto, uma fabula de La Fontaine, urn romance ... , urn filme po de dever sua eficiencia ao que Henri Gouhier chama de "categorias dramaticas". Sob esse ponto de vista, e inutil rei­vindicar a autonomia do teatro, ou entao e preciso apresenta-Ia como negativa; no sentido de que uma pec;a nao poderia deixar de ser "dramatica", sendo que e Hcito a urn romance se-Io ou nao. Des souris et des hommes e a urn so tempo urn conto e urn puro modelo de tragedia. Em compensac;ao, seria dificil adaptar No caminho de Swann para 0 palco. Nao poderiamos aplaudir uma pec;a por ser romanesca, enquanto que e bern possivel felicitar 0

romancista por saber construir uma ac;ao. Se mesmo assim considerarmos 0 teatro como a arte especi­

fica do drama, e preciso reconhecer que sua influencia e imensa e que 0 cinema e a ultima das artes que pode escapar a ela. Nesse caso, porem, a metade da literatura e tres quartos dos filmes seriam sucursais do teatro. Por isso, nao e desse modo que 0 problema se apresenta: ele so comec;a realmente a existir em func;ao da obra teatral encarnada, nao no ator, mas no texto.

Fedra foi escrita para ser representada, mas ja existe como obra e como tragedia para 0 bacharel que titubeia seus classicos. o "teatro numa poltrona" com a unica ajuda da imaginac;ao e urn teatro incompleto, mas ja e teatro. Em contrapartida, Cyrano de Bergerac ou Le voyageur sans bagages, tais como foram filma­dos, ja nao sao, embora 0 texto esteja ali - e ainda por cima 0

espetaculo! Se fosse Hcito reter de Fedra apenas uma a¢ao e reescreve-Ia

em func;ao das "exigencias romanescas" ou do dialogo de cinema, nos encontrariamos na hipotese precedente do teatro reduzido ao dramatico. Mas se nao ha nenhum impedimento metafisico a tal operac;ao, e obvio que ha varios de ordem pratica, contingente e historica. Sendo 0 mais simples 0 medo salutar do ridiculo, e 0

mais imperioso a concepc;ao moderna da obra de arte que impoe o respeito ao texto e a propriedade artistica, inclusive moral e pos­tuma. Em outros termos, somente Racine teria 0 direito de reescre­ver uma adaptac;ao de Fedra, mas alem de nao estar provado que mesmo assim ela seria boa (foi 0 proprio Jean Anouilh que fez 0

filme Le voyageyr sans bagages), acontece que Racine est a morto.

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Dirao talvez que nao e 0 que ocorre quando 0 autor esta vivo, pois ele pode pessoalmente repensar sua obra, remodelar sua mate­ria - 0 que Andre Gide fez recentemente, embora no senti do con­trario, do romance para 0 palco, com Les caves du Vatican -, ou no minima controlar e dar seu aval ao trabalho de urn adapta­dor. Examinando, pon::m, mais de perto, essa e uma satisfac;ao mais juridica do que estetica: em primeiro lugar porque 0 talento, e forc;osamente a genialidade, nem sempre sao universais, e nada garante a equivalencia do original e da adaptac;ao, mesmo quando assinada pelo autor. Depois, por que a razao mais comum de levar para a tela uma obra dramatic a contemporfmea e 0 sucesso que ela obteve nos palcos. 0 sucesso a cristaliza no essencial de urn texto submetido ao espectador e que, alias, 0 publico do filme quer reencontrar; ei-nos, portanto, reduzidos, por urn desvio mais ou menos digno, ao respeito da coisa escrita.

Enfim, e sobretudo, porque quanto melhor for a qualidade de uma obra dramatica, mais dificil sera a dissociac;ao do drama­tico e do teatral, cuja sintese 0 texto realiza. E significativo que assistamos a tentativas de adaptac;ao de romances para 0 palco, mas praticamente nunca a operac;ao inversa. Como se 0 teatro se situasse ao cabo de urn processo irreversivel de purificac;ao estetica. Podemos, a rigor, tirar uma pec;a de Os irmiios Karamazov, ou de Madame Bovary, mas se admitissemos que tais pec;as tivessem existido antes, teria sido impossivel fazer delas os romances que conhecemos. Isso porque se 0 romanesco incJui 0 dramatico de sorte que este nao pode ser deduzido, a reciproca supoe uma indu­c;ao, isto e, em arte, uma criac;ao pura e simples. Em relac;ao a pec;a, 0 romance nao e senao uma das multiplas sinteses possiveis a partir do elemento dramatico simples.

Assim, portanto, se a noc;ao de fidelidade nao e absurda no sentido romance teatro, no qual se pode discernir uma filiac;ao necessaria, nao podemos entender bern 0 que, no senti do contra­rio, a noc;ao de equivalencia poderia forc;osamente significar; no maximo poderiamos falar de "inspirac;ao" a partir das situac;oes e dos personagens.

Comparo no momenta romance e teatro, mas tudo leva a pen­sar que 0 raciocinio vale ainda mais para 0 cinema; pois, das duas uma: ou 0 filme e a pura e simples fotografia da pec;a (logo, com seu texto), e e precisamente 0 famoso "teatro filmado", ou a pec;a e adaptada as "exigencias da arte cinematografica", mas entao recaimos na induc;ao de que falavamos acima, e se trata, de fato, de outra obra. Jean Renoir inspirou-se na pec;a de Rene

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Fauchois, em Boudu salvo das aguas, mas fez del a uma obra pro­vavelmente superior ao original e que a eclipsa7 • E alias uma exce­I;ao que confirma plenamente a regra.

De qualquer angulo que a abordemos, a pel;a de teatro, clas­sica ou contemporanea, e irrevogavelmente defendida por seu texto. Este s6 poderia ser "adaptado" se renunciassemos a obra original para substitui-la por uma outra, talvez superior, mas que ja nao e a pel;a. Operal;ao que se limita fatalmente, alias, aos autores menores ou vivos, ja que as obras-primas consagradas pelo tempo nos impoem 0 respeito ao texto como urn postulado.

E 0 que confirma a experiencia dos dez ultimos anos. Se 0

problema do teatro filmado reencontra uma singular atualidade estetica, isso se deve a obras como Hamlet, Henrique V, Macbeth - reinado de sangue, no que concerne ao teatro classico e, quanto aos contemporaneos, a filmes como Perfida, de Lillian Hellman e Wyler, Pecado original, Meu amigo, Amelia e eu, Festim diabo­lico ... Jean Cocteau tinha preparado antes da guerra uma "adap­tal;ao" de Pecado original (Les Parents terribles). Quando reto­mou seu projeto em 1946, desistiu e decidiu conservar integral­mente seu texto. Veremos mais adiante que ele praticamente con­servou, inclusive, 0 cenario de palco. Americana, inglesa, francesa, tendo por objeto obras classicas ou contemporaneas, a evolul;ao do teatro filmado e a mesma: uma fidelidade cada vez mais impe­riosa a coisa escrita caracteriza-a, como se as diferentes experien­cias do cinema falado se encontrassem nesse ponto. Antigamente, a principal preocupal;ao do cineasta parecia ser a de camufiar a origem teatral do modelo, de adapta-lo, dissolve-lo no cinema. Nao somente ele parece agora abandonar isso, mas acontece de acentuar sistematicamente seu carMer teatral. Nao pode ser de ou­tro modo a partir do in stante em que 0 essencial do textb e respei­tado. Concebido em funl;ao das virtualidades teatrais, 0 texto ja as traz todas neles. Determina modos e urn estilo de represental;ao, ja e, em potencial, 0 teatro. Nao e possivel a urn s6 tempo decidir ser fiel a ele e desvia-lo da expressao para a qual tende.

OcuItem esse teatro que eu oao suportaria ver!

Temos a confirmal;ao disso num exemplo tirado do repert6rio classico: e uma fita que talvez ainda castigue nas escolas e cole­gios franceses e que pretende ser uma tentativa de ensino da litera­tura pelo cinema. Trata-se do Medecin, malgre lui, levado as telas com a ajuda de urn professor de boa vontade, por urn diretor cujo

l

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nome silenciaremos. 0 filme possui urn dossie enorme, tanto lau­dat6rio quanto entristecedor, de cartas de professores e reitores de colegios felizes com sua excelencia. Ora, trata-se, na verdade, de uma sintese inverossimil de todos os erros susceptiveis de adulte­rar tanto 0 cinema quanto 0 teatro, e acima de tudo Moliere. A primeira cena, a da lenha, situada numa fioresta verdadeira, comel;a com urn interminavel travelling por debaixo das arvores, destinado visivelmente a fazer com que apreciemos os efeitos do sol sob os galhos, antes de descobrir dois personagens ridiculos ocupados provavelmente em colher cogumelos: 0 infeliz Sganarelle e sua mulher, cujas roup as de teatro pare cern aqui fantasias gro­tescas. 0 cenario real e exibido 0 maximo possivel ao longo do filme: a chegada de Sganarelle a consulta e ocasiao para mostrar urn pequeno solar rustico do seculo XVII. 0 que dizer da decupa­gem: a da prime ira cena progride do "plano de conjunto" ao "primeiro plano", mudando naturalmente a cada replica. Senti­mos que se 0 texto nao tivesse, sem querer, dado a medida da peli­cula, 0 diretor teria apresentado a "progressao do dialogo" com uma montagem acelerada, a maneira de Abel Gance. Tal como e, a decupagem permite que os alunos nao percam nada, com os "campos" e "contra-campos" em primeiro plano da mimica dos atores da Comedie-Franl;aise, a qual, desconfiamos, nos leva aos tempos aureos do filme de arte.

Se por cinema entende-se a liberdade de al;ao em relal;ao ao espal;O, e a liberdade do ponto de vista em relal;ao a al;ao, levar para 0 cinema uma pel;a de teatro sera dar a seu cen:irio 0 tama­nho e a realidade que 0 palco materialmente nao podia the of ere­cer. Sera tambem liberar 0 espectador de sua poltrona e valorizar, pela mudanl;a de plano, a interpretal;ao do ator. Diante de tais mises-en-scene, deve-se convir que todas as acusal;oes contra 0 tea­tro filmado sao validas. Mas e que, precisamente, nao se trata de mise-en-scene. A operal;ao consistiu apenas em injetar, a forl;a, 0

"cinema" no teatro. 0 drama original, e com muito mais razao o texto, encontram-se ali fatalmente deslocados. 0 tempo da al;ao teatral nao e evidentemente 0 mesmo que 0 da tela, e a primazia dramatica do verba fica defasada em relal;ao ao suplemento de dra­matizal;ao atribuido ao cenario pela camera. Enfim, e sobretudo, uma certa artificialidade, uma forte transposil;ao do cenario tea­tral e rigorosamente incompativel com 0 realismo congenito ao cinema. 0 texto de Moliere s6 tern senti do numa fioresta de tela pintada, tal como a interpretal;ao dos atores. As luzes da ribalta

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nao sao as de urn sol de outono. Em ultima instancia, a cena da lenha pode ser interpretada diante de uma cortina, ela nao existe mais ao pe de uma arvore.

Esse fracasso ilustra bern 0 que se pode considerar a maior heresia do teatro filmado: a preocupa9ao em "fazer cinema". Seja la como for, e a is so que se reduzem as filmagens habituais das pe9as de sucesso. Se a a9ao deve se passar na Cote d' Azur, os amantes - em vez de conversar debaixo de urn caramanchao de urn bar - se abra9arao ao volante de urn carro americano na estrada de Corniche, tendo, ao fundo, em transparencia, os roche­dos do Cap d' Antibes. Quanto a decupagem, em Les gueux au paradis, por exemplo, a igualdade dos contratos de Raimu e de Fernandel nos valeu urn numero sensivelmente igual de primeiros pIanos em beneficio de ambos.

Os preconceitos do publico confirmam, alias, os dos cineastas. o publico nao pensa grande coisa do cinema, mas 0 identifica pelo tamanho do cenario, pela possibilidade de mostrar urn cena­rio natural e de agitar a a9ao. Se nao se acrescentasse a pe9a urn minimo de cinema, ele se julgaria roubado. 0 cinema deve neces­sariamente "parecer mais rico" que 0 teatro. Os atores precisam ser celebres, e tudo 0 que parece pobreza ou avarice nos meios materiais e, dizem, fator de fracasso. Seria preciso que 0 diretor e 0 produtor tivessem uma certa coragem para aceitar encatar os preconceitos do publico. Sobretudo se eles pr6prios nao levam fe no empreendimento. No principio da heresia do teatro filmado, reside urn complexo ambivalente do cinema frente ao teatro: com­plexo de inferioridade em rela9ao a uma arte mais antiga e mais literaria, que 0 cinema com pens a com a "superioridade" tecnica de seus meios, que se confunde com uma superioridade estetica.

Teatro em conserva 00 meta-teatro?

Querem a contraprova desses erros? Ela nos e fornecida, sem ambiguidades, por dois exitos como Henrique Ve Pecado original.

Quando 0 diretor de Medecin, malgre lui come9ava seu traba­lho com urn travelling na floresta, era com a imagem ingenua e talvez na esperan9a inconsciente de nos fazer engolir em seguida a in feliz cena dos galhos secos como urn remedio com cobertura de a9ucar. Ele tentava por urn pouco de realidade em torno del a enos arranjar uma escada para nos fazer subir no palco. Suas astu­cias desajeitadas tinham infelizmente 0 efeito contrario: acusar definitivamente a irrealidade dos personagens e do texto.

TEATRO E CINEMA 133

Vejamos agora como Laurence Olivier sou be resolver em Hen­rique V a dialetica do realismo cinematografico e da conven.;:ao teatral. 0 filme come9a com urn travelling, mas e para nos fazer mergulhar no teatro: 0 patio do albergue elisabetano. Ele nao pre­tende nos fazer esquecer a conven.;:ao teatral, muito pelo contra­rio, ele a frisa. Nao e Henrique V que e imediata e diretamente o filme, mas a representariio de Henrique V. lsso e evidente, pois nao se supoe que essa representa.;:ao seja atual, como no teatro, mas se desenrola no pr6prio tempo de Shakespeare, e que os espectadores e os bastidores nos sao mostrados. Nao ha, portanto, erro possivel, 0 ato de fe do espectador diante da cortina que se levanta nao e requerido para se ter prazer com 0 espetaculo. Nao estamos realmente na pe.;:a, mas num filme hist6rico sobre 0 tea­tro elisabetano, isto e, num genero cinematografico perfeitamente fundado e ao qual estamos acostumados. No entanto, sentimos prazer com a pe9a, prazer que nao tern nada em comum com 0

que nos daria urn documentario hist6rico, ele e certamente 0 pr6-prio prazer de uma representa.;:ao de Shakespeare. E isso porque a estrategia estetica de Laurence Olivier era apenas uma astucia para escamotear 0 milagre da cortina. Fazendo 0 cinema do teatro, denunciado de antemao pelo cinema 0 jogo e as conven.;:oes tea­trais, ao inves de tentar camufla-las, ele suprimiu os obstaculos do realismo que se opunha a ilusao teatral. Uma vez assegurados esses fundament os psicol6gicos na cumplicidade do espectador, Laurence Olivier podia se permitir tanto a deforma.;:ao pict6rica do cenario quanta 0 realismo da batalha de Azincourt; Shakespe­are 0 convidava a isso com seu apelo explicito a imagina.;:ao do audit6rio: nisso ainda 0 pretexto era perfeito. Tal desdobramento cinematografico, que seria dificilmente admitido se 0 filme fosse apenas a representa.;:ao de Henrique V, encontrava seu alibi na pr6pria pe.;:a. Restava, naturalmente, perseverar no empreendi­mento. E sabido que ele foi levado ate 0 fim. Digamos somen­te que a cor, que talvez acabaremos descobrindo ser essencialmente urn elemento nao-realista, contribui para tornar aceitavel a passa­gem ao imaginario e, no pr6prio imaginario, para permitir a con­tinuidade das miniaturas na reconstitui.;:ao "realista" de Azincourt. Em momenta algum Henrique Ve realmente "teatro filmado"; o filme se situa de certo modo de ambos os lados da represent a-9ao teatral, aquem e alem do palco. E, no entanto, Shakespeare e seu prisioneiro, e 0 teatro tam bern, cercados de todos os lados pelo cinema.

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'" ANDRt BAZIN

Heflrlqut V. Urn. vcz paia a hlpoltt'a do realismo que sc opunha • ilusao lcalral, Lauren~ Olivier podia Ie permilir lanlO a dcronnat;lo piclOrica do c:enano quanto 0 rC:l.lismo da.s batalh.s. tr- 0...0. Ettk ......

o teatro moderoo de bulevar' nAo parece recorrer com tanla evidencia as coDveD~Oes cenicas. 0 "Teatro Livre" e as teorias de Antoine puderam ate mesmo induzir por ccrto tempo a crenr.;:a na existencia de urn Icalla "rcalista". numa especic de pre-<:ine­ma.9 Hojc, poTem, ninguem mais se deixa enganar por tal ilusilo. Se existe urn realismo lcatTal, cle e apenas relativQ a urn sistema de convencOes mais secretas, menos explicitas, porem igualmente rigorosas. A "parte de vida"IO nAo existe no tcatro. Ou, pelo menos, 56 0 fato de expa-Ia num palco a separa da vida para fazcr dela urn fCRameOn in vitro, que participa ainda parcialmeme da natureza, mas jil. profundamente modificada pelas condicOes de observaclo. Antoine pode pOr ate mesmo pedacos de carne no palco, mas nllo pode, como no cinema, fazer todo urn rebanho passar por ali. Para plantar uma arvore e preciso que corte as rai­zes e, em todo caso, desista de mostrar realmente a floresta. De modo que sua arvore procede ainda dos registros elisabetanos, e apenas no fmal das contas urn poste indicador. Lembradas essas verdades pouco contestAveis, pede-se admitir que a filmagern de urn "melodrama" como Pecado original nllo apresenta problemas tlo direreotes des de uma ~a clAssica. 0 que se chama aqui de

TEATRO E CINEMA '" realismo nlo coloca de modo a1gum a ~ no mesmo plano que o cinema, nllo abole 0 prosdnio. 56 que 0 sistema de convenCOes ao qual a mise-en-$dnt obedece - e, portanto, lambem 0 texto -, e de certo modo do primeiro grau. As convencOes tragicas, com seu cortejo de inverossirnilhancas rnateriais e de a1exandrinos, silo apenas mascaras e COlurnos acusando e salientando a convenclLo rundamental do fato teatral.

Foi 0 que Jean Cocteau entendeu levando para a tela Les parents terribles. Ainda que sua ~a rosse aparentemente das mais "realistas", Cocteau cineasta compreendeu que nllo preci­sava acrescentar nada a seu cenario, que 0 cinema nAo estava ali para multiplica-Io, mas para mtensifica-Io. Se 0 quarto se trans­rorma em apartamento, este sera sentido, gra~ • tela e • tecnica da camera, como ainda roais exiguo que 0 quarto do palco. 0 essencial sendo aqui 0 fato dramatico da c1ausura e da coabitacllo, o menor raio de sol, mais uma Ilmpada eietrica. leriam destruldo essa fragil e fatal simbiose. Por isso toda a equipe da rou/Olle reu­nida pede ir ao outro lado de Paris, oa easa de Madeleine; n6s a deixamos na porta de urn apartamento para encontra-Ia na entrada do outro. Nao e mais a elipse de montaaem ja c1Assica. e urn fato posilivo de miJe..en-sane, ao qual Jean Cocteau nAo roi de modo algum obrigado pelo cinema e que. por isso mesmo, vai alem das possibilidades de expressAo do teatro; estando este ultimo preso a elas, ele nllo p6de, portanto, obler 0 mesmo deito. Cern exem­plos confirmariam que a camera respeita a natureza do cenArio teatral e esfor~-se somente para aumentar sua eficAcia, evitando sempre modifiear sua relacAo com 0 personagem. Nem todas as dificuldades vern a calhar; a obrigaClo de mostrar no palco cada uma das ~ separadamente e de baixar a cortina no intervalo e incontestaveLmente urna sujeiclo inUtil. E a camera que introduz. gracas • sua mobilidade, a verdadeira unidade de tempo e lugar. Foi precise 0 cinema para que 0 projeto teatral se expressasse, enfim. Iivremente e para que Les parents terribles se lomasse evi­dentemente uma tragedia de apartamento, em que a rresta de uma porta pede ganhar rnais sentido do que urn mon610go na cama. Cocteau nlo trai sua obra, ele permaoece fiel ao esplrito da ~, respeitando ainda mais as sujeicOes essenciais por saber discemi­las das contingeocias acidentais. 0 cinema age somenle como urn revelador que acaba de fazer aparecer certos detalhes que 0 palco deixava em branco.

Resolvido 0 problema do cenArio, restava 0 mais diftcil: 0 da decupagem. Foi al que Cocteau deu provas da mais engenhosa

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Praldo originul (Mucel Andn! c Gabrielle Donial), Se 0 quarto sc trans­rorma MI _panamento, esle 5I!li scmido. lra~ II tela e l tknica da cll.men, como ainda mail cxIauo que 0 quarto do palco. (1-...... "'--.

imagina(:Ao. A n~.lI.o de "plano" termina, entim. de se dissolver. Subsiste apcnas 0 "enquadramento", criStaliza(:i\o passageira de uma realidade cuja prescnf;a nos arredores e sempre senlida. Cocteau gosta de repetiT Que pensou em seu filme em "16mm", "Pensou" somentc, pois the seria bern dificil realiza-Io em ror­mato reduzido. 0 que coota e Que 0 espectador tenha 0 sentimento de uma presen(:a 10lal do acomecimento, nao mais como em Wel­les (ou em Renoir) pcla profundidade de campo, mas pela virtude de uma rapidez diab6lica do olhar que partee seguir pcJa primeira vez 0 ritrno puro da alcn(:Ao.

Scm duvida, i550 e levado em conta por qualquer boa decupa­gem. 0 tradicional "campo! contra-campo" divide 0 dialogo segundo uma sintaxe elemenlar do interesse. Urn primeiro plano de urn telefone que toea no momento patetico equivale a uma con­centra~o da aten~a.o. Mas nos parece que a decupagem comum e urn compromisso entre Ires sistemas de analise possiveis da reali­dade: (I) uma analise meramente 16gica e descritiva (a arma do crime perto do cadaver); (2) uma anAlise psicol6gica interior ao filme, iSlo e. conforme 0 ponto de visla de urn dos protagonistas na situ~lo dada (0 copo de leite - (a1vez envenenado - que

TEATRO E CINEMA 137

Ingrid Bergman deve beber em Inler/udio ou 0 ane! no dedo de Theresa Wright em A sombra de uma duvida; (3) enfim. uma ana­lise psicol6gica em fun~o do interesse do espectador; interesse espontaneo ou estimulado pelo direlor gra(:as precisamenle a esla analise: e a ma~neta da porta girando sem que 0 criminoso. supondo estar sozinho. saiba ("aten(:Ao!", gritariam as criancas a Cuignolil que vai ser surpreendido por urn policial).

Esses Ires pontos de vista, cuja combi na(:Ao constitui a slntese do acontecimento cinematografico na maioria dos filmes, sAo sen­tidos como tinicos. Na verdade, eles implicam uma heterogenei­dade psicol6gica e uma descontinuidade material. As mesmas, no fundo, que se outorga 0 romancista tradicional e que valeram a Francois Mauriac 0 conhecido repUdio de Jean-Paul Sartre. A importincia da profundidade de campo e do plano fixo em Orson Welles ou WiUiam Wyler procede precisamente da recusa do reta­Ihamento arbitrario que eles substituem por urna imagem unifor­memente legivel, que obriga 0 espectador a fazer por si mesmo uma escolha.

Embora permanecendo tecnicamente fiel a decupagem c1wica (seu filme comporta inclusive urn ntimero de planas mais alto do que a media), Cocteau Ihe confere uma significa~Ao original utili­zando praticamente apenas pianos de terceira categoria; iSla e, a ponto de vista do espectador e s6 ele; de urn espectador extraordi­nariamente perspicaz e com 0 poder de ver tudo. A anAJise 16gica e descritiva, como 0 ponto de vista do personagem, sAo pratica­mente eliminados; resta 0 da testemunha. A "camera subjetiva" e enfim realizada, mas as avessas. nAo como em A dama do logo, gracas a uma identificaca.o pueril do espectador com 0 personagem por intermedio da dmera, mas ao eontrario. peJa irnplacavel exle­rioridade da teslernunha. A camera. enfim, e 0 espectador e nada mais do que ele. 0 drama torna-se de novo plenarnente urn espeta­culo. Foi tamhem Cocteau quem disse que 0 cinema era urn aconle­cimento visto pelo buraco da fechadura. Da fechadura fica a im­pressAo de uma viol~o de domicilio, a quase-obscc:nidade do "ver".

Tomemos urn exemplo bern significativo dessa escolha arbitra­ria pela exterioridade: uma das tiltimas imagens do filme, quando Yvonne de Bray envenenada se afasta, aodando de costas para seu quarto, olhando 0 grupo ocupado em volta da feliz Madeleine. Urn travelling para tras permite que a cAmera a acompanhe. Mas esse movimento de camera nunea confunde. como a tentacAo era grande, com 0 ponto de viSla subjetivo de "Sophie". 0 efeito de cheque do travelling seria certament.£_m~ItM se estivessemos

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,)8 ANDR£ BAZIN

P«:ado original (Yvonne de Bray). 0 cinellll. qundo Coctcau : um aconlt+ time-nlo visto ptlo buraco iii fecbadur. . IF _ __ I

00 lugar da atriz e vlssemos com seus olhas. Mas Cocteau evitou tal contra-sensa, ele mantem Yvonne Bray "como isca" e reeua, urn pouco mais afastado, au-as dela. 0 objeto do plano nAo e 0

que cia alha, tampouco seu alhar; mas olha-Ia olhar. Por cima de seus ambros, sem duvida, e esse e 0 privilegio cinemalografico. mas que Cocteau restitui com presteza ao (catro.

Cocteau situava-se assim no pr6prio principia das rela~Oes do especlador e do palco. Enquanto 0 cinema Ihe permitia ~pree~­der 0 drama a partir de pontoS de vista multiplos, cle escolhla dell­beradamente usaf apenas 0 ponto de vista do espectador. (mica denominador coroum do pa1co e da tela.

Desse modo Cocteau conserva em sua ~ 0 essential de seu carAter tealraJ . Em vez de teotar , depois de tantos outros, dissolve­la no cinema ele utiliu, ao contrario , os rec:ursos da camera para acusar, salie~tar, confirmar as estruturas cenicas e seus coro~arios psicol6gicos. A contribui~!o especlfica do cinema 56 podena ser definida aqui por urn acresomo de teatralidade.

Com isso ele se aproxima de Laurence Olivier, Orson Welles, Wyler e Dudley Nichols, como confirmaria a amUise de Macbe/h - reinado d~ songu~, Hamlet, Perjida e de Conjlilo de poixDes,

TEATRO E CINEMA

Co'1/1ito rh poixlJer, Oc Dudley NicboI.s. bbea60 em EUlene O' Neill: I con­lribukf,o Clipcdf.a Go cineml Ie define por um acrHcimo de tcatralk1lldc.

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sem falar de urn filme como Meu amigo. Am~lia e eu, no quaI Claude Autant-Lara procede sabre 0 vaudeville a uma opera~o comparavel a de Laurence Olivier sobre Henrique V. Todos os exilos tao caracterlsticos dos lillimos 15 anos sao a ilustra~!o de tal paradoxo: 0 respeito ao texto e as estruturas tealrais. 13 n!o se "adapta" mais urn lema. E uma peca que se encena por inler­medio do cinema. Do "teatro em conserva", ingenuo e insolenle, aos rec:entes sucessos, 0 problema do teatro filmado foi radical­mente renovada. Tentamos discernir como. Se fOssemos mais ambi­closos, chegariamos a dizer por que?

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o leitmotiv daqueles que desprezam 0 teatro filmado, seu ultimo argumento aparentemente inexpugnflVel, e sempre 0 prazer insubstituivel que se vincula a presen<;a fisica do ator. "0 que ha de especificamente teatral", escreve Henri Gouhier, em L 'essence du theatre, "e a impossibilidade de destacar a a<;ao do ator". E mais: "0 palco acolhe todas as ilusoes, exceto a da presen<;a, 0

ator aparece ali sob seu disfarce, com outra alma e outra voz, mas esta ali e, ao mesmo tempo, 0 espa<;o encontra sua exigencia e a dura<;ao sua espessura". Em outros termos e de modo inverso: o cinema pode acolher todas as realidades, exceto a da presen<;a fisica do ator. Se e verdade que nisso reside a essencia do feno­menD teatral, 0 cinema nao poderia, portanto, de modo algum almeja-Ia. Se a escritura, 0 estilo, a constru<;ao dramatica sao, como devem se-Io, rigorosamente concebidos para ganhar' alma e existencia do ator em carne e osso, 0 empreendimento que substi­tui 0 homem por seu reflexo e sua sombra e radical mente vao. 0 argumento e irrefutavel. Os exitos de Laurence Olivier, de Welles ou de Cocteau s6 podem ser contestados (mas para isso e preciso rna fe), ou serem inexplicaveis: urn desafio a estctica e ao fi16sofo. Por isso, s6 podemos elucida-los recolocando em questao esse lugar comum da critic a teatral: "a insubstituivel presen<;a do ator".

A no~ao de presen~a

Uma primeira serie de observa<;oes se imporia, a principio, quanto ao conteudo do conceito de "presen<;a", pois parece ser essa no<;ao, tal como podia ser entendida antes do aparecimento da fotografia, que 0 cinema vern precisamente abalar.

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Sera que a imagem fotografica - e singular mente cinemato­grafica - pode ser assimilada as outras imagens e, como elas, dis­tinguida da existencia do objeto? A presen<;a define-se natural­mente em rela<;ao ao tempo e ao espa<;o. "Estar em presen<;a" de alguem e reconhecer que ele e nos so contempor:ineo e constatar que ele esta na zona de acesso natural de nossos sentidos (ou seja, aqui, da visao, e, no radio, da audi<;ao). Ate 0 aparecimento da fotografia, e depois do cinema, as artes plasticas, principalmente nos retratos, eram os unicos intermediarios possiveis entre a pre­sen<;a concreta e a ausencia. A justifica<;ao dis so era a semelhan<;a, que excita a imagina<;ao e ajuda a mem6ria. A fotografia, porem, e bern diferente. Nao e a imagem de urn objeto ou de urn ser, e sim, para sermos mais exatos, seu vestigio. Sua genese automatica a distingue radical mente das outras tecnicas de reprodu<;ao. 0 fot6-grafo procede, por intermedio da objetiva, a uma verdadeira cap­ta<;ao da impressao luminosa: a uma moldagem. Como tal, ele traz consigo mais que a semelhan<;a, traz uma especie de identi­dade (a carteira assim chamada s6 e concebivel na era da fotogra­fia). Mas a fotografia e uma tecnica enferma, na medida em que sua instantaneidade a obriga apreender 0 tempo apenas em cortes. o cinema realiza 0 estranho paradoxo de se mol dar sobre 0 tempo do objeto e de ganhar, ainda por cima, a marca de sua dura<;ao.

o seculo XIX, com suas tecnicas objetivas de reprodu<;ao, visuais e sonoras, faz aparecer uma nova categoria de imagens: suas rela<;oes com a realidade de onde procedem pediriam para ser rigorosamente definidas. Sem contar que os problemas esteti­cos que derivam diretamente disso nao poderiam ser conveniente­mente colocados sem essa opera<;ao filosOfica preliminar. Ha certa imprudencia em tratar de antigos fatos esteticos como se as catego­rias que eles interessam nao fossem modificadas em nada pelo apa­recimento de fenomenos absolutamente novos. 0 senso comum - talvez 0 melhor fil6sofo em tais materias - compreendeu bern isso, e criou uma expressao para significar a presen<;a de urn ator, acrescentando no cartaz "em carne e osso". E que, para ele, a palavra "presen<;a" se presta hoje em dia a equivoco e urn pleo­nasmo nunca e demais no tempo do cinemat6grafo. Assim, desde entao, nao e certo que nao haja nenhum intermediario concebivel entre a presen<;a e a ausencia. E igualmente a nivel da ontologia que a eficacia do cinema tern sua origem. E erroneo dizer que a tela e absolutamente impotente para nos por "em presen<;au do ator. Ele faz isso a maneira de urn espelho (que, e ponto pacifico, substitui a presen<;a daquilo que se reflete nele), mas de urn espe-

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lho com reflexo diferido, cujo ac;o retivesse a imagem. 12 E ver­dade que, no teatro, Moliere pode agonizar no palco e que. t~mos o priviit!gio de viver no tempo biografico do ator; mas aSSlStlmos por certo, no filme Mana/ete, a morte autentica do celebre toureiro, e se nossa emoc;ao nao e tao forte quanto se estivessemos na arena naquele instante historico, ela e, no entanto, da mesma natureza. Nao reganhamos 0 que perdemos do testemunho direto grac;as a proximidade artificial que 0 aumento da camera permi.te? Tudo se passa como se, no parametro Tempo-Espac;o que defme a pre­senc;a, 0 cinema so nos restituisse efetivamente uma durac;ao enfra­quecida, diminuida, mas nao reduzida a zero, enquanto que a multiplicac;ao do fator espacial restabeleceria 0 equilibrio da equa­

c;ao psicologica. Em todo caso, nao poderiamos opor cinema e teatro somente

com a noc;ao de presenc;a, sem explicar de ante mao 0 que subsiste dela na tela e 0 que filosofos e estetas ainda nao esclareceram. Nao empreenderemos isso aqui, po is ate mesmo na compreensao chissica que the atribui, juntamente com outros, Henri Gouhier, nao nos parece que a "presenc;a" contenha, em ultima analise, a essencia decisiva do teatro.

Oposi~ao e identifica~ao

Uma introspecC;ao sincera dos prazeres teatral e cinematogra­fico, no que eles tern de menos intelectual, de mais direto, nos obriga a reconhecer na alegria que nos deixa 0 palco quando a cortina desce, nao sei 0 que de mais tonica e, e preciso confessar, de mais nobre - ou talvez fosse preciso dizer de mais moral -que a satisfac;ao apos urn filme. E como se extraissemos uma melhor consciencia dele. Em certo sentido, para 0 espectador, e como se todo teatro fosse corneliano. Desse ponto de vista, pode­riamos dizer que "falta alguma coisa" aos melhores filmes. E como se uma diminuiC;ao de voltagem inevitavel, algum misterioso curto-circuito nos privasse no cinema de uma certa tensao decidi­damente propria ao palco. Por menor que seja essa diferenc;a, ela existe mesmo entre uma rna interpretac;ao de apadrinhamento e a int~rpretac;ao cinematografica mais brilhante de Laurence Oli­vier. Tal constatac;ao nao tern nada de banal e a sobrevivencia do teatro a 50 anos de cinema e as profecias de Marcel Pagnol ja for­nece uma prova experimental suficiente disso.

No principio do desencanto que se segue ao filme, poderia­mos provavelmente detectar urn processo de despersonalizac;ao

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TEA TRO E CINEMA 143

do espectador. Como Rosenkrantz escrevia, em 1937,13 num artigo profundamente original para sua epoca, "os personagens da tela sao naturalmente objetos de identificac;ao, enquanto os do palco sao muito mais objetos de oposic;ao mental, po is a pre­senc;a efetiva deles lhes da uma realidade objetiva e, para trans­forma-los em objetos de urn mundo imaginario, a vontade ativa do espectador deve intervir, a vontade de abstrair a presenc;a fisica deles. Tal abstrac;ao e fruto de urn processo de inteligencia que so se pode pedir a individuos plenamente conscientes". 0 especta­dor de cinema ten de a se identificar com 0 heroi por urn processo psicologico que tern como conseqiiencia a constituic;ao da sala em "multidao" e a uniformizac;ao das emoc;oes: "Do mesmo modo que, em algebra, se duas grandezas sao respectivamente iguais a uma terceira, elas sao iguais entre elas, poderiamos dizer: se dois individuos se identificam com urn terceiro, eles se identifi­cam urn com 0 outro". Tomemos 0 exemplo significativo de dan­c;arinas de music-hall no palco e na tela. Na tela, 0 aparecimento delas satisfaz aspirac;oes sexuais inconscientes; e quando 0 heroi tern relac;oes com elas, ele satisfaz 0 desejo do espectador na medida em que este se identificou com 0 heroi. No palco, as dan­c;arinas despertam os sentidos do espectador tal como a realidade o faria. De modo que a identificac;ao com 0 heroi nao se da. Este torna-se objeto de ciume e inveja. Em suma, Tarzan so e concebi­vel no cinema. 0 cinema apazigua 0 espectador, 0 teatro 0 excita. o teatro, mesmo quando apela para os instintos mais baixos, impede ate certo ponto a formac;ao de uma mentalidade de multi­dao,14 ele entrava a representac;ao coletiva, no sentido psicologico, pois exige uma consciencia individual ativa, enquanto que 0 filme s6 pede uma adesao passiva.

Essas considerac;oes projetam uma nova luz sobre 0 problema do ator. Fazem-no descer da ontologia para a psicologia. E na medida em que 0 cinema favorece 0 processo de identificac;ao com o her6i que ele se opoe ao teatro. Apresentado desse modo, 0 pro­blema nao seria mais radicalmente insoluvel, pois e certo que 0

cinema dis poe de procedimentos de mise-en-scene que favorecem a passividade ou, ao contrario, excitam mais ou menos a conscien­cia. De modo inverso, 0 teatro pode procurar atenuar a oposic;ao psicol6gica entre 0 espectador e 0 her6i. Logo, teatro e cinema nao estariam mais separados por uma vala estetica intransponivel, tenderiam somente a suscitar duas atitudes mentais sobre as quais os diretores teriam urn grande controle.

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Analisando de perto, 0 prazer teatral nao se oporia somente ao do cinema, mas igualmente ao do romance. 0 leitor de romance fisicamente solitario - como 0 e, psicologicamente, 0 espectador das salas escuras - identifica-se com os personagens l5 e por isso sente, tam bern ele, depois de uma longa leitura, a mesma embria­guez de uma intimidade duvidosa com os herois. Ha incontestavel­mente no prazer do romance, tanto quanto no cinema, uma com­placencia consigo mesmo, uma concessao a solidao, uma especie de traic;:ao da ac;:ao pel a recusa de uma responsabilidade social.

A analise do fen6meno pode, alias, ser facilmente retomada de urn ponto de vista psicanalitico. Nao seria significativo que 0

psiquiatra tenha retomado aqui 0 termo catarse de Aristoteles? As pesquisas pedagogic as modernas relativas ao "psicodrama" parecem gerar os pareceres fecundos sobre os processos catarticos do teatro. Elas utilizam, com efeito, a ambiguidade que existe ainda na crianc;:a entre as noc;:oes de jogo e de realidade, para levar o sujeito a se liberar, na improvisac;:ao teatral, dos recalques de que sofre. Essa tecnica resume-se em criar uma especie de teatro incerto, no qual a interpretac;:ao e seria e 0 ator e seu proprio espec­tador. A ac;:ao que se desenvolve ainda nao esta cindida pelo pros­cenio, evidentemente a arquitetura simbolica da censura que nos separa do palco. Delegamos Edipo para agir em nosso nome do outro lado desse muro de fogo, essa fronteira ardente entre 0 real e 0 imaginario que autoriza os monstros dionisiacos e nos protege contra eles. 16 As feras sagradas nao atravessarao essa pagina de luz, fora da qual elas sao a nossos olhos incongruentes e sacrile­gas (a especie de respeito inquietante que aureola ainda 0 ator maquilado quando 0 vemos no camarim, como uma fosforescen­cia). Que nao venham dizer que nem sempre 0 teatro teve prosce­nio. Esse e apenas urn simbolo, antes dele houve outros, desde 0

coturno e a mascara. No seculo XVII, 0 acesso de privilegiados ao palco nao negava 0 proscenio, ele 0 confirmava, ao contrario, por uma especie de violac;:ao privilegiada, do mesmo modo como hoje na Broadway, quando Orson Welles espalha pela sala atores para atirar no publico, ele nao aniquila 0 proscenio, mas passa para o outro lado. As regras do jogo sao feitas tambem para serem vio­ladas, espera-se que certos jogadores trapaceiem. 17

Em relac;:ao a objec;:ao da presenc;:a, e so mente a ela, 0 teatro e 0 cinema nao estariam, portanto, em oposic;:ao essencial. 0 que esta em jogo sao, antes, duas modalidades psicologicas do espeta­culo. 0 teatro constroi-se certamente sobre a consciencia reciproca da presenc;:a do espectador e do ator, mas para fins de interpreta-

i I.

L

TEATRO E CINEMA 145

c;:ao. Ele age em nos por participac;:ao ludica numa ac;:ao, atraves do proscenio e como que sob a protec;:ao de sua censura. No cinema ao contrario, contemplamos solitarios, escondidos num quart~ escuro, atraves de persianas entreabertas, urn espetaculo que nos ignora e que participa do universo. Nada vern se opor a nossa iden­tificac;:ao imaginaria com 0 mundo que se agita a nossa frente, que se torna 0 Mundo. la nao e sobre 0 fen6meno do ator enquanto pessoa fisicamente presente que se tern interesse em con­centrar a analise, mas sobre 0 conjunto das condic;:oes da "inter­pretac;:ao teatral", que retira do espectador sua participac;:ao ativa. Veremos que se trata bern menos do ator e de sua "presenc;:a" do que do homem e do cenario.

o avesso do cemirio

So ha teatro do homem, mas 0 drama cinematografico po de dispensar atores. Vma porta que bate, uma folha ao vento, ondas que lamb em uma praia podem aceder a potencia dramatica. Algu­mas das obras-primas do cinema nao utilizam homens senao aces­soriamente: como urn comparsa, ou em contraponto da natureza que constitui 0 verdadeiro personagem central. Mesmo se em Nanook, 0 esquim6, ou em Man of A ran a luta do homem e da natureza e 0 assunto do filme, ela nao poderia ser comparada a uma ac;:ao teatral, 0 ponto de apoio da alavanca dramatica nao esta no homem, mas nas coisas. Como disse, acho, lean-Paul Sar­tre, no teatro 0 drama parte do ator, no cinema, ele vai do cena­rio ao homem. Tal inversao das correntes dramaticas tern uma importiincia decisiva, ela interessa a propria essencia da mise-en-scene.

E preciso ver nisso uma das conseqiiencias do realismo foto­grafico. E claro que, se 0 cinema utiliza a natureza, e porque ele pode: a camera oferece ao diretor todos os recursos do microsco­pio e do telescopio. Tanto as ultimas fibras de uma corda que iraQ ceder, quanto urn exercito inteiro atacando uma colina, sao acon­tecimentos que estao agora ao nosso alcance. As causas e os efei­tos dramaticos nao tern mais, para 0 olho da camera, limites mate­riais. 0 drama e, por ela, liberado de qualquer contingencia de tempo e espac;:o. Mas essa liberac;:ao dos poderes dramaticos tangi­veis e apenas uma causa estetica secundaria, que nao poderia expli­car radicalmente a inversao dos valores entre 0 homem e 0 cenario. Pois acontece, enfim, de 0 cinema se privar voluntariamente dos recursos possiveis ao cenario e a natureza - vimos precisamente

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o exemplo em Pecado original - quando 0 teatro, ao contrario, uliliz.a uma parafemalia complexa para dar ao espectador a ilusAo da ubiquidade. Seria 0 martirio de Joana d'Arc, de Carl Dreyer, feito inteiramente em primeiro plano. num cenirio Quast invisivel (e alias Itattal), de Jean Hugo, menos cinematografico que No tempo das diliglncias? Fica evidente. portanto, que a Quantidade poueo importa no caso, tampouco a similitude com certos cena· rios de leatro. 0 decoractor nAo coneebera de modo sensivelmente diferente 0 Quarto de A dama das camelias para 0 palco e para a tela. ~ verdade que, no cinema, teremas talvez primeiros pianos do len~ manchado de sangue. Mas uma mise-en-scene tealral habil saber! tambem jogar com a (osse e com 0 lenco. Todos as primeiros pianos de Pecado original sao, de fato. retomados do teatro. onde nossa aten~a.o os isolava espontaneamente. Se a mise-en-sdne cinematografica s6 se distinguisse da outra porque autoriza uma maior proximidade do cenario e sua utilizaC;a.o mais racional. n1l.0 haveria mais. na verdade. rwo para continuar a fazer teatro e Pagnol seria um profeta; pais podemos ver que os poucos metros quadrados do centrio de Vilar para La danse de morl contribulam tanto ao drama quanto a ilha onde foi rodado o filrne. alias excelente. de Marcel Cravenne.

E que 0 problema n1l.0 reside no cenario eoquanto tal. mas na sua natureza e oa sua fun~o. E preciso elucidar agora urna noc;lo especificamente teatral: a do lugar dramatico.

N1I.o poderia haver teatro sem arquitetura. seja ela 0 atrio da catedral, as arenas de Nimes, 0 palacio dos Papas, 0 tablado, 0 hemiciclo, como decorado por urn Berard delirante. do teatro de Vincence. ou 0 anfiteatro roc0c6 de uma sala dos boulevars. Inter­pretac;.1o ou celebrac;Ao, 0 teatro n.1o pode por esseocia se coofuo­dir com a natureza, sob pena de se dissolver e cessar de existir. Fundado na consciencia reciproca dos participantes em presen~. ele precisa opor-se ao resto do mundo como a interpretac;a.o a rea­lidade, a cumplicidade a indiferenc;a, a liturgia a vuJgaridade do Util. A roupa, a mascara ou 0 disfarce, 0 estilo da linguagem. 0 proscenio concorrem mais ou menos para essa distinc;1I.o. porem seu signo rnais evidente e 0 palco. cuja arquitetura variou sem no entanto deixar de definir urn espaC;O privilegiado, real ou vinual­mente distinto da natureza. E em relaC;.1o a esse Jugar dramatico localizado que 0 cenario exine; ele contribui sirnplesmente, e rnais ou menos. para distingui-Io. para especifica-Jo. Qualquer que seja ele, porem, 0 cenario constitui as paredes dessa caixa de tres lados, aberta para a sala. que e 0 palco. As falsas perspectivas.

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TEATRO e CINEMA 141

Eric ... on Siroheirn, em LA da~ d~ mort. de M.rcel Cr .... ennc:: 0 problema 010 reside DO ttnirio enquanto t.aI (.qui, urn. ilh.). mas na sua nllureu e na su. rUDt;lO . 11'_ c--:.

fachadas. bosques tern urn avesso de pan~, de pregos e de madeira. Ninguem ignora que 0 ator que se "relira para seus aposentos" _ de frente para 0 patio ou para 0 jardim - vai oa realidade tirar a maquilagem no camarim; os poucos metros quadrados de luz e ilusao sao rodeados de maquinario e bastidores cujos labirintos escondidos. mas conhecidos , 011.0 incomodam de modo algum 0 prazer do espectador que entra no jogo.

Por ser apenas urn elemento da arquitetura ceniea. 0 cenario de tealro e, portanlo. um lugar material mente fechado, Iimitado. circunscrilo. seodo os unicos "Iugares abertos" os de nossa imagi­nac;Ao aprovadora. Suas aparencias esUlo voltadas para 0 interior. em frente do publico e do proscenio; ele existe gracas ao seu avesso e a sua ausencia de alem, como a pintura gracas A sua moldura}' Do mesmo modo que 0 quadro nAo se confunde com a paisagem que representa. nem e urna janela numa parede, 0 palco e 0 ceoa­rio onde a acAo se desenrola sAo urn mierocosmo estetico inserido 6. forca no universo. mas essencialmente heterogeneo 6. natureza que 0 rodeia .

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E bern diferente 0 que acontece no cinema, cujo principio e negar qualquer fronteira para a a~ao. 0 conceito de lugar drama­tico nao e apenas alheio, mas essencialmente contradit6rio a no(,:ao de tela. A tela nao e uma moldura, como a do quadro, mas uma mascara l9 que s6 deixa uma parte do evento ser percebida. Quando urn personagem sai do campo da camera, n6s admitimos que ele escapa ao campo visual, mas ele continua a existir, identico a si mesmo, num outro ponto do cenario, que foi mascarado. A tela nao tern bastidores, nao poderia ter sem destruir sua ilusao especi­fica, que e fazer de urn rev6lver ou de urn rosto 0 pr6prio centro do universo. Ao contrario do espa~o do palco, 0 da tela e centrifugo.

Por nao poder ser espacial, 0 infinito de que 0 teatro precisa s6 pode ser 0 da alma humana. Cercado por esse espa~o fechado, o ator esta no foco de urn espelho concavo duplo. Da sala e do cenario convergem nele 0 ardor das consciencias e as luzes da ribalta. Mas esse ardor em que ele queima e tam bern 0 de sua pr6-pria paixao e de seu ponto focal; ele acende em cad a espectador uma chama cumplice. Como 0 oceano na concha, 0 infinito dra­matico do cora~ao humano ressoa e repercute entre as paredes da esfera teatral. Por isso, essa dramaturgia e de essencia humana, o homem e sua causa e tema.

Na tela, 0 homem deixa de ser 0 foco do drama para tornar­se (eventualmente) 0 centro do universo. 0 choque de sua a~ao po de desenvolver nele suas ondas ao infinito; 0 cenario que 0

rodeia participa da espessura do mundo. Por isso, 0 ator enquanto tal pode estar ausente dele, pois 0 homem nao goza ali de nenhum privilegio sobre 0 animal ou sobre a floresta. Entretanto, nada impede que ele seja a principal e unica mola do drama (como em Joana d'Arc, de Dreyer) e nisso 0 cinema pode muito bern se sobrepor ao teatro. Enquanto a~ao, a de Fedra ou de Rei Lear e tao cinematografica quanto teatral e a morte visivel de urn coelho em A regra do jogo nos toca tanto quanto aquela, contada, do gatinho de Agnes.

Mas se Racine, Shakespeare ou Moliere nao suportam ser levados ao cinema por urn mero registro plastico e sonoro, e por­que 0 tratamento da a~ao e do estilo do dialogo foram concebi­dos em fun~ao de seu eco sobre a arquitetura da sala. 0 que essas tragedias tern de especificamente teatral nao e tanto a a~ao mas a prioridade humana, logo verbal, dada a energia dramatica.

o problema do teatro filmado, pelo menos para as obras clas­sicas, nao consiste tanto em transpor uma "a~ao" do palco para a tela, e sim em transportar urn texto de urn sistema dramaturgico

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para urn outro, conservando-lhe, no entanto, sua eficacia. Nao e, portanto, essencialmente a a~ao da obra teatral que resiste ao cinema, mas, para alem das modalidades da intriga, que seria tal­vez facil de adaptar a verossimilhan~a da tela, a forma verbal que as contingencias esteticas ou os pre conceit os culturais nos obrigam a respeitar. E ela que se recusa a se deixar pegar na janela da tela. "0 teatro", escreve Baudelaire, "e 0 lustre". Se fosse preciso opor outro simbolo ao objeto artificial, cristalino, brilhante, mul­tiplo e circular, que refrata as luzes em torno de seu centro enos retem cativos em sua aureola, diriamos que 0 cinema e a lanterna do lanterninha que atravessa como urn cometa incerto a noite de nosso sonho acordado: 0 espa~o difuso, sem geometria e sem fron­teira, que cerca a tela.

A hist6ria dos fracassos e dos recentes exitos do teatro fil­mado sera, portanto, a da habilidade dos diretores quanto aos meios de reter a energia dramatica num ambiente que a reflita ou, pelo menos, the de bastante ressonancia para que ela seja ainda perce bid a pelo espectador de cinema. Quer dizer, de uma estetica, nao tanto do ator mas do cenario e da decupagem.

Compreende-se desde entao que 0 teatro filmado esteja radi­calmente fadado ao fracasso quando se reduz, de alguma maneira, a uma fotografia da representa~ao cenica, mesmo e principal mente quando a camera procura nos fazer esquecer 0 proscenio e os bas­tidores. A energia dramatica do texto, em vez de passar para 0

ator, vai se perder sem eco no eter cinematografico. Assim fica explicado que uma pe~a filmada possa respeitar urn texto, ser bern interpret ada em cenarios verossimeis enos parecer totalmente ani­quilada. E 0 caso para retomar esse exemplo comodo, de Voya­geur sans bagages. A pe~a jaz diante de nos, aparentemente iden­tica a ela mesma, mas desprovida de toda energia, como urn acu­mulador descarregado por uma liga~ao terra invisivel.

Mas para alem da estetica do cenario, no palco e na tela, fica claro que, em ultima analise, 0 problema apresentado e 0 do rea­lismo. Enfim, somos sempre levados a ele quando falamos de cinema.

A tela e 0 realismo do espa~o

Partindo da natureza fotografica do cinema, fica faci!, com efeito, nos convencermos de seu realismo. Longe de a existencia do maravilhoso ou do fantastico no cinema vir a enfraquecer 0

realismo da imagem, ela e sua contra-prova mais convincente. A

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ilusao nao esta fundada no cinema, como no teatro, em conven­c;oes tacitamente admitidas pelo publico, mas, ao contrario, no realismo imprescritivel do que Ihe e mostrado. 0 truque deve ser materialmente perfeito: 0 "homem invisivel" deve usar pijamas e fumar cigarros.

Seria preciso concluir dai que 0 cinema esta fadado unica­mente a representac;ao, se nao da realidade natural, pelo menos de uma realidade verossimel, cuja identidade com a natureza, tal qual 0 espectador a conhece, e admitida por ele? 0 relativo fra­casso estetico do expressionismo alemao confirmaria essa hipotese, pois bern se ve justamente que 0 gabinete do dr. Caligari quis sub­trair-se ao realismo do cenario sob a influencia do teatro e da pin­tura. Mas seria dar uma soluc;ao simplista a urn problema que ad mite respostas mais sutis. Estamos prontos a admitir que a tela se abre sobre urn universo artificial, contanto que exista urn deno­minador comum entre a imagem cinematografica e 0 mundo em que vivemos. Nossa experiencia do espac;o constitui a infra-estru­tura de nossa concepc;ao do universo. Transformando a formula de Henri Gouhier: "0 palco acolhe todas as ilusoes, a nao ser a da presenc;a", poderiamos dizer: "podemos desprover a imagem cinematografica de toda realidade, a nao ser de uma: a do espac;o" .

Toda e talvez urn exagero, pois sem duvida nao se poderia conceber uma reconstruc;ao do espac;o, sem qualquer referencia a natureza. 0 universo da tela nao pode justapor-se ao nosso. Ele o substitui necessariamente, ja que 0 proprio conceito de universo e espacialmente exclusivo. Por urn momenta 0 filme e 0 Universo, o Mundo, ou se se quer, a Natureza. Reconhecerao que todos os filmes que tentaram uma natureza fabricada e urn universo artifi­cial ao mundo de nossa experiencia tambem nao 0 conseguiram. Admitidos os fracassos de 0 gabinete do dr. Caligari e dos Nibe­lungos, perguntamo-nos de onde vern 0 incontestavel sucesso de Nosferatu e do 0 martirio de Joana d'Arc (0 criterio do sucesso sendo que os ultimos filmes nao envelheceram). Parece no entanto, a primeira vista, que os procedimentos de mise-en-scene pertencem a mesma familia estetica e que, sob as variedades de temperamento ou de epoca, e possivel classificar esses quatro filmes, no lado oposto ao do "realismo", num certo "expressionismo". Se olhar­mos mais atentamente, porem, perceberemos que existem diferen­<;:as essenciais entre eles. Elas sao evidentes no que concerne a Wiene e Murnau. Nosferatu se desenrola no mais das vezes em cenario natural, enquanto 0 fantastico de 0 gabinete do dr. Cali­gari esfor<;:a-se para nascer das deforma<;:oes da luz e do cenario.

TEA TRO E CINEMA 151

o caso de 0 martirio de Joana d'Arc, de Dreyer, e mais sutil, pois a parte da natureza pode a principio parecer ai inexistente. Nao e por ser mais discreto que 0 cenario de Jean Hugo e menos artificial e teatral do que 0 utilizado em 0 gabinete do dr. Cali­gari; 0 emprego sistematico do primeiro plano e dos angulos raros e feito com certeza para acabar de destruir 0 espa<;:o. Os cinefilos sabem que sempre se conta, antes da projec;ao do filme de Dreyer, a famosa historia dos cabelos de Falconetti realmente cortados em nome da causa, e que e tambem mencionada a ausencia de maquilagem dos atores. Porem, normalmente, tais lembranc;as his­toricas nao vao alem do interesse da anedota. Ora, elas me pare­cern conter 0 segredo estetico do filme: 0 mesmo que Ihe vale sua perenidade. E atraves deles que a obra de Dreyer deixa de ter algo em comum com 0 teatro e, poderiamos inclusive dizer, com 0

homem. Quanto mais ele recorria exclusivamente a expressao humana, mais Dreyer devia reconverte-la em natureza. Nao nos deixemos enganar, esse prodigioso afresco de cabec;as e 0 contra­rio perfeito do filme de atores: e urn documentario de rostos. Pouco importa que os interpretes "interpretem" bern, em compen­sac;ao a verruga do bispo Cauchon ou as sardas de Jean d'Yd sao partes integrantes da a<;:ao. Nesse drama visto ao microscopio, toda a natureza palpita debaixo de cad a poro da pele. 0 desloca­mento de uma ruga, a contra<;:ao dos labios sao os abalos sismicos e as mares, 0 fluxo e refluxo da crosta humana. Mas eu veria tran­qiiilamente a suprema inteligencia cinematografica de Dreyer na cena de externa, que qualquer outra pessoa nao teria deixado de rodar em estudio. 0 cenario construido evoca certamente uma idade media de teatro e de miniaturas. Em certo sentido, nao ha nada menos realista do que esse tribunal no cemiterio ou essa porta e ponte levadi<;:a e, no entanto, tudo e iluminado pel a luz do sol e 0 coveiro joga no buraco uma pa de terra de verdade20 •

Sao tais detalhes "secundarios" e aparentemente contrarios a este­tica geral da obra que Ihe conferem, no entanto, sua natureza cinematografica.

Se 0 paradoxo estetico do cinema reside numa dialetica do concreto e do abstrato, na obrigac;ao para a tela de significar uni­camente por intermedio do real, e ainda mais importante discernir os elementos da mise-en-scene que confirmam a no<;:ao de reali­dade natural e os que a destroem. Ora, e certamente urn visao gros­seira subordinar 0 sentimento de realidade a acumula<;:ao dos fatos reais. Les dames du bois de Boulogne pode ser considerado urn filme eminentemente realista, embora tudo ou quase tudo nele

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'" ANORI:. BAZIN

MilCMIt . Com 01 rochedos de papdio, Onon Welles consegWu dar ao oeni­rio urn. opacidade dramilica, respcilanGo c;onludo leU realismo natural.

0'010 ..,..,.. """_I seja estilizado. Tudo, com exc~Ao do barulho insignificante de urn para-brisas, 0 murmurio de uma cachoeira au 0 chiado da terra que escorrc de urn vaso quebrada. SAo esses barulhos. esco­lhidas, alias, cuidadosamente peJa indiferen~a deles a a~o. que garantem sua verdade. .

Senda 0 cinema por essencia uma dramaturgta da natureza, nlio pode haver cinema ~m constru~o de urn espa~ aberlo. que substitui 0 universo ao ioves de inc1uir-se nclc. A iluslo de tal sen­timento de espaco nAo poderia seT dada pela tela scm que esta recorresse a certas garantlas naturais . Mas nAo e tanto uma ques­tao de constru~ao do cemina. de arquitetura au de imensidllo. quanto de isolamento do catalisador eslelico. que podeni seT sufi­ciente introduzir em dose infinitesimal na mise-e,,-s~ne, para Que ela predpite totalmente na " natureza". A floresta de concreto dos Nibelungos pode parecer infinita, n6s nAo acreditamos em seu espaero, quando urn estremecimento de urn simples galho de uma betula ao vento, sob 0 sol, poderia bastar para evocar todas as flo­restas do mundo.

TEATRO E CINEMA IS'

Se essa analise tem fundamento, vemos que 0 problema este­lieO primordial , na QuestAo do teatro filmado, e 0 do cenArio. 0 diretor deve apostar na reconversAo de urn espaero orientado uni­camente para a dimensAo interior, do lugar fechado e convencio­nal da interpretacAo tealral em uma janela para 0 mundo.

NAo e em Hamlet, de Laurence Olivier, que 0 te:l((o parece su¢rnuo ou enfraquecido pela parifrases da mise-en-sc~ne, tam­pouco em Macbeth, de Orson Welles, e sim, paradox.almente, nas mises-4!n-s~ne de Gaston Baty, precisamente na medida em que estas se empenham para criar no palco urn espaco cinematografico, para negar 0 avesso do cenArio, redurindo assim a sono ridade do tex.to unicamente as vibracOes da voz do ator, privado de sua caixa de ressonancia como urn violino reduzido a suas cordas. NAo pode­rlamos negar Que 0 essencial no teauo seja 0 tex.to. Este, conee­bido para a expressAo antropocentrica do palco e encarregado de suprir por si s6 a natureza, nAo pede, sem perder sua rwo de ser, se manifestar num espaco transparente como 0 vidro. 0 problema que se apresenta ao cineasta e, portanto, 0 de dar a seu cenArio uma opacidade dramatica, respeitando cont udo seu realismo natu­ral . Resolvido esse paradoxa do espaco , 0 diretor, longe de recear transpartar para a tela as convenerOes teatrais e as sujeiCOes do texto, tern, ao contrar-io, tOOa Iiberdade para se apoiar nelas. A partir de entAo, nAo se Lrata mais de evitar 0 Que "parece tcatro", mas, eventualmente, ate de frisA-lo com a recusa das fadlidades cinematograficas, como Cocteau em Pecado original e Welles em Macbeth - reinado de sangue. ou ainda pela enfase da parte tea­tral, como Laurence Olivier em Henrique V. A evidente volta ao teatro filmado, a Que assistimos nos ultimos dez anos, inscreve-se essencialmente na hist6ria do cenario e da decupagem; ela e urna conquista do realismo; nAo, e 6bvio, do rea1ismo do tema ou da expressAo, e sim do realismo do espaco, scm 0 Que a fotografia animada nAo faz cinema.

Uma analogia da iDterprtta~io

Ene progresso 56 foi passlvel na medida em que a oposicAo teatro-dnema nAo repousava sobre a categoria ontol6gica da pre­senea, e sim sobre uma psicologia da interpretaelo. De uma l Outra passamos do absoluto ao relativo, da antinomia a uma sim­ples contradicAo. Se 0 cinema nlo pode restituir ao espeaador a consciencia comunitAria do leatro, uma certa cianci a da m~n-sdne Ihe permite enfim - e isso e urn fator decisivo _

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,,. ANORt BAZIN

conservar sentido e eficAcia para 0 texto. 0 enxerto do texto tea­lral num cenario cinemalografico e hoje uma opera~a.o que se sabe fazeT com exila. Resta a consciencia da oposic;Ao ativ3 emre o espectador e 0 alor que conSlilUi a interpretac;:lo (Calral e simbo­liza a arquitetura c!nica. PaTern, cia pr6pria nla e tOlalmente inc­dudvel a psicologia cinematografica.

A argumentac;:lo de Rosenkrantz sobre a oposic;:Ao e a identifi­cacrlo pediria, com efeito. uma COrT~AO importante. Ela campana ainda uma parte de eq uivoca, sustentado pelo eSlado do cinema na sua epoca, porcm cada vez mais denunciado pela evoluCao alual. Rosenkrantz partee fazeT da identificacAo 0 sinOnimo neces­saria de passividade e de evasAo. Na reaJidade, 0 cinema mitico e onirico nAo e mais que uma variedade de prociucAo cada vez menos majoritaria. Nlio se deve confundir uma sociologia acidental e his­t6rica com uma psicologia inelutavel; dois movimentos da consci­encia do espectador, convergenles, mas de modo algum solidarios. Eu nllo me identifico da mesma maneira com Tan! e com 0 padre do interior. 0 unico denominador comum a minha atitude diante dos her6is e que acredito realmente na existencia deles, que nAo posso recusar, por falta de participac;lo ao filme, ser incluldo na aventura deles, vive-Ia com eles denlro de seu pr6prio universa, nlo "universo" metaf6rico e figurado, mas espacialmente real. Essa interioridade nAo exclui, no segundo exemplo, uma consciSn­cia de mim mesmo, distinta do personagem, que aceilo alienar no primeiro. Tais fatores de origem afetiva nlio sAo os unicos que podem contrariar a identificacrao passiva; filmes como Sier.ra de Teruelou Cidadt10 Kane exigem do espectador uma vigillncia iOle­lectual totalmente contraria a passividade. 0 que podemos no m3..ximo adiantar e que a psicologia da imagem cinematografica oferece uma inclinac;lo natural a uma sociologia do her6i caracte­rizada por uma identificac;llo passiva; porem, em arte como em moral, as inclinac;Oes sAo feilas tam bern para serem remontadas. Enquamo 0 homem de teatro moderno procura freqiientemente atenuar a consciSncia da interpretac;lo por uma esp6cie de realismo relativo da mise-4!n-sdne (como 0 admirador do teatro de mario­netes finge ler medo, mas conserva no auge do horrfvel a deliciosa consciencia de eslar sendo enganado), 0 realizador de filme desco­bre reciprocamente os meios de excitar a consciencia do especla­dor e de provocar sua renexllo: algo que seria uma oposicr!O no seio de uma identificac;lo. Essa zona de consciencia privada, essa rese:rva no auge da ilusllo, constituem uma esp6c:ie de pro$dnio individual. No leal.ro filmado nlo e mais 0 microcosmo cenico que se opOe: A natureza, mas 0 espectador que se faz conscieocia.

TEATRO E CINEMA '"

Espoil, ~ MairalU.. No teatro 0 drama pane do alor: DO cinema ele vai do CUlirio ao homem. I'F_ ,."...,

No cinema, Hamiel e Pecado original nAo podem, nem devem escapar as leis da perce~llo cinematografica: Eiseneur, a Roulotte existem realmente. mas eu passeio por ali invisfvel. gozando dessa liberdade equivoca que certos sonhos deixam. Eu "ando", mas com certa prudencia.

E claro que a possibilidade de consciencia intelectual no seio de uma identificacrAo psicol6gica nAo poderia ser confundida com ? ato. de vontade constitutivo do leatro, e por isso e inutil querer Identlficar, como 0 faz Pagnol, 0 palco e a lela. Por mais cons­cienle e inteligeole que urn filme saiba tornar-se. nAo e, no entanto, para minha vontade que ele apela: no maximo a minha boa von­t~de . Ele precisa de meus esforcros para ser compreendido e apre­clado, mas nAo para existir. Entretanto, parece, por experi!ncia, que essa rnargem de consciencia permitida peio cinema e suficiente para fundar uma equival!ncia aceiu\vel do prazer puramente tea­ltal, que ela permiu, em todo case, conservar 0 essencial dos valo­res anlsticos da ~. 0 ftIme, se ele nAo pode substituir integral­mente a represe:nta~o cenica. e pelo menos capaz de assegurar ao tcalro uma existencia artlstica valida, de nos oferecer urn prazer anal6gico. 56 pode, com efeito, tratar-~ de urn mecanismo este-

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tico complexo, no qual a eficacia teatral original quase nunca e direta, mas conservada, reconstituida e transmitida gra~as a urn sis­tema de substitui~ao (por exemplo, Henrique V), de amplifica~ao (por exemplo, Macbeth), de indu~ao ou de interferencia. 0 verda­deiro teatro filmado nao e 0 fon6grafo, mas sua onda Martenot.

Moralidade

Assim a prcitica (certa) como a teoria (possivel) de urn teatro filmado bem-sucedido poem em evidencia as antigas razoes do fra­casso. A pura e simples fotografia animada do teatro e urn erro pueril, reconhecido ha 30 anos, sobre 0 qual nao vale a pena insis­tiro A "adapta~ao" cinematogrMica levou mais tempo para revelar sua heresia, ela continuani ainda a enganar, mas agora sabemos para onde ela leva: para os limbos esteticos que nao pertencem nem ao teatro, nem ao filme, para 0 "teatro filmado", denunciado jus­tamente como 0 pecado contra 0 espirito do cinema. A verdadeira solu~ao, enfim vislumbrada, consistia em compreender que nao se tratava de fazer passar para a tela 0 elemento dramatico - inter­mutavel de uma arte para a outra - de uma obra teatral, e sim, ao contrario, a teatralidade do drama. 0 tema da adapta~ao nao e 0 da pe~a, e a pr6pria pe~a em sua especificidade cenica. Essa verdade enfim resgatada vai nos permitir concluir sobre tres propo­si~oes cuja abordagem se torna, com a reflexao, evidencia.

12) 0 teatro acode 0 cinema

A primeira e que, longe de perverter 0 cinema, 0 teatro fil­mado, justamente concebido, s6 pode enriquece-Io e eleva-Io. Quanto ao fundo, em primeiro lugar. E mais do que certo, ai de mim, que a media da produ~ao cinematogrMica e, contudo, inte­lectualmente muito inferior, se nao a produ~ao dramatica atual (pois incluindo Jean de Letraz e Henri Bernstein ... ), pelo menos ao patrimonio teatral sempre vivo. Mesmo que fosse apenas pela antiguidade deste. Nosso seculo nao e menos 0 de Carlitos que 0

seculo XVIII 0 e de Racine e de Moliere, mas enfim, se a litera­tura teatral tern 25 seculos, 0 cinema s6 tern meio. 0 que seria do palco frances se, como a tela, desse asilo apenas a produ~ao dos ultimos dez anos? Ja que dificilmente podemos contestar que o cinema atravessa uma crise de temas, ele nao arrisca grande coisa contratando roteiristas como Shakespeare ou ate mesmo Feydeau. Nao vamos insistir, a causa e 6bvia.

.,

TEATRO E CINEMA 157

Ela pode parecer bern menor quanto a forma. Se a cinema e uma arte maior, que possui suas leis e sua linguagem, 0 que pode ele ganhar submetendo-se as de outra arte? Muito! E justa­mente a medida que, rompendo com trapa~as vas e pueris, ele se propoe realmente a submeter-se e a servir. Seria preciso, para justifica-Io plenamente disso, situar seu caso numa hist6ria este­tica de influencia em arte. Ela poria, e 0 que achamos, em evi­dencia urn comercio decisivo entre as tecnicas artisticas, pelo menos em certa fase da evolu~ao delas. Nosso preconceito da "arte pura" e uma no~ao critica relativamente moderna. Mas a pr6pria autoridade de seus precedentes nao e indispensavel. A arte da mise-en-scene, cujo mecanismo em alguns dos grandes filmes n6s tentamos revelar acima, mais ainda que nossas hip6te­ses te6ricas, supoe, por parte do realizador, uma inteligencia da linguagem cinematogrMica que s6 tern igual na do fato teatral. Se 0 "filme de arte" fracassou la onde Laurence Olivier e Coc­teau tiveram hito, foi em primeiro lugar porque estes tinham a sua disposi~ao urn meio de expressao muito mais evoluido, mas tambem porque souberam se servir dele ainda melhor que seus contemponlneos. Dizer de Pecado original que talvez seja urn excelente filme, mas que "nao e cinema", com 0 pretexto de que ele segue passo a pas so a mise-en-scene teatral, e uma critica insensata. Pois e precisamente nessa medida que ele e cinema. E o Topaze (ultima versao), de Marcel Pagnol, que nao e cinema, justamente porque nao e mais teatro. Ha mais cinema, e do melhor, s6 em Henrique V, que em 90% dos filmes com roteiros originais. A poesia pura nao e de modo algum a que nao quer dizer nada, como salientou tao bern Cocteau; todos os exemplos do padre Bremond sao uma ilustra~ao do contrario: "a filha de Minos e de Pasifae" e uma ficha de estado civil. Ha igualmente uma maneira, infelizmente ainda virtual, de dizer esses versos na tela que seria cinema puro, pois respeitaria a mais inteligente­mente possivel seu alcance teatral. Quanta mais a cinema se pro­por a ser fiel ao texto, e a suas exigencias teatrais, mais necessa­riamente ele devera aprofundar sua pr6pria linguagem. A melhor tradu~ao e a que atesta a maior intimidade com 0 genio das duas linguas e 0 maior controle delas.

22) 0 cinema saivanl 0 teatro

Por isso 0 cinema devolvera sem avareza para 0 teatro 0 que Ihe tomou. Se ja nao 0 fez.

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". ANDR£ BAZIN

Orw n Welles em scu Macbelh . A efk Ad a leaual original quase nunca c dirclll ; eJa t nall$milida aqui Ira~as II uma complcxa mc,inica Q lclica fun­dada 50bre a amp1inca~o . IF_ It_ bIk ""' . ... )

Pais se 0 exita do tealro filmado supOe urn progresso diaIetico da forma cinematografica, ele implica reciproca e for~osamente uma revaloriza~ao do raw teattal. A ideia explorada por Marcel Pagnol. segundo a qual 0 cinema viria substituir 0 tcal ro pondo-o em conserva, e completamente errada. A tela nao pode suplantar o palco como 0 piano eliminou 0 crava.

E, em primeiro lugar, "subSlituir 0 tealro" para quem? Nao para 0 publico do cinema que ha muho tempo 0 desertoll. 0 div6r­cio entre 0 pave e 0 tealro nllo data, que eu saiba. da noite do Grand Cafe, em 1895. Trala-se da minoria de privilegiados da cui­tura e do dinheiro que constitui a atual c1ientela das salas dramati­cas? Mas todo mundo sabe que Jean de Letraz nilo estA falido e que 0 provinciano que vern a Paris nilo confunde os seios de Fran­~oise Arnoul. que viu nas telas, e os de Nathalie Nauier, no Palais Royal , ainda que os ultimos estejam encobertos com urn sutiil; eles sAo, parern, se ouso dizer, em " came e ossa". Ah! a insubSli­tuivel presen~a do alor! Quamo as salas " serias", digamos 0 Margny au 0 Fran~ais, e evidente que se trata em grande parte de uma c1iemela que nllo vai ao cinema e, quanta ao resto, de espectadores capazes de rrequentar as dois sem confundir seus pra-

TE ..... TRO E CINEMA '" zeres. Na verdade, se ha ocupa~lIo de terre no, nAo e de modo algum o do espetaculo teatral, tal como ele existe, mas ames do lugar abandonado ha muito tempo pelas rormas defuntas do lealro popular. Nao apenas 0 cinema nllo faz seriamente concorrencia com 0 palco, como esta ainda em vias de devolver, a urn publico perdido para ele, 0 gosto e 0 sentido do teatro. 21

E possivel que 0 "teatro em conserva" tenha contribuido por certo tempo para 0 desaparecimemo das tournees pelo imerior. Quando Marcel Pagnol roda Topaze. ele nilo esconde suas inten­~Oes: fornecer sua ~a para a provincia, pelo pr~o de uma pol­trona de cinema, numa distribui~ilo de "classe parisiense". J! a que acontece muitas vezes com os cartazes de bulevar; terminado o sucesso, 0 filme e distribuido para os !=Iue nAo puderam ver a ~a. La onde as tournees passavam outrora sem grande estarda­Ihaco, 0 filme oferece, bem mais barato, os atores da estreia e cena­rios ainda mais sumuosos. Porem, a Husllo s6 foi totalmente efi­caz durante alguns anos e vemos hoje ressurgir as tournees de pro­vincia, melhoradas pela experiencia. 0 publico que elas encontram, estragado pelo cinema com 0 luxe da distribui~ilo e da mlse-en-sc~ne. vohou. como se diz. ele espera mais e menos do leano. Por seu lado, os organizadores das lournees ja nllo podem se permitir tal descentraliza~lIo por baixo, a qual, antigameme, a ausencia de concorrencia os inclinava.

Mas a vulgariza~Ao dos sucessos parisienses nAo e ainda, em re­tanto, 0 rim de tudo para 0 renascimemo teatral, e nllo e 0 princi­pal merito da "concorrencia" entre a tela e 0 palco. Podemos inclusive dizer que tal melhora das tournees provincianas se deu graC;as ao teatro filmado ruim. Silo suas falhas que, repugnando com 0 tempo 0 publico, 0 devolveram ao leatro.

Foi 0 que aconteceu com a fotografia e a pintura. Esta dispen­sou aquela daquilo que Ihe era esteticameme 0 menos essencial: a semelhan~a e a anedota. A perfei~Ao. a economia e a facilidade da fOlografia contribuiram finalmente para valorizar a pimura, para confirma-Ia em sua insubstituivel especificidade.

Nlio se IimilOU a isso 0 beneficio de sua coexistencia. Os fot6-grafos foram nllo apenas 0 paria do pintar. Ao mesmo tempo que a pintura tomava mais consciencia de si mesma. ela imegrava a fotografia. Foram Degas e Tou!ouse-Lautrec, Renoir e Manet que compreenderam de denLro, em sua essencia, 0 fenOmeno fotogra­fico (e ate mesmo profeticamente: cinematografico). Diante da fOlografia, eles se opuseram a ela da (mica maneira vilida, por

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160 ANDRE BAZIN

urn enriquecimento dialetico da tecnica picturial. Compreenderam, melhor que os fotografos e bern antes dos cineastas, as leis da nova imagem, e foram eles que primeiro as aplicaram.

Entretanto, isso nao e tudo, e a fotografia esta prestando ser­vir;os ainda mais decisivos as artes plasticas. 0 campo delas sendo, desde entao, conhecido e delimitado, a imagem automatica multi­plica e renova nosso conhecimento da imagem picturial. Malraux disse 0 que era preciso sobre isso. Se a pintura pode tornar-se a arte mais individual, mais onerosa, mais independente de qual­quer compromisso, e ao mesmo tempo mais acessivel, ela deve isso a fotografia colorida.

o mesmo processo pode ser aplicado ao teatro: 0 "teatro em conserva" ruim ajudou 0 verdadeiro teatro a tomar consciencia de suas leis. 0 cinema contribuiu igualmente para renovar a con­cepr;ao da mise-en-scene teatral. Esses sao os resultados que hoje ninguem mais discute. Ha, porem, urn terceiro que 0 born teatro filmado permitiu vislumbrar: urn progresso formidavel, tanto em extensao quanto em compreensao, da cultura teatral do grande publico. 0 que e, entio, urn filme como Henrique V? Em princi­pio, Shakespeare para todos. Mas ainda, e principalmente, uma luz brilhante projetada sobre a poesia dramatica de Shakespeare. A mais eficaz, a mais deslumbrante das pedagogias teatrais. Sha­kespeare sai da aventura duplamente shakespeariano. Nao somente a adaptar;ao da obra dramatica multiplica seu publico virtual, como as adaptar;oes de romances fazem a fortuna dos editores, mas 0 publico esta muito mais preparado do que antes para 0 pra­zer teatral. 0 Hamlet de Laurence Olivier s6 pode evidentemente ampliar 0 publico do Hamlet de lean-Louis Barrault e desenvol­ver seu senso critico. Do mesmo modo que, entre a melhor das reprodur;oes modernas de quadros e 0 prazer de possuir 0 original, subsiste uma diferenr;a irredutivel, a visao de Hamlet na tela nao pode substituir a interpretar;ao de Shakespeare, digamos, por urn grupo de teatro de estudantes ingleses. E preciso, pon!m, uma autentica cultura teatral para apreciar a superioridade da represen­tar;ao real por amadores, isto e, para participar de sua interpretar;ao.

Ora, quanto mais 0 teatro filmado e bem-sucedido, mais ele aprofunda 0 fato teatral para servi-Io melhor, mais tambem revel a­se a irredutivel diferenr;a entre a tela e 0 palco. E, ao contrario, 0

"teatro de conserva" por urn lado, e 0 mediocre teatro de bulevar por outro, que mantem a confusao. Pecado original nao engana seu mundo. Nao ha urn unico plano sequer que seja mais eficaz que seu equivalente cenico, urn unico sequer que nao far;a alusao ao indefi-

I t

TEATRO E CINEMA 161

nivel suplemento de prazer que a representar;ao real me teria dis­pensado. Nao poderia haver melhor propaganda para 0 verdadeiro teatro que 0 born teatro filmado. Todas essas verdades sao hoje indiscutiveis e seria ridiculo ter-me demorado tanto nelas se 0

mito do "teatro filmado" nao subsistisse ainda por demais frequen­temente sob forma de preconceitos, mal-entendidos e conclusoes ja prontas.

32) Do teatro filmado ao teatro cinematografico

Minha unica proposir;ao sera, reconher;o, mais arriscada. Con­sideramos ate aqui 0 teatro como urn absoluto estetico do qual 0

cinema aproximaria de maneira satisfatoria, mas de quem seria, de todo modo e no melhor dos casos, 0 humilde servidor. No entanto, a primeira parte deste estudo ja nos permitiu desvendar no burlesco 0 renascimento de generos dramaticos praticamente desaparecidos, como a farsa e a commedia dell'arte. Certas situa­r;oes dramaticas, certas tecnicas historicamente degeneradas reen­contraram no cinema, em principio, 0 adubo sociologico de que precisam para existir e, melhor ainda, as condir;oes de urn desdo­bramento integral de sua estetica que 0 palco mantinha, congeni­tamente, atrofiada. Atribuindo ao espar;o a funr;ao de protagonista, a tela nao trai 0 espirito da farsa, da somente ao sentido metafi­sico do bastao de Scapin suas dimensoes reais: as do Universo. 0 burlesco e, em principio, ou tam bern, a expressao dramatica de urn terrorismo das coisas, da qual Keaton, ainda mais que Cha­plin, soube fazer uma tragedia do Objeto. Mas e verdade que as formas camicas constituem na historia do teatro filmado urn pro­blema a parte, provavelmente porque 0 riso permite a sala de cinema constituir-se em consciencia de si mesma e apoiar-se nele para encontrar algo da oposir;ao teatral. Em todo caso, e foi por isso que nao levamos 0 estudo mais longe, 0 enxerto entre 0 cinema e 0 teatro camico se deu espontaneamente, e foi tao perfeito que seus frutos foram para sempre considerados como 0 produto do cinema puro.

Agora que a tela sabe acolher, sem trai-Ios, outros teatros que nao os camicos, nada impede de pensar que ele possa igualmente renova-Ios manifestando certas de suas virtualidades cenicas. 0 filme nao pode, nao deve ser, como vimos, apenas uma modali­dade paradoxal da mise-en-scene teatral, mas as estruturas cenicas tern sua importancia, e nao e indiferente interpretar Julio Cesar nas Arenas de Nimes ou no Atelier; ora, certas obras dramaticas,

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e nao das menores, sofrem praticamente ha 30 ou 50 anos de urn desacordo entre 0 estilo de mise-en-scene que elas requerem e 0

gosto contemporaneo. Pen so em particular no repertorio tragico. La, a deficiencia se deve principalmente a extin~ao da ra~a do ator tragico tradicional: os Mounet-Sully e as Sarah Bernhardt, que desapareceram no inicio do seculo como os grandes repteis no fim da era secundaria. Por ironia do destino, foi 0 cinema que conservou seus restos fossilizados no "filme de arte". Tornou-se lugar comum atribuir tal desaparecimento a tela por duas razoes convergentes: uma estetica, a outra sociologica. A tela modificou, com efeito, nosso senso da verossimilhan~a na interpreta~ao. Basta ver precisamente pequenos filmes interpretados por Sarah Ber­nhardt ou Le Bargy para compreender que esse tipo de ator tra­java ainda coturnos e mascara. A mascara, porem, e derrisoria, quando 0 primeiro plano pode nos afogar numa lagrima, e 0 porta­voz ridiculo quando 0 microfone faz troar a vontade 0 orgao mais fraco. Assim, habituamo-nos a interioridade na natureza que deixa ao ator de teatro apenas uma margem de estiliza~ao restrita aquem da inverossimilhan~a. Talvez 0 fator sociologico seja ainda mais decisivo: 0 sucesso e a eficacia de urn Mounet-Sully se devia, sem duvida, a seu talento, mas animado pelo assentimento cum­plice do publico. Era 0 fen6meno do "monstro sagrado", hoje quase totalmente desviado para 0 cinema. Dizer que os concursos do Conservatorio nao produzem mais atores tragicos nao significa de modo algum que nao nas~a mais nenhuma Sarah Bernhardt, e sim que 0 acordo entre a epoca e seus dons ja nao existe. Assim, Voltaire se esfalfa para plagiar a tragectia do seculo XVII, pois acreditava que era somente Racine quem estava morto, quando na verdade era a tragectia. Hoje, quase nao veriamos as diferen~as entre Mounet-Sully e urn mau comediante do interior, pois seria­mos incapazes de reconhece-Ios. No filme de arte, revisto por urn jovem de hoje, 0 monstro permanece, 0 sagrado ja nao existe.

Nessas condi~oes, nao devemos nos surpreender que a trage­dia de Racine, em particular, sofra urn eclipse. Gra~as a seu senso conservador, a comedie-franc;aise e felizmente capaz de Ihe assegu­rar urn modo de vida aceitavel, porem nao mais triunfal. 22 E isso apenas por uma interessante filtragem dos val ores tradicionais, sua delicada adapta~ao ao gosto moderno, e nao por uma renova­~ao radical a partir da epoca. Quanto a tragedia antiga, e parado­xalmente a Sorbonne e ao fervor arqueologico de estudantes que ela deve 0 fato de nos tocar novamente. Devemos, porem, ver pre­cisamente ness as experiencias de amado res a rea~ao mais radical contra 0 teatro de atores.

TEATRO E CINEMA 163

Ora, nao e natural pensar que, se 0 cinema desviou total mente a seu favor a estetica e a sociologia do monstro sagrado do qual vivia a tra~edia no palco, ele po de devolve-las se 0 teatro vier pro­cuni-Ias. E permitido imaginar 0 que teria sido Athalie com Yvonne de Bray, filmado por Jean Cocteau.

Porem, nao e provavelmente apenas 0 estilo de interpreta~ao tragica que reencontraria suas razoes de ser na tela. Podemos con­ceber uma revolu~ao correspondente da mise-en-scene que, sem deixar de ser fiel ao espirito teatral, Ihe of ere ceria estruturas novas de acordo com 0 gosto moderno e sobretudo na escala de urn for­midavel publico de massas. 0 teatro filmado espera 0 Jacques Copeau que fara dele urn teatro cinematografico.

Desse modo, nao somente 0 teatro filmado esta desde entao esteticamente fund ado de direito e de fato, nao somente sabemos de agora em diante que nao ha pe~as que nao possam ser levadas a tela, qualquer que seja seu estilo, contanto que se saiba imaginar a reconversao do espa~o cenico para os dados da mise-en-scene ci­nematografica - mas e ainda possivel que apenas a mise-en-scene teatral e moderna de certas obras classicas sejam possiveis agora no cinema. Nao e por acaso que alguns dos maiores cineastas de nosso tempo sao tam bern grandes homens de teatro. Welles e Lau­rence Olivier nao vieram ao cinema por cinismo, esnobismo ou ambi~ao, nem tampouco, como Pagnol, para vulgarizar seus esfor­~os teatrais. 0 cinema nao e para eles apenas uma forma teatral complementar, mas a possibilidade de realizar a mise-en-scene con­temporanea, tal como a sentem e querem.

NOTAS

I. Esprit, junho e julho de 1951.

2. Unico, como uma exce~ao incompreensivel, no limiar do cinema falado 0 ines· quecivel Jean de ta tune. '

3; No livro de lembran~as sobre seus 50 anos de cinema, Le public n'a jamais tort (Editions Correa), Adolf Zukor, 0 criador do star-system, mostra tambem como nos Estados Unidos, mais ainda do que na Fran~a, 0 cinema principiante usou sua consciencia nascente para tratar de plagiar 0 teatro. E que, entao, a celebridade e a gl6ria em materia de espet:lculo estavam nos pa\cos. Zukor, compreendendo que o futuro comercial do cinema dependia da qualidade dos assuntos e do prestigio dos interpretes, comprou tudo 0 que po de dos direitos de adapta~ao dramatica e seduziu as notoriedades do teatro de entao. Seu; cache, relativamente altos para a epoca nao eram, alias, mais que uma razao da reticencia deles em se comprome­ter com essa industria de feira e desprezada. Rapidamente, porem, a partir dessas origens teatrais, 0 fenomeno tao particular da "estrela" se manifestou, 0 publico

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fez sua triagem entre as celebridades do teatro e seus eleitos logo adquiriram uma gloria sem igual a do palco. Paralelamente, os roteiros teatrais do inicio foram abandonados para dar lugar a historias adaptadas da mitologia que se constituia. Mas a imita~ao do teatro servira de trampolim. 4. Ver no proximo capitulo: 0 Caso Pagnol, pag. 166. 5. Cf. ]ouvence, de Aldous Huxley: 0 hom em nao passa de urn macaco nascido antes do tempo. 6. Les arts de litterature. 7. Ele nao procedeu com menos liberdade em rela~ao a Carosse du Saint Sacre­ment, de Merimee. (Que deu origem ao filme Le carasse d'or), (N.T.). 8. Genero de teatro leve, faeil, comum nos teatros dos bulevares de Paris desde 0

seculo XIX. (N.T.) 9. Urn comentario talvez nao seja superfluo. Reconhe~amos em primeiro lugar que, no cerne do teatro, 0 melodrama e 0 drama esfor~am-se, com efeito, para introduzir uma revolu~ao realista: 0 ideal stendhaliano do espectador que leva a coisa a serio e da urn tiro no traidor (Orson Welles na Broadway mandara, ao con­trario, metralhar as poltronas da plateia). Urn seculo mais tarde, Antoine tirara as conseqiiencias do realismo do texto no realismo da mise-en-scene. Nao foi urn acaso se Antoine fez cinema mais tarde. De modo que, se olharmos urn pouco de cima para a historia do cinema, e preciso convir que uma grande tentativa de "te­atro-cinema" precedeu a do "cinema-teatro". Dumas filho e Antoine, antes de Marcel Pagnol. £0 bern possivel, alias, que 0 renascimento teatral que emana de An­toine tenha sido muito facilitado pela existencia do cinema, este tendo desviado para si a heresia do realismo e limitado as teorias de Antoine a sa eficiencia de uma rea~ao contra 0 simbolismo. A triagem que 0 Vieux Colombier operou na revo­lu~ao do Teatro Livre (deixando 0 realismo para 0 grande Guignol), a ponto de reafirmar 0 valor das conven~oes cenicas, talvez nao tivesse sido possivel sem a concorrencia do cinema. Concorrencia exemplar, que tornava, em todo caso, 0 rea­lismo dramatico irremediavelmente derrisorio. Hoje, ninguem mais pode sustentar que 0 drama de boulevar mais burgues nao participa de todas as conven~oes teatrais. 10. Em frances tranche de vie, cena realista no teatro livre de Antoine. Bazin faz urn jogo de palavras com 0 verba retrancher, que significa separar, tirar etc. (N.T.)

II. Heroi do teatro de marionetes. (N.T.) 12. A televisao vern naturalmente acrescentar uma variedade nova as "pseudo-pre­sen~as" oriundas das tecnicas cientificas de reprodu~ao inauguradas pela fotogra­fia. Na telinha, nas emissoes "ao vivo", 0 ator est a desta vez temporal e espacial­mente presente. Mas a rela~ao de reciprocidade ator-espectador fica, em certo sen­tido, cortada. 0 espectador ve sem ser visto: nao ha retorno. 0 teatro televisado pareceria, portanto, participar a urn so tempo do teatro e do cinema. Do teatro pela presen<;a do ator ao espectador, mas do cinema pela nao-presen<;a do segundo ao primeiro. Contudo, essa nao-presen~a nao e ausencia verdadeira, pois 0 ator de televisao tern consciencia de milhoes de olhos e ouvidos virtualmente representa­dos pela camera eletronica. Tal presenp abstrata revela-se particularmente quando o ator trope<;a no texto. Desagradavel no teatro, esse incidente e intoleravel na TV, pois 0 espectador, que nada pode fazer por ele, lOrna consciencia da solidao contra natureza do at or. No palco, nas mesmas circunstancias, e criado urn modo de cumplicidade com a sal a que socorre 0 ator em dificuldade. Tal rela~ao de retorno e impossivel na TV. 13. In Esprit. 14. Multidao e solidao nao sao antinomicas: a sal a de cinema constitui uma multi­dao de individuos solitarios. Multidao deve ser entendida aqui como 0 contrario de comunidade organica, deliberadamente escolhida.

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TEATRO E CINEMA 165

15. Cf. E. Magny, L'dge du roman americain (Ed. du Seuil). 16. Cf. P. A. Touchard, Dionysos (Ed. du Seuil). 17. Urn ultimo exemplo que prova que a presen~a so constitui 0 teatro na medida em que se trata de interpreta<;ao. Qualquer pessoa experimentou, por conta pro­pria ou pela dos outros, a situa~ao desagradavel que consiste em ser observado sem que saibamos ou simplesmente contra nossa vontade. Os namorados que se beijam nos bancos das pra<;as sao urn espetaculo para os passantes, mas nao se incomo­dam com isso. Minha faxineira, que tern 0 senso da palavra certa, diz olhando-os que "estamos no cinema". Todos ja se encontraram as vezes na obriga~ao vexante de proceder diante de testemunha a uma a<;ao ridicula. Uma vergonha irritada, que e 0 contrario do exibicionismo teatral, nos invade entao. Quem olha pelo buraco da fechadura nao est a no teatro; Cocteau demonstrou justamente, em Le sang d'um poete, que ele ja estava no cinema. E, no entanto, trata-se certamente de espetaculos, os protagonistas estao diante de nos em carne e osso, porem, uma das duas partes nao sabe de nada ou se submete a ele contra sua vontade: "nao e interpreta~ao" . 18. A ilustra<;ao historica ideal dessa teoria da arquitetura teatral em suas rela<;oes com 0 palco e 0 cenario nos foi fornecida pelo Palladio com 0 extraordinario tea­tro olimpico de Vicence, reduzindo 0 velho anfiteatro antigo, ainda a ceu aberto, a urn puro trompe ['rei! arquitetonico. Ate mesmo 0 acesso da sala ja constitui uma afirma<;ao de sua essencia arquitetural. Construido em 1590, no interior de uma velha caserna oferecida pela cidade, 0 teatro olimpico so oferece ao espa<;o exterior grandes paredes nuas de tijolos vermelhos, isto e, uma arquitetura pura­mente funcional e que se po de chamar de "amorfa", no senti do em que os quimi­cos distinguem 0 est ado amorfo do estado cristalizado de urn mesmo corpo. 0 visi­tante que entra como que por urn buraco na falesia nao acredita no que ve quando da de repente com a extra ordinaria gruta esculpida que constitui 0 hemiciclo tea­tral. Como as geodes de quartzo ou de ametista que do exterior parecem pedras vulgares, mas cujo espa~o interne e feito de urn emaranhado de cristais puros secre­tamente orientados para 0 interior, 0 teatro de Vicence e concebido segundo leis de urn espa~o estetico e artificial exclusivamente polarizado para 0 centro. 19. Bazin faz aqui urn jogo com as palavras cadre (quadro pictural, mol dura) e cache (mascara, no sentido usado em fotografia e em cinema). (N.T.) 20. Por isso considero erros graves de Laurence Olivier em Hamlet as cenas do cemiterio e da morte de Ofelia. Era a ocasiao para introduzir 0 sol e a terra em contraponto ao cenario de Eiseneur. Teria e!e vislumbrado sua necessidade com a imagem verdadeira do mar durante 0 mono logo de Hamlet? A ideia, por si so exce­lente, nao e, tecnicamente, explorada com perfei<;ao. 21. 0 caso do T.N.P. nos oferece urn exemplo imprevisto e paradoxal do apoio do teatro pelo cinema. 0 proprio Jean Vilar nao contestaria, suponho, a ajuda decisiva que a celebridade cinematografica de Gerard Philipe constitui para 0

sucesso do empreendimento. Assim sendo, alias, 0 cinema nao se limitou a devol­ver ao teatro uma parte do capital tornado emprestado 40 anos atras, na epoca her6ica em que a industria do filme, na infiincia e geralmente menosprezada, encon­trou nas celebridades do palco a garantia artistica e 0 prestigio de que precisava para ser levado a serio. Os tempos mudaram, e verdade, bern depressa. A Sarah Bernhardt do entre-guerras chamou-se Greta Garbo e, agora, e 0 teatro que fica feliz da vida de por no cartaz 0 nome de uma vedete de cinema. 22. 0 que e justamente Henrique V, gra~as ao cinema a cores. Querem urn exem­plo da virtualidade cinematografica em Fedra? 0 relato de Theramene, reminiscen­cia verbal da tragicomedia com maquinas, considerado como urn trecho litenhio dramaticamente deslocado, reencontraria, realizado visual mente no cinema, uma nova razao de ser.

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XI o CASO PAGNOL

Com La Fontaine, Cocteau e lean·Paul SanTe, Pagnoi com· pleta a Academia Francesa ideal do americana media. Ora, Pag· nol deve, em principio, sua popularidade internacional, paradoxal· mente, ao regionalismo de sua obra. Com Mistral, a cultura pro­venc;:aI regenerada continua va. apesar de tudo. prisioneira de sua lingua e de seu folclore. Certamente Alphonse Daudet e Bizet ja Ihe tinham valida uma audiencia nadonal. mas a custo de uma eslilizacao que Ihe tiTava, apesar de tudo, 0 essencial de sua auten­ticidade. Mais tarde aparet:eu Giano. Que revelou uma Provenca austera. sensual e dramAtica. Entre as dais, 0 sui da Franca nao foi representado senae por caRta pr6pria atraves das "hist6rias marselhesas" .

Foi delas, em suma, com Marius, que Pagnol paniu para cons­truir seu humanismo meridional, e depois, sob a influencia de Giono, remontar de Marse!ha para 0 interior onde desde Manon des sources, na inteira liberdade enfim conquistada de sua inspira­~o, ele da a Proven~a sua epoptia universal.

Por outro lado, 0 pr6prio Marcel Pagno! obscureceu, por pra­zer, suas rela~Oes com 0 cinema proclamando-se campeio do tea­lro filmado. Sob esse aspecto , sua obra e indefensavel. Ela conui­tui, com efeito, 0 exemplo do que nao se deve fazer em materia de adapta~ao teatral para a tela. FOlografar uma ~a transpor­lando pura e simplesmente os atores do palco para urn cenario natural e 0 meio mais seguro de tirar dos diatogos sua rwo de ser, sua pr6pria alma. NAo que a passagem de urn texto de teatro para a lela seja imposslvel, mas somenle a custo das compe:nsa­COes sutis de todo urn sistema de precau~Oes que tern, no fundo, por objetivo. nAo faur esquecer, mas salvaguardar a teatralidade

o CASe PAGNOL

Raimu e Pierre Fresnay em Morius, de Marcel Pagnol, par Alexandre Korda. .--

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da obra. SUbsliluir, como Pagno! parecia fazer, pe:lo sol do sui da Fran~a as luzes da ribaJta, deveria ter sido 0 meio mais ceno de malar 0 texto por insola~ao. Quanto a admirar Manus ou A mulher do podeiro declarando que 0 unico defeito deles e 0 de "nilo ser cinema", e aderir a tolice dos censores que condenavarn Corneille em nome das regras da tragedia. 0 "cinema" nao e uma abstracrao, uma essencia, mas a soma de tudo 0 que, pelo intermedio do filme, atinge a qualidade da arte. Se, portanto, ape:nas alguns dos fLImes de Pagno) sAo bons , nao pode ser ape­sar dos eTTOS de seu autor, mas antes por causa de certas qualida­des que os censores nao souberarn discernir .

Manon des sources pe:rmite, enfim, dissipar 0 mal-entendido, pois e urn texto irrepresentavel no tcatro, a nAo ser a custo de uma adaptacrao laboriosa e nociva. No melhor dos casas imagina­veis, Manon des sources, no palco, nao seria mais que "cinema teatralizado". Mas sera que Pagnol fez algum dia outra coisa que nl0 escrever para a tela textos que, a rigor, podiam tarnbem ser levados ao palco? A prioridade das datas nAo acrescenta nada: ela e acidental. Mesmo se Marius triunfou no Teatro de Paris antes

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168 ANDRE BAZIN

de ser filmada por Alexandre Korda, e evidente que sua forma essencial e desde entao e definitivamente cinematognifica. Qual­quer reencenac;ao no palco so pode ser sua adaptac;ao teatral.

o que significa isso se nao que a predominancia da expressao verbal sobre a ac;ao visual nao poderia definir 0 teatro em relaC;ao ao cinema? Uma afirmac;ao de tal importancia nao pode ser demonstrada nos limites deste estudo. Digamos apenas que a fala no teatro e abstrata, que ela e ela mesma, como todo 0 sistema cenico, uma convenc;ao, 0 resultado da conversao da aC;ao em verba; a fala cinematognifica e, ao contnirio, urn fato concreto, ela existe, se na~ em principio, ao menos por e para si mesma; e a aC;ao que a prolonga e, quase, a degrada. E provavelmente por isso que a unica pec;a de Pagnol que nunca passou realmente bern no cinema e Topaze, porque ela nao era meridional.

Com efeito, 0 sotaque nao constitui, em Pagnol, urn acessorio pitoresco, uma nota local colorida, ele e consubstancial ao texto e, com isso, aos personagens. Seus herois 0 possuem como outros tern a pele negra. 0 sotaque e a propria materia da linguagem deles, seu realismo. Por isso 0 cinema de Pagnol e 0 contrario de teatral, ele se insere, por intermedio do verbo, na especificidade realista do filme. Longe de 0 verdadeiro cenario meridional ser apenas a adaptac;ao de seus limites teatrais, sao, ao contrario, as sujeic;oes cenicas que impoem a substituic;ao das charnecas proven­c;ais pelos paineis de madeira. Pagnol nao e urn autor dramatico que se converteu ao cinema, mas urn dos maiores autores de fil­mes falados.

Manon des sources nao passa de urn longo, urn longuissimo relato, nao sem aC;ao, mas onde nada acontece senao pela forc;a natural do verbo. A admiravel e "fabulosa" historia de uma menina selvagem, inimiga das pessoas do vilarejo, que uma vaga cumplicidade tornou orfa. Seu pai e seu irmao morreram, sua mae ficou louca por ignorar 0 segredo da nascente que passava debaixo do pobre sitio deles e que todo mundo no vilarejo conhe­cia. Ela fica urn dia sabendo por uma velha 0 segredo da fonte que alimenta a comunidade. Uma pedra certa no lugar certo basta para desligar 0 sifao e, assim, 0 vilarejo e condenado a sede, ao abandono, a morte. A catastrofe faz a comunidade tomar consci­encia de seu pecado por omissao. Pelo silencio, eles deixaram "es­trangeiros" morrerem. A pastora, guardadora de cabras, e sua mae louca sao agora as Eumenides da grande e impiedosa familia camponesa. Lentamente, por caminhos tortuosos, reticencias astu­ciosas, 0 vilarejo confessani seu pecado. A pessoa que havia cimen-

o CASO PAGNOL 169

tado a fonte do sitio se enforcara. 0 vilarejo inteiro levanl a Manon donativos propiciatorios e a agua flu ira novamente, devol­vendo a comunidade a vida com inocencia.

Ha nesse conto magnifico a grandeza antiga do Mediterraneo, algo a urn so tempo biblico e homerico. Pagnol, porem, 0 trata com urn tom mais familiar: 0 prefeito, 0 professor, 0 padre, 0 tabeliao, a propria Manon sao camponeses provenC;ais de nosso tempo. A agua que jorra da rocha sob a varinha de Aarao vai turvar 0 pastis1•

Consideremos, enfim, 0 que surpreende 0 publico em primeiro lugar: a duraC;ao do filme. E sabido que a versao original durava umas cinco ou seis horas. Pagnol a reduziu em dois filmes, cada urn de duas horas, que os distribuidores juntaram em urn so filme de tres horas e 15 minutos (dos quais dez minutos de pipocas). E obvio que os cortes desequilibram 0 filme e que todas as "demo­ras" devem ser imputadas a eles. A duraC;ao comercial dos filmes e absolutamente arbitraria ou, antes, determinada unicamente por fatores sociologicos e econ6micos (horarios de lazer, prec;os) que nao tern nada a ver com as exigencias intrinsecas da arte, tam­pouco com a psicologia dos espectadores. Experiencias bern raras provam que 0 publico suporta muito bern espetaculos de mais de quatro horas. Pedir a Proust que escrevesse Em busca do tempo perdido em 200 paginas nao teria 0 menor sentido. Por razoes totalmente diferentes, mas nao menos imperativas, Pagnol nao podia contar Manon des sources em menos de quatro ou cinco horas; nao que acontecessem muitas coisas essenciais, mas porque e absurdo interromper urn contador antes da milesima-primeira noite. Nao estou certo de que as pessoas se chateiem venda Manon des sources. Nao se deve considerar chateac;ao certos tempos de repouso, pausas do relato, necessarias ao amadurecimento das palavras. Se isso acontece, porem, e grac;as aos cortes.

Se Pagnol nao e 0 maior autor de filmes falados, ele e, em to do caso, algo parecido com seu genio. Talvez 0 unico que tenha ousado, desde 1930, urn excesso verbal comparavel ao de Griffith e de Stroheim, no tempo da imagem muda. 0 unico autor que pode ser comparado com ele hoje e Chaplin, e por uma razao pre­cisa: porque e tambem, junto com Pagnol, 0 unico autor-produ­tor livre. As centenas de milhoes que Pagnol ganhou com 0 cine­ma, ele ousa consagra-Ios, por prazer, a monstros cinematogr:ifi­cos que a produC;ao organizada e racional nao poderia sequer con­ceber. Alguns, e verdade, sao inviaveis, quimeras de pesadelo que surgiram da copula do Roux Color e de Tino Rossi. E e 0 que, ai de mim, distingue Pagnol de Chaplin. Luzes da riba/ta e tam-

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170 ANORt BAZLN

M utlon des sources: admirihel t "rabul~ " hl5loria de Lima menllla S<'lva­gem, infelizmentc intcrpretada da maneira mais artificiaLmenlt tcalral por Jacqueline Pagno!. (FOOD ' ....,o!)

bern urn filme monstruosamente bela, pais total mente livre, fruto das meditat;:6es de urn artista que e 0 unieo juiz de seus meios de ex:ecucAo, como 0 pintar e 0 e5Critor. Parern, tudo na ane de Cha­plin tcndeu para sua pr6pria critica e deixa 0 sentimento da neces­sidade. da economia e do rigor.

o CASO PAONOL '" Em contrapartida. tudo em Pagnol contribui para urn incrivel

desperdlcio. Uma ausencia maior de senso crilico e dificilmente concebivel e vern de uma verdadeira palologia da criat;:!o artlstica. Esse academico nao sabe bern se e Homero ou Breffort . E nem e no pr6prio texto que 0 pi~r se encantra, mas na mise-en-scene. Por pouco Manon des sources nilo e a epopeia do cinema falado , s6 falta 0 born senso estetico de seu auror incapaz de dominar sua pr6pria inspiraC;:ilo. Tilo tolo quanto seus censores, mas as avessas, Pagnol se figura que "0 cinema nilo tem import.1i.ncia". incapaz de destacar de sua formaC;:ilo tearral 0 que seu genio tern de pura­mente cinematografico , ele reinlroduz, la onde ele nilo tern 0 que fazer, 0 teatro filmado.

E provavel que tal desprezo pelo cinema nilO seja alheio a pro­digiosos achados cinematograficos de seu filme (a declarac;:ilo de arnor de Hugolin, a confissilo publica debaixo do olmeiro), mas urn talento baseado em sua ignorancia est! sujeito aos erros mais graves. 0 principal aqui c a personagem de Manon (imerpretada da maneira mais artificialmente teatral por Jacqueline Pagnol). Pensando bern , 0 texto de Manon e justamente 0 unico que soa falso do comeco ao fim do flIme.

Talvez s6 tenha faltado a genialidade de Pagnol a inteligencia de sua arte para ser 0 Chaplin do cinema falado.

NOTA

1. Bcbida de anis . (N.E.)

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XII PINTURA E CINEMA

Os filmes sobre arte, peIo menos aqueles que utilizam a obra para fins de uma sintese cinematognifica, como os curta-metra­gens de Emmer, 0 Van Gogh de Alain Resnais, R. Hessens e Gas­ton Diehl, 0 Goya de Pierre Kast ou 0 Guernica de Alain Resnais e R. Hessens, provocam as vezes, nos pintores e em muitos criti­cos de arte, uma grande objer;ao. Eu a ouvi ate mesmo na boca de urn Inspetor Geral de desenho da Educar;ao Nacional, depois de uma apresentar;ao de Van Gogh.

Ela se reduz essencialmente a seguinte conclusao: para utilizar a pintura, 0 cinema a trai, e isso em todos os pIanos. A unidade dramatica e logica do filme estabelece cronologias ou vinculos fic­ticios entre obras por vezes muito afastadas no tempo e no espi­rito. Em Guerrieri, Emmer chega ate mesmo a misturar os pinto­res, mas 0 embuste e pouco menos grave quanto Pierre Kast intro­duz fragmentos dos Capriches para sustentar sua montagem dos Malheurs de la guerre ou quando Alain Resnais brinca com as fases de Picasso.

Mesmo respeitando escrupulosamente os dados da historia da arte, 0 cineasta base aria ainda seu trabalho numa operar;ao este­ticamente contra natureza. Ele analisa uma obra sintetica por essen­cia, destroi sua unidade e opera uma nova sintese que nao e a dese­jada pelo pintor. Poderiamos nos restringir a the perguntar com que direito.

Ha coisas mais graves: para alem do pintor, a pintura e traida, pois 0 espectador acredita ver diante dos olhos a realidade pictu­ral, quando 0 forr;am a percebe-Ia conforme urn sistema plastico que a desfigura profundamente. Em primeiro lugar, em preto-e­branco: 0 filme colorido nao trara sequer uma solur;ao satisfatoria,

PINTURA E CINEMA 173

a fidelidade nao sendo absoluta e a relar;ao de todas as cores do quadro participando na tonalidade de cada uma delas. Por outro lado, a montagem reconstitui uma unidade temporal horizontal, geografica de certo modo, quando a temporalidade do quadro -a medida que reconhecemos que ele tern uma - desenvolve-se geo­logicamente, em profundidade. Enfim, e principalmente (este argumento mais sutil e poueo evocado, mas e, no entanto, 0 mais importante), a tela destr6i radicalmente 0 espar;o pictural. Como o teatro pelo proscenio e pela arquitetura cenica, a pintura opoe­se a propria realidade e sobretudo a realidade que representa, pela moldura do quadro que a cerca. Com efeito, nao poderiamos ver na moldura do quadro apenas uma funr;ao decorativa ou ret6rica. A valorizar;ao da composir;ao do quadro e somente uma consequen­cia secundaria. Bern mais essencial, a mol dura tern por missao, se nao criar, pelo menos salientar a heterogeneidade do microcosmo pictural e do macrocosmo natural no qual 0 quadro vern se inserir. Dai a complicar;ao barroca da moldura tradicional, encarregada de estabelecer uma solur;ao de continuidade geometricamente inde­finivel entre 0 quadro e a parede, isto e, entre a pintura e a reali­dade. Dai tambem, como explicou bern Ortega y Gasset, 0 triunfo da mol dura dourada "pois e a materia que produz 0 maximo de reflexo e que 0 reflexo e esta nota de cor, de luz que nao traz em si nenhuma forma, que e pura cor informe".

Em outros termos, a mol dura do quadro constitui uma zona de desorientar;ao do espar;o. Ao da natureza e de nossa experien­cia ativa que orla seus limites externos, ele opoe 0 espar;o orien­tado do lado de dentro, 0 espar;o contemplativo e somente aberto para 0 interior do quadro.

Os limites da tela nao sao, como 0 vocabulario tecnico daria por vezes a entender, a moldura da imagem, mas a mascara que so pode desmascarar uma parte da realidade. A moldura polariza o espar;o para dentro, tudo 0 que a tela nos mostra, ao contrario, supostamente se prolonga indefinidamente no universo. A mol­dura e centripeta, a tela centrifuga. Conseqiientemente, se inver­tendo 0 processo pictural, a tela e inserida na moldura, 0 espar;o do quadro perde sua orientar;ao e seus limites para impor-se a nossa imaginar;ao como indefinido. Sem perder as outras caracte­risticas plasticas da arte, 0 quadro se encontra afetado pel as pro­priedades espaciais do cinema, ele participa de urn universo vir­tual que resvala de todos os lados. Foi sobre tal ilusao mental que Luciano Emmer se baseou nas fantasticas reconstrur;oes esteticas que estao em grande parte na origem dos filmes de arte con tempo-

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'74 ANORt: BAZIN

Van Gogh de Alain Resnais nllo ~ apenas urna nova apresema"Ao da obra do pintor: 0 pr6prio rilme ~ urna obra. (F,,"O I'inr< _ ....... J

raneos e notadamente do Van Gogh, de Alain Resnais. Neste ultimo filme, 0 realizador pOde tralar 0 conjunlo da obra do pintor como urn unico e imenso quadro no qual a camera e tAo livre em seus deslocamemos quanto em qualquer documentario. Da "rua de Aries". "penclramos" pela janela "na" casa de Van Gogh, enos aproximamos da cama com a colcha vermelha. Do mesmo modo Resnais ousa realizar 0 "comra-campo" de uma velha camponesa holandesa entrando em sua casa.

• • • E ohviamente fadl achar que tal opera~a.o desfigure radical­

meme a maneira de seT da pinlura e que e melhar Van Gogh leT menos admiradores. mas que escondam exalaITlente 0 que admiram - e que eSsa difusa.o cultural. que com~ por destruir seu objeto. t singular.

Tal pessimismo nao resisle. no eotanto, a critica. em primeiro lugar de urn pontO de vista contingente e pedag6gico, e menos ainda de urn ponto de vista estCtico.

PINTIJRA E CINEMA '" Pois, ao inves de censurar 0 cinema por sua impotencia em

nos restituir fielmente a pintura. nao podedamos ficar maravilha­dos. ao contrario, por termos enfim encontrado 0 sesamo que abrira a milhOes de espectadores a porta das obras-primas? Com efeito, a apreciac;:ao de urn quadro e 0 prazer estetico sao quase impossiveis sem uma iniciac;:ao preliminar do espectador, sem uma educacao pictural que Ihe permita realizar 0 esforc;:o de abstracao pelo qual 0 modo de existencia da superficie pintada se distingue expressamente do mundo exterior natural. Ate 0 seculo XIX. 0 alibi da semelhanea constituia urn mal~ntendido realista pelo qual 0 profano acreditava poder eotrar no quadro. e a anedota dramatica ou moral multiplicava ainda as apreensOes para 0 espi­ri to incuito. Sabemos que nao e 0 que acontece hoje, e 0 que me parece bastante dcdsivo nas tentativas cinematograficas de Luciano Emmer, Storck, Alain Resnais, Pierre Kast e outros, e que eles conseguiram precisamente " solubilizar", por assim dizer, a obra pictural na perce~Ao natural, de modo que basta estrilamente ter olhos para ver, e nenhuma cultura, nenhuma iniciacAo e requerida para apreciar imedialameme, e poderiamos dizer, a forca, a pin­tura, imposta ao espirito pelas eSlruturas da imagem cinemalogn\­fica, como urn fenomeno natural.

Que os pintores considerem que nAo se trata de modo algum de uma regressao do ideal pict6rico. de uma violaeao espirit ual da obra e de urn retorno a uma concep(:Ao realista e aned6tica. pois essa nova vulgarizaeAo da pintura nAo incide essencialmente no lema e de modo a1gum na forma! 0 pintor pode continuar a pintar como quiser, a aeao do cinema e externa, realista, e claro, mas - e isso e uma descoberta imensa com a qual lodo pintor deveria se a1egrar - de urn realismo de segundo grau, a partir da ahslrac10 do quadro. Grac;:as ao cinema e as propriedades psi­col6gicas da tela, 0 signo elaborado e abstrato reganha para qual­quer espirito a evidencia e 0 peso de uma realidade mineral. Quem nAo ve, ent~o, que 0 cinema, longe de compromeler e desfigurar outra arte, esta, ao contrario, salvando-a com a devoluc;:Ao da aten­cAo dos homens? De todas as artes modernas, a pintura e talvez aquela em que 0 div6rcio entre 0 artista e a imensa maioria do publico nAo iniciado e 0 mais grave. A nAo ser que se confesse pu­blicamente urn mandarinismo sem saida, como nAo se felicitar por ver a obra restitulda ao publico com a economia de uma cultura? Se essa economia choca os partidarios do malthusianismo cultural, que eles pensem na possibiHdade de nos pennilir, ta1vez.. faur tam-

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176 ANDRE BAZIN

bern a economia de uma revolw;:ao artistica: a do "realismo", que para restituir a pintura ao povo se comporta de maneira bern diferente.

Quanto as obje<;oes puramente esteticas, diferentes do aspecto pedagogico do problema, elas partem, evidentemente, de urn mal­entendido que faz exigir implicitamente do cineasta algo diferente do que ele propoe. Na verdade, Van Gogh ou Goya nao sao, ou nao sao apenas uma nova apresenta<;ao das obras desses pintores. o cinema nao desempenha de modo algum 0 papel subordinado e didatico das fotografias num album ou das proje<;oes fixas numa conferencia. Os proprios filmes sao obras. A justifica<;ao deles e autonoma. Nao se deve julga-Ios somente com referencia a pintura que eles utilizam, mas em rela<;ao a anatomia, ou antes, a histologia desse novo ser estetico, que surgiu da conjun<;ao da pin­tura e do cinema. As obje<;oes que formulei ha pouco sao apenas, na realidade, a defini<;ao das novas leis oriundas desse encontro. o cinema nao vern "servir" ou trair a pintura, mas acrescentar­lhe uma maneira de ser. 0 filme de pintura e uma simbiose este­tica entre a tela e 0 quadro como 0 liquen entre a alga e 0 cogu­melo. Indignar-se com isso e tao absurdo quanto condenar a 6pera em nome do teatro e da musica.

* * * Entretanto, e verdade que 0 fenomeno comporta algo de radi­

calmente moderno e da qual essa compara<;ao tradicional nao da conta. 0 filme de pintura nao e 0 desenho animado. Seu para­doxo e utilizar uma obra ja totalmente constituida e que basta a si mesma. Mas e justamente porque ele a substitui por uma obra em segundo grau, a partir de uma materia ja esteticamente elabo­rada, que ele lan<;a sobre esta uma luz nova. Talvez seja na pro­pria medida em que 0 filme e plenamente uma obra e, portanto, em que ele mais parece trair a pintura, que ele a serve melhor em definitivo. Prefiro muito mais 0 Van Gogh ou 0 Guernica, do que Rubens ou 0 filme De Renoir a Picasso, de Haesaerts, que preten­dem ser apenas pedagogicos e criticos. Nao somente porque as liberdades que Alain Resnais se da conservam a ambigiiidade, a polivalencia de toda cria<;ao autentica, quando a ideia de critic a de Storck e Haesaerts limita, assegurando-a, minha apreensao da obra, porem, mais ainda, e sobretudo, porque aqui a cria<;ao e a melhor critica. E desfigurando a obra, quebrando suas molduras, atacando-se a sua propria essencia que 0 filme a obriga a revelar algumas de suas virtualidades secretas. Sabiamos realmente, antes

PINTURA E CINEMA 177

de Resnais, 0 que era Van Gogh menos 0 amarelo? E claro que o empreendimento e arriscado e vislumbramos seus perigos nos filmes medianos de Emmer: dramatiza<;ao artificial e mecanica correndo 0 risco de, em ultima analise, substituir a anedota ao quadro: isso porque 0 exito depende tambem do valor do cineasta e de sua compreensao profunda do pintor. Existe uma critica lite­raria que e tambem uma recria<;ao, a de Baudelaire sobre Dela­croix, a de Valery sobre Baudelaire, a de Malraux sobre Greco. Nao atribuamos ao cinema a fraqueza e os pecados dos homens. Terminados os prestigios da surpresa e da descoberta, os filmes de pintura valerao 0 que valerao aqueles que os fizerem.

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XIII UM FILME BERGSONIANO:

LE MYSTERE PICASSO!

A primeira observa~ao que se impoe e que Le mystere Picasso "nao ex plica nada". Clouzot parece acreditar, se nos atermos a algumas declara~oes e ao preambulo do filme, que ver os quadros serem feitos os tomara compreensiveis aos profanos. Se pensa real mente isso, ele se engana nesse ponto e, alias, as rea~oes do publico pareciam confirmar esse engano: os admiradores adoram ainda mais e os que nao gostam de Picasso confirmam seu des­prezo. Le mystere Picasso distingue-se radicalmente dos filmes sobre arte mais ou menos diretamente didaricos realizados ate hoje. De fato, 0 filme de Clouzot nao explica Picasso, de 0 mos­tra, e se ha uma li<;ao a ser tirada dai, e a que ver urn artista tra­balhar nao poderia dar a chave, nao digo sequer de sua geniali­dade, 0 que e obvio, mas de sua arte. Logico, a observa<;ao do tra­balho e das fases intermediarias pode, em certos casos, revelar 0

caminho do pensamento ou mostrar os truques da profissao; esses, porem, sao, na melhor das hipoteses, apenas segredos derrisorios. Como a camera lenta sobre a apalpadela do pincel de Matisse no filme de Fran~ois Campaux. Esses magros beneficios estao, em todo caso, excluidos com Picasso, que disse tudo dele com 0 famoso "eu nao procuro, encontro". Se alguem ainda duvidava da justeza e da profundidade dessa formula, nao poderia mais duvidar depois do filme de Clouzot. Pois, enfim, nem urn tra~o, nem uma mancha colorida nao aparece - aparecer e a palavra certa - rigorosamente imprevisivel. Imprevisibilidade que supoe, inversamente, a nao-explica<;ao do composto pelo simples. lsso e tao verdadeiro que todo 0 principio do filme como espetaculo e ate, mais precisamente, como "suspense", esta nessa espera e nessa perpetua surpresa. Cada tra~o de Picasso e uma cria<;ao que

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leva a outra, nao como uma causa implica urn efeito, mas como a vida engendra a vida. Processo particularmente sensivel, nas pri­meiras fases dos quadros, quando Picasso esta ainda desenhando. A mao e 0 lapis estando invisiveis, nada revel a 0 lugar deles a nao ser 0 tra<;o ou 0 ponto que aparece e, rapidamente, a mente pro­cura - mais ou menos conscientemente - adivinhar e prever, mas a decisao de Picasso sempre decepciona totalmente nossa espera. Imaginamos a mao a direita e 0 tra<;o aparece a esquerda. Esperamos urn tra<;o: surge uma mancha; uma mancha: e vem urn ponto. E 0 que ocorre tambem com os temas: 0 peixe vira pas­saro e 0 passaro vira urn fauno. Mas esses avatares implicam, pois, outra no<;ao que examinarei agora: a da dura<;ao pictural.

Le mystere Picasso constitui, com efeito, a segunda revolu<;ao do filme sobre arte. Esforcei-me para mostrar a importancia da primeira, aberta pelos filmes de Emmer e Gras e tao admiravel­mente desenvolvida em suas conseqiiencias por Alain Resnais. Tal revolu~ao residia na aboli~ao da moldura cujo desaparecimento identifica 0 universo pictural com 0 universo, simplesmente. Sem duvida a camera, uma vez penetrada "nos" quadros, podia nos conduzir de acordo com uma certa dura<;ao descritiva ou drama­tica; no entanto, a verdadeira novidade nao era de ordem tempo­ral, mas exclusivamente espacial. 0 olho tam bern analisa e nao se apressa, mas as dimensoes do quadro e suas fronteiras Ihe fazem lembra; da autonomia do microcosmo pictural cristalizado para sempre fora do tempo.

o que Le mystere Picasso revel a nao e 0 que ja sabemos, a dura~ao da cria<;ao, mas que essa dura<;ao pode ser parte inte­grante da propria obra, uma dimensao suplementar, tolamente ignorada na fase de acabamento. Mais exatamente, nos so conhe­cemos ate agora "quadros", se<;oes verticais de urn fluxo criador mais ou menos arbitrariamente cortadas pelo proprio autor, pelo acaso, pel a doen<;a ou pela morte. 0 que Clouzot nos revela, enfim, e "a pintura", isto e, urn quadro que existe no tempo, que tem sua dura<;ao, sua vida e as vezes - como no final do filme - sua morte.

Convem insistir aqui ainda mais, pois essa nO<;30 poderia ser confundida com uma ideia bern pr6xima, ou seja, que e interes­sante e instrutivo, agradavel tambem, ver como 0 pintor chegou a fazer de seu quadro 0 que ele e. Essa preocupa<;ao ontogenetica encontra-se evidentemente em muitos filmes de arte anteriores, bons e ruins. Ela e sensata, porem banal, e sua natureza nao e este­tica, e sim pedag6gica. Mais uma vez, em Le mystere Picasso, as

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L~ mysttre PktUSQ, de H. G, CIOUlOI. Vcr urn artista !rabalhar nlo pade­ria dar a chive de sua gcnialidade. 0 que e 6bvio, C nem de ~ua arte.

(f ..... r:u.n-)

rases intermediarias nao sAo realidades subordinadas e inferiores, como stria urn encaminhamento para uma plenitude final; elas ja sao a pr6pria obTa, mas fadada a se devorar ou antes a se meta­morfosear ate 0 instanle em que 0 pintor quiser parar. E 0 que Picasso exprime perfeitamente Quando diz: "stria preciso poder

UM FILME BERQSONIANO: LE MYSTtRE PICASSO 1'1

mostrar os quadros que esU.o sob os quadros"; ele nllo diz os "es­b~os" ou "como se chega ao Quadro". E que, para cle, mcsmo que a ideia de aperfei~oamento 0 guiasse (como em La plage de 10 goroupe), as fases recobertas ou sobrecarregadas tambem cram quadros, mas que deviam ser sacrificados pelo quadro seguinte.

Alias, essa temporalidade da pintura manifestou-se desde sem­pre de modo larvado, notadamente nos carnes de esb~os, os "es­tudos" e os "estados" dos gravadores, por exemplo. Ela se reve­lou, porem, ser uma vinualidade mws exigente na pintura modema. Quando Matisse pinta vArias vezes a Femme 17 10 blouse roumoi­ne, ele nAo faz outra coisa sen.lio manifestar no espaco, isto e, num tempo sugerido, como se faria com urn jogo de canas, sua inven­C.llo criadora? Fica claro que a n~a.o de quadro ja se subordina aqui a noc!o mais integrante de pintura, cujo quadro e apenas urn momento. E ate mesmo em Picasso - nele mws que em qual­quer outro, alias - sabemos a import!ncia das "series". Basta lembrar a celebre evolucAo do touro. S6 0 cinema, porern. podia resolver radicalmente 0 problema, fazer passar as aproximacOes grosseiras do descontinuo ao realismo temporal da visAo continua; mostrar. enfim. a pr6pria dural;Ao.

Seguramente, nesses campos, ninguem nunca e realmente 0 primeiro, e a ideia que sustenta todo 0 ft1me de Clouzot n.llo e abso­lutamente nova: encontrariamos tracos dela em alguns ft1mes de ane, embora eu 56 veja urn ern que ela seja esporadicamenle utili­zada com urna eficiencia comparavel, e Broque, de -Frederique Duran (a seqiiencia das pedras talhadas). Do mesmo modo, a ideia da pintura por transparencia estava ali esbocada grosseiramenle no trUQue da pinlura sobre vidro (transparente ou opaco). 0 merito de Clouzot, porern, e de ler sabido transmitir esses procedi­mentos e ideias de sua forma experimemaJ. esporadica ou embrio­naria , para a plenitude do espetaculo . Ha mais Que urn mero aper­feicoamento. ou Que uma diferenca de grau. entre tudo 0 que ate entAo se viu e Le mystere Picasso. A conternplacAo da obra em criaca.o, do work in progress, era apenas urn epis6dio relativa­mente curto de urna composic.llo didatica que mulliplicava os pro­cedimentos de abordagem do lema e dos pontos de vista. Ficando o conjunto, ainda, nos limites do curta e do media-met.ragem. Ora, foi desse pequeno epis6dio que Clouzot tirou seu filme; 0 germe semeado aqui e ali no jardim do documentario tornou-5e noresta. Meu prop6sito n.llo e insistir sobre a extraordinaria audacia da operac!o, mas assim mesmo e justo salienta-Ia. Le mystere Picasso nlio se restringe a ser urn longa-metragem. la onde n.llo ousavam

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avenLUrar·se aMm dos 50 minutos: e 0 descnvolvimento de apenas alguns desses minutos por eliminat;Ao de qualquer elemento biogra­fico descritivo e didatico. Desse modo. Clouzo! rejeitou delibera­damente 0 Irunro que todo mURdo leria conservado num jogo tAo dincil: a variedade.

Isso porque, a seu ver, somente a criac;Ao artistica constituia o clemento espetacular autentico. iSla e. cinematografico porque essencialmente temporal. Ela e espera e incertez3 em estado puro. "Suspense". enfim, tal como por si 56 a ausencia de lema 0 revela. Conscienlemenle au n!lo, foi 0 que com certeza seduziu Clouzot. Le mystlre Picasso e seu filme mais revelador. 0 genio de seu rea­lizador e al desmascarado em (siado puro pela passagem ao limite. o "suspense" aqui nllo mais poderia. com efeito, confundir-se com uma forma da progressAo dramatica, urn certo agenciamento da ac;lo ou seu paroxisrno, sua violeneia. AQui, literal mente nada acontece, pelo menos nada senlo a duracrlo da pinturaj e sequer a de seu tema, mas do Quadro. A ac;lo, se exisle acrlo, nlo tern nada a ver com as 36 silUacOes dramatieas, ela e metamorfose pura e livre, e no fundo a apreenslo direta. Que se tornou sensl­vel pela arte. da Iiberdade do espirito; hfl evidencia. lambem. que essa liberdade t durac;lo. 0 espetaeulo enquanto tal t. entAo. a fascinacr!o pelo surgimento das formas, Iivres e em eslado Da5Cente.

Tal descoberta se liga - aJias, de maneira inesperada - a tra­dicrlo mais interessante do desenho animado, a que, partindo de Emile Cohl (com Les joyeux microbes, notadarnente), teve, no entanlO, de esperar Fischinger, Len Lye e sobretudo McLaren para ganhar a vida. Essa concepcrao nllo funda 0 desenho ani­mado sobre a animacrAo a posteriori de urn desenho que teria vir­tualmente uma existencia autl)noma, mas sobre a mudanc;a do pr6-prio desenho, ou mais exatamente, sobre sua metarnorfose. A ani­mat;ao nAo t entao pura transformacrAo J6gica do espacro. t de natu­reza temporal. E uma germinacrAo. uma expansAo. A forma engen­dra a forma scm jamais justifica-Ja.

Por isso, nlo e surpr«ndente Que Le myslere Picasso fac;a muitas vezes pensar em McLaren. P~o descuJpas a Andre Mar­tin, mais eis aqui uma forma de desenho animado ou de pintura animada Que nada deve it imagem por imagem. Em vez de partir de desenhos im6veis Que a projec;Ao vai mobilizar por ilusao 6tiea, e a lela da pinlura Que existe de antemAo como tela de cinema, que basta fotografar em sua duraC;ao rcal.

Estou certo que certas pessoas vlo protestar e se indignar com as Iiberdades que Clouzot tomou, aparcnlementc. com 0 tempo

UM FtLME BERGSONIANQ: LE MVSTPRE PICASSO 18'

U mYSI~n Pialsso. "Eu n'o procuro, ~u elll.:onlro."

da eriac;ao artistica. Ouso dizer que ele nAo linha 0 direito de "a­celerar" a rea1izacrao dos quadros c de brinear. como brincou. com a montagem para modificar 0 tempo do evcnto original. E ver­dade Que essa audaciosa inicialiva merece discussAo. Entretanto. vou justifica-Ia.

CJouzot nega. com TWO, teT "ace.leTado" 0 trabalho de Picasso. A filmagcm. com cfeito, foi sempre. feita em 24 quadros

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, .. ANDR~ BAZIN

por segundo. Mas sera que a monlagcm, suprimindo. a bel·prazcr do realizador, os tempos mortos au as dura~Oes IORgas, ale fazer aparecer simultaneamente dais lra~os a urn 56 tempo, nao const i­lui urn truque igualmente inadmissivcl? Respondo: nAo. Pois e pre­ciso fazer a distint;ao entre truque e ralsifica~o. Em primeiro lugar. Clouzot nao tenia nos cnganar. Apenas as distraidos. os imbeds a u os que ignoram tudo do cinema, estao 5ujeitos a nao ter consciencia dos tfeitos de monlagem acelerados. Para assegu­rar-se disso, Clouzot faz com que Picasso 0 diga expressamente. Em seguida, e principalmentc, e preciso distinguir radicalmentc 0

tempo da montagem e 0 das lamadas. 0 primeiro e abstrato, inte­lectual, imaginario, espelacular, apeoas 0 segundo e concreto. Todo 0 cinema esta fundado no retalhamemo livre do tempo pela montagem, mas cada fragmento do mosaico coflServa a est rutura temporal realista dos 24 quadros por segundo. Clouzo! evitou -e s6 poderiamos parabenizi\·lo por isso - nos fazer aquela do quadro· nor, abrindo·se como os vegetais dos filmes cientificos em acele:rado. Porern, ele compreendeu e sentiu, como diretor, a ne· cessidade de urn tempo espetacular, utilizando para esse fim a duracAo concreta sem, contudo. desfiaura-la. Por isso. entre outras razOes, e ridiculo objetar aos meritos do filme sua natureza doeu­mentaria. Ha tanta imeligencia da coisa cinematografica em Lit mysflre Picasso quanto em 0 salorio do medo. Mas talvez haja mais audacia. Foi justamente porque CIOUZOl n.llo realizou urn "documentario", no sentido restrito e pedag6gico da palavra, que ele pOde e teve de levar em coma 0 tempo espetacular. 0 cinema do e aqui mera fotografia m6vel de uma realidade preliminar e exterior. Ele esta legitima e imimamente organizado em simbiose: estetica com 0 evento piclUral.

Se eu tivesse sido juri em Cannes, teria votado em Le mysi l re Picasso, nem que fosse 56 para recompensar Clouzot de urn unico de seus achados que equivaie ao exito de dois ou tres filmes dra· maticos. Quero falar da utiliza~ao da cor. Clouzo! teve uma ideia de grande diretor . Uma ideia que quase: nao hesito em qualificar de genial, e mais sensacional ainda porque e quase invislvel para a maioria dos espectadores. Perguntem, com efeito, a quem acaba de vcr Le mysilre Picasso, se 0 filme e em preto..e-branco ou a cores. Nove em cada dez pessoas responderao depois de uma Iigeira hesitacAo: "a cores" t mas ninguem ou quase ninguem dira que 0

filme se baseia numa incrivel contradi~a.o. de tanto que essa con­tradiclo parecia fazer pane da pr6pria natureza das coisas. Ora, materialmente, Li! mysilre Picasso e urn filme em preto..e-branco

UM FILME BEROSONIANO: LE MvmRE PICASSO

U mYSll~ PicIuso. C1ouzot diminou quaJquer dftnl::nto biocrifiro. descri · livo e didAtiro: resta a Icmb~a do olhar de Picasso. tF_ F'"""",-"

",

copiado sobre pelicula colorida, a nilo ser, excJusivarnentc, quando a tela est! oeupada pe:la pintura. Pensando bern, e claro que tal escolha se: impunha, como a sucess.ll.o da noite e do diat mas e pre· ciso se:r urn famoso diretor para reinventar 0 dia c a noite. Clou­zot faz assim adrnitir (por mais implicilamente que 56 a renexDo nos revele), como uma realidade natura!, Que 0 mundo real seja em preto-e-branco, com "exc~ao da pinlura". A permanencia quimica da pe:llcula a cores dA ao conj unto a unidade substancial necessAria. Achamos entAo bern nalUral Que 0 contra-campo do pintor, em preto..e-branco, sobre seu quadro, seja a cores. Na ver­dade, e se aprofundarmos a analise:. e erranco dizer que 0 filme C: em preto..e·branco e a cores. Seria bem melhor considera·lo como 0 primeiro filme a cores em segundo grau. Eu me explico. Suponhamos que Clouzot tenha realizado tudo a cores. A pinlura existiria plasticamente no mesmo plano de realidade Que 0 pintor. Tal azul da tela do quadrot na tela do cinema, seria 0 mesmo que o azul de seus olhos, tal verme1ho identico ao verrne1ho da carnisa de Clouzot. Assim, para tornar espetacularmente evidente e scnsl­vel 0 modo de existencia imaginario e estetico da cor sobre a tela, em oposi~lo as corcs da realidade, seria precise poder criar uma

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colora<,:ao em segundo grau, elevar ao quadrado 0 vermelho e 0

azul. Clouzot resolveu essa impensavel opera<,:ao estetica com a elegancia dos grandes matematicos. Compreendeu que, ja que nao elevaria a cor ao quadrado poderia, da mesma maneira, dividi-Ia por ela mesma. Assim, a realidade natural sendo apenas a forma multiplicada pela cor, ela retrocede, depois da divisao, unicamente para a forma, isto e, para 0 preto-e-branco, enquanto a pintura, que e cor superposta a cor do mundo real, conserva seu cromatismo estetico. De onde viria 0 fato de 0 espectador mal perceber 0 con­traste, ja que as verdadeiras rela<,:oes da realidade nao sao modifi­cadas? De fato, quando contemplamos urn quadro, percebemos bern sua cor como essencialmente diferente da cor da parede ou do cavalete. Virtualmente. entao, aniquilamos a cor natural em prol da cria<,:ao pictural. E esse processo mental que Clouzot recons­titui quase que a nossa revelia.

Em outras palavras, Le mystere Picasso nao e "urn filme em preto-e-branco a nao ser nas seqi.i{:ncias exclusivamente picturais", e essencialmente, e ao contrario, urn filme a cores, que retrocedeu para preto-e-branco nas seqiiencias extra-picturais.

Somente a rna vontade ou a cegueira podem, portanto, susten­tar que 0 filme nao e de Clouzot e sim de Picasso. E certo, obvia­mente, que a genialidade do pint or esta no principio do filme, nao so em sua qualidade a priori de pintor genial, como tam bern por uma profusa.o de qualidades particulares que provavelmente torna­ram possiveis a concep<,:ao e a realiza<,:ao do filme. Entretanto, nao e diminuir Picasso mostrar a parte criadora de Clouzot. A inadmissivel musica de Auric constitui, com efeito, evidente con­cessao que 0 diretor pensou poder fazer a anedota e ao pitoresco, depois de ter recusado, com uma audacia estupenda, tantas facili­dades psicologicas.

NOTA

L Cahiers du Cinema, n 2 60, junho de 1956.

XIV ALEMANHA ANO ZEROI

o misterio nos da medo e 0 rosto da crianp provoca urn desejo contraditorio. Nos 0 admiramos a propor<,:ao de sua singu­laridade e de seus caracteres especificamente pueris. Dai 0 sucesso de Mickey Rooney e a prolifera<,:ao das sardas na pele das jovens vedetes americanas. 0 tempo de Shirley Temple, que prolongava indevidamente uma estetica teatral, literaria e pictural, ja acabou. As crian<,:as de cinema nao devem de jeito algum parecer bonecas de porcelana, nem Meninos Jesus da Renascen<,:a. Porem, por outro lado, desejamos nos assegurar contra 0 misterio e espera­mos inconsideradamente desses rostos que e\es reflitam sentimen­tos que conhecemos bern, porque sao os nossos. Pedimo-Ihes sinais de cumplicidade, e 0 publico fica boquiaberto e puxa logo seu len<,:o quando a crian<,:a traduz os sentimentos proprios aos aduItos. Assim, somos nos mesmos que procuramos contemplar neles: nos, mais a inocencia, a falta de jeito, a ingenuidade que perdemos. 0 espetaculo nos enternece, mas e por nos mesmos que choramos?

Com rarissimas exce<,:oes (Zero em comportamento, por exem­plo, no qual a ironia tern esse lugar), os filmes infantis especulam no fundo sobre a ambigiiidade de nosso interesse pelos pequenos homens. Pensando bern, eles tratam a inffincia como se ela fosse, precisamente, acessivel a nosso conhecimento e a nossa simpatia, sao realizados sob 0 signo do antropomorfismo. Em alguma parte da Europa nao escapa a regra, muito pelo contrario. Radvanyi interpretou com uma habilidade diabolica: eu nao Ihe reprovarei sua demagogia ja que aceito 0 sistema. Mas, se choro como todo mundo, bern vejo que a morte do garoto de dez anos, abatido enquanto tocava a Marselhesa na gaita, so e tao emocionante na

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A/~mQnhu linD UfO: "Os SIRalS do jogo C' da mone podem !iCC U!o Ulc)mO) no rosto de urna crianta".

medida em que se partee com Rossa conce~o aduha do hero­Ismo. A cxtcUl;ao atroz do chafer de caminhlo com urn 06 corre­dio de ararne possui, em contrapartida, devido a seu objetivo der­ris6rio (urn peda~o de paa e de toucinho para dez crianc;as esfome­adas), alga de inexplicavel e de imprevisto , que depende do miste­rio irredutlvel da inffincia . Mas , no conjunto, 0 filme uliliza muito mais ROSsa simpalia pelos semimentos compreensiveis e visiveis das crianc;as.

A profunda originalidade de Rossellini e de ItT recusado deli­beradamente qualquer recurso a simpatia sentimental, qualquer concessio ao antropomorfismo. Seu menino tern 11 au 12 anos, seria fAdl e mesmo comum que 0 roteiro e a interpreta~o nos fizes~m entrar no segredo de sua consciencia. Ora, se sabemos a1guma coisa sobre 0 que essa crian!;a pensa e ressente, nunca ~ por sinais diretamente leglveis sobre seu rosto, tampouco por seu comportamento, pois n6s s6 0 compreendemos atravts de veri fica­!;Oes e conjeturas. t.:: claro que 0 discurso do professor nazista da escola estA diretamente na origem do assassinato do doente inutil ("e preciso que os fracos deixem 0 lugar para os fones viverem") , mas quando ele joga 0 peixe no copo de chA, seria inutil procurar-

.... LEM .... NHA .... NO ZERO IS.

mos em seu roslo algo alern da aten!;!o e do calculo. Tampouco podemos concluir dal sua indiferen!;a e sua crueldade, sequer uma dor eventual . Urn professor disse na sua frente cenas coisas, e1as ~ en veredaram em sua mente e 0 levaram a essa decis!o, mas como, a Cllsto de que conffito interior? N.1I.o e problema do cine­asta, mas da crian!;a. Rossellini s6 podia nos propor sua imerpre­ta~o a custo de urn truque, projelando sua pr6pria tlplica!;.1I.o so~re a crian!;~ e conseguindo que ela a renetisse para nosso pr6. pno uso. E eVldentememe nos ultimos 15 minutos de filme que a estetica de Rossellini triunfa, ao longo da busca a proeura de urn sinal de confirma!;llo e assentimenlo, ate 0 suicidio no final da Irai­!;ilo do m~~do . 0 professor recusa em principio assumir qualquer responsablhdade no gesto do disclpulo comprometedor. Mandado pa;a a rua, 0 menino anda, anda, proeurando aqui e ali, enlre as rumas: mas umas ap6s as outras, pessoas e coisas 0 abandonam. Sua namorada esta com os colegas; as crian!;as que brincam segu­ram a bola quando ele passa. No entanto, os primeiros pianos que dllo ritmo a essa corrida inlerminAvel n.1l.o nos revelam nada a1em de urn rosto preocupado, pensativo, inquielo talvez, mas com o que? Com urn neg6cio de mercado negro? Com uma faca lro­cada por dois dgarros? Com a sova que pede levar quando voltar para casa? A c?ave s6 nos sera dada, relrosptclivamente, pelo ato final. E que, slmplesmente, os sinais do jogo e da mone podem ~r os mesmos no rosto de uma crian!;a, os mesmos, pelo menos para nos Que nao podemos penetrar em seu misterio. A crian!;a pula num s6 pi! na beira da cal!;ada arrebentada, apanha nas pt_

dras ~ nas traves lorlas urn peda!;o de ferro enferrujado Que ele maneJa como urn revolver, aponta um a seteira em ruina _ tac tac, tac ... - para urn alvo imaginario e, depois. exatamente co~ a. mesma espontaneidade de interpreta!;!o, coloea 0 cano imagi na­no sobre sua tempora. 0 suicidio, enfi m; 0 menino escalou os andares abertos do imovel que se ergue dianle de sua casa; olha a especie de cami nhao monuario que vern pegar 0 caixilo e vai embora, deixando ali a familia. Uma viga de ferro at ravtssa obli. quamente 0 andar arrebentado, oferecendo sua declividade de escorregador; ele escorrega sent ado e sail a no vazio. Seu corpi nho fica emilo 14 embaixo, alr8s do monte de pedras na beira da cal­!;ada; uma mulher pOe seu cesto no chao para ajoelhar·~ peTto dele. Urn bonde passa com seu barulho de ferragem; a mulher apoiou-se no monte de pedras, os bra!;os pendidos na atitude eterna das Pieta.

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Podemos ver como Rossellini foi levado a tratar dessa maneira seu personagem principal. Tal objetividade psicologica estava na logica seu estilo. 0 "realismo" de Rossellini nada tern em comum com tudo 0 que 0 cinema (com excefi:ao de Renoir) produziu ate entao de realista. Nao e urn realismo de tema, mas de estilo. Tal­vez ele seja 0 unico diretor do mundo que sabe fazer com que nos interessemos por uma afi:ao, deixando-a objetivamente no mesmo plano de mise-en-scene que seu contexto. Nossa emofi:ao fica livre de qualquer sentimentalismo, pois foi obrigada a se refletir em nossa inteligencia. Nao e 0 ator que nos emociona, nem 0 aconte­cimento, mas 0 sentido que somos obrigados a extrair deles. Nessa mise-en-scene, 0 sentido moral ou dramatico nunca esta aparente na superficie da realidade; todavia, e impossivel nao sabermos que sentido e esse se tivermos uma consciencia. Nao e esta uma solida definifi:ao do realismo em arte: obrigar 0 espirito a tomar partido sem trapacear com os seres e as coisas?

NOTA

1. Esprit. 1949.

XV LES DERNIERES VA CANCESI

Para algumas dezenas de pessoas em Paris, romancistas, poe­tas, diretores de revistas, atores, diretores de teatro e de cinema, criticos, pintores, produtores independentes, cuja maioria ja se encontrava entre 0 Odeon, a rue du Bac e 0 Sena (bern antes da invasao existencialista, quando os Deux Magots ainda eram uma central literaria e se ia ao Cafe de Flore para encontrar Renoir, Paul Grimaud ou Jacques Prevert), para algumas dezenas de pes­soas, como ia dizendo, na Paris das Letras, das Artes e da amiza­de, existia desde antes da guerra urn caso Roger Leenhardt. Esse homenzinho magro, ligeiramente vergado como sob 0 fardo de nao se sabe que lassidao ideal, esse homenzinho, portanto, ocu­pava nas fronteiras da literatura e do cinema frances urn lugar dis­creto, insolito e primoroso.

Algumas pessoas consideram, com razao, Roger Leenhardt como urn dos mais brilhantes criticos e estetas do cinema falado, e sabem que ele 0 foi uns dois lustros na frente (conforme artigos da revista Esprit, 1937, e suas conferencias no radio, no mesmo ano). Para outros, Leenhardt e antes de tudo urn romancista que nunca terminou completamente seus romances; pra outros ainda, urn curioso poeta dos negocios que, depois de ter corrido 0 risco da aventura e consumado sua ruina financeira na cultura intensiva da cidra (na Corsega), virou produtor de curtas-metragens para satisfazer os complexos sutis que 0 ligavam ao cinema. Desconfio que Roger Leenhardt so e 0 bast ante produtor. como tambem cri­tico, para nao confessar ser diretor. Nos 0 vimos, durante dez anos, girar em torno do cinema, fingir que 0 esquecia, as vezes despreza-lo e resgata-lo com poucas palavras de inflexao indolente em alguma de suas admiraveis conversas, nas quais Leenhardt faz

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gato e sapato das ideias. Alguns se perguntavam tambem se Lee­nhardt poderia urn dia abordar 0 "grande filme", encarar a obra maior que a forma de sua inteligencia parecia talvez fadar de ante­mao ao fracasso. Com Leenhardt, fomos tent ados inclusive a achar uma pena que essa fonte de ideias vivas se comprometesse com a realizayao.

Desconfio, alias, que Leenhardt decidiu aceitar a proposta de seu amigo Pierre Gerin, na medida em que realizar urn filme e ainda uma maneira de apresentar uma ideia: a da criayao, de maneira pouco menos intelectual que a aventura da cidra no cen­tro da regiao mediterranea.

Se me demoro assim na personalidade de Roger Leenhardt antes de falar de Les dernieres vacances (As ultimas ferias), e que ela me parece, em certo sentido, mais importante que 0 filme. Em primeiro lugar, porque 0 essencial de Leenhardt entrara sem­pre em sua conversa e sua obra, por mais importante que seja, nunca passara de urn sub-produto dela. Roger Leenhardt nos deu talvez suas obras-primas numa forma menor, nos comentarios dos curtas-metragens que realizou ou produziu. Voces se lembram, por exemplo, daquele documentario sobre 0 vento em que aparece, sobre uma charneca queimada pelo sol e pelo mistral, a grande silhueta de Lanza del Vasto? Porem, nao quero sequer falar do texto, ainda que 0 de Naissance du cinema seja admiravel; penso apenas na dicyao, no timbre e na modulayao da voz que faz de Leenhardt 0 melhor comentarista do cinema frances. Leenhardt esta inteiro nessa voz inteligente e incisiva que 0 mecanismo do microfone nunca con segue corroer, de tanto que ela se identifica com 0 proprio movimento do espirito. Leenhardt, antes de tudo, e urn homem da fala. Somente ela e bast ante movel, bastante fle­xivel, bastante intima para absorver e traduzir sem degradayao de energia apreciavel a dialetica de Roger Leenhardt, conservar sua vibrayao nessa dicyao sem sombra, em que a clareza treme com paixao.

Nao tivesse ele realizado grandes filmes, Roger Leenhardt ja seria uma das personalidades mais sedutoras e mais insubstituiveis do cinema frances. Uma especie de eminencia parda da coisa cine­matografica. Urn dos raros homens que, depois da gerayao dos Delluc e das Germaine Dulac, fizeram com que 0 cinema tivesse uma consciencia.

Parecia, portanto, que 0 proprio carater de Leenhardt lhe reservava nao se aventurar longe demais da zona franca nas fron­teiras da criayao e da produyao, de nao passar dessa semi-interna-

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LES DERNIF:RES VACANCES 193

cionalidade de Saint-Gemain-des-Pres, onde tudo e possivel em palavras, no mundo implacavel e estupido dos Champs-Elysees submetido it Inquisiyao sem recur so do sucesso e do dinheiro.

Vamos escrever por que faz juz: e preciso mostrar-se grato a Pierre Gerin por ter estendido para Roger Leenhardt, da mar­gem esquerda a margem direita, a ponte de sua confianya e de sua amizade.

Posso dize-Io agora: tinhamos muito medo. Em principio, pro­vavelmente, porque urn fracasso nos teria penalizado em nossa afei<;ao, quando nao em nossa estima; mais ainda, porem, porque Leenhardt iria, depois de alguns, prestar testemunho sobre urn dos problemas mais graves da criayao cinematografica. Apesar de sua familiaridade intelectual com 0 filme, apesar de sua experi­encia de produtor e de realizador de curtas-metragens, Leenhardt avanyava no cinema sem armas, virgem de tecnica do estudio. Pra­ticamente nunca havia dirigido atores. E, de repente, seria preciso controlar de saida todos os monstros contra os quais 0 sindicato, na falta dos produtores, protege cuidadosamente 0 diretor novato. Leenhardt est a virtualmente encarregado de responder it questao: pode urn autor no cinema ir diretamente a seu estilo, submeter em alguns dias de aprendizado toda a tecnica a sua vontade e intenyoes, tazer uma obra a urn so tempo bela e comercial sem passar pelo ritos de uma longa aprendizagem tecnica? Nao espera­vamos de Leenhardt urn filme "bern feito", mas uma obra assi­nada que realizasse, enfim, de modo grandioso, alguma coisa do mundo que ele traz dentro de si. Ha outros exemplos disso, mas nao sao tao numerosos. Fora 0 caso bern diferente de Renoir, que e, sem duvida, junto com Melies e Feuillade, 0 unico hom em­cinema da Franya, poucos alem de Cocteau e Malraux souberam submeter logo de saida a tecnica a seu estilo. Em Hollywood, a aventura fresquinha de Orson Welles prova, alias, 0 que a tecnica pode ganhar deixando-se violentar pelo estilo. Sera que ela iria rejeitar urn dos homens mais inteligentes do cinema frances?

Leenhardt teve a prudencia de criar 0 maximo de dificuldades: o pior era, nessas circunstancias, 0 mais seguro. Por isso, Lee­nhardt escreveu (com seu cunhado e amigo intimo, 0 saudoso Roger Breuil) 0 roteiro e os dialogos. 0 proprio tern a era de uma tenuidade bern romanesca e a interpretayao apresentava proble­mas quase insoluveis.

A ideia inicial e bern simples, bern bonita e poderia sair de urn romance de Giraudoux. Por volta dos 15 ou 16 anos, acontece de a men ina conquistar sobre 0 menino uma maturidade psicolo-

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". ANDR£ BAZIN

Ln d"n;~f'd IIQ("QIIC'ef. 0 final da infAnd • •

gica que este levani varias anos para r~uperar. A chegada de urn jovem arquitelo parisiense. encarregado da compra da proprie­dade familiar, faz com que Juliette toml! repentinamente conscien­cia de seu destino de mulber, afastando-a momentaneamente de seu primo Jacques, que sente confuso. em sell chime pueril. que Juliette eslA fugindo dele, pois est! passando para 0 lade dos adul· tos e que e preciso que cle, por sua vez, POTero mais lento e dolo­rosamente, abra seu caminho para 0 pals dos homens. As ullimas ferias Ihe ensinaram a dislinguir a quentura da uhiffia bofetada de uma mae. da primeira bofetada de uma mulher.

Lcenhardt Iigou, porern. intimamcmc. 0 lema do final da in­rincia com 0 fim de uma familia e de uma cena sociedade: da bur­guesia protestant~, cujos modos de aristocracia foram feitos por trb geral;Oes de segur~ material e de riqueza laboriosamente

LES DERNltRES VACAbiCES .. , adquirida. Por voila de 1930, nos dias que se seauiram AI Guerra, a decadencia jA havia eom~do. As duas aventuras, a das crian­~ e a de seus pais, tern urn terreno em comum: 0 patrimOnio que se tornou pesado demais aos herdeiros e que vai ser preciso vender a uma empresa hoteleira.

o parque, onde Jacques e Juliette receberam a primeira li!;Ao de amor e tamhem 0 produto de uma geografia humana bern pre­eisa, com suas bacias de easealho, seus terrenos cobertos de relva de onde se tira feno, sua aleia de bambus. sua nora de arauea­rias. de eedros azuis, de magn6lias grandinora. onde a azinheira e a (mica essencia que lembra as charnecas das Cevenas, ele e a secr~Ao da propriedade burguesa tal como ela se encontra em outras 20 provincias francesas. Lugar fechado, paraiso artificial e objeto tAo fora de uso e ins6lito, nessas tetras queimadas de sol e balizadas por ruinas romanas, quanto os vestidos de gui­pura e os trabalhos de perola da lia Nelly. Ele e 0 slmbolo de tres gera~Oes burguesas, cujo eharme e grandeza foram, contudo, em tres quartos de s«u10. de criar para si a urn 56 tempo urn estilo de vida e urn estilo de propriedade. Mas tal prodigio bur­gues tornou-se ainda mais anacr6nico nas preocupa~Oes dos pais do Que nas brincadeiras das crian~as.

Podemos nos perguntar, a prop6sito, por que 0 cinema fran­ces nlo explorou mais ate aqui 0 tema do "patrimOnio familiar". ao qual a literatura, de Dominique ao Grand Meaulnes, deve, no entanto, algumas de suas obras-primas e numerosos romances muito estimaveis. Porem, t ainda mais eurioso constatar que a burguesia, cujos costumes e decadencia sao a materia de nove decimos da grande produ!;Ao romanesea francesa, de Balzac a Marcel Proust, tenha interessado tlo poueo os cineastas, que, de Hisr6ria de um chapeu de palha a Dulce, Paix40 de uma noire e a Ada/tera, nAo possamos eitar quase nenhum como filme "bur­gues" , a nAo set a eterna e maravilhosa Regra do jogo.

Notemos, na ocasilo, 0 quanto Leenhardt complieou ainda mais sua tarda situando a a~ao entre 1925 e 1930. AudAcia dis­creta, mas interessante, jA que nllo eontente em recusar os auati­vos c1Assicos das mudan!;as em 1900, precisou, ao contrario, enfrentar a dificuldade de mostrar (rajes pouco eonvenientes e pr6-ximos demais de n6s para nAo correr 0 risco do ridlculo.

o problema da interprela~o precisava de uma solu~lo ainda mais delieada. Quinze anos e a idade ingrata do cinema (enquanto, em contrapanida. e a idade eleita pelo romance), pois nlo se pede mais contar com a gra!;8 animal da infAncia e poueos slo

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os at ores que possuem a naturalidade suficiente. Em Adultera, Autant-Lara jogou, em ultima instancia, com a idade imediata­mente superior. 0 roteiro de Les dernieres vacances nao permitia isso. Leenhardt foi recompensado por sua audacia: a jovem Odile Versois, que estreou nas telas, e Michel Fran<;ois, que usa bermu­das com desembara<;o, sao quase perfeitos. Dominam, em todo caso, a interpreta<;ao adulta. Essa e seguramente a causa das prin­cipais fraquezas do filme. Pierre Dux, em particular, nao e de modo algum 0 personagem urn pouco fraco, mas no fundo urn born menino e urn bon vivant, que pedia 0 roteiro. Berthe Bovy nao tern simplicidade e Christi anne Barry nao tern qualidades sufi­cientes para interpretar a bela prima divorciada. Podemos tambem criticar Leenhardt pel a mudan<;a de tom do final do filme. Os dois primeiros ter<;os, consagrados sobretudo a aventura de Jac­ques e Juliette, tern urn admiravel desenvolvimento, ia dizt;. roma­nesco. 0 ultimo, ao contrario, em que a tonica e a intriga amo­rosa esbo<;ada entre Pierre Dux e Christianne Barry, evita por urn triz 0 tom do vaudeville em certos momentos. Talvez aqui tenha faltado ousadia e folego ao roteirista.

Porem, por mais interessante por si so e em grande parte por mais novo que seja 0 roteiro de Roger Leenhardt, e, a meu ver, muito mais no estilo da mise-en-scene que deve recair a aten<;ao. Nao faltarao tecnicos consagrados que 0 acharao pobre, quando nao desajeitado. 0 publico so notara uma especie de despojamento dos efeitos tecnicos, que vai ser tam bern encarada mais ou menos conscientemente como pobreza. Isso porque quase ja nao se sabe mais, ou quase ainda nao se sabe, 0 que e estilo em cinema. Na realidade, em 100 filmes, ha certamente 98 cuja tecnica de decupa­gem e rigorosamente identica, apesar de procedimentos ilusorios de "estilo". Urn filme de Christian Jaque ou ate mesmo de Duvi­vier nao pode ser reconhecido pelo estilo, mas somente pelo emprego mais ou menos freqiiente de certos efeitos perfeitamente classicos, aos quais eles simples mente fizeram alguns aperfei<;oa­mentos pessoais. Em compensa<;ao, os filmes decupados de Renoir, na maioria das vezes, apesar do born sen so e a despeito de todas as gramaticas, sao 0 proprio estilo. Leenhardt nao era homem de desprezar a forma e tampouco as regras, e nao espero de modo algum que nao se sinta por vezes certa falta de jeito na solu<;ao de urn problema da decupagem que urn pouco mais de experiencia Ihe teria permitido resolver, mas, no essencial, eie encontrou per­feitamente seu estilo e tecnica adequada. Sua frase cinematogra­fica tern uma sintaxe e urn ritmo discretamente pessoais, e sua cla-

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LES DERNIERES VACANCES 197

reza nao deve enganar sobre sua originalidade. Com urn senso admiravel da continuidade concreta da cena, Leenhardt sabe resga­tar, a tempo, seu detalhe significativo, sem que, para tanto, renun­ciasse a liga<;ao aos conjuntos.

Enquanto romancista, Leenhardt foi urn moralista. A escri­tura cinematogrMica reencontra de certo modo aqui, atraves de seus meios pobres, esse sintaxe da lucidez que caracteriza todo urn classicismo romanesco frances, de A princesa de Cleves a 0 estrangeiro. Considerada como descritiva, a decupagem de Les dernieres vacances poderia, com efeito, parecer elementar, mas ela e antes de tudo 0 movimento de urn pensamento no qual se encon­tram precisa e esteticamente resolvidas as contradi<;oes mais mar­cantes da personalidade de Roger Leenhardt. Se fosse necessario procurar referencias plasticas em vez de literarias, eu compararia as melhores cenas de Les dernieres vacances com as gravuras em que a observa<;ao do detalhe tira precisamente 0 sentido e valor da clareza linear do tra<;o. Parcial mente influenciado por Renoir (sua camera sabe como nunca acabar com uma cena com urn escal­pelo de disseca<;ao), Leenhardt, entretanto, se afasta dele, sem renega-Io, porque nunca renuncia completamente a compreender o acontecimento, isto e, a julga-10. 0 protestantismo hereditario do autor nao se revel a apenas na propria materia do roteiro e no quadro cevenol2 da a<;ao, eie contribui para informar a decupagem, lhe impoe uma moral da qual Renoir - e e dai, alias, que vern todo seu charme - esta inteiramente livre.

Ficamos receosos que essa obra discreta, em que nada no roteiro e na mise-en-scene recorre a atrativos espetaculares, e que foi realizada com poucos meios, nao se beneficie de toda a aten<;ao que merece. Peio menos e 0 que poderiamos pensar apos a frieza persistente com a qual as comissoes de sele<;ao afastaram Les der­nieres vacances de todas as competi<;oes internacionais em 1947.

E que sua natureza estetica e essencialmente romanesca. Lee­nhardt fez em filme 0 romance que poderia ter escrito. Por mais paradoxal que possa parecer, a aten<;ao do publico e ate mesmo da critica seria a priori muito mais favoravel caso se tratasse de uma adapta<;ao. Les dernieres vacances integrando-se naturalmente, e sem que se de conta, a uma tradi<;ao literaria, nao se nota mais o que sua existencia cinematogrMica pode ter de insolito e de pro­fundamente original. So Malraux, a meu ver, num tipo de romance radicalmente diferente, nos fez sentir 0 equivoco da obra cinemato­grMica que podia ser literaria. Nao nos enganemos: Sierra de Teruel e 0 contrario de uma adapta<;ao. 0 filme e 0 livro sao a

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refrac;:ao em duas materias esteticas diferentes do mesmo projeto criador, eles estao no mesmo plano de existencia estetica. Se Mal­raux nao tivesse escrito L 'espoir (terminado depois do filme), nao deixariamos de ter na tela algo que poderia ter sido urn romance. E a sensac;:ao que nos da Les dernieres vacances. Ora, tudo 0 que ha dez anos conta realmente na produc;:ao mundial, de A regra do jogo a Cidadiio Kane e Paisa, nao sao precisamente romances (ou contos) que preferiram ser filmes? E nao e a tais mutac;:oes este­ticas (que de modo algum sao, eu repito, adaptac;:oes ou transposi­c;:6es) que a linguagem cinematografica deve, desde 0 mesmo tempo, seus progressos mais incontestaveis?

NOTA

1. Revue du Cinema, junho de 1948, publicada com 0 titulo: "0 estilo e 0 pro­prio homem". 2. Da regiao de Cevennes. (N.E.)

XVI o WESTERN

OU 0 CINEMA AMERICANO POR EXCELENCIAI

o western e 0 unico genero cujas origens quase se confundem com as do cinema, e que quase meio seculo de sucesso sem eclipse mantem sempre vivo. Mesmo se contestarmos a igualdade de sua inspirac;:ao e de seu estilo desde os anos 30, deveremos, ao menos, nos surpreender com a estabilidade de seu sucesso comercial, ter­m6metro de sua saude. Sem duvida, 0 western nao escapou com­pletamente a evoluc;:ao do gosto cinematografico, sequer do sim­ples gosto. Ele sofreu e sofrera ainda influencias alheias (as do romance noir, por exemplo, da literatura policial ou das preocupa­c;:6es sociais da epoca), a ingenuidade e 0 rigor do genero foram perturbados por isso. S6 podemos lamentar, mas de modo algum ver nisso uma verdadeira decadencia. Com efeito, essas influen­cias s6 foram exercidas, na realidade, sobre uma minoria de pro­duc;:ao de urn nivel relativamente elevado, sem afetar os filmes "classe Z" destinados sobretudo ao consumo interior. Por outro lado, ao inves de lastimar as contaminac;:oes passageiras do wes­tern, seria melhor maravilhar-se com 0 fato de ele ainda resistir. Cada influencia age sobre e\e como uma vacina. 0 micr6bio perde, com seu contato, sua virulencia mortal. Em 10 ou 15 anos, a come­dia americana esgotou suas virtudes; se ela sob revive em exitos ocasionais, e somente a medida que se afasta, de algum modo, dos canones que Ihe propiciaram 0 sucesso antes da guerra. De Paixiio e sangue (1927) a Scarface, a vergonha de uma na{,iio (1932), 0 filme de gangster ja havia fechado seu ciclo de cresci­mento. Os roteiros policiais evoluiram rapidamente, e se hoje ainda podemos encontrar uma estetica da violencia nos quadros da aven­tura criminal que Ihes e evidentemente comum com Scarface, teriamos grandes dificuldades para reconhecer ali, na figura do

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200 ANOR£ BAliN

detetivc particular, do jornalista ou do G. Man. as her6is origi­oais. Alias, se podemos ralar de urn genero policial americana. 0110 poderlamos Ihe atribuir a especificidade do western; a Iitera­tura que cxistia antes dele nAo parau de influencia-Io e as ultimos avatares inleressantes do filme de crime nair procediam direta­mente dela.

Em contrapartida, a permanencia des her6is e dos esqucmas dramaticos do western roi recentemente demonstrada pela televi­sAo com 0 sucesso delirante das antigas fitas de Hopa1ong Cassidy: o western nAo envelheceu.

Mais ainda que a perenidade his16rica do genero. sua universa­Iidade geogn\fica nos surprecnde. Em que as popula!;Oes arabes, hindus, latinas, germllnicas ou anglo-sax6nicas. junto das quais 0

western sempre teve urn sucesso constante, slio coneernidas pela evoca~lio do nascimento dos Estados Unidos, a luta de BMalo Bill cont ra os Indios, 0 tra~ado da estrada de ferro ou a guerra da Secessao?

E preciso. portanto. que 0 western encerre algum segredo melhor que 0 da mocidade: 0 da eternidade; urn segredo que se identifica. de alguma maneira. com a pr6pria essencia do cinema .

E facil dizer que 0 western "e 0 cinema por excelencia", pois o cinema e movimento. "£ verdade que a cavalgada e a briga sao seus atributos comu ns. Mas, entao. 0 weslern seria apenas uma variedade entre outras do filme de aventura. AJias. a anima~ao dos personagens levada a urn modo de paroxismo e inseparavel de seu quadro geogrMico, e poderiamos tamt>em definir 0 western pelo seu cenario (a cidade de madeira) e sua paisagem: outros gene­ros. porem, ou outras escolas cinematograficas tiraram partido da poesia dramatica da paisagem (por exemplo, a produ~ao sueca muda), sem que a poesia que contribuira para sua grandeza assegu­rasse sua sobrevivcncia. Ou melhor, aconteceu, como em A manada, de se lomar emprestado do western urn de seus temas - a tradicional viagem da manada - e de silua-Ia numa paisagem (a da Australia central) bastante analoga as do oeste americano. o resultado. como se sabe, foi excelente; mas, felizmente. renun­ciacam a qualquer continua~lio dessa proeza paradoxal, cujo exilo 56 se deveu a conjunturas excepcionais. Ese aconteceu de westerns rodados na Fran~a, nas paisagens de Camargue. 56 podemos ver nisso uma prova suplementar da popularidade e da saude de urn genero que suporta a conlrafactAo, 0 pastiche ou a parOdia.

o WESTERN ou 0 CINEMA AMERICA-NO POR EXCEL£NCIA 201

William S. Han cm /kijos qu~ IQrlurom (l92J): "Scria ridiculo julpr 0 pc:r50naacm dc Tom Mix ... , ou mesmo de William Han ou dc Doualu Fairbanks, que rlZcram os belos fUmes do arande perlodo primitivo do ~r~rrl, squndo os mhoGos dllrqueoloaia".

Na verdade. seria vao 0 esfor~o de reduur a essencia do wes­tern a qualquer urn de seus componentes manifestos. Os mesmos elementos sao encontrados em OUlras partes, mas nao os privile­gios que parecem se ligac a eles. logo. 0 western deve ser outra coisa que na.o a forma. As cavalgadas. as brigas. homens fortes e corajosos numa paisagem de uma aU51eridade selvagem nAo poderiam ser suficientes para definir ou resumir 0 charme do genero.

Tais atributos fOTmais. pelos quais 0 western eomumente e reconhecido, sao apenas os signos e slmbolos de sua realidade pro­funda, que e 0 mito. 0 western surgiu do encontro de uma mitolo­gia com urn meio de expressao: a Saga do Oeste existia antes do cinema nas formas Iiterarias ou folcl6ricas, e a multiplica~ao dos filmes na.o acabou. alias. com a literatura do genero western, que continua a leT seu publico e a fornecer aos Toteiristas seus melho­res temas. NAo hat parem, uma medida comum entTe a audil:ncia Iimitada e nacional das western stories e a universal dos filmes que nelas se inspiTam. Do mesmo modo que as miniaturas dos Livros de Horas serviram de modelo para a estatuaTia e para os

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vitrais das catedrais, essa literatura, liberada da linguagem, encon­tra na tela uma prom09ao a sua altura, como se as dimensoes da imagem se confundissem, enfim, com as da imagina9ao.

Este livro salientani urn aspecto desconhecido do western: sua verdade historica. Desconhecido, provavelmente, em primeiro lugar por causa da ignorancia, mais ainda, porem, por causa de nosso preconceito solidamente enraizado segundo 0 qual 0 western so po­deria contar historias de uma grande puerilidade, fruto de uma inven9ao ingenua e nao se dando 0 menor trabalho de verossimi­Ihan9a psicologica, historica ou ate mesmo meramente material. E verdade, com efeito, que de urn ponto de vista puramente quan­titativo, os westerns explicitamente preocupados com a fidelidade historic a sao minoria. E verdade, tambem, que nao sao de modo algum necessariamente os unicos validos. Seria ridiculo julgar 0 personagem de Tom Mix (e mais ainda seu cavalo branco encanta­do), ou mesmo de William Hart ou de Douglas Fairbanks, que fize­ram os belos filmes do grande periodo primitivo do western, segundo os metodos da arqueologia. No mais, varios westerns atuais, de urn nivel razoavel (penso, por exemplo, em Embrutecidos pela vio­lencia, Ceu amarelo ou Matar ou morrer), nao of ere cern senao ana­logias bern simples com a historia. Sao, antes de tudo, obras da imagina9ao . Mas seria tao erroneo ignorar as referencias historicas do western quanto negar a liberdade sem embara90 de seus rotei­ros. J .-L. Rieupeyrout nos mostra perfeitamente a genese da ideali­za9ao epica a partir de uma historia relativamente proxima, mas e possivel que, preocupado em lembrar 0 que comumente e esque­cido ou ignorado, seu estudo, dedicando-se sobretudo aos filmes que ilustram sua tese, deixa implicitamente no escuro a outra face da realidade estetica. Entretanto, ela the dar a duas vezes razao. Pois as rela90es da realidade historica com 0 western nao sao ime­diatas e diretas, mas dialeticas. Tom Mix e 0 oposto de Abraham Lincoln, mas ele perpetua, a sua maneira 0 culto e a lemb,ran9a dele. Em suas formas mais romanescas ou mais ingenuas, 0 wes­tern e 0 contrario perfeito de uma reconstitui9ao historica. Hopa­long Cassidy nao difere, e 0 que parece, de Tarzan senao por suas roupas e pelo quadro de suas proezas. Contudo, se quisermos nos empenhar para comparar essas historias encantadoras, mas inveros­simeis, para superpo-Ias, como se faz em fisiognomonia moderna com varios negativos de rostos, veremos aparecer por transparen­cia urn western ideal feito das constantes comuns a todas elas: urn western composto unicamente de seus mitos em estado puro. Como exemplo, distingamos urn deles, 0 da Mulher.

o WESTERN OU 0 CINEMA AMERICANO POR EXCELENCIA 203

No primeiro ter90 do filme, 0 "born cowboy" encontra uma m09a pura, digamos, a virgem obediente e forte, pela qual ele se apaixona e cujo grande pudor nao nos impede de descobrir que o amor e compartilhado. Porem, obstaculos quase intransponiveis opoem-se a esse amor. Urn dos mais significativos e dos mais fre­qtientes vern da familia da amada - 0 irmao, por exemplo, e urn canalha sinistro 0 qual 0 born cowboy e obrigado a livrar a sociedade num combate singular. Nova Ximenes, nossa heroina se proibe de achar que 0 assassino de seu irmao e urn menino bonito. Para redimir-se aos olhos de sua bela e merecer seu per­dao, nos so cavaleiro deve entao passar por uma serie de provas fabulosas. Finalmente, ele salva a eleita de seu cora9ao de urn perigo mortal (mortal para sua pessoa, sua virtude, sua fortuna, ou para os tres ao mesmo tempo). Ao fim de que, ja que estamos no final do filme, a bela seria uma ingrata se nao desculpasse seu pretendente e nao the prometesse seus filhos.

Ate aqui, tal esquema - sobre 0 qual, e claro, podemos bor­dar mil variantes (por exemplo, substituindo a guerra de Secessao pel a amea9a dos indios, ou de ladroes de rebanhos), ja nao deixa de lembrar 0 esquema dos romances de cavalaria pela preeminen­cia que concede a mulher e as provas que 0 melhor dos herois deve satisfazer para pretender seu amor.

A historia, porem, se com plica na maioria das vezes com urn personagem paradoxal: a dona do saloon, geralmente tambem apaixonada pelo cowboy. Haveria, portanto, uma mulher sobrando, se 0 deus dos roteiristas nao estivesse de olho. Alguns minutos antes do fim, a prostituta de born cora9ao salva aquele que ama de urn perigo, sacrificando sua vida e urn amor sem saida pela feli­cidade de seu cowboy. No mesmo lance, ela se redime definitiva­mente no cora9ao dos espectadores.

Isso pede uma reflexao. Nota-se, com efeito, que a divisao dos bons e dos maus so existe para os homens. As mulheres, de alto a baixo da escala social, sao, de qualquer modo, dignas de amor, pelo menos de estima ou de piedade. A menor meretriz e ainda redimida pelo amor ou pela morte - essa ultima, alias, the e pou­pada em No tempo das diligencias, cujas analogi as com Bola de sebo, de Maupassant, sao bern conhecidas. E verdade que 0 born cowboy e mais ou menos reincidente e que 0 casamento mais moral torna-se desde entao possivel entre 0 her6i e a heroina.

Por isso, no mundo do western, as mulheres sao boas, e 0 homem que e mau. Tao mau que 0 melhor deve, de certo modo, redimir com suas provas a culpa original de seu sexo. No Paraiso

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ANDRt:: BAZIN

Terrestre, Eva induz Adao em tentacao. Paradoxalmente 0 purita­nismo anglo-saxao, sob a pressao das conjunturas da hisl6ria, invene a proposiCao biblica. A degradaCao da mulher nao e ali senao a conseqiiencia da concupiscencia dos homens.

t: evidente que tal hip6lese procede das pr6prias condicOes da socioiogia primitiva do Oeste, onde a raridade das mulheres e os perigos da vida rude em demasia deram a essa sociedade nascente a obriga~o de proteger suas femeas e seus cavalos. Contra 0 roubo de urn cavalo, 0 enforcamento pode set suficiente. Para respeilar as mulheres, e preciso mais que 0 receio de urn risco tao futi! como o da vida: a forca posit iva de urn mito. a que ilustra 0 western ins­(illli e confirma a mulher em sua fun(:Ao vestal das virtudes sociais de que este mundo ca6tico ainda tern a maior necessidade. Ela con­tern em si nao apenas 0 fUlUro fisico, mas, pela ordem familiar a qual ela aspira como a raiz a terra, seus fundamentos morais.

Esses pr6prios mitos. cujo exemplo talvez mais significativo (depois do qual viria imediatamente 0 do cavalo) acabamos de analisar, poderiam provavelmenle se reduzir a urn principio ainda mais essencial. Cada urn deles, no fundo, nao faz mais que especi­ficar. atraves de urn esquema dramiuico ja particular, 0 grande maniqueismo epico que opOe as forcas do Mal aos cavaleiros da justa causa. As paisagens imensas de prados, desertos e rochedos, onde se agarra , precaria, a cidade de madeira, ameba primitiva de uma civiiizaC!o, estao abertas a todas as possibilidades. a indio que a habita era incapaz de the impor a ordem do Homem. Ele sO se tornara senhor dela idemificando-se a sua selvageria paga. a homem cristao branco, ao contrario, e realmente 0 conquista­dor, criador de urn Novo Mundo. A relva cresce por onde passou seu cavalo, ele vern implantar, a urn s6 tempo, sua ordem moral e sua ordem tecnica. indissoluvelmeme ligadas, a primeira garan­tindo a segunda. A seguram;:a material das diligencias, a prot~ao das trOpas federais, a constrw;ao de grandes estradas de fe rro importam talvez menos que a instau racao da justica e de seu res­peito. As relacOes da moral e da lei, que ja nao passam, para nos­sas velhas civilizaC6es, de urn tema de vestibular, foram, ha menos de urn s&:ulo, a proposicAo vital da jovem America. Somenle os homens fortes, rudes e corajosos podiam conquistar essas paisa­gens vi rgens. Todos sabem que a familiaridade com a mone nao e para manter 0 medo do inferno, 0 escnlpulo e 0 raciocinio moral. A policia e os juizes servem sobretudo aos fracos. A pr6pria forca dessa humanidade conquisladora gerava sua fraqueza. La onde a moral individual e precaria, someme a lei pode impor a ordem

o WESTERN OU 0 CINEMA AMERICANO POR EXCEL£NCIA 20'

"Admid ... el iluSiraCla dram'rica da parAbola do fariR1l e do (lublicano. No tempo das dmtlfICias, de John Ford, nos masua que uma proslilula pode ser mais respeil .... el do que 01 bellos que a expulsaram da cidadc: c: do que a mulhc:r de um ofltial."

do bern e 0 bern da ordem. Mas, quanto mais a lei pretende garan­tir uma moral social que ignora os meritos individuais daqueles que fazern essa sociedade, mais e1a e injusta. Para ser eficaz. a justica deve ser aplicada por homens tao fortes e [emeranos quanto os criminosos. Tais virtudes, como vimos, sao pouco com­pativeis com a Vinude, e 0 xerife, pessoalmente. nem sempre vale mais que aqueles que manda enforcar. Desse modo, surge e se con­firma uma conlradicao inevitavel e necessaria. FrequentemeDle ha pouca diferenca moral entre aqueles que qualificamos de foras­da-lei e os que eslao dentro dela . Todavia, a estrela do xerife deve constiluir uma maneira de sacramento da justica cujo valor e inde­pendente dos merilos de seu ministro. A essa primeira contradi­Cao, acrescenla-se a do exercicio de uma justica que, para ser efi­caz, deve ser extrema e expeditiva - menos, no entanto, que 0 lin­chamento - e, portanto. ignorar as circunstincias alenuantes, e ate mesmo os alibis demorados demais para serem verificados. Protegendo a sociedade, ela corre talvez 0 risco da ingralidao para com os mais turbulentos de seus mhos. mas nao menos uteis. e talvez, ate mesmo. nao menos merecedores.

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ANDR~ BAliN

A necessidade da lei nunca esteve mais pr6xima da necessi· dade de uma moral. nunca tambem 0 antagonismo delas foi mais concreto e mais evidente. E ele que constitui. sabre urn modo bur· lesco. 0 fundo do Pastor de olmas. de Charles Chaplin. no qual vemos. para terminar. nossa her6i correr a cavalo na fronteira do bern e do mal. que e tambem a do Mexico. Admiravel ilustra­f;lo dramatica da parabola do fariseu e do publicano. No tempo das diligencias. de John Ford. nos mostra que uma prostitula pode ser mais respeitavel do que os beatos que a expulsaram da cidade e do que a mulher de urn oficial; que um jogador deoo. chado pode saber morrer com dignidade de aristocrata. que urn medico bebado pode pralicar sua profissAo com competencia e abnega~o; um fora-da-Iei perseguido. por algum ajuste de comas passado e provavelmente futuro, dar provas de lealdade, de gene· rosidade, de coragem e de delicadeza, enquanto um banqul,.· ro con­sideravel e considerado foge com 0 cofre.

Assim, encontramos na origem do western uma etica da epo· peia e mesmo da tragedia. 0 western e epico, pensa·se geralmente. pela escala sabre-humana de seus her6is. pela extenslo de suas proezas. Billy the Kid e invulneravel como Aquiles. e seu rev6lver, infallve!. 0 cowboy e urn cavaleiro. Ao carater do her6i corres· ponde urn estilo de mise-en·sdne, em que a transposif;Ao epica apareee desde a composif;AO da imagem, sua predil~o pelos vas­tos horizontes. os grandes pianos de conjunto, que sempre lem· bram 0 confronto do Homem e da Natureza. 0 western ignora praticamente 0 primeiro plano, urn pouco menos 0 plano ameri· cano; ele se prende, em compensa~Ao. ao travel/ing e a panora.­mica, que negam 0 quadro da lela e restituem a plenitude do espa~o.

E verdade. Mas esse estilo de epopeia s6 ganha seu sentido a partir da moral que the serve de base e 0 justifica. Essa moral e a do mundo onde 0 bern e 0 mal social, em sua pureza e neees­sidade. existem como dois elementos simples e fundamentais. Mas 0 bern em eSlado nascenle engendra a lei em seu rigor primi· livo. a epopeia vira Iragedia pelo aparecimento da primeira con· tradi~Ao entre 0 Iranscendente da justif;a social e a singularidade moral. entre 0 imperativo categ6rico da lei, que garante a ordem da futu ra Cidade, e aquele nAo menos irredutivel da consciencia individual.

Repetidas vezes a simplicidade corneliana dos roteiros do wes­tern foi parodiada. E racH observar. com efeilo. a analogja deles com 0 de £1 Cid: mesmo connilo do dever e do arnOT. mesmas

o WESTERN OU 0 CINEMA AMERICANO PeR EXCELtNCIA 201

W;"CMstn' 73. de Anthony Mann: "0 waIn''' i,nOfa pnuleamente 0 pri­meiro plano. urn POIiCO menos 0 plano amerieano; ele se prende em com­~o. ao If1I'lrlIi"l e 1 panorimica. que nepm 0 quadro cia t~1a e reW­luem a plenitude do es~··. 4" ... ...-.... ~

provas cavaleirosas ao cabo das quais samenle a virgem forte IX>­dera consentir esquecer a afronta feita a sua familia. Mesmo pudor. alias, dos sentimentos que supOe uma conceWlo do arnor subordinado ao respeito as leis sociais e morais. Porem, lal compa· ra~o e ambigua; zombar do weslern evocando CorneiUe e frisar tambem sua grandeza. grandeza bern pr6x.ima da pueritidade, como a crianca est! pr6xima da poesia.

NAo duvidemos, e essa grandeza ing!nua que os homens mais simples de todos os dimas - e as criantas - reeonheeem no wes· tern, apesar das Iinguas, das paisagens. dos costumes e dos trajes. Pois os her6is epicos e tragicos sAo universais. A guerra da Seces· sAo pe:rtence fa hist6ria do sttulo XIX, 0 western fez dela a guerra de Tr6ia da mais moderna das epopeias. A marcha para 0 Oeste e nossa Odisseia.

Longe, portanto. de a historicidade do western entrar em con· tradif;Ao com a inclinatAo nAo menos evidente do g!nero pelas situa~Oes excessivas, 0 exagero dos falos e pelo deus ex machjna, em suma. com tudo 0 que raz dele urn sinOnimo de inverossimi· Ihanca ing!nua, ela fundamenta, ao conlrario, sua estet.ica e sua

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psicologia. A historia do cinema so conheceu outro cinema epico que e tambem urn cinema historico. Comparar a forma epica no cinema russo e no americano nao e 0 objetivo deste estudo, con­tudo a analise dos estilos esclareceria provavelmente com uma luz inesperada 0 sentido historico dos acontecimentos evocados nos dois casos. Nosso proposito e apenas 0 de observar que a proximi­dade dos fatos nao tern nada a ver com a estilizar;ao deles. Ha legendas quase instantaneas que meia gerar;ao basta para amadure­cerem como epopeias. Como a conquista do Oeste, a Revolur;ao sovietica e urn conjunto de eventos historicos que marcam 0 nasci­mento de uma ordem e de uma civilizar;ao. Ambas engendraram os mitos necessarios a confirmar;ao da Historia, ambas tam bern tiveram de reinventar a moral, encontrar em sua origem viva, antes de sua mistura ou poluir;ao, 0 principio da lei que colocara ordem no caos, separara 0 ceu da terra. Mas talvez 0 cinema fosse a (mica linguagem nao apenas capaz de expressa-Ia, mas sobretudo de lhe dar sua verdadeira dimensao estetica. Sem ele, a conquista do Oeste nao teria deixado com as western stories senao uma litera­tura menor, e nao foi por sua pintura, nem, no melhor dos casos, por seus romances, que a arte sovietica impos ao mundo a imagem de sua grandeza. E que 0 cinema, des de entao, e a arte especifica da epopeia.

NOTA

1. Preftlcio ao livro de J .-L. Rieupeyrout, Le western au Ie cinema americain par excellence, cole<;ao "7' Art", Ed. du Cerf, Paris, 1953.

XVII EVOLU<;Ao DO WESTERN 1

Nas vesperas da guerra, 0 western havia chegado a certo grau de perfeir;ao. 0 ana de 1940 marc a urn patamar para alem do qual uma nova evolur;ao devia fatalmente se produzir, evolu­r;ao que os quatro anos de guerra simplesmente atrasaram, e depois desviaram, sem no entanto determina-Ia. No tempo das diligencias (1939) e 0 exemplo ideal dessa mat uri dade de urn estilo que alcanr;ou 0 classicismo. John Ford atingia 0 equilibrio perfeito entre os mitos sociais, a evocar;ao historica, a verdade psicologica e a tematica tradicional da mise-en-scene western. Nenhum desses elementos fundamentais levava vantagem sobre o outro. No tempo das diligencias evoca a ideia de uma roda tao perfeita que ela permanece em equilibrio no seu eixo em qual­quer posir;ao que a coloquemos. Enumeremos alguns nomes e alguns titulos dos anos 1939-1940: King Vidor, Bandeirantes do norte (1940); Michael Curtiz, A Estrada de Santa Fe (1940), Caravana de ouro (1940); Fritz Lang, Volta de Frank James (1940), Os conquistadores (1940); John Ford, Ao rufar dos tam­bores (1939); William Wyler, 0 galante aventureiro (1940); George Marshall, Atire a primeira pedra, com Marlene Dietrich, (1939).2

Tal lista e significativa. Ela mostra, em primeiro lugar, que os diretores consagrados que haviam, naturalmente, iniciado 20 anos antes no western de serie, quase anonimos, chegam ou voltam para ele no auge de sua carreira. E ate urn William Wyler, cujo talento parece, contudo, estar do lado oposto ao genero. Esse fenomeno po de ser explicado pela promor;ao da qual 0 western parece se beneficiar de 1937 a 1940. Talvez a tomada de conscien­cia nacional que preludiava a guerra na era rooseveltiana tenha

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contribuldo para iSlO. Eo que nos inclinamos a pensar na medida em Que 0 western procede da hist6ria da na~Ao americana, que ele exalta diretaniente ou nao. '

Em todo casc, esse perlodo dA perfeitamente TWO a tese de J .• L, Rieupeyrout) sobre 0 realismo hisI6rico do genera.

Mas, por urn paradoxa mais aparente que real, as anos da guerra propriamentc dita 0 fizeram quast desaparecer do repen6· rio hollywoodiano. Pensando bern, olio ha nada de surpreendente nisso. Pela mesma TWO que 0 western tinha se multiplicado e eno­brecido as custas dos Qutros filmes de avenlUras, as filmes de guerra iriam eliminA-le pelo menos provisoriamente do mercado.

A partir do momenta em que a guerra parecia enfim ganhat

e antes mesmo do restabelecimento definitivo da paz, ele reapare­ceu e 5e multiplicou. mas essa nova fase de sua hist6ria merece ser examinada minuciosamente.

A perfeil;:ao ou, se preferirem, a classicismo que 0 genera al­canl;:ara, implicava que ele procurasse justificar sua sobrevivencia com alguma novidade. Sem querer explicar tudo pela famosa lei das idades esteticas, nada nos impede de fazer com que ela fun­cione aqui. Os novos filmes de John Ford - por exemplo, Pauilo dos fortes (1946), Sangue de her6is (1948) - represemariam muho bern 0 embelezamento barroco do classicismo de No tempo das diligincias. Todavia, se a nOl;:ao de barroco pode expLicar urn certo formalismo t«nico ou a relativa preciosidade destes ou daqueles roteiros, nao me parece que possa justificar uma evolul;:ao mais cornplexa, que provavelmeme deve ser explicada pela relal;:llo com a perfeil;:llo atingida em 1940, e tambem em funl;:Ao dos aconteci­memos de 1941 a 1945.

• • • Chamarei por convenl;:llo " meta western" 0 conjumo das for­

mas adotadas pelo genero depois da guerra. Mas nAo procurarei dissimular que a expressllo vai encobrir, por necessidade da expo­sil;:llo, fenOmenos nem sempre comparaveis. Ela pode, entretanto, justificar-se negativamente, por oposil;:llo ao c1assicismo dos anos 1940 e, sobretudo, A tradil;:llo de que e a finalizal;:llo. Digamos que o "metaweSlern" e urn western que teria vergonha de ser apenas de pr6prio e procuraria juslificar sua existencia por urn interesse suplementar: de ordem estelica, sociol6gica, moral, psicol6gica, polltica, er6tica ... , em suma, por algum valor extrinseco ao genera e que supostamente 0 enriqueceria. Retomaremos tais epitetos para esc1arece-los com alguns dlulos. Mas con vern assinalar de

EVOLUC;-'O DO WESTERN 211

"0 proprio amor ~ quase aJh~io 10 wtJlrrn . O:t brulru (omblm omom VII justamente explorar essa contrldit;lo."

antemllo a innuencia da guerra na evolul;:30 do western depois de 1944 . .:. provavel que, com efeito, 0 fenOmeno do "melawestem" tivesse de qualquer modo aparecido, porern seu conteudo leria side diferente. A verdadeira innuencia da guerra se fez semir prin­cipalmenle depois. Os grandes filmes que ela inspirou s!o natural­mente posteriores a 1945. Mas 0 connilo mundial n30 apenas for­neceu a Hollywood temas espetaculares, ele tambem impas prinei­palmente, pelo menos dorante algons anos, temas de renexllo. A Hist6ria nao era senllo a materia do western, ela se tornara com freqiiencia seu lema; e 0 caso notadamente de Sangue de herois, no qual vemos aparecer 0 restabelecimento politico do indio, per­seguido por numerosos westerns ate 0 Ultimo bravo e ilustrado notadameme por Flechasdejogo, de Delmer Daves (1950). Porern, a influencia profunda da guerra e provavelmente mais indireta e e preciso discerni-Ia cada vez que 0 filme subSlitui o~ lemas tradi­cionais, 00 que se superpOe a eies, por uma tese SOCial ou moral. Sua origem remonta a 1943 com Consciencias mortas, de William Wellman, de quem MQiQr 01./ morrer e 0 descendente longinquo

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(notemos entretanto que, para 0 filme de Zinnemann, 0 que est a mais em jogo e a influencia do macarthismo triunfante). Quanto ao erotismo, tambem pode ser considerado uma conseqiiencia pelo menos indireta do conflito, na medida em que se vincula ao triunfo da pin-up-girl. Talvez seja 0 caso de 0 proscrito, de Howard Hughes (1943). 0 proprio amor e quase alheio ao wes­tern (Os brutos tambem am am vai justamente explorar essa con­tradi<;ao), e com mais razao 0 erotismo, cujo aparecimento como mol a dramatica sup6e que 0 genero so e utilizado como contraste para valorizar 0 sex-appeal da heroina. Nao ha duvida sobre a inten<;ao de Duelo ao sol (King Vidor, 1946), cujo luxo espetacular e uma razao a mais, puramente formal, para classifica-Io entre os "meta western".

Porem, os dois filmes que melhor ilustram tal muta<;ao do genero, sob 0 efeito da consciencia que ele tomou, a urn so tempo, dele mesmo e de seus limites, continuam a ser evidentemente Matar ou morrer e Os brutos tambem amam. No primeiro, Fred Zinne­mann comb ina os efeitos do drama moral e do estetismo dos enquadramentos. Nao sou daqueles que torcem 0 nariz diante de Malar ou morrer. Considero-o urn born filme e 0 prefiro, em todo caso, ao de Stevens. E certo, porem, que a engenhosa adapta<;ao de Carl Foreman consiste em fazer coincidir uma historia que pode­ria muito bern se desenvolver num outro genero, com urn tema tra­dicional do western. Isto e, tratar este ultimo como uma forma que necessita de urn conteudo. Quanto a Os brutos tambem amam, constitui 0 supra-sumo da "metawesterniza<;ao". Com efeito, Georges Stevens prop6e-se a justificar 0 western pelo ... western. Os outros se empenhavam para fazer surgir, dos mitos implicitos, teses bern explicitas, mas a tese de Os brutos tambem amam ... e o mito. Stevens comb ina dois ou tres temas fundamentais do ge­nero, sendo 0 principal 0 do cavaleiro errante em busca do Graal: e, para que ninguem ignore isso, ele 0 veste de branco. A bran­cura do traje e do cavalo era outrora obvia no universo maniqueista do western, mas compreendemos que a do traje de Shane (Alan Ladd) possui toda a pesada significa<;ao do simbolo, quando nao passava, em Tom Mix, de urn uniforme da virtude e da audacia. Desse modo 0 circulo se fecha. A terra e redonda. 0 "metawes­tern" levou tao longe sua "ultrapassagem" que ele se encontra nas Montanhas Rochosas.

Se 0 genero western estivesse em vias de desaparecimento, 0

"metawestern" expressaria efetivamente sua decadencia e sua explo­sao. Mas 0 western e decididamente feito com uma materia diferente

l'VOLu~'Ao DO WESTERN 213

da materia da comedia americana ou do filme policial. Seus avata­res nao afetam profundamente a existencia do genero. Suas raizes continuam a correr sob 0 humus hollywoodiano enos surpreende­mos ao ver rebentar verdes e robustos brotos entre os sedutores, porem estereis, hibridos pelos quais gostariam de substitui-Io.

De fato, em primeiro lugar, 0 aparecimento do "metawes­tern" afetou apenas a camada mais excentrica da produ<;ao, ados filmes "A" e a das superprodu<;6es. E obvio que os sismos super­ficiais nao abalaram 0 nueleo econ6mico, 0 bloco central dos wes­terns ultra-comerciais, musicais ou galopantes, cuja popularidade teve ate mesmo, provavelmente, na televisao, uma nova juventude. o sucesso de Hopalong Cassidy atesta e prova ao mesmo tempo a vitalidade do mito nas formas mais elementares. 0 assentimento da nova gera<;ao lhes garante ainda alguns lustros de existencia. Mas 0 western elasse "Z" nao chega a Fran<;a, e basta consultar os estudios americanos para vermos confirmada sua sobrevivencia. Se 0 interesse estetico deles e individualmente limitado, sua pre­sen<;a, em compensa<;ao, e provavelmente decisiva para a saude geral do genero. Nessas camadas "inferiores", cuja fecundidade econ6mica nao foi desmentida, os westerns de tipo tradicional con­tinuaram a criar raizes. Entre todos os "meta westerns" nunca dei­xamos, com efeito, de ver filmes elasse "B" que nao procuravam alibis intelectuais ou esteticos. Talvez, alias, a no<;ao de filme "B" seja por vezes discutivel, tudo depende do nivel em que se faz come<;ar a letra "A". Digamos mais simplesmente que penso em prodw;:6es, elaramente comerciais, sem duvida mais ou menos one­rosas, mas que so procuram sua justificativa no renome do inter­prete principal e na solidez de uma historia sem ambi<;ao intelcc­tua!. Urn exemplo admiravel dessa simpatica produ<;ao nos foi dado por 0 matador, de Henri King (1950), com Gregory Peck, no qual 0 tern a bern elassico de urn assassino cansado de fugir, e obrigado a matar mais, e tratado dentro de urn quadro dramatico de uma bela sobriedade. Mencionemos ainda Assim sao os for­tes, de William Wellman (1951), com Clark Gable, e sobretudo, do mesmo diretor, 0 poder da mulher (1951).

Com Rio bravo (1950), 0 proprio John Ford retorna visivel­mente a meia-elasse e, em todo caso, a tradi<;ao comercial (sem excetuar 0 romance). Enfim, nao nos surpreenderemos em encon­trar na lista urn velho sobrevivente da epoca heroica, Allan Dwan que, por seu lado, nunca abandonou 0 estilo da "Triangulo" ,4

mesmo quando a liquida<;ao do macarthismo the forneceu algu­mas chaves da atualidade para abrir os temas antigos (Homens indomaveis, 1954).

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Restam-me alguns titulos importantes. E que a classificaC;ao utilizada ate aqui vai tornar-se insuficiente e sera preciso que eu agora pare de explicar a evoluC;ao do genero pelo proprio genero para levar mais em conta autores como fator determinante. Voces puderam provavelmente observar que essa lista de produc;oes rela­tivamente tradicionais, pouco afetadas pel a existencia do "meta­western", so comport a nomes de diretores consagrados e no mais das vezes especializados desde antes da guerra em filmes de movi­mento e aventuras. Nao ha nada de surpreendente, portanto, que atraves deles se afirme a perenidade do genero e de suas leis. Alias, cabe sem duvida a Howard Hawks 0 merito de ter provado, em plena yoga do "meta western" , que era ainda possivel fazer urn western verdadeiro, fundado sobre os velhos temas dramaticos e espetaculares, sem procurar desviar nossa atenc;ao por alguma tese social ou 0 que seria seu equivalente na plasticidade da mise-en-scene. Rio Vermelho (1948) e 0 rio da aventura (1952) sao obras-primas do western, mas sem nada de barroco nem de decadente. A inteligencia e a consciencia dos meios estao ai em perfeito acordo com a sinceridade do relato. E 0 que acontece tam­bern, nas devidas proporc;oes, com Raoul Walsh, cujo recente Pacto de honra (1954) procede dos emprestimos mais classicos da historia americana. Porem, os outros filmes deste realizador me fornecerao - e azar se urn pouco artificialmente - a transiC;ao que eu queria. Em certo sentido, Golpe de misericordia (1949), Sua (mica saida (1947) e Embrutecidos pela violencia (1951) sao exemplos perfeitos dos westerns urn pouco acima da classe "B" e de urn veio dramatico simpaticamente tradicional. Em todo caso, nao ha nenhum sinal de tese. Os personagens nos interessam por aquilo que Ihes acontece, e tudo 0 que Ihes acontece pertence a tematica do western. Mas alguma coisa faria, contudo, que se nao tivessemos sobre esses filmes nenhuma outra indicac;ao de data, nao poderiamos hesitar em situa-Ios na produC;ao dos ultimos anos: c essa "alguma coisa" que eu gostaria de tentar definir.

Hesitei muito quanto ao adjetivo que conviria melhor a tais westerns "1950". Pareceu-me a principio que deveria procurar em torno de "sentimento", "sensibilidade", "lirismo". Pen so que, em todo caso, essas palavras nao devem ser postas de lade e que elas caracterizam bastante bern 0 western moderno em relaC;ao ao "meta western " , quase sempre intelectual, pelo menos na medida em que exige do espectador que retlita para admirar. Quase todos os titulos que you citar agora serao titulos de filmes, nao quero dizer menos inteligentes que Matar ou morrer, mas,

EVOLU<;:Ao DO WESTERN 215

em todo caso, sem segundas intenc;oes e nos quais 0 talento sera sempre posto a servic;o da historia e nao do que ela significa. Outra palavra conviria talvez melhor que as que adiantei, ou pelo menos as completaria utilmente, a palavra "sinceridade". Quero dizer que os diretores abrem 0 jogo com 0 genero, mesmo quando tern consciencia de "fazer urn western". A ingenuidade, com efeito, e agora quase inconcebivel no ponto em que estamos da historia do cinema, mas, enquanto 0 "metawestern" substituia a preciosi­dade ou 0 cinismo a ingenuidade, temos agora a prova de que a sinceridade e ainda possive\. Nicholas Ray rodando Johnny Gui­tar (1954), para a gloria de Joan Crawford, sabe evidentemen­te muito bern 0 que faz. Ele nao e, certamente, menos consciente da retorica do genero que 0 Georges Stevens de Os brutos tambem am am e, alias, roteiro e realizac;ao nao se privam de humor, sem com isso jamais, com relac;ao a seu filme, recuar de modo condes­cendente ou paternalista. Se ele se diverte, nao zomba. Os qua­dros a priori do western nao 0 incomodam para dizer 0 que tern a dizer e mesmo se essa mensagem e em definitivo mais pessoal e mais sutil que a imutavel mitologia.

E finalmente com referencia ao estilo do relato, antes que a relac;ao subjetiva do realizador com 0 genero, que escolherei meu adjetivo. Eu diria facilmente dos westerns que me restam para evo­car - a meu ver os melhores - que eles tern algo de "romanes­co". Entendo com isso que, sem deixar de lade os tern as tradicio­nais, eles os enriquecem do interior pela originalidade dos persona­gens, por seu sabor psicologico, por alguma singularidade atra­ente que e precisamente a que esperamos do heroi de romance. Podemos ver, por exemplo, que em No tempo das diligencias 0

enriquecimento psicologico se refere ao emprego e nao ao persona­gem, permanecemos dentro das categorias a priori da distribuic;ao western: 0 banqueiro, a beata, a prostituta de born corac;ao, 0

jogador ele.gante etc. Em Fora das grades (1955), ocorre algo bern diferente. E claro que situac;oes e personagens sao sempre apenas variantes da tradic;ao, mas 0 interesse que suscitam se deve mais a singularidade do que a generosidade deles. Alem disso, sabemos que Nicholas Ray trata sempre do mesmo assunto, 0 seu, 0 da vio­lencia e do misterio da adolescencia. 0 melhor exemplo desta "ro­mantizac;ao" do western pelo interior nos e dado por Edward Dmytryck, com A lam;a partida (1954), do qual sabemos que e apenas a "refilmagem" western de Sangue do meu sangue, de Mankiewicz. Para quem 0 ignora, entretanto, A lanra partida e so mente urn western mais sutil que os outros, com personagens

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mais singularizados e rela<;oes mais complexas, mas que nao deixa de permanecer estritamente no interior de dois ou tres temas Cl:lS­sicos. Elia Kazan tinha, alias, tratado mais simples mente urn tern a bern proximo psicologicamente em Mar verde (1947), tambem com Spencer Tracy. Naturalmente, todas as nuances intermediarias sao imaginaveis, do western "B" de pura obediencia ao western roma­nesco, e minha classifica<;ao tenl for<;osamente alguma coisa de arbitraria. Espero que 0 leitor aceite defende-Ia comigo.

Proporei, contudo, a seguinte ideia: do mesmo modo que Walsh seria 0 mais notavel dos veteranos tradicionais, Anthony Mann poderia ser consider ado como 0 mais classico dos jovens realizadores romanescos. E a ele que devemos os westerns mais bonitos e verdadeiros dos ultimos anos. 0 autor de 0 prer;o de um homem e, com efeito, provavelmente 0 unico dos realizadores americanos do pos-guerra que parece especializado no genero em que os outros se restringem a incursoes mais ou menos esporadi­cas. Cada urn de seus filmes, em todo caso, e testemunha de uma franqueza emocionante para com 0 genero, de uma sinceridade sem esfor<;o para insinuar-se no interior dos temas, dar vida a per­sonagens atraentes e inventar situa<;oes cativantes. Quem quiser saber 0 que e 0 verdadeiro western, e as qualidades de mise-en-scene que ele supoe, deve ter visto 0 caminho do diabo (1950), com Robert Taylor, E 0 sangue semeou a terra (1952) e Regiao do 6dio (1954), com James Stewart. Na falta desses tres filmes, nao se pode, em todo caso, deixar de conhecer 0 mais bonito de todos: o pre<;o de um homem (1953). Esperemos que 0 cinemascope nao tenha feito Anthony Mann perder sua naturalidade no manejo de urn lirismo direto e discreto e, principal mente, sua infalivel segu­ran<;a na alian<;a do homem e da natureza, esse senso da aria que e neJe como que a propria alma do western, atraves do qual ele reencontrou, mas na escala do heroi romanesco e nao mais mitolo­gico, 0 grande segredo perdido dos filmes da "Triangulo".

Ja pode ser discernido em meus exemplos a coincidencia do novo estilo com a nova gera<;ao. Seria certamente urn abuso e uma ingenuidade pretender que 0 western "romanesco" so diga respeito a jovens, que come<;aram na mise-en-scene depois da guerra. Retrucarao, com motivo, que ja ha algo romanesco em o galante aventureiro, por exemplo, como tambem em Rio Verme­lho e em 0 rio da aventura. Asseguram-me inclusive que ha muito tambem, embora eu pessoalmente seja pouco sensivel a isso, em o diabo Jeito mulher (1952), de Fritz Lang. E evidente, em todo caso, que 0 excelente Homem sem rumo (1954), de King Vidor,

EVOLlJ~'Ao DO WESTERN 217

deve ser classificado nessa perspectiva, entre Nicholas Ray e Anthony Mann. Se e certo, porem, que podemos encontrar tres ou quatro titulos de filmes realizados por veteranos que podem ser postos ao lado daqueles realizados por jovens, parece, apesar de tudo, ser tam bern certo dizer que sao, sobretudo, senao exclusi­vamente, os recem-chegados que tern prazer com esse western a urn s6 tempo classico e romanesco. Robert Aldrich e a ilustra<;ao mais recente e mais brilhante disso, com 0 ultimo bravo (1954) e principalmente com Vera Cruz (1954).

Resta 0 problema do cinemascopio; esse procedimento foi uti­lizado em A Lan<;a partida, lardim do pecado (1954), de Hatha­way, urn born roteiro ao mesmo tempo classico e romanesco, tra­tado, porem, sem grande inven<;ao, e Homem ate 0 Jim (1955), de Burt Lancaster, que entediou 0 Festival de Veneza. Vejo, no fundo, apenas urn cinemascope onde 0 formato tenha real mente acrescentado algo import ante it mise-en-scene, e 0 rio das almas perdidas (1954), de Otto Preminger, com fotografia de Joseph La Shelle. Quantas vezes, no entanto, lemos (ou nos mesmos escre­vemos) que, se 0 alargamento da tela nao se impunha em outra parte, 0 novo formato ia dar pelo menos urn segundo impulso ao western, cujos gran des espa<;os e as cavalgadas pedem a horizon­tal. Tal dedu<;ao era verossimil demais para ser verdade. As ilustra­<;oes mais convincentes do cinemas cope nos foram dad as por fil­mes psicologicos (Vidas amargas, por exemplo). Eu nao chegaria a sustentar paradoxalmente que a tela larga nao convem ao wes­tern, tampouco que ela nao Ihe acrescentou nada,5 mas me parece pelo menos ser ponto pacifico que 0 cinemascope nao renovara nada de decisivo nesse campo. Em formato standard, em vistavi­sion ou em tela bern larga, 0 western permanecera 0 western tal como desejamos que nossos filhos ainda venham a conhece-Io.

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NOTAS

I. Cahiers du Cinema, dezembro de 1955. 2. Do qual foi, em 1953, feila uma decepcionante refilmagem pelo proprio George Marshall, Antra da perdil;iia, com Audy Murphy. . 3. Le western au Ie cinema americain par excelence, cole~ao "7' Art", Ed. du Cerf, Paris, 1953. 4. Amalgama de Ires companhias de produ~oes cinematogrMicas americanas: Keys­tone, Kay Bee e Fine Arts. 5. Ficamos tranquilizados com Um certa capitiio Lockart (1955): no qual Antho~y Mann nao emprega 0 cinemascope enquanto formato novo, e Slm como ext en sao do espa~o em lorno do homem.

XVIII UM WESTERN EXEMPLAR:

SETE HOMENS SEM DEST/NOt

E esta a ocastao para aplicar 0 que escrevi sobre a politica dos autores. Minha admiracao por Sete homens sem destino nao me fani conduir que Budd Boetticher e 0 maior realizador de wes­tern - embora nao exdua tal hip6tese -, mas somente que seu filme talvez seja 0 melhor western que ja vi desde a guerra. S6 a lembranca de 0 prero de um homem e Rastros de 6dio me obri­gam a uma reticencia. E, com efeito, dificil discernir com certeza, entre as qualidades desse filme excepcional, as que dependem espe­cificamente da mise-en-scene, do roteiro e de urn dialogo fasci­nante, sem falar, naturalmente, das virtudes anonimas da tradicao que s6 que rem se expandir quando as condicoes de producao nao as contrariam. Confesso s6 ter, infelizmente, uma va~a lembranca dos outros westerns de Boetticher para saber qual a parte, no exito deste, das circunstancias ou dos acasos, parte que quase nao existe, devo admitir, em urn Anthony Mann. Seja la 0 que for, e mesmo que Sete homens sem destino seja 0 resultado de uma conjuntura excepcional, nao deixo de considera-lo como urn dos exitos ex~m­plares do western contemporaneo.

Que 0 leitor me desculpe se nao pode verificar 0 que digo, sei que falo de uma obra que de provavelmente nao vera. Assim deci­dem os distribuidores. Sele homen.<' 5em destino s6 foi apresentado em versao original, em exclusividade de baixa temporada, numa pequena sala dos Champs-Elysees. Se 0 filme nao foi dublado, voces nao 0 encontrarao nos bairros. Situacao simetrica a de outra obra-prima sacrificada, Rastros de 6dio, de John Ford, apresen­tada apenas em versao dublada em pleno verao.

E que 0 western continua a ser 0 genero menos compreendido. Para 0 produtor e 0 distribuidor, 0 western nao passa de urn filme

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n" ANDRt BAZIN

Lee Marvin em Stlt hotnf'rIS ~m dutillo. fF",o"'_ "".1

infantil e popular fadado a terminar oa te1evisao. ou uma super­producao ambiciosa com grandes vedeles. Apenas a b~l~eteria des interpretes ou do dirttor justifiea 0 esforco de pubhcldade e de diSlribuicAo. Entre as dais. fica-se ao Deus dara e ninguem - do mais, e preciso dizer. a cThiea Que 0 distribuidor - faz a di~eren.~ seosivel entre os fiLmes produzidos com a marea western. FOI asslm que Os brulos tambem omom, superproduc!o ambiciosa da Para­mount para as bodas de ouro cinemalograficas de Zukor, foi sau­dada como uma obra-prima e que Sete homens sem destino, muito superior ao filme de Stevens, passan\ desapercebido e reimegrara provavelmente as gavetas da Warner. de oode sera tirado apenas para lapaT algum buracD.

o problema fundamental do western contemporaneo esta sem duvida no dilema da inteligencia e da ingenuidade. Hoje . 0 wes­(ern s6 pode, no mais das vezes, continuar a ser simples e, con­forme a lradic;Ao, vulgar e idiota. Toda uma produ~o de segun~a categoria persiste nessas bases . E Que, desde Thomas Ince e WIl­liam Hart 0 cinema evoluiu. Genero convencional e simplista em seus dad~ primitivos, 0 weslern deve, no entanto, tornar-se adulto e ficar inteligente se quiser se situar no mesrno plano que os fiI -

SETE HOMENS SEM DESTINO 221

rnes dignos de serem criticados. Desse modo apareceram OS wes­terns psicol6gicos, com tese social ou mais ou menos filos6fica, os westerns significantes. 0 cumulo dessa evoluC;Ao e justamente representado por Os brutos lam~m omam, western em segundo grau, no qual a mitologia do genero e conscientemente tratada como 0 tema do filme. Sendo a beleza do western proveniente jus­tamente da espontaneidade e da perfeila inconsciencia da mitolo­gia dissolvida nele, como 0 sal no mar. essa destila~o laboriosa e uma operatrAo contra natureza, que desu6i 0 que revela.

Mas sera que podemos ainda seguir direlamenle 0 estilo de Thomas Inee, ignorando 40 anos da evolutrAo cinematografiea? E evidenle que nllo. No tempo das diliglncias ilustra sem duvida 0 extremo limite de urn equillbrio ainda classico entre as regras pd­mitivas, a inteligencia do roteiro e 0 esteticismo da forma. Depois dele, temos 0 formalismo barroco ou 0 intelectualismo dos slmbo­los, temos Matar ou morrer. Somente Anthony Mann parece ter sabido encontrar a naturalidade alrav~ da sineeridade, porem, mais do que seus roteiros, e sua mise-en-scene que faz com que seus westerns sejam os mais puros do p6s-guerra. Ora, apesar da polltica dos autores, 0 roteiro tambem e urn elemento constitutivo do western, tanto quanto 0 born emprego do horizonle e 0 lirismo da paisagem. Alias, minha admirat;Ao por Anthony Mann foi sem­pre urn pouco perturbada pelas imperfeic;Oes que ele tolerava em suas adaplat;Oes.

Por isso, a prirneira surpresa que nos da ~te homens um des­tino vern da perfeitrAo de urn roteiro que rea1iza a proeza de nos surpreender continuamente a partir da trama rigorosamente clas­sica. Nada de simbolos, nem de segundas intent;Oes filos6ficas, nem sombra de psicologia. nada senAo personagens ultra-conven­cionais com funt;Oes do arco da veLba, mas uma organizat;1o extra­ordinariamente engenhosa e, sobretudo. uma invenC;ao constante quanta aos detalhes capazes de renovar 0 interesse das situat;Oes. o ber6i do ftIme. Randolph Scott, e um xerife em perseguit;1I0 a sete bandidos que mataram sua mulher roubando os cofres da Wells Fargo. Trata-se de pega-Ios atravessando 0 deserto antes que atravessem a fronteira com 0 dinheiro roubado . Outro homem fica logo interessado em ajuda-Io, mas por urn mOlivo bern dife­rente. Quando os bandidos estiverem mortos. ele podera talvez apropriar-se de 20 mil d6lares . Talvez, se nAo for impedido pelo xerife; caso contririo. seria preciso malar mais um homem. Desse modo a linha dramatica e c1aramente apresentada. 0 xerife age por vingan~, seu companheiro por interesse. no final, 0 ajuste

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de contas sera entre ties. A hist6ria poderia criar urn western chalo e banal se 0 (attiro nllo fosse construido com uma serie de surpre· $aS que nllo VOll conlar para nllo lirar 0 prattr do leitar. se liver a sorte de ver 0 filme. No entanlO. mais ainda Que a inven~o das peripecias. e 0 humor do Iratamento delas que me parece notave~. Assim, por cxemplo, nunca vemos 0 xerife aliTar, como se ele au­rasse (A-pido demais para que a clmera livesse tempo de fazer 0 contra-campo. A ffiesrna vontade de humor justifica tambem. cer­tamente. as trajes bonitos ou provocanles demais da heraina OU, ainda, as elipses inesperadas da decupagem dramtltica. Mas 0

mais admin\ve1 e que 0 humor aqui nllo vai de modo algum de encontro a em~a.o e ainda menos a admira~llo. Nao h3 nada de par6dico. Elc: supOe apenas por pane do direlor a conscicncia e a inleligencia das molas que ele pOe: em movimenlo, sem nada. parem. de menosprezante ou de condescendenle .. 0 humor n3.o nasce tie urn senlimenlo de superioridade, mas mUiIO peJo contn\­rio. de uma superabundAncia de admira~lio. Quando amamos a lal pontO os her6is que animamos e as situa~Oes que inventamos. entAo e somente entllo podemos lomar uma distlincia humoristica deles, que multiplica a admira~lio pela lucidez .. Tal ironia nilo diminui os personagens, mas permite que a ingenUidade deles coe­xiSla com a inteligencia. Esse e, com efeito. 0 western mais inleli­gente que conh~o, mas tambCm 0 menos intelectuaJ, 0 mais refl­nado e 0 menos esteticista, 0 mais simples e 0 mais belo.

Essa dialetica paradoxaJ foi posslvel porque Boeuicher e seu rOleirisla nllo lomaram 0 partido de dominar 0 assunto com paler­nalismo ou de "enriquece-Io" com cODlribuic;Oes psicol6gicas, mas simplesmenle de levar sua 16gica ate 0 rim e de tirar lodos os efeitos da perfeic;llo das situac;:oo. A em~:1o nasce das rela¢es mais abstratas e da beleza mais concret3. 0 reaJismo, 140 impera­livo nos westerns hist6ricos ou psicol6gicos, nlio tern mais sentido aqui do que nos filmes da "Triingulo", nos quais urn esplendor especlfico surge antes da superposic;ao da extrema conven!;aO e do extremo realismo. Boetticher soube se servir prodigiosamente da paisagem, da maleria variada da terra, do grao e da forma dos rochedos. Tambem acho que a fOlogenia do cavaJo M muito tempo nao linha sido tao bern explorada. Par exemplo, na exlraordinaria cena do banho de Janet Gaynor. em que 0 pudor inerente ao wes­tern e levado, com humor, lAo lange que s6 e mostrado 0 movi­mento da agua nos bam bus, enquanto que a 50 metros daJi Ran­dolph Scott alreia as cavalos . E dincil imaginar a urn s6 tempo mais abstrac;ao e mais transferencia no erolismo. Penso tambCm

SET£ HOMENS SEM DESTINO

~/t homtflS _ dtstirw: " 8oeuichtr 5OubC' 5C scrvir prodi&iosamente da paisa,em. da malnia yariaaa Ga ItrrI. do &rlo e da forma dOl rodledos" .

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na crina branca do cavalo do xerife e em seu grande olho amarelo. Saber usar tais detalhes e seguramente mais importame no western do que saber executar uma batalha com 100 indios.

E preciso, com ereito, realc;ar 0 usa tOlalmente ins6lito da cor nesse filme. Favorecidas, e verdade, por urn procedimento cujas car8cteristicas ignoro, as cores de Sete homens sem desrino sao uniformemente transpostas numa lonalidade aguada que lembra por sua transparencia e suas superficies de cores, as antigas cores dos filmes pintados a mao. ~ como se as convenC;Oes da cor vies­sem assim salientar as da ac;"o.

Ha, enflm, Randolph Scott. cujo rosto lembra irresistivelmente o de William Han ate a sublime inexpressividade dos olhos azuis. NAo hA nenhum jogo de fisionomia, nem sombra de pensamenlO ou de urn sentimenlo, sem que lal impassibilidade, e 6bvio, tenha algo a 'o'er com a interioridade moderna de urn Marlon Brando. Esse rosto nao traduz nada, pois nao hA nada para ser Iraduzido. Todos os m6veis da aeao sao definidos aqui pelos empregos e pelas circunstincias. Ate 0 arnor de Randolph por Janet Gaynor, do

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qual sabemos exatamente quando ele nasceu (no momenta do ba­nho) e como evoluiu, sem que em momento algum 0 rosto do heroi traduzisse urn sentimento. Mas ele esta inscrito na combina­~ao dos acontecimentos como 0 destino na conjuntura dos astros, necessario e objetivo. Qualquer expressao subjetiva teria entao a vulgaridade de urn pleonasmo. Nao e por isso que nos ligamos menos aos personagens, muito pelo contrario: a existencia deles e mais plena por nao dever nada as incertezas e as ambiguidades da psicologia, e quando, no final do filme, Randolph Scott e Lee Marvin se encontram cara a cara, 0 dilaceramento ao qual sabe­mos estar condenados e emocionante e belo como uma tragectia.

Desse modo, e caminhando que 0 movimento fica provado. o western nao esta condenado a se justificar pelo intelectualismo ou pela espetacularidade. A inteligencia que exigimos hoje pode servir para apurar as estruturas primitivas do western e nao para meditar sobre elas ou desvia-Ias em prol de interesses alheios a essencia do genero.

NOTA

1. Cahiers du Cinema, agosto-setembro de 1957.

XIX A MAR GEM DE

"0 EROTISMO NO CINEMA"t

Nao ocorreria a ninguem escrever urn livro sobre 0 erotismo no teatro. Nao que 0 tema, a rigor, nao se preste a reflexoes, mas porque estas seriam exclusivamente negativas.

o mesmo, e verdade, nao acontece com 0 romance, ja que todo urn setor nao negligenciavel da literatura funda-se mais ou menos expressamente no erotismo. Mas e s6 urn setor, e a existen­cia de urn "inferno" na Biblioteca Nacional concretiza essa parti­cularidade. E verdade que 0 erotismo ten de a desempenhar urn papel cada vez mais importante na literatura moderna e que ele invade completamente os romances, ate os populares. Sem con­tar, porem, que se teria de atribuir certamente ao cinema uma grande parte nessa difusao do erotismo, este ainda continua subor­dinado a no~oes morais mais gerais que justamente tornam a sua extensao urn problema. Malraux, sem duvida 0 romancista con­tempodineo que mais claramente propos uma etica do amor fun­dada no erotismo, tambem ilustra perfeitamente 0 carater mo­derno, hist6rico e por conseguinte relativo a uma tal op~ao. 0 erotismo tende, em suma, a desempenhar em nossa literatura urn papel comparavel ao do amor cortes na literatura medieval. Mas por mais influente que seja 0 seu mito e 0 futuro que lhe antecipemos, torna-se evidente que nada de especifico 0 prende a literatura romanesca na qual ele se manifesta. Mesmo a pintura, em que a representa~ao do corpo humano bern poderia ter desem­penhado urn papel determinante nesse sentido, apenas em termos acidentais e acess6rios pode ser considerada er6tica. Desenhos, gravuras, estampas ou pinturas libertinas constituem urn generO, uma variedade, tal qual a libertinagem literaria. Poder-se-ia estu­dar 0 nu nas artes plasticas e entao nao haveria como ignorar a

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tradw;:ao por seu intermedio de sentimentos eroticos, mas estes, uma vez mais, continuariam sendo urn fenomeno secundario e acessorio.

Do cinema pois, e dele so, e que se pode dizer que 0 erotismo aparece como urn projeto e urn conteudo fundamental. De modo algum unico, evidentemente, ja que muitos filmes, e nao dos meno­res, nada Ihe devem, mas ainda assim urn conteudo maior, especi­fico e talvez mesmo essencial.

Lo Duca2 tern razao, pois, ao ver nesse fenomeno uma cons­tante do cinema: "Ha meio seculo 0 pano das telas porta em fi­ligrana urn motivo fundamental: 0 erotismo ... ". Mas 0 que inte­ressa saber e se a onipresen~a do erotismo, conquanto generali­zada, nao seria urn fenomeno acidental, resultado da livre concor­rencia capitalista entre a oferta e a procura. Em se tratando de atrair a clientela, os produtores teriam naturalmente recorrido ao tropismo 0 mais eficaz: 0 sexo. Em favor desse argumento se pode­ria aduzir 0 fato de que 0 cinema sovietico e de longe 0 menos ero­tico do mundo. 0 exemplo certamente mereceria reflexao, mas nao parece decisivo, pois antes de mais seria preciso examinar os fatores culturais, etnicos, religiosos e sociologicos que concorreram para esse caso e sobretudo indagar se 0 puritanismo dos filmes sovieticos nao seria urn fenomeno artificial e passageiro, muito mais fortuito que 0 inflacionismo capitalista. 0 recente 0 quadra­gesimo-primeiro abre-nos, desse ponto de vista, muitos horizontes.

Lo Duca parece ver a fonte do erotismo cinematogrMico no parentesco entre 0 espetaculo cinematogrMico e 0 sonho: "0 cinema esta proximo do sonho, cujas imagens acromaticas sao como as do filme, 0 que em parte explica a menor intensidade ero­tica do cinema em cores, que de algum modo escapa as regras do mundo onirico" .

Nao pretendo polemizar com 0 nosso amigo, a nao ser quanto ao pormenor. Nao sei de onde surgiu este solido preconceito segundo 0 qual jamais se sonha em cores! Nao po de ser que eu seja 0 unico a desfrutar desse privilegio! Cheguei alem do mais a verifica-Io a minha volta. Com efeito, existem sonhos em preto-e­branco e sonhos em cores tal como no cinema, segundo urn ou outro processo. Quando muito, concordarei com Lo Duca que a produ~ao cinematogrMica em cores ja ultrapassou ados sonhos em tecnicolor. Mas 0 que eu nao posso mesmo e segui-Io na sua incompreensivel deprecia~ao do erotismo colorido. Enfim, deixe­mos essas divergencias por conta das pequenas perversoes indivi­duais e nao nos detenhamos nelas. 0 essencial esta no onirismo do cinema ou, se se prefere, da imagem animada.

1

A MAR GEM DE "0 EROTISMO NO CINEMA" 227

Se a hip6tese for exata - e creio que ao menos em parte ela e -, a psicologia do espectador de cinema tenderia entao a se iden­tificar com a do individuo que sonha. Ora, sabemos muito bern que todo sonho e, em ultima analise, er6tico.

Mas tam bern sabemos que a censura que os rege e infinita­mente mais poderosa que todas as Anastacias do mundo. 0 supe­rego de cada urn de n6s e urn Mr. Hays que se ignora.3 Dai to do o extraordinario repertorio de simbolos gerais ou particulares encarregados de camuflar ao nosso pr6prio espirito os impossiveis enredos dos nossos sonhos.

De sorte que a analogia entre 0 sonho e 0 cinema deve, a meu ver, ser levada ainda mais longe. Ela nao reside mais naquilo que profundamente n6s desejamos ver na tela do que naquilo que nao se conseguiria mostrar nela. E por equivoco que se assimila a pal a­vra sonho a nao sei que liberdade anarquica da imagina~ao. De . fato, nada e mais predeterminado e censurado do que 0 sonho. E verdade, e os surrealistas estao certos em lembra-Io, que nao 0

e absolutamente pela razao. Tambem e verdade que 0 sonho s6 se define negativamente pela censura, quando a sua realidade posi­tiva consiste, pelo contrario, na irresistivel transgressao das proibi­~oes do superego. Tampouco me escapa a diferen~a de natureza entre a censura cinematografica, de essencia social e juridica, e a censura onirica; apenas coostato que a fun~ao da censura e essen­cial tanto ao sonho como ao cinema. Fun~ao, essa, dialeticamente constitutiva de ambos.

Confesso ser isso 0 que me parece carecer nao apenas a ana­lise preliminar de Lo Duca, mas sobretudo ao seu vasto conjunto de ilustra~oes, as quais constituem em todo caso uma documenta­~ao duplamente inestimavel.

Nao que 0 autor ignore tal papel excitante que podem desem­penhar as proibi~oes formais da censura, longe disso, mas e que ele parece ver nelas tao s6 0 pior dos males, quando, afinal de contas, 0 espirito que presidiu a sele~ao das ilustra~5es demonstra a tese inversa. Tratava-se de mostrar antes 0 que a censura suprime habitualmente dos filmes do que aquilo que ela deixa passar. Nao nego em absoluto 0 interesse, 0 charme sobretudo, desta documen­ta~ao, mas se 0 caso e Marilyn Monroe, por exemplo, acho que a imagem que se impos nao foi aquela do calendario, em que posa nua (ja que esse documento extracinematogrMico e anterior ao sucesso da vedete e nao poderia ser considerado uma extensao do seu sex appeal a tela), mas a famosa cena de 0 pecado mora ao lado, em que deixa a corrente de ar do metro levantar-Ihe a

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Marilyn Monroe c Tom E ..... ell em 0 pt'CQdo moro 0 0 lado: " Essa idt ia Icniai 56 poderia ter nascido no COnlCXIO de urn cinema dono de Lima lonp, rica c bizantina cultura da censura" . (raoo)(llil c-""·F .... )

saia. Essa ideia genial s6 poderia ler nascido no contexto de urn cinema dono de uma \onga, rica e bizantina cultura da censura. Tais achados supOem urn extraordinario refinamento da imagina­~iio, adquirido na luta contra a eSlupidez acabada de urn c6digo purilano. 0 fato e que Hollywood. apesar e por causa das proibi­cOes que ne1a vigoram, continua senda a capital do erOlismo cine­matografico.

Entretamo, nilo me obriguem a dizer que todo erolismo ver­dadeiro (eria. para aflorar na lela, que burlar urn c6digo oficial de censura. E mais do que cerlO que as vantagens obtidas com essa transgressao oculta podem ser muito inferiores aos danos sofridos. E que os tabus morais e sociais dos censores sao por demais estupidos e arbit rarios para canalizar conveniememente a imaginacAo. Beneficos na comedia ou no filme-bale, por exem­plo. eles constilUem urn empedlho estupido e incontornavel nos generos realistas.

Precisamente porque a unica censura decisiva da qual 0 cinema nAo pode se safar e aquela constituida pela pr6pria imagem, sendo

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A M ... RGEM DE " 0 EROTISMO NO CINEM ..... 229

em ultima anAlise em rela~o a ela e somente a ela que se haveria de tentar definir uma psicologia e uma estetica da censura er6tica .

Nao tenho certamente a ambicAo de es~r aqui sequer as suas linhas gerais. mas tAo.-somente propor uma serie de renexOes cujo encadeamento pode indicar uma das dir~Oes posslveis a serem exploradas.

Fa~o questAo, antes de mais nada, de restituir 0 essencial do merito que possam ter essas sugestOes a quem de direito, ja que elas procedem de uma observa~ao que me fez recentemente Domarchi4 e cuja pertinencia parece-me extraordinariamente fecunda.

Oomarchi, pois. que nao e tido por carola, dizia-me que as cenas de orgia no cinema sempre 0 irritavam, ou, mais generica­mente, tada cena er6tica incompativel com a impassibilidade dos atortS. Em outros termos, parecia-Ihe que as cenas er6ticas deviam ser interpretadas como as outras. e que a em~ao sexual concreta dos parceiros diante da c1mera contradizia as exigencias da arte. Essa imposi~o pode surpreender fa primeira vista, mas ela se apOia num argumento irrefutflvel e que nAo e em absolutQ de ordem moral. Se me mostram no. tela urn homem e uma mulher em tra­jes e posturas tais que seja inverossimil que no minimo as prim!­cias da consuma~o sexual nAo tenham acompanhado a acAo, tenho o direito de exigir, num filme policial, que se mate a vitima de ver­dade ou que pelo menos a firam com maior ou menor gravidade. Pois essa hip6tese nada tern de absurda, ja que nAo faz tanto tempo assim que 0 assassinato deixou de ser urn espetaculo. A exe­cu~ao na Place de Greve nAo era outra coisa, e para 05 rornanos os jogoS mortais do circo eram 0 equivalente de uma orgia. Lem­bro.-me de ter escrito certa vez, a prop6sito de uma celebre sequen­cia de cine-jornal em que se viam "espiOcs comunistas" sendo exe­cutados no meio da rua, em Xangai, por oficiais de Chang Kai­Chek, lembro-me, digo, de ler observado que a obscenidade da imagern era da mC5ma o rdem que a de urna fita pornogratica. Uma pornografia ontol6gica. A morte e aqui 0 equivalente nega­livo do gow sexual, que nAo e por menos qualificado de pequena morte (petite morle).

Pois 0 ttalrO nao lolera nada semelhante. Tudo 0 que no palco toea ao arnor fisico acaba ressaltando 0 paradoxo do comediante. Ninguem jamais se senliu excitado no Palais-Royal, nem no palco nem na plah~ia. E verdade que 0 strip-tease renova a questAo, mas ha de se convir que ele nao depende do tcaLro embora seja urn espe-

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taeulo, sendo essencial notar que nele e a propria mulher quem se despe. Nao poderia st-Ia por urn parceiro. sob pena de provo­car 0 dume de lodos as machos da sala. Na realidade, 0 strijrlease funda-se oa polarizaC;ao e oa excita~o do desejo dos espeaadores, cada qual possuindo virtualmente a muther que fmge se oferecer, mas se urn deles trepasse no palco, seria linchado. pois 0 seu desc:jo totraria em concorrencia e em oposi~o com as demais (3 nlo seT que descambe para a argia e 0 voyeurismo. que afinal se figam a mecanismos menta..is outros).

No cinema, pelo contIirio. a muther, mesmo nua, pode seT abordada por seu parceiro. expressamenle desejada e realmente acariciada. pais diferentemente do teatro - lugar concreto de urna representac;Ao fundada oa consciencia e na oposi~o -, 0 cinema desenrola-se num espaC;o imaginario Que demanda a parti­cipa~ao e a identifica~ao. Conquistando a mulher, 0 ator me satis­faz por procura~ao. Sua sedu~Io, sua beleza, sua audacia nao entram em concorr~ncia com os meus desejos, mas os realizam.

Mas, se nos Iimitarmos tlo somente a uma psicologia deste (ipo, 0 cinema idea1izaria 0 filme pornografico. E bastante evi­dente, pelo contrario, que se desejamos permanecer no plano da arle, devemos nos ater ao imaginario. Devo considerar 0 que se passa na tela como uma simples est6ria , uma evocar;Ao que jamais se passa no plano da rea1idade, a nao ser que me sujeite a trans fe­r~ncia cumplice de urn ato ou, pelo menos, de uma em~ao, cuja realiza~o exige 0 segredo.

o que significa que 0 cinema pode dizer tudo, mas nao de forma alguma IUdo mostrar. Nao hi siluaC;Oes sexuais, morais ou nlo, escandalosas ou banais, normais ou patol6gicas, cuja expres­sao na lela seja proibida Q priOri, com a condir;ao porem de se recorrer as possibilidades de abstrar;ao da Ijnguagem cinematogra­fica, de modo que a imagem jamais assuma valor documental.

Eis por que, e decididamente, bern pensando as coisas, £ Deus criou Q mulhe, ... parece-me, a despeito das qualidades que nele reconht(:o , um filme parcialmente detestavel.

Expus a minha tese desenvolvendo a observar;ao de Domarchi. Mas nao posso deixar de confessar agora 0 meu embarac;:o diante das obj~Oes que surgem. Sio muilas.

Primeiro, nlo posso esconder de mim mesmo que assim fazendo eu descarto sem mais boa parte do cinema sueco contemporAneo. Vale nOlar, entrelanto, que as obras-primas do erotismo raramente sao atingidas por esta crltica. 0 pr6prio Stroheim parece-me esca­par dela ... Sternberg tambem.

A MARGEM DE " 0 EROTISM O NO CINEMA" 211

Cyd Charissc e Gcoc Kdly em CllnlQndo nQ ch.,lIQ: " DirCfCDlemenle do IU· tro - lugar concreto de una rcprC$CDLI~O fundllla na c:olUCirncia e oa ~ -, 0 cinema dc5cnrola-IC num CI~ ima&inirio que ckmanda a partici~ e • Kicutir~" .

Mas 0 que me incomoda mais na bela 16gica do meu raciod­Dio e a consciencia dos seus Iimiles. Por que me deter nos atores e nlo questionar tambem 0 c:spectador? Se a transmutar;Ao este­tiea e perfeila, este ultimo deveria permanecer tao impassivel quanto os an~tas. 0 "Beijo", de Rodin, nao sugere qualquer pen­samento libidinoso, apesar do seu realismo.

Afinal, a distin~ao entre imagem liten\ria e imagem einemato­grafica nlo sera falaciosa? Atribuir a esta ultima urna c:sseneia diversa porque ela se realiza fotograficamente, implicaria rnuitas conseqiiencias esteticas que eu nlo tenciono endossar. Se 0 postu­la<,lo domarchiano e correto, ele tambem se aplica, com corr~Oes, ao romance. Domarchi deveria sentir-se incomodado toda vez que urn romancista descreve atos que ele nao chegaria a imaginar com a "ea~" lotalmente fria. Ser! assim a situar;ao do escritor tAo diferente daquela do cineasta e de seus alores? E que nessa mate­ria a separa~o entre ima&ina~o e ato e razoavelmente incerta,

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se nao arbitn'lria. Conceder ao romance 0 privilegio de tudo evo­car e recusar ao cinema, que the e tao proximo, 0 direito de tudo mostrar, e uma contradic;ao critica que eu constato sem ultrapas­sar ... E 0 que deixarei aos cuidados do lei tor .

NOTAS

1. Cahiers du Cinema, abril de 1957.

2. Lo Duca, L 'Erotisme au cinema (Jean-Jacques Pauvert, 1956).

3. Anastacia, aqui, personifica a censura, representada na figura de uma velha senhora com uma tesoura nas maos. Mr. Will Hays, figura celebre da industria de cinema norte-americana, que da nome ao protocolo de auto-censura de Holly­wood - 0 codigo Hays, vigente na pratica dos an as 20 aos anos 50. (N.E.)

4. Domarchi, Jean. Critico frances, colaborador dos Cahiers du Cinema (N .E.).

xx o REALISMO CINEMATOGRAFICO

E A ESCOLA ITALIANA DA LIBERA(:AOI

Foi comparada, com razao, a imporHincia historica do filme de Rossellini, Paisa, com a de varias obras-primas classicas do cinema. Georges Sadoul nao hesitou em evocar Nosjeratu, os Nibe­lungos ou Duro e maldiriio. Por meu lado, subscrevo inteiramente esse elogio, ainda que as referencias ao expressionismo alemao nao correspondam naturalmente senao a uma ordem de grandeza e nao a natureza profunda das esteticas em causa. Poderia ser evo­cado com mais justeza 0 aparecimento de D encourarado Potem­kin, em 1925. Repetidas vezes se op6s, alias, 0 realismo dos fil- . roes italianos atuais ao esteticismo da prodw;ao americana e par­cialmente da francesa. Nao foi, em principio, pela vontade de rea­lismo que os filmes russos de Eisenstein, de Pudovkin ou de Dov­jenko tornaram-se revolucionarios em arte como em politica, opondo-se a urn so tempo ao esteticismo expressionista alemao e a insossa idolatria da vedete hollywoodiana? Como 0 Potemkin, Paisa, Vitimas da tormenta, Roma cidade aberta realizam uma nova fase da,ia tradicional oposi@~dQ re~i~I!!()_ e do esteticismo naJela. A historia, porem, nao se repete; 0 que importa ressaltar e a forma particular que esse conflito estetico tomou hoje, as novas soluc;oes as quais 0 realismo italiano deve, em 1947, sua vitoria.

Os precursores

Diante da originalidade da produc;ao italiana e no entusiasmo da surpresa, talvez tenhamos negligenciado aprofundar as caus~ ge tal renascirnento, preferindo ver nele alguma gerac;ao esponta­nea procedente, como urn enxame de abelhas, dos cadaveres podres do fascismo e da guerra. Nao ha~~~!d~_que ~Liberacao

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7 )., , ..

ANDR£ BAliN

e as rarmas sociajs, morais e econOmicas Que ela lornoll aa 1t:\1j""

dcsemoenharam urn papel determjnaotc na pro(hJ~llo ci nem alogr 3_

fica. Teremos ocasilla de retamar esse ponlO, Mas somente a igno­iTri"cia em que nos enCODlramos do cinema italiano pode nos dar a atraente i1usllo do milagre Que nllo fora preparado,

E bern passlvel Que a halia seja hoje 0 pais onde a inteligen­cia cinematografica e a mals aguda, se julgarmos pela impartllncia e pela qualidade da ediC;llo cinematografica, 0 Centro Experimen­tal do Cinema de Roma precedeu de varios aoos 0 nosso Inst itut des Hautes Eludes Cinemalographiques; sobretudo, as especula­COes intelectuais nao deixam. como aQui, de ter efeito sabre a rea­lizaC;ao , A separac;llo radical entre a crltica e a mise-en-scene ja nao existe no cinema italiano, como nllo existe aQui em Iileratura,

Alias, 0 fasdsmo que. difcrentemente do nazismo, deixou sub­sislif-wn.....cer~pILlralismo artistica . se interessQu especia lmen te velo dnemJL Podemos fazer lodas as restriCOes que quisermos :oobre as relac;Oes do Festival de Veneza com os interesses publicos do Ouce, mas nao poderiamos CODleSlar que a ideia do Festival Internadona1 tenha aberto. desde entllo, seu caminho e hoje pode­mos medir seu prestigio vendo qualro ou dnco naCOes da Europa tentarem anexar seus restos, Q capitalismo e 0 dirigismo fascistas equiparam pelo menos a Italia co .. rn Se eles "'" pr ullram 1 mes meptos, melodramaticos e munificentes~ nllo im iram, cODludo, a1guns homens inteligeotes (e bastante h3beis para filmar [~i[Q~ de atualidade sem se subordinar ao regime), de realizarem obra.s de valor que prefiguram suas obras aluai$. -Se nllo tivessemos, durante a guerra, e por razOes 6bvias, tomad"o panido, filmes como S.O,S, 103 ou Lo nove bianco, de Rossellini, teriam chamado urn pouco mais nossa alenc;Ao, Alias. ate mesmo Quando a tolice capitalista ou politiQueira Jimitam ao maximo a produc;lIo comercial, a imeligencia, a cultura e a pesquisa experi­mental refugiam-se na edi~a.o, nos congressos de cinemateca e na realizaCao de cunas-metragens. Latluada, direlor de 0 bondido, entlo diretor da cinemateca de Milil.o, quase foi preso por ter ousado apresentar a versllo integral de A grande i/IIS/JO. em 1941.2

A hist6ria do . ema ita ' m disso mal conhecida. Limilamo-nos a bin e a uo Vadis achando na recente e

on\veJ Coroo de erro uma c ac;a.o suficiente da pereni-dade das pretensas caracteristicas nacionais do filme transalpino:

A ESCOLA ITALIAN ... DA llBERA<:AO m

(''oroo deJnTtI (1940), de Alessandro BllIK1li: "Oosto e mau JOSIo do cent, rio, idolatria da vedt'te. fnflse pueril da interprC"ll~, hipertronl da m~n~flt. inllU5lo do lpardho traditional do bel canto e da 6pera, rotdros convcm::ionais Innucl1dados pelo drama, 0 melodlllmi romlntic:o t a C8n~o de lesta para no,·el," .

o eram seguramente as primeiras a screm expanadas, ",~~:~:~.orno entanto. outro veio artistico praticamente reservado ao IT naciona1, Hoje, quando a carga dos elefantes de Cipillo nllo passa de urn rufar ao longe, ~taU1m pouca melhor o ruldo ~reto, mas deliciosa, QU~ monadaz..'

o lenor, ao menos aquele que VIU 0 ultimo fUme, ficars. prova­velmente llio surpreso quanto n6s mesmos quando sauber que essa comedia, de uma scnsibilidade sUlil. cbeia de poesia e cujo rea1ismo socia1 sem ser pesado se aproxima diretamente do cinema italiano recente, foi rea1izada em 1942, dois anos depais da famosa Coroo de ferro e peJo mesmo diretor: Bisseui, a quem devemos

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236 ANDR£ BAZIN

igualmente. mais ou menos da ffiesffia reiro. e, bern recentemente, Urn dia no

o autor do

Romlinlico ovenlu-

Urn produziu chi! cuja

a~a.o se passa. como a de Ramo cidode aberlQ, nas ruas da capital, e Pequeno mundo ontigo nlio era menos lipicamentc italiano.

Nao hat aliAs. tantos nomes novos assim na mise~n-sdne ita­liana atua!. Os mais jovens, como Rossellini, com~rarn a filmar no inicio da guerra. Os antigos, como Blasetti ou Mario Soldali , ja Cfam conheddos desde as primei ros anos do cinema falado.

De excesso em excesso, parern, nlio se deveria conduir dal que a "goya" escola italiana nao existe . A tendencia realista, 0

intimismo sallrieo e social. 0 yerismo senslyei e poetica, na.o foram ate 0 inlcio da uerra senao ualidad menore od v' I -las ao de sequ6ias da m;se-en-sc~ne . Parece que, entretanto, desde 0 initio da guerra, essa noresta de papel30 com~ava a c1a­rear. J;\ em Coroa de ferro 0 genera parece parodiar a si mesmo. Rossellini . Latt uada. Blasetti ja se esfor~am em dir~30 a urn rea- C] lismo de c1asse imernacional. a dar I

A Libera~iio. ruplun e renascimenlo

i ses, para nao

elementos da jovem escola italiana i ...

france-

;;l~~~~:;"n~-tempo, ela nao era, no i seguinte A Lilbera,,'o, mais que uma hist6ria. Com a partida dos alernAes, a vida retom~avaJ:la !li­lja, ao coptrada a I jbera~o nao significou volta a uma Iibq-

ad 'or bern r6xima. mas revolu Ao litica ocu aJiada desor aniz.a 10 econ6rnica e social. Enfim a Libera~ao

A ESCOLA ITAL IANA DA LlBERAC;AO

" Hojt. quando a carla dos tltfanlts dt Cipilo nlo paUl. de um rufar 1.0 lon&t. podemos ~ular um pouco mtlhor 0 ruldo secrtto, mal ddki050, que 0 rorllf4O mandu (Alessandro Blascui, 1942) fn,"

2J7

(

eu lentamente. ao longo de meses imerminaveis. Ela a[etou profundamente a VI a eton mtca, SQCla e moral do Dais lk. manejra que na halia, Resistfncia e Liberaclo _nAo sao de modo llIium, camp a [e'ioha de Pari e5pecic£. de pa1a yra5 bjsI6ejca,s, Rossellini ftlmou Paisa numa epoca ern que 0 rOleiro ainda era aluat QJ!.p"!!ido mouea rna a rostitui 110 e 0 mercado negro ~ desenvolveram na retaguarda dp t:<crcitQ,. como a deceJ)5 a e=

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238 ANDRE BAZIN

~.desemprego conduzem urn prisioneiro libertado ao gangsterismo. Com exceCao de alguns filmes que sao incontestavelmente de "Re- . sistencia", como V[vere in pace ou II sole sorge ancora, 0 cinema italiano caracteriza-se sobretudo por sua adesao it atuaJidade. A critica francesa nao deixou de ressaltar, para 0 felicitar ou censu­rar por isso, mas sempre com urn espanto solene, as poucas alu­soes precisas ao pas-guerra, com as quais Carne quis marcar seu ultimo filme. Se 0 diretor e 0 roteirista se empenharam tanto para fazer com que 0 compreendessemos, foi porque 19 em cada 20 fil­mes franceses nao podem se situar nos ultimos dez anos . .Ao-cilll­~raEioL atLIl!\!s!lliL.QUandQ 0 essencial cl2-rot~iriLe..indep~!lcl~llJe .. da atualidade, as fillll~~jt~~ianQ.s2.a.~antesde tudo, rePQrtagens reconstituidas. A acao naQ pode.ria. se desenrolar num contexto s~ qll~I9.'l..t:rL llistoricament~_nel.ltro~. quas.e. abst.r<!tQ..CQ!llQ""-.Q~ cemirios de tragectia, tais como sao no mais das vezes, er graus diversos, os do cinema americano, frances ou ingles .•

A sonseqiienciae'l!1e os filmes italianos apresentam urn valor documelltariQexcepcillnal..: que e impossive! separar seu roteiro sem levar com ele todo 0 terre no social no qual ele se enraizou.

~sa perfeita e natural ad~!:.~nsiaju!.t.lmlidacle ~e explica e se justifica, interlQrm~,!!.ep()r_.uma ades~o ..espiritllaLa.epoca. Ablsto­ria italiana recente e senulUYiill!irreversiv~1. A guerra nao e ressen­tida al1 como urn parenteses, mas como uma conclusao: 0 fim de uma ep()ca. Em certo sentido a Italia so tern tres anos. Porem, a mesma causa podia produzir outros efeitos. 0 que nao deixa de ser admiravel, e de assegurar para 0 cinema italiano uma audiencia moral bern ampla nas nacoes ocidentais, e 0 sentido que a pintura da atualidade ganha ali. E, ainda, em urn mundo ja obcecado pelo terror e pelo odio, onde a realidade quase nunca e amada por ela mesma, mas apenas recusada e defendida como urn sinal politico, o cinema italhlUo e certamente 0 unico que salva, no proprio seio da epoca que ele pinta, urn humani.s!!lQJevolucionario.

Arnor e recusa do real

Os filmes itali~nosLecruLes...Sful ~elo menos pre-revoluciona­rios: todos recusam, implicita ou explicitamente, pelo humQr, pela sMira ou pela poesia, a realidade social da qual se servem, mas s~..ate_nas. tomadas de posiCao mais claras, nunca tratar tal ~ade c2l!l0 urn meio. Condena-Ia nao obriga it rna fe, Ele.s ~Cjuecem que, antes de ser condemivel, 0 mundoe. simples­~e:Jsso e bobagem e talvez seja tambem tao ingenuo quanto

A ESCOLA ITALIANA DA LIBERM;Ao 239

o elogio que Beaumarchais fazia das lagrimas do melodrama, mas digam-me se, saindo de urn filme italiano, voces nao se sentem melhor, se voces nao tern vontade de mudar a ordem das coisas e de preferencia persuadindo os homens, pelo menos aqueles qu~ podem ser persuadidos e que somente a cegueira, 0 preconceito ou a rna sorte conduziram a maltratar seus semelhantes.

Por isso os roteiros de muitos filmes italianos, quando lemos seus resumos, nao resistem ao ridiculo. Reduzidos it intriga, eles nao passam, no mais das vezes, de melodramas moralizantes. No fiirne, porem, .9~~r.sonagens exist em com uma verdade perturba­dora. Nenhum fica reduzidoao es}~({o~ae-coisa-ou d~simbolo, 0

que permitiria odia-Ios confortavelmente, sem ter que ultrapassar, de antemao, 0 equivoco da humanidade deles.

Eu veria tranqiiilamente no hllJIl.anismo dos filmes italianos atuais seu principal merito quanto ao fundo. 3

Eles nos permitem saborear, quando talvez ja nao seja mais tempo para isso, urn certo t~clucionariQ do qual 0 terror ai!1da jJa_r~f~ exduido.. - ._- - - - -

o amalgarna dos interpretes

o que a principio tocou naturalmente 0 publico foi a excelen­cia dos interpretes. Com Roma cidade aberta, 0 cinema mundial enriqueceu-se com uma atriz de primeira ordem. Anna Magnani, a inesquecivel moca gravida. Fabrizzi, 0 padre, Pagliero, 0 resis­tente, e outros nao tern dificuldades em igualar em nossa memoria as criacoes mais emocionantes do cinema. As reportagens e as informacoes da grande imprensa dedicaram-se, naturalmente, a anos dizer que Vitimas da tormenta tinha sido realizado com auten­ticos meninos de rua, que Rossellini filmava com uma figuraCao ocasional escolhida nos proprios lugares da aCao, que a heroina na primeira historia de Paisa era uma menina analfabeta encon­trada no cais. Quanto a Anna Magnani, era, sem duvida, uma pro­fissional, mas que vinha do caje-concert; e Maria Michi era ape­nas uma lanterninha de cinema.

Se esses recrutamentos dos interpretes opoem-se aos habitos -do cinema, nao constitui, entretanto, urn metoda novo. Ao contra­rio, sua constancia em todas as formas "realistas" do cinema desde, pode-se dizer, Louis Lumiere, permite ver nela uma lei pro­priamente cinematogrMica que a escola italiana apenas confirma e permite formular com seguranc~. Foi admirado tambem, outrora no cinema russo, sua decisao de recorrer a atores nao-profissio~

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240 ANDRic HAZIN

nais que faziam com que desempenhassem na tela 0 papel se sua vida cotidiana. Na realidade, foi criada em torno do cinema russo uma lenda. A influencia do teatro foi bern grande sobre certas esco­las sovieticas e, se os primeiros filmes de Eisenstein nao tern ato­res, uma obra tao realista como No caminho da vida foi represen­tada por profissionais do teatro e, des de entao, a interpretac;ao dos filmes sovieticos tornou-se novamente profissional como em todos os outros lugares. N~.nhl.lma . .grande e~c_ola cinematografica eIlJrJ!_J925 .e_.o .J.:inema italianoatual. nao reiv;ndi~ara ~-al.isen~ia de atores, mas <:Ie vez em quando urn filme fora de serie lembrara seu interesse. Sera precisamente sempre uma obra proxima da reportagem social. Citemos duas delas: Sierra de Terruel e A ultima porta. Em torno delas tambem foi criada uma lenda. Os herois do filme de Malraux nao sao todos atores ocasionais provisoria­mente encarregados de desempenhar 0 personagem de sua vida cotidiana. E 0 caso para muitos deles, mas nao para os principais. o campones, em particular, era urn ator c6mico bern conhecido em Madri. Quanto a A ultima porta, se os soldados aliados sao autenticos aviadores que cairam no ceu suic;o, a mulher judia, por exemplo, e uma atriz de teatro. Seria preciso se referir a filmes como Tabu para nao encontrar nenhum ator profissional, mas trata-se ali, como nos filmes infantis, de urn genero bern particu­lar, em que 0 ator profissional e quase inconcebivel. Mais recente­mente, Rouquier, em Farrebique, se esforc;ou para desempenhar o papel a fundo. Mesmo ressaltando seu exito, notemos que ele e quase unico e que os problemas do filme campones nao sao, quanto a interpretac;ao, tao diferentes do filme exotico. Mais que urn exem­plo a ser imitado, Farrebique e urn caso limite que nao enfraquece em nada a regra a que chamarei: lei do amalgama. Nau..e- a allShl= cia de atores profissionais.-QJ.J..e.PQ.~te~aracterizar historicamente 0

~o ~ocia'-rl()cillema. Lampouco ;-esc()iiliialiana atual, mais Q!..ecisaJllen(e, porem, a negaC;ao do principio da vedete e a utili~a­s:aQ in<:\iferente de atores profissionais e atores ocasionais. 0 que importa e nao colocar 0 profissional em seu lugar habitual: a rei a­C;ao que ele entretem com seu personagem nao deve ser sobrecarre· gada 0 para publico com nenhuma ideia a priori. E significativo que 0 campones de Sierra de Terruel tenha sido urn c6mico de tea· tro, Anna Magnani uma cantora realist a e Fabrizzi urn palhac;o de vaudeville. A-.-E!:2fi~~LnaO e apenas uma contra-indicaC;ao, ao contnirio; mas ela se redl1.Za umaagilid~_cie_ util que ajuda 0

atQL<lo~~decer as exigencias da mise-en-scene e apenetlirJJlelh~L em seu personagem. Os nao-profissionais'>ao nat uralmcnt~ csco-

A ESCOLA IT ALIANA DA LIBERA('A.O 241

Ihidos por sua adequaC;ao ao papel que devem desempenhar: con­·formidade fisica ou biografica. Quando 0 amalgama tern exito - a experiencia mostra, porem, que isso so pode acontecer se cer­tas condic;oes, de certo modo "morais", do roteiro forem reuni­das - obtemos, precisamente, essa extraordinaria impressao de verdade dos filmes italianos atuais. Parece que a adesao comum deles aJlmI.otcirQ •. Qu~ ~~IlteIJlJ)rofll!1:dameQ!e,~.e -que exig-e dites o minima de mentira dramatica. s.eia~ origem de uma~e.~~ie_Q,e. osmose entre os interpretes....AJngenuid~de tecnica de alguns se 1;>enefi~!~_<!<l_~12eriencia PI.oJ!ssio!H\Ldos~~S:J1JJllantQeSies­aproveitam a autenticidade..geral.

Se, porem, urn metoda tao proveitoso para a arte cinematogra­fica so foi empregado esporadicamente, foi porque ele continha em si mesmo, infelizmente, seu principio de destruiC;ao. 0 equili­brio quimico do amalgama e necessariamente instavel, ele evolui fatalmente ate reconstituir 0 dilema estetico que havia provisoria­mente resolvido: sujeic;ao da vedetes e documentario sem ator. Tal desintegraC;ao pode ser apreendida com mais c1areza e rapidez nos filmes infantis ou de indigenas: a pequena Rari, de Tabu, aca­bou, parece, prostituta na Pol6nia, e sabemos 0 que acontece com as crianc;as que logo apos 0 primeiro filme sao consagradas vedete. No melhor dos casos elas se tornam jovens atores prodigio, mas isso e uma outra coisa. Na medida em que a inexperiencia e a inge­nuidade sao fatores indispensaveis, e evidente que nao resistem ao uso. Nao podemos imaginar a "familia Farrebique" em meia-duzia de filmes e finalmente contratadas por Hollywood. Quanto aos ato­res profissionais, que no entanto nao sao vedetes, 0 processo de destruiC;ao e urn pouco diferente. E 0 publico que 0 provoca. Se a vedete consagrada transporta consigo seu personagem, 0 sucesso de urn filme pode tambem confirmar 0 ator no papel que ele desempenha. Os produtores ficam bern felizes em reeditar urn pri­meiro sucesso adiantando-se ao gosto bern conhecido do publico de reencontrar seus at ores prediletos em func;oes habituais. E mesmo se 0 ator e bern ajuizado para evitar se deixar aprisionar num papel, resta que seu rosto, certas constancias de sua interpretac;ao, tor­nando-se familiares, impedirao a fixaC;ao do amalgama com inter­pretes nao-profissionais.

Esteticismo, realismo e realidade

Atualidad~ do roteiro, verdade do ator sao, entretanto, ape­nas a materia-prima da estetica do fiIme italiaftfr.

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'" ANDRt:: BAZ1N

Ramo c/dade obertC/, de Roberto Rosselini: "Alualidade do rOleiro. verdade do alor ~o entretanto, apenas a mat4!ria-prima da esH~lica do filme italiano",

ne"mos ~:~ d: ~~,~o em" Q refinamento est~'i'o ~ sei gue ;;rn;7;.qtlecl'idll'i;limediata...de-um realjsmo Q e iC ~ntentaf.ia-em-mostraNt-featidade.--Nao sera. a meu ve,r, Q mcng[ merito do cinema italiano ler Ie do uma vez malS ue nao ha.ria "realismo" em artc Que nilg Cosse em principio profunda· mente "estetico" L 13 pressentiamos, mas nos teOS do processo de bruxaria que alguns fazem hoje aos anistas suspeitos de urn pacto com 0 demonic da arte pela artc, tinhamos tendencia para esquece· 10. Tanto 0 real como 0 imaginario pertencem, em artc, apenas ao artista, a carne e 0 sangue da realidade OlIo sao mais faceis de cairem nas malhas da literatura Oll do cinema do que as fantasias mais gratuitas da imaginaltAo. Em outras palavras, quando a inven-10110 e a complexidade das formas nllo recaem sobre 0 pr6prio eon­teudo da obra, elas nllo deixam por isso de se exereer sobre a efica­cia dos meios. Foi por te-Io esquecido urn poueo demais que 0 cinema sovietieo passou 20 anos do primeiro para 0 ultimo lugar das grandes produltOes nacionais. Se 0 Potemkin pOde subverter o cinema, nllo roi apenas por causa de sua mensagem politica,

A ESCOLA ITALIANA DA Ll8ERA<;AO '" tampoueo por ter substituldo 0 staff dos estudios peios eenarios reais e a estrela pela multidllo anonima. mas porque Eisenstein era o maior te6rico da montagem de seu tempo, porque ele uabalhava com Tisse, 0 melhor operador do mundo, porque a Russia era 0 centro do pensamento cinematografieo, em uma palavra, porQue 9S filmes "realistas" que ela produzja contjnham mais cicncia ests-, tica que os cenarios, as i1umina<;Oes e a interpretacllo das obras mais artifieiais do express-iomsmo ale.ID.ao... -

E 0 que aeomece hoje com 0 cinema italiano. Seu realismo [lilo traz consigo. de modo algum. uma regressAo estetica. e sim, ao comrado. urn progresso da eXQressa.o. uma evolucAo conguista­r;Wra..da..linguasem dnematografiea. uma eXlell~O-de.&"a es'ilistica.

Em primeiro lugar, e preciso ver onde fica 0 cinema hoje em relaltao a isso. Desde 0 fim da heresia expressionista e prinei­palmente des.d.e 0 cinema fa1adG, podemos considerar que 0 cinema tendeu cO~linuamente para 0 realismo. E,pJ.endamos grosso modo que I

isso, 0 cinema poesia, a pintura, ao teatro para se aproximar cada vez mais do romance. Nao me propanho aqui a juslificar pelas eausas tecnicas, psicol6gicas, economicas. esse projeto estetico fundamental do cinema moderno. Que me desculpem se 0 afirmo desta vez como urn fato consumado, scm antes julgar a questllo intrinseca dessa evoluCao e tampoueo seu carater definitivo. Mas 0 realismo em arte s6 pnderia evidente­!!lente .Q!....oceder de a[tincios. Toda estetica escolhe forltosamente entre 0 que vale ser salvo, perdido e recusado, mas quando se pro­pOe essencialmente, como faz a cinema, a criar a ilU5JO do real, tal escolha constitui sua contradi<;llo fundamen(al, a urn 56 tem'po inaeeitavel e necessaria. Necessaria. ja que a arte s6 existe atraves dessa eseolha. Scm ela, supondo que 0 cinema total fosse desde hoje tecnieamente passivei, retornarlamos pura e simplesmente a

"""'"""- realidade. Inaceitavel. ja que ela se faz em definitivo as custas dessa realidade que 0 cinema se prop()e a restiluir integralmentc=. Por isso seria vllo rebelar·se cont ra qualquer progresso tecnico novo qU; tivesse par objeto aumentar 0 rc=aljsmo do cinema: som, cor. relevo. e fato " ..ax:le:' cinematQ£f..afica SC= nlllTe COIll-.e55a ~ntradi~o, ela uhliza 0 melhor QO.ssiv~p;os.si.bilidades de..a~ Ira<;lo e de s[m60lo que os limites te.nmorais da tela~c:rece.m.. ~

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244 ANDRE BAZIN

Pone~m-1- ~Llltilizacao~QJ~siduo~e ~Qnven~es abandon ado pela tecJ1i~de.serieitaa_s~r}'j~ g~_ a~ ~ust~s clOJ~~U~IDo.el<!Qllik a~ntar ou-neutralizar a eficacia dos elementQ~uierealidade cap­~urados pel a camera,--Podemos classificar, se nao hierarquizar, os estiiosClnematognificos em fun9ao do ganho de realidade ,que eles representam. Chamaremos, portanto, @!J§!p todo sistema de expressao, todo Qrocedimento de relata pr9Q~mo afazeLapar!!Cer mais realidade na tela. ~alidade' -, n~o deve ser naturalmente eiifendIda qua~tit~ti~amente. Um mesmo acontecimento, um mesmo objeto e passivel de varias representa90es diferentes. Cada uma delas abandona e salva algumas das qualidades que fazem com que reconhe9amos 0 objeto na tela, cada uma delas introduz com fins did<iticos ou esteticos abstra90es mais ou menos corrosivas que nao deixam subsistir tudo do original. Ao cabo dessa quimica inevitavel e necessaria, a realidade inicial foi substituida por uma ilusao de realidade feitade um complexo de abstra9ao (0 preto-e­branco, a superficie plana), de conven90es (as leis da montagem, por exemplo) e de realidade autentica. E uma ilusao I1~~saria, mas ela uazronsigo rapidamente a perda de consciencia da pr6-pria realidade, que se identificanimente do esi)ectador~ com -sua representa9ao cinematografica. Quanto ao cineasta, a partir do momento em que obteve tal cumplicidade inconsciente do publico, sua tenta9ao de negligenciar cada vez mais a realidade e grande. a habito e a pregui9a ajudando, ele mesmo chega a nao mais dis­tinguir claramente onde come9am e onde terminam suas mentiras. Nao teria cabimento acusa-Io de mentir, ja que a mentira consti­tui sua arte, mas apenas de nao mais domina-la, de ser sua pr6-pria vitima e de impedir qualquer conquista nova sobre a realidade.

De Cidadiio Kane a Farrebique

as ultimos anos fizeram evoluir enormemente a estetica do cinema em dire9ao ao realismo. Desseponto _de vista. os-.dois-.even­tos que marcam incontestavelmente--a hist6ria.dn~!Lema desde 124!lsae.: Cidadiio Kane e Paisa. Ambos fazemcom que 0 realjsmQ tenha um progresso decisivo, mas por vias bem diferentes. Se evoco 0 filme de Orson Welles antes de analisar a estilistica dos filmes italianos, e porque ele permitira situar melhor 0 sentido desta. QrsQ~~!les r~tituiu a ilusao cinematografica uma quali~ dade ftmdamental do real: sua continuidade. A decupagem clas­sica, decorrente de Griffith, decompunha a realidade em pianos

A ESCOIA ITALIANA DA L1flERA(,'AO 245

sucessivos, que nao eram senao uma sequencia de pontos de vista, 16gicos ou subjetivos, sobre 0 acontecimento. Um personagem, trancado num quarto, espera que seu carrasco venha a seu encon­tro. Ele fixa angustiadamente a porta. No momento em que 0 car­rasco vai entrar, 0 diretor nao deixara de fazer urn primeiro plano da ma9aneta da porta girando lentamente; esse primeiro plano e psicologicamente justificado pela extrema aten<;ao da vitima ao sinal de sua afli<;ao. E a sequencia de pianos, analise convencio­nal de uma realidade continua, que constitui propriamente a lin­guagem cinematografica.

A decupagem introduz, portanto, uma abstra<;ao evidente na realidade. Como estamos perfeitamente acostumados a isso, a abs­tra<;ao ja nao e sentida como tal. Toda reyojtlc;iliLintrQQuzida por Orson Wen~Sp_~r!~~~,!_ utilizacao.sist..ematica de uma profundi~ dade de campo inusitada. Enquanto a objetiva da camera classica focaliza sucessivamente diferentes lugares da cena, a de Orson Welles abrange com a me sma clareza todo 0 campo visual que se acha ao mesmo tempo no campo dramatico. Nao e mais a decupa­gem que escolhe para nos a coisa que deve ser vista, Ihe conferindo com isso uma significariio a priori, e a mente do espectador que se ve obrigada a discernir, no espa<;o do paralelepipedo de reali­dade continua que tem a tela como se<;ao, 0 espectro dramatico particular da cena. E, portanto, a utiliza<;ao inteligente de um pro­gresso preciso que Cidadiio Kane deve seu realismo. Gra<;as a pro­fundidade do campo da objetiva, Orson Welles restituiu a reali­dade sua continuidade sensivel.

Podemos ver com que elementos da realidade 0 cinema se enriqueceu, mas, de outros pontos de vista, e evidente que ele se afastou da realidade, ou, pelo menos nao se aproximou mais dela do que a estetica classica. Proibindo-se, pela complexidade de sua tecnica, de recorrer em particular a realidade bruta - ao cenario natural, a filmagem externa,4 a ilumina<;ao solar, a interpreta<;ao nao profissional -, Orson Welles renuncia ao mesmo tempo as qualidades absolutamente inimitaveis do documento autentico e que, tambem fazendo parte da realidade, podem, elas tambem, fundar urn "realismo". Se quisermos, do lado oposto de Cidadiio Kane situariamos Farrebique em que a vontade sistematica de so utilizar uma materia-prima natural conduziu Rouquier a perder terreno precisamente no dominio da perfei<;ao tecnica.

Assim, a mais realista de todas as artes partilha, contudo, a sina comum. Ela nao pode apreender a realidade inteira, ela lhe escapa necessariamente por algum lado. Urn progresso -tecnico

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246 ANDRE BAZIN

pode, sem duvida, quando seu emprego e born, apertar as malhas da rede, mas e sempre preciso escolher mais ou menos entre esta ou aquela realidade. Isso acontece urn pouco com a camera, como com a sensibilidade da retina. Nao sao as mesmas terminac;oes ner­vosas que registram a cor e a intensidade luminosa, a densidade de uma estando comumente em func;ao inversa a das outras; os animais que distinguem perfeitamente, a noite, a forma de sua presa, sao apenas quase cegos a cor.

Entre os realismos opostos, mas igualmente puros, de Farrebi­que e de Cidadiio Kane, numerosas alianc;as sao possiveis. Alias, a margem de perda do real implicada em qualquer tOQ}ada deJ1Q.si" C;ao "realista" perm lie muiias vezes ao artistimuitiplica~elas convenC;6es esteticas que ele pode introduzir no lugar--q-lll!-l'icou vago, a eficacia da realidade escolhida. Temos precisamente _urn exemplo notavel disso com 0 cinema italiano recente. Por falta de equipamento tecnico, os diretores foram obrigados a gravar posterior mente 0 som e 0 di<ilogo: perda de realismo. Lines, porem, para brincar com a camera sem relac;ao com 0 microfone, eles aproveitaram para estender seu campo de ac;ao e sua mobili­dade, de onde veio 0 acrescimo imediato do coeficiente de realidade.

Os aperfeic;oamentos tecnicos que permitirao con qui star outras propriedades do real: cor e relevo, por exemplo, nao poderao, alias, senao aumentar 0 afastamento dos dois palos realistas que se situam muito bern, hoje, em torno de Farrebique e de Cidadiio Kane. As qualidades das filmagens em estudio serao, com efeito, cada vez mais tributarias de urn aparelho complexo, delicado e atravancador. Sera sempre preciso sacrificar alguma coisa da reali­dade a realidade.

Paisa

Como situar 0 filme italiano no espectro do realismo? Depois de ter tentado delimitar a geografia desse cinema tao penetrante na descric;ao social, tao minucioso e tao perspicaz na escolha do detalhe verdadeiro e significative>; resta-nos ainda compreender sua geologia estetica.

_Seria obviamente ilusorio pretender reduzir toda a produc;ao italiana recente a alguns tra'{os comuns -bemcaracterisiTcoselndi-

. JeJentemente aplif~v~!i~~toc!()s .o.sdiretores. Tentaremos apenas destacar as caracteristicas mais geralmente aplicaveis, reservando­nos porem, em ultimo caso, a restringir nossa ambic;ao as obras mais significativas. Ja que precisaremos tambem fazer uma esco-

A ESCOLA ITALIANA DA LIBERA<;:Ao 24,

lha, digamos logo que disporemos implicitamente os principais fil­mes italianos em circulo concentrico de interesse decrescente em torno de Paisa, pois e 0 filme de Rossellini que encerra mais segre­dos esteticos.

A tecnica do relato

Como no romance, e principalmente a partir da tecnica do relata que a estetica Impiicita da obra cinematografica po de se reve.­lar. 0 filme sempre se apresenta como uma sucessao de fragmen­tos de realidade na imagem, num plano ret angular de proPOJCoes dadas, a ordem e a durac;ao de visao determinando 0 "sentido". o objetivismo do romance moderno, reduzindo ao minima 0

aspecto propriamente gramatical da estilistica,5 revelou a essencia mais secreta do estilo. Certas qualidades da lingua de Faulkner, de Hemingway ou de Malraux nao poderiam com certeza entrar numa traduc;ao, porem, 0 essencial do estilo deles nada sofre com isso, pois neles "0 estilo" se identifica quase que totalmente com a tecnica do relato. Ele nao e senao a colocac;ao no tempo de frag­mentos de realidade. 0 estilo torna-se a dinamica interna do relato, e urn pouco como a energia a materia ou, se quisermos, como a fisica especifica da obra; e ele quem dispoe uma realidade retalhada sobre 0 espectro estetico do relato, quem polariza a limalha dos fatos sem modificar a composiC;ao quimica deles. Urn Faulkner, urn Malraux, urn Dos Passos tern seu universe pessoal que se define evidentemente pel a natureza dos fatos relatados, mas tam­bern pel a lei de gravitac;ao que os mantem suspensos fora do caos. Sera, portanto, propicio definir 0 estilo italiaI}Q.a..}2artir do roteiro,

-----------~-.- -~- .. ----.---~ ~S sua genese e das formas de expo~o que ele <:letermina.

A visao de alguns filmes italianos bastaria, se nao tivessemos alem disso 0 testemunho de seus autores, para nos convencer da parte que cabe a improvisac;ao. Sobretudo des de 0 cinema falado, ~~e urn trabalho cornplexo demais, poe em jogo muito dinheiro para admitir a menor hesitac;ao 110rneio do caminho. Pode-se dizer que no primeiro dia de filmagem 0 filme ja esta vir­tualmente realizado na decupagem que preve tudo. As condic;Oes materiais da realizaC;ao na Italia, logo apos a Uber~ao, a natu­reza dos temas tratados e provavelmente alguma genialidade etnica liberaram os diretores dessas sujeic;oes. Rossellini partiu com sua camera, pelicula e esboc;os de roteiros que modificou a bel-prazer de sua inspirac;ao, meios materiais ou humanos, natureza, paisa­gens ... Era assim que Feuillade procedia em busca nas ruas de

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Paris de uma sequencia para Os vampiros ou para Fantomas, na qual ele nao ficava menos preso do que os espectadores que foram deixados ofegantes de inquieta<,:ao na semana precedente. C~Lta~ mente a mar gem de imprmrisa¢o pO~-..SeLmaior ou ~e.nor: l{_edu­zida no rmlis das vezes ao detalhe, ela e suficiente, contudo, p_ara dar ao relato urn andamentoe umtom bern dif~ren(es_sl-.aquele que conhecemosco-mumente na tela. E claro que 0 roteiro de 0 corariio manda e tao bern tra<,:ado quanto 0 de uma comedia ame­ricana, mas eu apostaria de born grado que urn ter<,:o dos pianos na~ estava rigorosamente previsto. 0 roteiro de Vitimas da tor­menta nao parece submetido a uma necessidade dramatica muito ri­gorosa, e 0 filme termina com uma situa<,:ao que podia muito bern na~ ter sido a ultima. 0 filminho encantador de Pagliero, Roma cilla libera, se diverte em criar e desfazer mal-entendidos que sem duvida poderiam ser entrela<,:ados de outra maneira. Infelizmente, os dem6nios do melodrama, aos quais os cineastas italianos nunca podem resistir completamente, ganha aqui e ali a partida, introdu­zindo entao uma necessidade dramatica com efeitos rigorosamente previsiveis. Mas essa e uma outra hist6ria. 0 que conta ,~~!.=­mento-criador, a genese belll particular das situa<,:oes-:'A nec~~_ dade do relatoe mais biol6gica do que dramatica,Ele brota e,_ cresce com a verossimilhan<,:a e aliberdade da vida. 6 Naosecleve deduzirdai que tai-ITletodo~a-paor{menos estetico do que a pre­vi sao lenta e meticulosa. Porem, 0 preconceito que 0 tempo, 0

dinheiro e os meios valem por si so e tao tenaz que esquecemos de reporta-Ios a obra e ao artista ... Van Gogh refazia dez vezes bern rapido 0 mesmo quadro, enquanto Cezanne retornava anos a fio ao seu. Certos generos exigem que se trabalhe com veloci­dade, que se opere em periodo febril. 0 cirurgiao, no entanto, deve ter ainda mais seguran<,:a e precisao. So a esse pr~~Qcinema italiano pode possuir 0 andamento da reportagem, essa naturali­d_<tge,wiis 15f5X\ma-do relato oral do que da escritura, do croqui que da pintura. Era preciso ter ali 0 desembarac;o e a seguranc;:a do olho de Rossellini, de Lattuada, de Vergano e de De Santis. A camera deles possui urn tato cinematografico bern perspicaz, antenas maravilhosamente sensiveis, que Ihe permite apreender nJIDLIet>~nte 0 que e preciso, como e preciso. Em 0 bandido, 0

prisioneirClYofiando da Alemanha descobre que sua casa foi des­truida. Do conjunto de imoveis, resta apenas urn monte de pedras rodeado de paredes em ruinas. A camera nos mostra 0 rosto do homem, depois, seguindo 0 movimento de seus olhos, faz uma longa panoramica de 360 graus que nos revel a 0 espetaculo. A ori-

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ginalidade de tal panoramica e dupla: (1) no inicio, ficamos exte­riores ao ator, pois 0 olhamos por intermedin da camera, mas durante a panoramica identificamo-nos natural mente com ele, a ponto de ficarmos surpresos quando, term in ados os 360 graus; redescobrimos urn rosto tornado de horror; (2) a velocidade da panoramica subjetiva e variavel. Ela come<,:a deslizando longa­mente e depois quase para, contempla lentamente as paredes dete­rioradas e queimadas no proprio ritmo do olhar do homem, como que movida diretamente por sua aten<,:ao.

Foi preciso que me estendesse nesse pequeno exemplo para nao me restringir a afirmar em abstrato 0 que chamo, quase no sentido psicologico da palavra: 0 "tato" cinematogrMico. Tal plano se aproxima em seu dinamismo ao movimento da mao que desenha urn croqui; deixando brancos, esbo<,:ando aqui, ali cer­cando e examinando 0 objeto. Pen so na camera lenta no documen­tario sobre Matisse que nos revela, embaixo do arabesco continuo e uniforme do tra<,:o, as hesita<,:6es variaveis da mao. Em tal decu­pagem 0 movimento do aparelho e muito importante. A camera de~tar tao pmnta a-se mOytlHQ.llanto :II 8€ imobilizaT. Travel­li~gs e panoramicas nao tern 0 carater quase divino que a grua americana Ihes atribuia em Hollywood. QtIase tudo e feito na alturn...dos olhos aua partir de pontos de vista concretos cOrn9_ ~i:\o urn telbaQQ oy.uma janda. Toda alnesquecivel poesia do passeio (fa; crian<,:as no cavalo branco em Viti mas da tormenta se reduz tecnicamente a urn angulo de tomada em contra-plongee, que da aos cavaleiros e a cavalgadura a perspectiva de uma estatua eques­tre. Christian Jaque teve muito mais dificuldade com seu cavalo fantasma em Sortilegios. Tanta virtuosidade cinematogrMica nao impedia sua egua de ter 0 prosaismo de urn velho cavalo de fiacre. A camera italiana conserva alguma coisa do humanisma .da-Bel.. Howell de reportagem, inseparavel da mao e do olho, quase iden­tificada com 0 homem, regulada prontamente a sua ate~.

Quanto a foto, e obvio que a ilumina<,:ao nao desempenhara senao urn papel expressivo bern fraco. Em primeiro lugar, porque ela exige 0 estudio e a maioria das tomadas e feita em externa.Oll em cenario real; depois, porque 0 estilo reportagem se identifica para nos com 0 aspecto acinzentado das atualidades. Seria urn COD~,_. tra-senso cui dar ou melhorar excessivamente a qualidade plastica do estilo.

Tal como tentamos descreve-Io ate aqui, 0 estilo dos filmes ita­lianos pareceria aparentado, com mais ou menos destreza, controle e sensibilidade, a urn jornalista meio literario, a uma arte habil,

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viva, simpatica, ate mesmo emocionante, mas, em seu princlplO menor. E as vezes 0 caso, ainda que se possa colocar 0 genero bern alto na hierarquia estetica. Seria injusto e err6neo ver nele a ultima realiza<;ao de tal tecnica. Do mesmo modo que em literatura a reportagem, e sua etica da objetividade (mas talvez fosse melhor dizer da exterioridade), apresentaram apenas as bases de uma nova estetica do romance,7 a tecnica dos cineastas italianos cul­mina, nos melhores filmes, e particularmente em Paisa, numa este­tica do relato igualmente complexa e original.

Paisa e, em principio, provavelmente, 0 primeiro filme que equivale rigorosamente a uma antologia de contos. S6 conhecia­mos 0 filme de sketches, genero, se for urn, bastardo e falso. Ros­sellini nos conta sucessivamente seis hist6rias da Libera<;ao italia­na. Elas s6 tern em comum esse elemento hist6rico. Tres delas, a primeira, a quarta e a ultima, se vinculam a Resistencia, as outras sao epis6dios divertidos, pateticos ou tnigicos, a margem do avan<;o aliado. A prostitui<;ao, 0 mercado negro, a vida de urn con­vento franciscano, fornecem indiferentemente sua materia. Nenhuma outra progressao, senao certa disposi<;ao das hist6rias segundo uma ordem cronol6gica a partir de urn desembarque de destacamento aliado na Sicilia. Porem, 0 fundo social, hist6rico e humano das seis hist6rias lhes confere uma unidade mais do que suficiente para fazer del as uma obra perfeitamente homogenea em sua diversidade. Mas, sobretudo, a dura<;ao de cad a hist6ria, a estrutura, sua materia, sua durar;ao estetica nos dao pel a pri­meira vez a impressao exata de urn conto. 0 epis6dio de Napoles, no qual vemos urn garoto especialista do mercado negro vender roupas de urn negro bebado, e urn admiravel conto "de" Saroyan. Urn outro evoca Steinbeck, outro Hemingway, outro (0 primeiro) Faulkner. Nao quero dizer apenas pelo tom ou pelo tema, porem, mais profundamente, pelo estilo. Infelizmente, nao podemos citar entre aspas uma seqiiencia de filme como urn paragrafo, e sua des­cri<;ao literaria fica for<;osamente incompleta. Eis, no entanto, urn epis6dio do ultimo conto (que me faz pensar ora em Heming­way, ora em Faulkner): (1) urn pequeno grupo de guerrilheiros ita­lianos e sold ados aliados foi abastecido com viveres por uma fami­lia de pescadores que vive numa especie de fazenda, isolada em pleno pantano do delta do P6. Oao-Ihes uma cesta de enguias e eles va~ embora; uma patrulha alema percebe mais tarde 0 ocor­rido e executa todos os habitantes da fazenda; (2) ao cair da tarde, o oficial americana e urn guerrilheiro caminham em algum lugar do pantano. Ao longe urn fuzilamento. Urn dialogo eliptico da a

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entender que os alemaes fuzilaram os pescadores; (3) homens e mulheres estendidos mortos em frente da cabana, urn bebe quase nu chora sem parar no crepusculo. Mesmo tao sucintamente des­crito, esse fragmento de relata deixa aparecer suficientemente imen­sas elipses, ou melhor dizendo, lacunas. Uma a<;ao bast ante com­plexa fica reduzida a tres ou quatro curtos fragmentos, por si s6 ja elipticos em relar;ao a realidade que revelam. Passemos pelo pri­meiro, puramente descritivo. No segundo, 0 acontecimento s6 nos e comunicado por aquilo que os guerrilheiros podem saber dele: tiros ao longe. 0 terceiro e apresentado independentemente da pre­sen<;a dos guerrilheiros. Nao e sequer certo que a cena tenha alguma testemunha. Uma crian<;a chora no meio de seus pais mortos: e isso, e urn fato. Como os alemaes fizeram para saber da culpa dos camponeses? Por que a crian<;a esta ainda viva? Isso nao e problema do filme. Entretanto, toda uma serie de acontecimentos encadearam-se ate esse resultado. Sem duvida, normalmente, 0

cineasta nao mostra tudo - alias e impossivel -, mas sua escolha e suas omissoes tendem, contudo, a reconstituir urn processo 16gico no qual a mente passa sem dificuldades das causas aos efeitos. A tecnica de Rossellini conserva seguramente certa inteligibilidade a sucessao dos fatos, mas estes nao engrenam uns nos outros como os elos de uma cadeia. A mente deve sal tar de urn fato para 'I

outro, como se salta de pedra em pedra para atravessar urn ria­cho. Acontece de 0 pe he sitar na escolha entre dois rochedos, ou de nao acertar uma pedra ou de deslizar sobre uma delas. Assim faz nossa mente. E que a essencia das pedras nao e de permitir aos viajantes atravessar os riachos sem molhar os pes, tampouco a do formato do melao de facilitar a divisao justa pelo pater Jamf­lias. Os fatQSsao fatQs. nossa imagina~fu:>os utiliza, mas eles nao tern por funcao a priori servi·la. Na decupagem cinematografica habitual (segundo urn processo semelhante ao do relato romanesco classico), 0 fato e atacado pela camera, retalhado, analisado, reconstituido; sem duvida ele nao perde tudo de sua natureza de fato, mas esta fica revestida de abstra<;ao como a argila de urn tijolo pel a parede ainda ausente que multiplicara seu paralelepi­pedo. Os fatos, em Rossellini, ganham urn sentido, mas nao a maneira de urn instrumento, cuja fun<;ao determinou, de antemao, a forma. Os fatos se seguem e a mente e for<;ada a perceber que eles se assemelham, e, assemelhando-se, acabam significando alguma coisa que estava em cada urn deles e que e, se se quer, a moral da hist6ria. Uma moral a qual a mente nao pode precisa­mente escapar, pois ela vern da propria realidade. No epis6dio

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.. Poi5d~. em principio. provavclmenlc. 0 primciro filmc que tquivale riaoro­sammie. urna Inlologia de conlos."

"de Aoren~a". uma mulher alravessa a cidade, ainda ocupada pelos alemlles e por gTUpaS fascistas, para tenlar encontrar urn chefe do maqui, seu naiva. Urn homem, Que tarnbem procura sua mulher e seu filho, a acompanha. A cAmera as segue passo a passo, nos faz participar de lodas as dificuldades que eles encootTam, de todos as perigos, mas com urna perfeil3 imparcialidade oa alcn­~ao que dA aos her6is da aventura e as si tuacOes Que precisam alra­vessar. Com efeito. tudo 0 que acontece em Floren~ alormenlada pela Liberacllo tern a mesma imponancia, a aventura pessoal des­ses dais seres insinua-se. bern ou mal, numa agitacao de outras aventuras, como Quando se lenla dar cotoveladas atraves da multi· dllo para encontrar alguem Que se perdeu. Na ocasillo, vislumbra· mos nos olhos daQueles Que dllo passagem outras preocupa~Oes. oulras paixOes. outros perigos, petto dos Quais os nossos slo der· ri56rios. No final e por acaso, a muther fica sabendo pela boca de urn guerrilheiro ferido Que a pessoa Que ela procura esta mortal Mas a frase Que Ihe revela isso nllo Ihe e propriamentc dcstinada. cia vern acerta·la como uma bala perdida. A pureza de Hnha des~ relalo nAo deve nada aos procedimentos de composi~Ao classica para urna narra~.1io desse genero. 0 inter artificial· menle col ado sobre a h meTa 0110 rete p..$ico· I~mente subje1iva. Participamos ainda rna;' do, sentimt:Q1ps

" ESCOLA ITALIANA 0 .... LlBERACAQ

dos protagonislas. pois e facil deduzi·los e 0 paletico nllo vern do fato e uma mu er ler perdido 0 hornem que ela ama, mas da silua~o desse drama particular dentro de oul.ros mil dramas. de sua solidA<> solidaria do drama da Libera~lIo de Aoren~a. A cAmera se limitou a seguir como Que para urna repottagem imparcial uma mulher em busca de urn homem. cia deixa para n6s 0 cuidado de estar com a mulher, de cornpreende·la e de sofrer com ela.

No admiravel episOdio final dos guerrilheiros cercados no pan­tano, a agua lamacenta do delta do P6. os bambus a perder de vista, grandes 56 0 bastante para ocuhar homens agachados nos pequenos barcos chatos. 0 barulho das ondas na madeira tern urn lugar de certo modo equivalente ao dos homens. Assinalemos a esse respeito Que tal participa~o dramatica do plntano se deve em grande parte a certas Qualidades intencionais da filmagem. De modo Que a linha de horizonte fica sempre na mesma altura. Tal permanencia das propor~Oes da agua e do ceu ao longo de lodos os pianos manifesta uma das caracteristicas essenciais dessa paisagem. Ela e 0 equivalente exato. nas condic6es impostas pela tela, da impresslo subjetiva que as homens vivos podem sentir entre 0 ceu e a agua e cuja vida depende constantemente de urn infimo deslocamento angular em rela~lIo ao horizonte. Vemos com esse exemplo 0 Quanto a clmera em exlerna dispOe ainda de sUlile­:zas de expressllo Quando e manejada por urn operador como 0

de PaisJ. A unidade do relaro cinema!OgrAfico em Paisa nllo t 0 "pia ..

!!Q" . DOnto de vista ahstrato sabre a realidade que se aoalis8 mas o "fato". FragmeOlo de realid.!,de brula, DOr 5i 56 ml!.lljplo e tqui.

." 'd" b . VOCO, CUlO senll 0 sc SO ressa! somente a posiedori, weas a oulros "fatos" entre 05 Quais a mente eslabelcce rela~6ei Scm

"vida 0 diretor esco heu esses "fatos" m . ando sua int _ grida e de "fat ". 0 primeiro plano da ma~neta da porta, ao qual h3. pouco fiz a1uslo. era menos urn fato que urn signo iso. lado a priori e pela c1mera , que nlo tinba mais independ!ncia seminlica Que uma preposi~lo numa frase. E 0 contrario do pln­tano au da motte dos camponeses.

orem, a natur ,, " .. a nas entreter m outras "im " inv

Estas slo. de cetto modo, as propriedades cenlrifugas da imagem, as Que permitcm conSliluir 0 relato. Consi da r si 16, cada ~ apenas urn fra mento idad rior ao sen· tido, t.odaA...supcr ICle a lela deve a r uma-.deosidadc con. ~aJ.&uaL E ain a 0 contr rio da mise-en·sdnt do glnero "rna.

.p.

v.(LI}i~'

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~aneta de porta", no qual a cor da laca, a espessura da sujeira na madeira na altura da mao, 0 brilho do metal, a deteriora~ao da lingueta sao outros tantos fatos perfeitamente inuteis, parasitas concretos da abstra~ao que sera conveniente eliminar.

Em Paisa (e lembro que com isso entendo, em graus diversos, a maioria dos filmes italianos), 0 primeiro plano da ma~aneta de porta seria substituido pela "imagem-fato" de uIllA~Qrla __ ffiias caracteristicas concretas seriam igualmente aparente~esmo ~tamentQ do~ atores zelarapara nunca _<:!i.Ssociar a interpretac;ao deles do cenario ou da interpreta~ao dos outros personagens. 0 proprio homem nao e senao urn fato entr.e-mltros, ao qual nenhuma importancia privilegiada poderia ser dada_ a priori. Por isso, os cineastas italianos sao os unicos qu~ consegue!ll fazer boas cenas de 6nibus, de caminhao ou de vagao, precisa­mente porque elas reunem uma densidade partiCliTar@-cenflr}o e dos homens, e porque sabem descrever ali lUUa a~ sem dissocia­la de seu contexto material e sem encobrir a singularidade humana na qual ela esta imbricada; a sutileza e a agilidade4es--movimen­tos da cameradeles nesses espa~os estreitos e atravancados, a natu­ralidade do comportamento de todos os personagens qJl~ __ e.l1tnll11_ no campo, fazem de tais cenas a fina flor, por excelencia, do ciQ.~ro.aitaliano .

o realismo do cinema italiano e a tecnica do romance americano

Receio que a ausencia de documentos cinematograficos tenha prejudicado a clareza destas linhas. Se, no entanto, meus passos puderam ser ate aqui seguidos, 0 leitor deve ter notado que fui levado a caracterizar quase nos mesmos termos 0 estilo de Rossel­lini em Paisa e 0 de Orson Welles em Cidadao Kane. Por vias tec­nicas diametralmente opostas, ambos chegam, no entanto, a uma "decupagem" que respeita, mais ou menos da mesma maneira, a realidade: tanto a profundidade de campo de Orson Welles, como a escolha realista de Rossellini. Tanto num quanto noutro encon­tramos a mesma dependencia do ator em rela~ao ao cenario, 0

mesmo realismo de interpreta~ao imposto a todos os personagens no campo, qualquer que seja a "importancia" dramatica-4eles. M~r ainda: com modalidades de estilo evidentemente bern dife­rentes, 0 proprio relato ordena-se, no fundo, da mesma maneira em Cidadao Kane e em Paisa. Isso porque, numa independencia tecnica total, na ausencia evidente de qualquer influencia direta, atraves de temperamentos que nao poderiamos imaginar menos

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compativeis, Rossellini e Orson Welles levaram adiante, no fundo, o mesmo proposito estetico essencial, eles tern a mesma concep~ao estetica do "realismo".

Tive tempo de comparar, na ocasiao, 0 relato de Paisa ao de certos romancistas e contistas modernos. As rela~oes da tec­nica de Orson Welles com a do romance americano (e particular­mente de Dos Passos) sao, por outro lado, bern evidentes para que eu me permita desvendar agora minha tese. Ae,~t~!i~a do cinema italiano, pelo menos em suas partes mais elaboradas e e~retores t.ao~collscientesde seus nidos qU~J:ltQ_ Rossellini, nao_ e senao O-equivaiente .cin.ematografico do romance americano.

Que fique bern entendido que se trata aqui de algo muito dife­rente de uma adapta~ao banal. Hollywood nao se cansa de "adap­tar" os romances americanos para a tela. Sabemos 0 que Sam Wood fez de Por quem os sinos dobram. E que ele so procura, no fundo, restituir uma intriga. Se fosse fiel frase por frase, nao teria ainda assim transcrito estritamente nada do livro para a tela. Podemos contar nos dedos das duas maos os filmes americanos que souberam fazer passar em imagem alguma coisa do estilo dos romancistas, isto e, da propria estrutura do relato, da lei de gravi­ta~ao que rege a organiza~ao dos fatos em Faulkner, Hemingway ou Dos Passos. Foi preciso esperar Orson Welles para vislumbrar o que podia ser 0 cinema do romance americano. 8

Ora, enquanto _~Iol_IY~Qqd multiplica as adapta~oes de best­sellers afa.s~~~_d~:s~ __ ~ada~ezE.1ais_<19.-§~_~!iQ~U!~~s'l..Jiteratura ... e na Italia que se realiza, naturalmente, e com uma facilidade qll~ __ exclui qualquer ideia de copia consciente e voluntaria, com base em roteiros totalmente originais, 0 cinema da literatura americani:l-'- __ _ Nao se deve, semd6vlda,-deixardelido-fla-c;onjuntura a popula­ridade dos romancistas americanos na Italia, onde suas obras foram traduzidas e assimiladas bern antes do que na Fran~a, onde e noto­ria, por exemplo, a influencia de urn Saroyan sobre urn Vittorini. Porem, mais que estas rela~oes duvidosas de causa e efeito, pre­firo invocar a excepcional afinidade das duas civiliza~oes, tal como foi revel ada pela ocupa~ao aliada. 0 "G. 1." se sentiu logo em casa na Italia e 0 Paisa se reconheceu no G. 1., branco ou negro, uma familiaridade imediata. A prolifera~ao do mercado ne­gro e da prostitui~ao no exercito americano nao e 0 menor exem­plo que prova a simbiose das duas civiliza~oes. Tambem nao e a­toa que os soldados american os sao personagens import antes na maioria dos filmes italianos recentes e que eles conservam seu lugar ali com uma naturalidade que ja diz tudo.

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o que quer que seja, no entanto, e se certas vias de influencia foram abertas pel a literatura ou pel a ocupac;ao, trata-se de urn fenomeno inexplicavel unicamente nesse nive!. 0 cinema ameri­cano e feito hoje na Italia, porem, nunca 0 cinema da peninsula foi tao tipicamente Italiano. 0 sistema de referencia que adotei me afastou de outras aproximac;oes ainda menos contestaveis, por exemplo, com a tradic;ao do conto italiano, a comedia de/l'arte e a tecnica do afresco. ~\,Ima "igJIlIencia", e urn acordo do cine~~ ~_~_a!i!~!J!f..b.~obre os mesmos dados esWicos prOf!lD~ dos, sobx_~um<J._ fQncepc;ao_<;Q!!l.!lllldas reJac;oesda_arre-e-aa r-eali-­dade. Ha muito tempo 0 romance moderno realizou sua revoluc;ao "realista", integrou 0 behaviorismo, a tecnica da reportagem e a etica da violencia. Longe de 0 cinema ter exercido alguma influen­cia sobre essa evoluc;ao, como se acredita, freqiientemente, urn filme como Paisa prova, ao contrario, que ele estava uns 20 anos atnis do romance contemporaneo. E urn dos grandes meritos do cinema Italiano recente ter sabido encontrar para a tela os equiva­lentes propriamente cinematograficos da mais importante revolu­c;ao literaria moderna.

NOTAS

I. Esprit, janeiro de 1948.

2. A influencia de Jean Renoir sobre 0 cinema Italiano e capital e decisiva. Ela so se iguala a de Rene Clair. 3. Nao me dissimulo a parte de habilidade politica mais ou menos consciente que se esconde, provavelmente, sob essa generosidade comunicativa. E possivel que am a­nha 0 vigario de Roma cidade aberta nao se entenda tao bern com 0 ex-resistente comunista. E possivel que 0 cinema italiano logo se tome, ele tambem, politico e guerrilheiro. E possivel que em tudo is so haja algumas meias-verdades. Pro-ameri­cano com bastante habilidade, Paisa foi realizado por democratas-cristaos e por comunistas. Tirar de uma obra 0 que ali se encontra nao e se iludir, e sim ser inte­Iigente. No momento, 0 cinema it<lliano. e muito menos politico do que soci.ol6gioo. Quero dizer que _~~<I!!d_ade.s ~()ciaiH;lo_C_QIll:ITta.s quanto <tJIliseria. 0 merca®negru, a administra~ao, a prostitui9ao, 0 desemprego ainda nao parecem ter cedi do .0

lugar na conscienciado publico aos valores a priori da politica. Os filmes italianos quase nao nos informam sobre 0 partido ao qual pertence 0 diretor, tamPou€o sobre aquele que ele pretende adular. Tal estado de fato se deve, provavelmente, ao temperamento etnico, mas tambem a situacao politica italiana e ao estilo,io partido comunista na peninsula. t~ente da conjun~ao politica, esse humanismo revolucionario tern igual­

mente suas origens numa certa considera~ao pelo individuo, a massa e apenas raramente considerada como uma for~a social positiva. Quando e evocada, e geralm~l1t.e para mostrar seu carater destruidor e negativo em-rera~oaoneroi:-o

A ESCOLA ITALIANA DA L1BERA<;:Ao

tema do hOlTIt;m na _multida.o. Desse ponto de vista, 0 ultimo grande filme italiano, Tragica persegui,ao e II sole sorge anc'ora sao duas exccyoes significativas que marcam talvez uma nova tendencia.

o diretor G. de Santis (que fez muito como assistente em II sole sorge ancora, e 0 unico que faz de urn grupo de homens, de uma coletividade, urn dos prot ago­nistas do drama. 4. As coisas se complicam quando se trata de urn cemlrio urbano_ Os italianos lev am niss.o uma vantagem inconteSl<ivel: a cidade italiana, seja ela antiga ou moderna, e prodigiosamente fotogenica. Desde-itantiguldade-o-urlJanista italian-a sempre foi teatral e decorativo. A vida urbana e urn espetaculo, uma comedia dell'arte que os italianos dao a si mesmos. E ate mesmo nos bairros mais misenlveis a especie de agregacao coralina das casas constitui, gracas aos terracos e as varandas, emi­nentes possibilidades espetaculares, 0 patio e urn cenario elisabetano on de 0 espe­taculo e visto de baixo, onde sao os espectadores das varandas que representam a comedia. Foi apresentado em Veneza urn documentario poetico constituido exclusi­vamente de uma montagem de fotos de patios. 0 que dizer, entao, quando as facha­das teatrais dos palacios combinam seus efeitos de opera com a arquitetura de come­dia das casas miseraveis? Acrescente-se a isso .0 sol e a ausencia de nuvens (inimigo numero I das tomadas em external e terao a explica~ao da superioridade do filme italian.o para as externas urbanas. 5. No caso de 0 estrangeiro, de Camus, por exemplo, Sartre mostrou as rela~oes metafisicas do autor com 0 emprego repetido do preterito perfeito, tempo de uma eminente pobreza modal. 6. Quase todos os creditos dos filmes italianos tern na rubrica "roteiro" uns dez nomes. Nao se deve levar esta imponente colaboracao muito a serio. Ela tern por objetivo, em primeiro lugar, dar ao produtor garantias ingenuamente politicas: ali se encontram regularmente 0 nome de urn democrata-cristao e 0 de urn comunista (como no filme, urn marxista e urn vigario). 0 32 co-roteirista e reputado por saber construir uma historia, 042 par encontrar gags, 0 52 porque ele faz bons dialogos. o 6 2 "porque ele tern 0 senso da vida" etc. 0 resultado nao e nem melhor nem pior do que se houvesse apenas urn roteirista. Mas a COI1Cwcao do roteiro Italiano. seaplica bern a essa paternidade coletiva ondecada- urn traz uma ideia 'sern que 0 diretor do filme se sinta finalmente obrigado a segui-la. Mais do que do trabalho em serie dos roteiristas americanos, seria preciso aproximar tal interdependencia da improvisa~ao da comedia dell'arte ou ate mesmo do jazz hot. 7. Nao yOU me enveredar aqui na polemic a historica sobre as origens ou as pre-figu­ra~oes do romance de reportagem no seculo XIX. Em Stendhal ou nos naturalis­tas, ainda se trata, mais do que de objetividade propriamente dita, de franqueza, de audacia, de perspicacia na observa~ao. Os proprios fatos ainda nao tinham essa especie de autonomia ontologica que faz deles uma sucessao de m6nadas fechadas, estritamente limitadas por suas aparencias.

8. Entretanto, varias vezes 0 cinema passou perto de tais verdades, em Feuillade, por exemplo, ou com Stroheim. Mais proximo de nos, Malraux compreendeu c\ara­mente os equivalentes de certo estilo de romance com 0 relato cinematografico. Enfim, por instinto e genialidade, Renoir ja aplicou em A regra do jogo 0 essen­cial dos principios da profundidade de campo e da mise-en-scene simultanea para todos os atores. Ele se explicou num artigo profetico da revista Point, em 1938.

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XXI LA TERRA TREMA 1

o tema de La terra trema nada deve a guerra. Trata-se de uma tentativa de revolta dos pescadores de urn vilarejo siciliano contra 0 juga economico do armador local. Darei uma ideia bern exata dele definindo-o como uma especie de "super-Farrebique" da cabotagem. As analogias com 0 filme de Rouquier sao numero­sas: em primeiro lugar, 0 realismo quase documentario e, se po de­mos dizer, 0 exotismo interno do tema, 0 lado geografia humana implicito (a esperan~a de se liberar do armador equivale para a familia siciliana a "eletricidade" da familia Farrebique). Embora em La terra trema (filme comunista) 0 vilarejo inteiro esteja em causa, e atraves da familia, do avo aos netos, que a aventura e contada. Essa familia, durante a luxuosa recep~ao da "Universa­lia" no hotel "Excelsior", de Veneza, nao era tao diferente da familia Farrebique deslocada para os coqueteis parisienses. Vis­conti tambem nao quis recorrer a interpreta~ao profissional, sequer ao "amalgama" de Rossellini. Seus pescadores sao verdadeiros pescadores escolhidos no proprio lugar da a~ao. A~ao, se pode­mos dizer, pois essa, como em Farrebique, renuncia voluntaria­mente as sedu~oes dramaticas: a historia se desenrola indiferente as regras do suspense; nenhum outro recurso senao 0 de interessar­se pel as proprias coisas, como na vida. A esses aspectos, porem, mais negativos do que positivos, se restringem as semelhan~as com Farrebique, do qual La terra trema esta, pelo estilo, 0 mais afas­tado possivel.

Visconti procurou e obteve incontestavelmente uma sintese paradoxal do realismo e do esteticismo. Rouquier tambem, mas a transposi~ao poetica de Farrebique se deveu essencialmente a montagem (lembrem-se das seqiiencias sobre 0 inverno e a prima-

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vera); a de Visconti, ao contrario, nao recorreu de modo algum aos efeitos de aproxima~ao das imagens. Cada uma del as contem em si seu sentido e 0 exprime totalmente. Por isso tam bern La terra trema so pode ser parcialmente comparado ao cinema sovie­tico dos anos 25-30, no qual a montagem era essencial. Acrescen­temos a isso que tambem nao e pelo simbolismo da imagem que o sentido e aqui descoberto, esse simbolismo ao qual Eisenstein (e Rouquier) recorre constantemente. A estetica da imagem e sem­pre rigorosamente plastica; ela evita qualquer transposi~ao epica. A frota de barcos que saem do porto pode ser de uma beleza eston­teante: e, no entanto, ela e apenas a frota do vilarejo, e nao, como em 0 encourarado Potemkin, 0 entusiasmo e a adesilo da popula~ao de Odessa que envia seus barcos de pesca para levar viveres aos rebeldes. Mas, dirao, onde pode a arte se refugiar depois de urn postulado tao asceticamente realista? Em qualquer outra parte. Em primeiro lugar, na qualidade fotografica. Nosso compatriota Aldo, que antes disso nao fez nada de import ante e quase que so era conhecido como fotografo de estudio, realizou urn estilo de imagem profundamente original, e cujo equivalente so vejo nos curtas-metragens suecos de Arne Sucksdorf. Permito­me lembrar, para abreviar minha explica~ao, que no artigo sobre a escola italiana de Libera~ao.2 havia estudado alguns aspectos do realismo cinematografico atual e fui levado a ver em Farrebi­que e Cidadilo Kane os dois palos das tecnicas realistas. 0 pri­meiro atinge a realidade no objeto, 0 outro nas estruturas de sua representa~ao. Em Farrebique tudo e verdade; em Kane tudo e re­constituido em estudio, e isso porque a profundidade de campo e a rigorosa composi~ao da imagem nao poderiam' ser obtidas em externa. Entre os dois, Paisa se aparentaria mais com Farrebique pela imagem, a estetica realista introduzindo-se entre os blocos de realidade, gra~as a uma concep~ao particular do relato. As ima­gens de La terra trema realizam 0 paradoxo e a proeza de integrar ao realismo documentario de Farrebique 0 realismo estetico de Cidadilo Kane. Se nao absolutamente pela primeira vez, pelo menos com essa consciencia sistematica, a profundidade de campo e utili­zada fora do estudio, tanto nas extern as ao ar livre, debaixo de chuva e ate mesmo em plena noite, quanto no interior, nos cena­rios reais das casas dos pescadores. Nao posso insistir sobre a proeza tecnica que isso representa, mas gostaria de frisar que a pro fundi­dade de campo levou naturalmente Visconti (como Welles) nao so mente a renunciar a montagem, mas literal mente a reinventar a decupagem. Seus "pianos", se podemos ainda falar de pIanos, sao

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ANDR£ BAZIN

"As il1laJtns dt Lo lura Irvna rtalizam 0 paradoxo t a prorza ck inltglr

ao rcalismo docummt3rio da Farrri~ 0 reaUsmo cst~ ck CidadlJo KaM."

de uma dura~Ao desmedida, no mais das vezes, tres ou quatro minutos; neles desenrolam-se naturalmente varias a~Oes a urn s6 tempo. Visconti parece ter desejado tambem sistematicamente cons­truir sua imagem sabre 0 evento. Urn pescador enrola urn cigarro? Nenhuma elipse nos sera cancedida. veremos toda a opera¥Ao. Esta nllo sera reduzida a sua significa¥Ao dramatica ou simb6lica, como normalmenle a montagem faz. Os pianos sllo com frequSn­cia fixos, deixando homens e coisas emrarem no quadro e se situa­rem nele, mas Viscomi faz tambem uma panoramica bern particu­lar, deslocando-se bern devagar num setor bern extenso. Eo unico movimento de cimera que ele se permite, excluindo os trl1l'e/lings e, naturalmente, 3ngulos anormais.

A sobriedade inverosslmil dessa decupagem s6 e suportada pelo extraordinario equilibrio plastico que se mantem ali, mas s6 uma reprodu~Ao fotografica poderia nos dar uma ideia. E isso ocorre tambem porque, para alem da pura composi¥Ao movente da imagem, realizadores dAo testemunho de uma ciencia Intima de sua materia. Principalmeme os intcriores, que ate 0 presente momento escaparam ao cinema. Eu me explico. As dificuldades de ilumina¥Ao e de filmagem tornam 0 cenario natural quase inuti­IizAvel no interior. Algumas vezes se conseguiu, mas geralmente

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com urn rendimento estetico bern inferior aquele que se podia obter em externa. Pela primeira vez aqui, todo um filme. diante do estilo da decupagem. da interpreta~o dos atores e da reprodu­~AO fotografica, e igual intra e extra muros. Visconti foi digno da novidade de tal conquista. Apesar da pobreza e mesmo por causa da banalidade da casa dos pescadores, surge dali uma extra­ordinaria poesia, a urn s6 tempo Intima e social.

o que merece, porem, mais admira~Ao e 0 controle com que Visconti dirigiu seus interpretes. NAo e a primeira vez que 0 cinema utiliza atores nAo profissionais, mas eles ainda nunca tinham sido, com ex~Ao talvez nos filmes ex6ticos, nos quais 0 problema e bern particular, tAo perfeitamente integrados aos elementos mais estelicos do ftlme. Rouquier nAo conseguiu dirigir sua familia sem que a presen~a da cAmera fosse sensivel. 0 incOmodo, 0 riso con­tido, a falta de jeito sAo camunados com habilidade pela monta­gem que corta a tempo a replica. Aqui. 0 ator fica t\s vezes durante varios minutos no campo, fala, se desloca, age com naturalidade. e mais, com uma gra~ inimaginavel. Visconti vern do leatro; ele soube comunicar a seus interpretes, para alem da naturalidade, a estilizal;lo do gesto que e 0 arremate da profiss!o do ator. Fica­mos confusos. Se os juris de festivais nAo fossem 0 que sAo, 0 pre­mio de melhor interpret.a~o deveria ler sido alribuJdo. em Vene­za, anonimamente. aos pescadores de La terra trema.

Vemos que, com Visconti, 0 neo-realismo ita1iano de 1946 fica, em mais de urn ponto, ultrapassado. As hierarquias em arte sAo bastante vas, mas 0 cinema e jovem demais. inseparavel demais de sua evolw;Ao, para se permitir a repdi¥Ao por muito tempo: cinco anos valem para 0 cinema uma gera~o literaria. Vis­conti tern 0 meritO de integrar dialeticamente as aquisi~ do cinema italiano recente com uma estetica mais extensa, mais elabo­rada, em que 0 pr6prio termo de realismo ja nAo tern muito sen­tido. NAo dizemos que LA terra lrema e superior a Paisa ou a Trd­gica persegui¢o, mas somente que ele tem ao menos 0 merito de ultrapas.s.i-Ios historicamente. Vendo os melhores filmes italianos de 1948. tinhamos a sensa~a.o de uma repeti¥Ao que iria fatalmente se esgotar.

La terra Irema e a unica abertura estetica original, e com isso carregada. pelo menos em hip6te5e, de esperan¥a.

Significaria isso que tal esperan~ se realizar.t.7 Infelizmeme nAo estou certo, pois LA terra trema contradiz, contuda, alguns principio cinematogrAficos sobre os quais. mais tarde, Visconti

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" Sc os juris de fnlivais nlo fossem 0 que slo, 0 premio de melhor inleTprc­ta~Jo dcveria leT sido I lribuldo, em Vcneza, anonimamenle, aos pescadores de I.lI tn-nI IrrmD."

lera que triunfar de maneira mais convincenle. Em particular, tal vonlade de nlo sacrificar nada as categorias dramaticas tern como con.seqiiSncia manifesta e macica ... entediar 0 publico. 0 filme dura mais de tres horas para uma ac!o extremamente reduzida. Se acrescentarmos a isso que e falado em dialelo siciliano, sem legenda possivel por causa do estilo fOlografico da imagem, e que os pr6prios ilalianos nlo compreendem uma palavra, vemos que se trata de urn espelaculo no minimo austero, com muito pouco valor comercial. Concordo que urn semi-mecenato da firma "Universa­lia", completado com a enorme fortuna pessoal de Luchino Vis· conti, permita terminar a trilogia planejada (da qual La terra lrema e apenas 0 primeiro epis6dio): teremos, no melhor dos casos, uma es~ie de monstro cinemalografico, cujo lema eminentemente social e politico seri, no entanlO, inacessivel ao grande publico. o assenlimento universal nlo e no cinema urn criterio necessArio para lodas as obras, com a condic!o que a causa da incompreen· slo do publico possa ser finalmenle compensada por outras. Em outros termos, a obscuridade ou 0 esoterismo 010 devem ser ali

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essenClalS. ~ preciso necessariamcnte que a esl~lica de La terra (rema possa ser utilizada para fins dramiticos, para que sirva a evoluc;!o do cinema. Caso conlrArio, nAo pwa de urna espU!ndida via de resguardo.

Resta tambem. e isso me inquieta urn pouco mais quanto ao que devemos esperar do pr6prio Visconti, urna tendencia perigosa ao esleticismo. Esse grande aristocrata. artista ate 0 ultimo fio de cabelo, faz, contudo, comunism"o - se ouso dizer - sintetico.

FaJta entusiasmo a La terra trema. Imaginamos as grandes pintores da Renascenca, capues de executar, scm se fazer violen­cia, as afrescos religiosos mais admiraveis apesar de sua profunda indiferen~a ao cristianismo. NAo estou julgando a sinceridade do comunismo de Visconti. Mas 0 que e a sinceridade? NAo se Irata. e 6bvio. de paternalismo para com 0 proletariado. 0 palernalismo vern de uma sociologia burguesa e Visconti e urn aristocrata, mas talvez de uma especie de parlicipacAo eSlelica na hist6ria. 0 que quer que seja, eslamos bern longe da convi~lo comunicaliva de o encouro(:odo Potemkin ou de 0 Jim de S{1o Petersburgo ou ale mesmo. num tema idSntico, de Piscotor. 0 filme possui, com cer· teza, urn valor de propaganda, mas objeliva, com urn vigor docu­mentario que nAo sustenta qualquer eloq(H!ncia afetiva. Vemos que Visconti 0 quis assim e sua deds!o nlo deixa, em principio. de nos seduzir. NAo e certo, porem, que tal opiniAo possa ser de­fendida, pelo menos no cinema. Esperamos que a conliDUaCaO desta obra vira nos demonstrar isso . 0 que 56 ocorrera com a condic;lo de ela DaO cair para onde ela nos parece ja se inclinar perigosamente.

NOTAS

1. Esprit . de~bro de 1948. 2. Ver capitulo XX, pp. 211-2-46.

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o que hoje me parece mais surpreendente na produr;ao italiana e que ela parece sair do imp.MSe.-e.stetko para onde se podia crer que 0 "neo-realismo" a conduzia. Pas§llQQ...Q desJl!mbramento~ 1946 e 1947, receavan"!os que essa rear;ao uti! e intel~rrte_contm a estetica· itilliiiia da grande mise~eri-sc~ne-·e~ -'aliiiS, geralmente, contra 0 esteticismo-tecnico, do qual 0 cinema do mundo inteiro sofria, nao pudesse ultrapassar 0 interesse de uma especle.4~~~upeI­documentario, ou de reportagens romanceadas. Vimo-nos consta­tando que 0 sllc~sso de Roma cidade aberta, de Paisa ou de Viti­mas da tormenta era inseparavel de ser!!!....f.9..!!i!!rltlglLDistorica, que ele participava dQJ>f.QPiiO.:s.entldo Jlalib_er~~.aQ.e. q!.l_e~u.~ nica era, de certo modo, enaltecida pelo valor revolucionario . .do tema. Como certos livros de Malraux ou de Hemingway encontram numa especie de cristalizar;ao do estilo jornalistico a forma do relata mais apropriada a tragedia da atualidade, os filmes de Ros­sellini ou de De Sica.dev.em..apeaas aunLaG9rd()._~cig~n.t.illg9 forma com a materia 0 fato de serem obras maiores, "obras-primas". Mas ja que a novidade e, sobretudo, 0 .!..empeLQ..dessa tecnica ip.sossaesgoll:ifiill1iell (!(eito_de s.urpr.esa, 0 que resta do "neo-rea­lismo" italiano, a partir do momenta em que, pela forr;a das coi­sas, e preciso que ele ret orne temas tradicionais: policiais, psicol6-gicos ou inclusive de costumes? Va la aindapela camerana rua, mas sera que a admiravel interpieta~io nao-profissional nao se condena por si s6, a medida que as revelacoes vern engordar as categorias das vedetes internacionais? E entao desandam a genera­lizar tal pessimismo estetico: "realismo" nao po de ter em arte senao uma posir;ao dialetica, ele e mais uma rear;ao que uma ver­dade. Resta em seguida integra-Io a estetica que ele, assim, viria

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verificar. Os italianos nao foram, alias, os ultimos a falar mal do "neo-realismo". Creio que nao ha nenhum diretor italiano, inclu­sive os mais "neo-realistas", que nao assegure com firmeza que e preciso sair dele.

Por isso 0 critico frances sente-se tornado de escrupulos -visto que 0 famoso neo-realismo deu logo sinais visiveis de exaus­tao. Comedias, alias bern divertidas, vieram se aproveitar com uma visivel facilidade da f6rmula de 0 corariio manda ou de Viver em paz. Mas 0 pior de tudo foi 0 aparecimento de uma especie de superprodw;ao "neo-realista", em que a busca do cenario ver­dadeiro, da ar;ao de costumes, da pintura do meio popular, das intenr;oes "sociais", tornava-se urn estere6tipo academico, e por isso muito mais detestavel que os elefantes de Cipiiio, 0 africano. Pois e 6bviO que urn filme "neo-realista" pode ter todos os defei­tos, menos 0 de sei-acaaerriico. Assim, este ano, em Veneza, Patto col diavolo, de Luigi Chiarini, melodrama lugubre de amor campo­nes, tentava visivelmente encontrar numa hist6ria de conflito entre past ores e lenhadores urn alibi no gosto em yoga. Embora tenha sido bem-sucedido sob alguns pontos de vista, Em nome da lei, que os italianos tentaram por a frente em Knokke-Ie-Zoute, nao escapa completamente as mesmas criticas. Notaremos, alem disso, com esses dois exemplos, que 0 neo-realismo se dirigia muito agora para 0 problema rural, talvez por prudencia em relar;ao ao sucesso do neo-realismo urbano. As "cidades abertas" se sucedem os cam­pos fechados.

~a comQiv-I>-as esperaD(;asque_1la-yiamQs_p~s~~ll nova escohlitalianaco~vamz se transformar em inquietayao, ou ate mesmo em ceticismo. __ Ail!.(:ta __ mai.5-4ue a prOpria (:stetica do neo-realismo the proibe por essencia de se repetirou plagiar, como, a rigor, e possivel e as vezes mesmo normal em certos gene­ros tradicionais (0 policial, 0 western, 0 filme de atmosfera etc.). Ja comer;avamos a nos voltar para a Inglaterra, cujo renascimento cinematografico e igualmente, em parte, fruto do neo-realismo: 0

da escola dos documentaristas que, antes e durante a guerra, apro­fundaram os recursos oferecidos pelas realidades sociais e tecnicas. E provavel que urn filme como Desencanto tivesse sido impossivel sem 0 trabalho de dez anos de Grierson, Cavalcanti ou Rotha. Os ingleses, porem, ao inves de romperem com a tecnica e a hist6-ria do cinema europeu e americano, souberam integrar ao esteti­cismo mais refinado as aquisir;oes de urn certa realismo. Nada de mais construido, de menos concebivel sem os recursos mais moder­nos do estudio, sem atores habeis e consagrados; sera que pode-

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mos imaginar, no entanto, pintura mais realista dos costumes e da psicologia inglesa? E certo que David Lean nada ganhou fazendo este ana uma especie de novo Desencanto: a hist6ria de uma mulher (apresentado no festival de Cannes). Mas e a repeti9aO do tema que podemos incriminar, nao a da tecnica, que podia ser­vir de novo indefinidamente.2

Sera que fui 0 bastante 0 advogado do diabo? Pois, agora posso confessar, minhas duvidas sobre 0 cinema Italiano nunca foram tao longe, mas e verdade que todos os argumentos que invoquei foram dados por eruditos - sobretudo na Halia - e que, infelizmente, nao deixam de ser verossimeis. E verdade, tam­bern, que muitas vezes eles me perturbaram e que subscrevi a varios deles.

Ha, porem, 0 Ladroes de bicicleta e do is outros filmes, que em breve, espero, conheceremos na Fran9a. Pois com Ladroes de bidcleta, De Sica conseguiu sair do impasse e jusiIficar novaIllcnte toda a estetica do neo-realismo.

Neo-realista, Ladroes de bidcleta 0 e conforme todos os JlIin­dpios que podemos tirar dos melhores filmes italianos ctescle-1946. lntriga "popular" e ate mesmo populista: urn -incidente da_Ylda cotidiana de urn operario. E de modo algumu_m_.QessesCls;onteci­mentos extraordinarios como os que ocorrem aos operarios predes­tinados a maneira de Gabin. Nada de crime passional, de coinci­dencia policial grandiosa, que so fazem transpor para 0 exotismo popular proletario os grandes debates tragicos reservados antiga­mente aos familiares do Olimpo. Realmente urn incidente insignifi­cante...Qllnal mesmo: urn oper<1rio p~~J!~Jlm~mteiro prQciiranao em vao.-em-Roma,sui-bicicleta que the roubaram. A bicicleta tinha se tornado seu instrumento de-trabalhoe~se-nao a enco-;:;:­trar, ele ficara sem duvida desempregado. De noltinha. delLoi~g~ hru:as--de caminhadas inJltcis, ele tenta roilbar uma bicicleta, mas quando e pego e, conJlldo,s()lt-6; se- ericontra i~o-pobre como antes,-tendoapenas,-a mais, a vergonha de ter se rebaixado ao nive! de seu ladrao.

Vemos que nao ha sequer materia de urn fait divers: toda essa historia nao merecia duas linhas na rubrica dos cachorros atropela­dos. Devemos evitar a confusao com a tragectia realista do tipo da de Prevert ou de James Cain, on de 0 fait divers inicial e, na verdade, uma verdadeira maquina infernal deixada pelos deuses entre as pedras da estrada. 0 evento nao possui nele mesl!l~qllal­quer fon;a dramatica propria. Ele so ganha sentido em funC;;ao

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~njlillturas()cial (e nao psicologica ou estetica) cia vitima. Nao passaria de urn infortunio banal sell1 0 espectro do desempr~go que 0 situa na sociedade italiana de 1948. DJLID.csmQ modo, a esco­Ih~ da bicicleta como objeto-chave do drama e caracteristica a urn 56 tempodoscostumes urbanos halianos e-de uma epoca em que os meios de transporte medinicos sao ainda raros e onerosos. Nao vamos insistir: outros cern detalhes significativos multiplicam as anastomoses do roteiro a atualidade, Q_J!ituamcom.Q.J.lIILcY.eIl1Q da historia politica e so~ial,em talluga~. em tal ano.

'D!!!!!:>em ~.!~£~ica ~a mise-en-scene s'!tisfaz as exigeflcias mais ~igorosas do neo-realisni"o --italiano. Nenhuma cena de estudio. Tudo foi realizado na rua. Quanto aos interpretes, nenhum deles tinha a menor experiencia de teatro ou de cinema. 0 operario vern da Breda, 0 garoto foi descoberto na rua entre os curiosos, a mulher e uma jornalista.

Sao esses os dados do problema. Vemos que eles nao parecem renovar no que quer que seja 0 neo-realismo de 0 Corapio manda, de Viver em paz ou de Vitimas da tormenta. Mesmo a priori, tinhamos mais razoes particulares de desconfiarmos. 0 lado sor­dido da historia ia na direcao mais contestavel da historia italiana: urn certo miserabilismo e a busca sistematica do detalhe sujo.

Se Ladroes de bidcleta e uma pura obra-prima comparavel, a rigor, a Paisa, e por urn certo numero de raz5es bern precisas que nao aparecem no mero resume do roteiro, tampouco na expo­si9ao superficial da tecnica da mise-en-scene.

Em primeiro lugar, 0 roteiro e de umahabilidade diabolica pois ele disp5e, a partir do alibi da atu~lidade social, de varios sis~ temas de coordcnadas dramaticas que 0 sustentam em torno dos sentidos. Ladroes de bidcleta e com certeza 0 unico filme nao­comunista valido dos ultimos dez anos, precisamente porque tern sentido mesmo se fizermos abstra9aO de sua significa9aO social. Sua mensagem social nao e destacada, ela permanece imanente ao cvento, mas e tao clara que ninguem pode ignora-Ia e men os ainda recusa-Ia, ja que nunca e explicitada como mensagem. A tese impli­cada e de uma simplicidade maravilhosa e atroz: no mundo onde vive 0 operario, os pobres, para subsistir, devem roubar uns aos outros~Essa tese.-porem, nUllca e apresentada como tal, 0 encade­amento dos eventos e sempre de uma verossimilhan9a a urn so tempo rigorosa e anedotica. No fundo, na metade do filme, 0

operario poderia encontrar sua bicicleta; so que nao haveria filme. (Desculpem 0 inc6modo, diria 0 diretor, nos pensamos que ele nao a encontraria, mas ja que encontrou, fica tudo bern, melhor

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para ele, a sessao terminou, podem acender as luzes da sala.} En:._ outros termos, urn filme de propaganda pro.curaria n()scl~1rlf!.'!:!.~ (rar queoopeniriQ mia pade encontrar a bicicleta e que e necessa­riamente pego no circulo infernal de sua pobreza. De Sica se limitS! a nos mastrar que 0 openlrio pode mio encontrar sua hicicleta e que por is so vai sem duvida ficar novamente desempregado. Quem nao ve, porem, que e 0 can'tter acidental do roteiro que faz a neces­sidade da tese, ao passo que a menor duvida sobre a necessidade dos eventos num roteiro de propaganda tornaria a tese hipotetica.

Se pudermos, porem, fazer outra coisa que nao deduzir do infortunio do openirio a condenac;ao de urn certo tipo de relac;ao entre 0 homem e seu trabalho, 0 filme nunca reduz .os aconteci­mentos e os seres a urn maniqueismo economico ou PQlitica...Ele evitc:urapacearcoIILaJ.ealidad~ n~JLa-penas dispOlldo na Sllcessao doi fatos umacronologia acidental ecomo_.Que aned6tica,lllils tra­tando cad a urn deles em sua integridade fenomenal. Que 0 garoto, no meio da perseguic;ao, tenha de repente vontade de fazer xixi: ele faz. Que uma chuva obrigue 0 pai e 0 filho a se esconder debaixo de uma porta de cocheira, e e preciso que nos, como eles, renunciemos a busca para esperar 0 fim da tempestade. Os acoJl1e,. cimentos nao sao essencialmente signos de alguma coisa, de lima

. v.e.rdade de que seria preci51LnQ.~. <::()I1.Y~r:!.cer, eles conservam tO~9 seu peso, toda sua singularidade. toda.suaarn)Jig!ijQadejhd~~o. fie modo 'lJlf.+ se .voce na() tel!1_olh~J>~I:.ll. y~.!-,.J2QQ.~il!rib.!;!ir tran­qiiilamente suas conseqiiencias _ ama~ortee..J!Q-acaso.. E 0 que acontece com os seres. 0 operario esta taosiespoj.ado e isolado no sindicato quanto na rua, ou ate mesma nessa inenarravel cena Je "quakers" catolicos, onde ele mais tarde andara, PQrque Q llin­dicato nao e feito para encontrar bicicletas, mas para modific.ar o rnundo onde a perda de uma bicicleta condenao hornem a mise­ria. Por isso, 0 operario nao veio se queixar "sindicalmente'.', mas encontrar seus companheiros que poderao ajuda-lo a achar o objeto roubado. Des~e_nlgdQ.uma.re\lniao de proletarios sindica­lizados nao se comportade modo clifeI~nteque urn bando.9:t! bur­gueses-paternallst(ls em relac;ao a urn operario infeliz. N~.s.§.~ infor­tunio privado, 0 colador de cartazes fica ~aoso..~i~.~o (f.~~.()gom­panheiros, mas os companheirossllQ=uU\ caso privado}nos.indi­cato quanto na igreja. Mas tal similitude e de uma habilidade suprema, pois faz surgir urn contraste. A indiferenc;a do sindicato e normal e justificada, pois os sindicatos trabalham pela justic;a e naa pel a caridade. Mas 0 paternalismo importuno dos "quakers" catolicas e intoleravel, pais sua "caridade" e cega a tragectia indi-

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vidual sem fazer nada.para mudar realmente 0 mundo que e sua -~ - --- ---~-- ------

causa. A melhor cena, sob esse aspecto, e a da tempestade debaixo do alpendre, quando urn bando de seminaristas austriacos se lanc;a sobre 0 operario e seu filho. Nao temos nenhum motivo valida para critica-Ios por serem tao tagarelas e, alem disso, falar alemao. Porem, era dificil criar uma situac;ao objetivamente mais anticlerical.

Como odemos ver - e eu poderia en utros 2Q~~ I2.los - 6s ac()~~ci!r.l_~tQ~~. os seres.J:mnca s~.itados_E_urp. senhdo de·uma tese social. A tese, porem, aparece toaaarmada e- aTnda-mais~efutavel-pornos ser dada sQm~l].te .. e!fl '!9r.esciIDO:­E nossa mente que a desvela e constr6ir.nao-ofilm~. De Sica ganha a todo momenta 0 jogo no qual... nao apostou.

Essa tecnica nao e absolutamente nova nos filmes italianos e insistimos muito sobre seu valor, aqui mesmo, a propos ito de P.JlliiLe, mais recentemente, de ~nha ana zero,3 f!1_as.~ses gois ultimos filmes ressaitavam-es temfts-da resistenciaou. da .gurua. l::adroes de bidcleta e 0 primeiro exemplo decisivo da c.~n­~2.<:>~sjy_el desse.-"obietivismo" enLJemas uife~s. De Sica e .Zavattini fizeram 0 neo-realismo passar da Resistel!cia a Re'yQI~.~.ao.

Desse modo. a tese do filme·s~H!ldips-a atras de uIll!:lrealidade social perfeitamente .wjetiva; mas estil passa, por SWLyg,J>at'! . ..O plano de fundo do drama morale psicologico que, por_si so,basta­ria para iustificar 0 filme. 0 achado da crianc;a e urn toque de ge­nio, do qual nao sabemos em definitivo se e de roteiro ou de mise-en-scene, de tanto que aqui tal distinr;:ao perde 0 sentido. E 11 crianc;a que da a aventma do oj2erario sua dimensa~tica e.ahI:C. com uIl1a~Qersj)ectiva mor,!1 indiviciu<iless(! dr~ma g1J~ poderiaser apenas social. Suprima-a e a historia permanece sensivelmente iden­tica; a prova disso: ela seria resumida da mesma maneira. 0 garoto se limita, com efeito, a seguir 0 pai, caminhando apressa­damente a seu lado. Ele e, porern, a .. tt$temunha intima, 0 coro particular ligado a sua tragedia. A habilidade de ter quase evitado o papel da mulher para encarnar 0 carater privado do drama da crianr;:a e enorme. A.cUillp1icidade .qllC.-Se estabelece entre 0 pai e o filho e de uma sutileza que penetra ate as raizes da vida moral. E a admirac;ao que a cria~ como tal tern pelo pai.e a CQDS~ieQ:._ cia que este tern dela, que canferem no final do filme sua gran­deza tragi~a.A vergonha sodal do QI1eJariQd.esJlla~{':~J<idQ_e_est1.O­feteactQ em plena rua nao e nada perto daquela de ter tidos.e.!!Jllho por testemunha...QlJando WIUl tent.a~~Q .c.k rouhar uina bj{,:icleta,

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LDdrfJa de bicie/ela, de Vittorio de Sica: "k: a erianca que dt l avenlura do operario sua dimens.Ao &ica e abTe com urna pcrpesliva moral indivi­dual esse drama que podcria ser apenas social".

~ca sjienciosa do-menino que adyinha 0 oensamento de seu ~dade guasc Qb~na. Se cle tenta se IiVT3r dele mandand<Hl tomar 0 bonde, e como se diz a uma crianca. em apar­tamentos pequenos demais, para iT esperar uma hora no corredor . E preciso remontar aos melhores filmes de Carlitos para eneootTar situaf;6es de urna profundidade mais comovente em sua concido.

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4....esse respeito, a irst0 final da crian~. que dA nayament, a mao 8.2, pai, roi rreqiientemente mal intemretado. Sena indigno por parte do hlme ver russo uma concessAo a sensibilidade do publico. Se De Sica oferece tal satisfa~o aos espectadores, e porque cia (g.

e da 16gica do drama. A aventu a mar rna eta a o.as r a entre a pai e a fUbo. alga como a puberdade. 0 homem ate entAo era urn deus para seu mho; as relaxOes deles estavam sob o signa da admiraX!g. Elas foram como[ometjdas peto gesto do ~uc..eles..deuamam enquanto camjnbam ladD-a lado. os.brar;o.s pendcntes 510 0 desesoero de 11m paraiso perdido._

,cian rem ma.ao...pai.atra~cule..sua..degrad~ao;-agora.. eia 0 amari como urn hQmen:L-.C.OID..s yugonha. A mao que escorrega na sua mao e nem 0 sinal de urn perdao, nem de urn con­solo pueril. e sim gesto mais grave que possa marcar as rela~Oes de urn pai e de seu filho: 0 'gesto que as lorna iguais.

Scm duvida, seria demorado enumerar apenas as multiplas run~Oes secundarias do 8aroto nQ filme, tanto no que toca a cons­trucao da hist6ria quanto a pr6pria mise-en-scene. Entretanlo. C ereciso ao menos frisar a mudanca de tom {auase no sentido musi­cal do (erma) que sua pre~nya-inuodu:l no meia do filmfh.o perambular entre 0 menino e 0 operatio nos caudill, com efeito, do plano social e econOmico ao da llida.priyada •. e 0 falso aroga­mento do garoto, fazendo 0 pai tomar repentinamente consciencia da relativa insignifidl.ncia de seu infonunio. cria . no amago da hist6ria, uma especie de oasis dramatico (a cena do restaurante), oasis naturalmente ilus6rio. pciis a realidade de tal felicidade Intima depende em definitivo da famasa bicicleta.

uma de

tentativas de interpreta~ao, mas unicamente de caminhada. queria. ao lado do andar pesado do hamem, os passinhos rapidos do garoto, a harmonia desse desacordo tendo por si 56 uma importancia capital para a inteligencia de tada a mise-en-scene. Nao seria exagero dizer que Ladr(Jes de bide/eta e a hist6ria da caminhada peJas ruas de Rama de urn pai e de seu filho . .oue 0 garola fiqlle oa CreDlc. ao !ado QU, ao cootrario, como urramento de is do tabefe a urn . !iY.a.-o mmca e insignificante. Ele e. ao contrtrio a fe no!ogia-dO-fotcito ...

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E dificil imaginar, nesse born resultado da dupla do operano e de seu mho, que De Sica tivesse podido recorrer a alOrts conhecidos.

A ausencia de alortS profissionais nao e uma novidade, mas ainda nisso Ladr6es de bidcleta vai alcm dos filmes anteriores. De agora em diantc, a virgindade cinematografica dos interpretes nllo depende mais da proeza. da sorte ou de uma especie de con­juneao feliz entre 0 lema, a epoca e 0 pova. E ate mesmo prova­vel que se lenba dado uma importincia excessiva ao fator etnico. E certo que as italianos sAo. junto com as fUSSOS, 0 povo mais naturalmente teatral. 0 menor menino de eua se iguala a Jackie Coogan e a vida cotidiana e uma perpetua commedia dell'orle; pocem, me parece dificilmente verosslmil Que tais dotes de alares sejam igualmente partilhados entre as miianeses, os napolitanos e os camponeses do P6 ou os pescadores da Sicilia. Alem das dife­ren~as de ra~, os contrastes hist6ricos, IingUisticos, econOmicos e sociais bastariam para comprometer tal tese, se quisessemos atri­buir unicamente as qualidades etnicas a naturalidade dos interpre­tes italianos. E inconcebivel que filmes tAo diferentes no tema, no tom, no estilo, na tecnica quanto Paisd, Ladr6es de bidcleta, La terra trema e ate mesmo Ceu sobre 0 pOntano tenham em comum essa qualidade suprema da interpretacAo. Poderlamos ainda admitir que 0 italiano da cidade seja mais particularmente dotado para a afetacAo espontanea, mas os camponeses de Ceu sobre 0 pOntano sao verdadeiros homens da caverna ao lado dos habitan­tes de Farrebique. Basta a evoca~Ao do filme de Rouquier a prop6-sito do de Genina para relegar - pelo menos desse ponto de vista - a experiencia do frances a .categoria de uma tocante tentativa de apadrinhamento. A metade dos dialogos de Farrebique e em voz off, porque ele nAo conseguiu impedir os camponeses de rir durante uma replica urn pouco longa. Genina em Ceu sobre 0 pdn­lano, Visconti em La terra (rema , dirigindo dezenas de campene­ses ou de pescadores, Ihes confiam papeis de uma complexidade psicol6gica extrema, fazem-os dizer textos longulssimos, no decor­rer de cenas em que a camera perscruta tAo implacavelmente urn rosto quanto em urn estudio americano. Ora, dizer que esses ato­res sllo bons ou perfeitos e poueo: eles suprimem a pr6pria ideia de atores, de interpreta~Ao, de personagem. Cinema sem atores? Sem duvida! Mas 0 primeiro sentido da f6rmula fica ultrapassado, e de urn cinema sem interpreta~Ao que sera preciso falar, de urn cinema onde esta fora de questAo que urn figurante imerprete mais ou menos bern, de Quanta que 0 homem esta identificado com seu personagem.

, LADROES DE BICICLETA 27l

Lodr6es de bicidefa: "Era preciso que 0 operario f<>sse a urn sO tempo 110 pet"feiIO, anOnirno C objCiivo quanto sua biciclCia".

Nilo nos afastamos. apesar das aparencias, de Ladr(ies de bid-

c/ela . . ~~~~.",~" ,~, ~;;~~ ~ ::In. I",r Hesitou meses entre urn ou tentativas para finalrnente decidir, num

se"m,d"" por intuiCAo. diante de uma silhueta encontrada numa esquina. Pon!m, nAo ha qualquer milagre nisso. NAo e a singular excelencia desse oper3.rio e dose Karoto Que nos '"Vale a guatidade da interpretacAo deles , e sim todo 0 sjstema eS1etjco no gual des vieram se inserjr De Sica, em busca de urn produtor, acabou eneon:-' lrando-o com a condi~ilo de que 0 personagem do operario (osse interpretado por Cary Grant. Basta colocar a problema nesses ter­mas para fazer aparecer urn desprop6sito. Cary Grant, com efeito, e excelente nesse tipo de papel, mas fica claro que aguLn40 $C Ira' a Ilrecjsamente de desempenbar 11m papel , , sim de 5ullrimjr ate sua ideia. Era preciso qlle 0 operano foSS( a urn 56 tempo lao I)Crfei­to, an6nimo e objetiyo Quanto sua bjcjdeta..

Tal concePcAo do ator n110 ~ menos "artistica" do que a outra. A interpretac110 do operario implica tantos dotes fisicos, inteligen-

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cia, compreensao das diretivas do diretor quanto a de urn ator con­sagrado. Ate entao os filmes total ou parcialmente sem atores (por exemplo, Tabu, Que viva Mexico, Mae) apresentavam-se antes como exit os excepcionais ou restritos a algum genero preciso. Nada impede, em contrapartida, De Sica (a nao ser uma sabia pru­dencia) de fazer 50 filmes como Ladroes de bicicleta. E sabido, des de entao, que a ausencia de atores profissionais nao envolve necessariamente nenhuma limita~ao na escolha dos temas. 0 cinema an6nimo conquistou definitivamente sua existencia estetica. 0 que nao quer dizer de modo algum que 0 cinema do futuro deva ser sem atores - De Sica e 0 primeiro a se defender disso, ele que, alias, e urn dos maiores atores do mundo -, mas simplesmente que ~rtos temas tratadosem certo estilo na.o.opodem mais se-lo com ata·res profissionais, e que 0 cinema Italiano imp6s definitiva­mente essas condi~oes de trabalho tao simples mente quanto 0 cena­rio verdadeir~l< essa passagem..da proeza adminivel, mas Wvez prt!£.aria, a ul!13..t~c;nica pr.ecisa e.inJaliYeL,cmeJ!larc_aum(,l fase de cresciIJlento decisivo do "neo-realismo" Italiano.

Ao desaparecimentQdaJlOcaO de ~tQrna. transparencia de uma perfeI9a;)aparentemente natural como a propria vida, res­ponde 0 desaparecimento da mise-en-scene. Entendamo-nos: 0 filme de De Sica teve uma prepara~ao demorada e tudo foi tao minucio­samente previsto quanto numa superprodw;:ao de estudio (0 que, alias, permitiu as improvisa~oes de ultima hora), ma.s_nao me lem­bro de urn s6 plano no qual urn efeito dramatic·ovlesse da "decu­pagem" propriamente dita. Esta parece ser tao neutra quanto num filme de Carlitos. Entretanto, se analisarmos 0 filme, descobrire­mos urn numero e uma nomenclatura de pianos que nao distin­guem sensivelmente Ladroes de bicicleta de urn filme comum. Mas a escolha deles tende apenas para uma valorizac;ao mais lim­pida do evento, com urn minimo de indice de refrigencia pelo estilo. Tal objetividade e bern diferente da de Rossellini em Paisa, mas ela se inscreve na mesma estetica. Poderiamos aproxima-la daquilo que Gide e sobretudo Martin du Gard dizem da prosa romanesca, que ela deve tender para a mais neutra transparencia. Como 0 desaparecimento do ator eo resultado de uma ultrapassa­gem do estilo da interpreta~ao, 0 desaparecimento da mise-en-scene e igualmente 0 fruto de urn progresso dialetico no estilo do relato. Se 0 evento basta a si mesmo sem que 0 diretor tenha necessidade de esc1arece-lo com i'mgulos ou arbitrariedades da camera, e por­que ele conseguiu chegar aquela luminosidade perfeita que per-

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mite a arte desmascarar uma natureza que afinal se parece com era:-por i~'so aTmpressao que nos deixa Ladroes de bicicleta e cons­tantemente a da verdade.

Se a suprema naturalidade, esse sentimento de acontecimentos observados por acaso horas a fio, e 0 resultado de todo urn sis­tema estetico presente (embora invisivel), e em definitivo a concep­c;ao preliminar do roteiro que a autoriza. Desaparecimento do ator, desaparecimento da mise-en-scene? Sem duvida, mas porque no principio de Ladroes de bicicleta ha, antes de tudo, Q desapare­cimento da historia. A palavra e equivoca. Por certo ha uma historia, mas sua natu­reza e diferente daquelas que vemos normal mente nas telas; e foi por isso mesmo que De Sica nao achou nenhum produtor. Quando Roger Leenhardt, numa formula critica profetica, perguntava naquela epoca "se 0 cinema era urn espetaculo?", ele queria opor o cinema dramatico a uma estrutura romanesca do relata cinema­tograflco. -6-p-rTmeir(; toma -~p~~tad~ do teatro suas for~as escondidas: sua intriga, poT mais especificamente concebida que seja para a tela, e sempre 0 alibi de lima a~ao identica, em sua essencia, a aC;ao teatral classica. Como tal, 0 filme e urn espeta­culo, como a representac;ao no palco. Ma~-por outro lado, por seu realism~~J2elaiguald.ad~4lle-.ele .concede ao homem e a natu­reza:-o-;i~ema se aparenta esteticamente ao rQmance.

Sem nos estendermos sobre uma teoria, sempre contestavel alias, do romance, digamos grosso modo que 0 relato romanesco, ou 0 que se aparenta a ele, se opoe ao teatro pel a primazia do acon­tecimento sobre a ac;ao, da sucessao sobre a causalidade,-rla.inteli­gencia sobre a vontade. Se quisermos, a conjun~ao teatral e 0

"portanto", a particula romanesca 0 "entao". Talvez essa defini­c;ao escandalosamente aproximativa esteja certa pelo seguinte: ela caracteriza bast ante bern os dois movimentos de pensamento do leitor e do espectador. Proust pode nos prostar com sua Madeleine, mas 0 autor dramatico fracassa se cada uma de suas replicas nao mantiver teso nosso interesse pela replica seguinte. Por is so 0

romance pode ser fechado e reaberto, enquanto a peC;a e indivisi­vel. 8. unidade tel)1J1OJ".al de> 0spetacu!-o fal': parte·d€ sua es£e1!ci~. Enquanto realiza as condic;oes fisicas do espetaculo, o cinema nao pa·r-ecepoderescapar-asuas leis psicologicas, mas ele dispoe tam­bern de todos osreCl.l.rSQS do romance. Com isso 0 cinema e, sem duvida, congenitamente hibrido: ele contem uma contradic;ao. Ora, e evidente que a via progressiva do cinema se dirige para 0

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aprofundamento de suas virtualidades romanescas. Nao que seja­mos contra 0 teatro filmado, mas convenhamos que se a tela pode, em certas condic;oes, desenvolver e como que desdobrar 0

teatro, e necessariamente em detrimento de certos valores especifi­camente cenicos e, em primeiro lugar, da presenc;a fisica do ator. Em contrapartida, 0 romance nao tern (ao menos ideal mente) nada a perder no cinema. Podemos conceber 0 filme como urn super-romance cuja forma esc rita nao seria senao uma versao enfraquecida e provisoria.

Posto isso de modo por demais breve, 0 que acontece, nas condic;oes atuais, no espetaculo cinematografico? E praticamente impossivel ignorar na tela as exigencias espetaculares e teatrais. Resta saber como resolver a contradiC;ao.

Constatemos. em primeiro lugar, que 0 cinema italiano atllal e 0 tinico no mundo a,~a,Wfag0m--de-abaOOonar deliberada­mente os- frrlJ~erati-",o~-espe~acu-'~r~s. La terra trema e Ceu sobre 0

pantano sao fjlmes sem "acao". cujo desenrolar (de urn romanesco urn pouco epico) !!~.2_ concede nada a tens30 dramatica __ Qs..a~ cimentos surgem a,lj na.sua hora._ UD~_a.p<?_L o§. outrg~_L D1~s ~ada urn deles tem- 0 m~_~I!lQ peso_Se alguns sao 'D<;lt~arregados~ , tido, 0 sao somente a posteriori. Cabe a nos substituir mentalmente o "portanto" ao "entao". La terra trema, principalmente, e por isso, urn filme "maldito", quase inexploravel no circuito comer­cial, a nao ser depois de mutilac;oes que 0 tornem irreconhecivel.

E esse 0 merito de De Sica e de Zavattini a T adrQf.§.A~}2ki: cleta deles e constrllidocDm(} -llHlat.a~a.-~-caLepedra. NenliumaTm~gein que naoseja carregada de uIllaforc;adramatica extrema, rIias nenhuma tambem a qual nao pudessemos nos inte­ressar independentemente da seqiiencia dramatica,~ filmeJie desenrola no plano do acidentaLpuro: a chuva, os seminaristas, os "quakers" catolicos, 0 restaurante ... J~os esses acontecimeI}:­tos, parece, ~~9jI1tt!EIlllltclyei§_Lne~huma von!aQ~r~~e organiza­los conforme umespectrodramatko. A cena no bairro dos ladroes e significativa. Nao temos sequer certeza de que 0 cara perseguido pelo operario seja mesmo 0 ladrao da bicicleta, e nunca sabere­mos se sua crise de epilepsia foi simulada ou veridica. ~nquanto "aC;ao", es~eoperario seria urn disparate .. ja que nao leva a lugar algum, caso seu interesse romanesco, seu valor de fato nao Ihe res­tituisse adicionalmente urn sentido dramatico.

E, com efeito, alem e paralelamente, que a aC;ao se constitui, nao tanto como um'a tensao mas pela "somalidoseventbs. Espe-

LADROES DE BICICLETA 277

taculo, se quisermos - e que espetaculo! -, Ladroes de bicicleta ia nao depende em nada, contudo, das matematicas element ares do drama, a aC;ao nao preexiste a ele como uma essencia, ela decorre da exTsi~eliminardorelato, ela e a "1ntegral"cla-­realicfade-:() exito supremo de De Sica~do quafouiros so conse­guiram Cbegar m<;llsoiimenos'perto-;e-ae -tef- saofd6 encontrar a dialetica cinematografica capaz _d~ uJt[apassar a contradiC;ao da aC;ao espeta'cUTiiiTCfOllcQntecimento. Com isso, Ladro?'~Jiel2i<;i-_ c1eta e urn dos primeiro.5 exemp\os.de ~l1lapur9. Nada de ato­res, clehlst6rla,de~ise-en-scene, vale dizer, enfim, na ilusao este ... tica perfelta da realidade: nada de cinema.

NOTAS

L Esprit, novembro de 1949,

2. Este panigrafo, em honra do cinema ingles, mas nao em honra do autor, e man­tido aqui como testemunho das ilusoes criticas que nao fui 0 imico a ter sobre 0

cinema Ingles do pas-guerra. Desencanto causou naquela epoca quase tanta impres­sao quanto Roma cidade aberta, 0 tempo encarregou-se de mostrar qual dos dois teria urn verdadeiro futuro cinematogrMico. Alem disso, 0 filme de Noel Coward e David Lean nao devia grande coisa it escola documentaria de Grierson, [Nota de Andre Bazin posterior ao artigo, provavelmente de 1956.]

3, CL Qu'est-ce que Ie cinema?, tomo III: "Cinema et Sociologie", Ed. du Cerf, Paris, 1961, p, 29,

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XXIII DE SICA DIRETORI

Devo confessar ao leitor, 0 escrupulo paralisa minha pena, tanto me parecem imperativos os motivos que deveriam proibir­me de the apresentar De Sica.

Em primeiro lugar, porque ha muita presunc;ao por parte de urn frances querer ensinar aos italianos alguma coisa sobre seu cinema em geral e, em particular, sobre aquele que talvez seja 0

seu maior diretor, mas, principalmente, porque a essa inquietac;ao te6rica preliminar se acrescentam no caso presente algumas outras objec;oes particulares. Quando, imprudentemente, tive a honra de aceitar apresentar aqui De Sica, tinha sobretudo em mente minha admirac;ao por Ladroes de bicicleta e ainda nao conhecia Milagre em Miliio. Haviamos, sem duvida, visto na Franc;a Vitimas da tor­menta e A culpa dos pais, porem, por mais bonito que seja Viti­mas da tormenta, filme que nos revelou 0 talento de Dt; Sica, ainda subsistem, ao lado de achados sublimes, algumas hesitac;oes de aprendizagem. 0 roteiro nao deixa de ceder as vezes a tentac;ao do melodrama e a mise-en-scene tern uma eloqiiencia poetica, urn lirismo, que De Sica hoje parece evitar. Em suma, 0 estilo pessoal do diretor ainda estava sendo buscado. 0 controle total e defini­tivo afirma-se em Ladroes de bicicleta, tanto assim que esse filme nos parece resumir todos os esforc;os daqueles que 0 precederam.

Mas sera que podemos julgar urn diretor por urn filme? Ele nos prova suficientemente a genialidade de De Sica, mas de modo algum necessariamente as formas que ela tomara futuramente. Como ator, De Sica nao e novato no cinema, mas devemos, no entanto, considera-Io "urn jovem" diretor, urn realizador de futu­ro. Atraves das profundas similitudes que nos esforc;aremos para compreender, Milagre em Mildo e urn filme bern diferente, pel a

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pirac;ao e pel a estrutura, de Ladroes de bicie/eta. Qual sera 0 pro­ximo filme? Sera que ele nao nos revelara a importancia dos filoes que permaneceram menores nas duas obras anteriores? Em suma, empreendemos, de fato, falar do estilo de urn realizador de pri­meira ordem sobre apenas duas obras, sendo que uma delas pare­ce, alem de tudo, desmentir a orientac;ao da outra. E pouco para quem nao confunde de modo algum a atividade do critico e a do profeta. E facil, para mim, explicar minha admirac;ao por Ladroes e Milagre, mas e outra coisa pretender extrapolar dessas duas obras os trac;os permanentes e definitivos do talento de seu autor.

Entretanto, nos 0 teriamos feito de born grado a proposito de Rossellini, a partir de Roma cidade aberta e de Paisa. 0 que poderiamos ter dito deles (e 0 que escrevemos efetivamente na Franc;a) corria fatalmente 0 risco de precisar ser aprimorado e cor­rigido pelos filmes seguintes, mas nao desmentido. E que 0 estilo de Rossellini e de uma familia estetica bern diferente. Ele mostra facilmente suas leis. Ele corresponde a uma visao de mundo ime­diatamente traduzida em estrutura de mise-en-scene. Se quisermos, o estilo de Rossellini e, antes de tudo, urn olhar, enquanto 0 de De Sica e, antes de tudo, uma sensibilidade. A mise-en-scene do primeiro investe seu objeto do exterior. Nao quero de modo algum dizer, e claro, sem 0 compreender nem sentir, mas porque tal exte­rioridade traduz urn aspecto etico e metafisico essencial as nossas relac;oes com 0 mundo. Basta, para compreender essa afirmac;ao, comparar 0 tratamento da crianc;a em Alemanha Ano Zero e em Vitimas da tormenta ou Ladroes de bicie/eta. 0 amor de Rossel­lini por seus personagens os envolve com uma consciencia desespe­rada da incomunicabilidade dos seres, 0 de De Sica irradia, ao contnirio, envolve ados proprios personagens. Sao 0 que sao, porem iluminados do interior pela temura que ele Ihes da. Dai a mise-en-scene de Rossellini se interpor entre sua materia enos, nao, por certo, como urn obstaeulo artificial, mas como uma dis­tancia ontologica intransponivel, uma enfermidade congenita do ser que se traduz esteticamente em termos de espac;o, em formas e em estruturas de mise-en-scene. Sendo sentida como uma falta, como uma recusa, urn esquivar das coisas, e portanto, em defini­tivo, como uma dor, fica mais faeil tomarmos consciencia dela, mais facil reduzi-Ia a urn metodo formal. Rossellini nao pode muda-Ia sem, em primeiro lugar, proceder a uma revoluc;ao moral pessoal.

Em contrapartida, De Sica e daqueles diretores que parecern nao ter outro proposito que 0 de traduzir fielrnente seus roteiros,

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cujo talento procede do amor que tern por seu tema e por sua com­preensao intima. A mise-en-scene parece modelar-se por si s6 como a forma natural de uma materia viva. Embora a partir de uma sensibilidade bern diferente, e com uma preocupac;ao formal bern visivel, Jacques Feyder, na Franc;a, tambem pertencia a essa familia de realizadores cujo unico metoda parece ser 0 de servir honestamente seu tema. E claro que essa neutralidade, e voltarei a falar sobre isso, e ilus6ria, mas sua existencia aparente nao faci­lita a tarefa do critico, ela divide a produc;ao do cineasta em tan­tos casos particulares que urn filme suplementar pode par tudo novamente em questao. A tentac;ao e grande, pois, de s6 ver pro­fissionalismo la onde se procura urn estilo, a generosa humildade de urn tecnico habil diante das exigencias do tema, em vez da marca criadora de urn verdadeiro autor.

A mise-en-scene de urn filme de Rossellini se deduz facilmente das imagens, enquanto que De Sica nos obriga a induzi-la de urn relata visual que parece nao comportar nenhuma.

Enfim e sobretudo, 0 caso de De Sica e ate aqui inseparavel da colaborac;ao de Zavattini, mais ainda, sem duvida, que, na Franc;a, 0 de Marcel Carne 0 e em relac;ao a Jacques Prevert. A hist6ria do cinema nao comporta provavelmente exemplo mais perfeito de simbiose entre 0 roteirista e 0 diretor. 0 fato de Zavat­tini colaborar em muitos outros filmes (enquanto Prevert escreve apenas poucos roteiros para outros alem de Carne) nao facilita de modo algum as coisas, muito pelo contrario: no maximo, ele permitira que se deduza que De Sica e 0 realizador ideal de Zavat­tini, aquele que melhor 0 compreende e mais intimamente. Temos exemplos de Zavattini sem De Sica, mas nao de De Sica sem Zavat­tini. E, portanto, com muita arbitrariedade que empreendemos distinguir 0 que pertence propriamente a De Sica, ainda mais que acabamos de constatar sua humildade, ao menos aparente, diante das exigencias do roteiro.

Por isso devemos renunciar a separar contra natureza 0 que o talento uniu tao intimamente. Que De Sica e Zavattini nos per­doem, e de antemao tambem 0 leitor, a quem meus casos de cons­ciencia nao interessam e que esperam que eu enfim me decida. Que fique, no entanto, bern claro, para 0 descanso de minha cons­ciencia, que nao pretendo nada alem de abordagens criticas que o futuro pora sem duvida em questao, e que sao apenas 0 test emu­nho pessoal de urn critico frances, em 1951, sobre uma obra cheia de promessas e cujas qualidades sao particularmente rebel des a analise estetica. Essa profissao de humildade nao e de modo algum

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uma precauc;ao orat6ria ou uma f6rmula de ret6rica. Pec;o-lhes insistentemente que acreditem que ela seja, antes de tudo, a medida de minha admirac;ao.

E pela poesia que 0 realismo de De Sica ganha seu sentido, pois ha em arte, no principio de todo realismo, urn paradoxo este­tico a ser resolvido. A reprodu<;:ao fiel da realidade nao e arte. Estao sempre nos dizendo que esta e escolha e interpretac;ao. Por isso, ate 0 presente momento, as tendencias "realistas" no cinema, como nas outras artes, consistiam apenas em introduzir mais rea­lidade na obra; tal suplemento de realidade, porem nao passava de urn meio - mais ou menos eficaz - de servir a urn prop6sito perfeitamente abstrato: dramatico, moral ou ideo16gico. Na Franc;a, 0 "naturalismo" corresponde precisamente a multi plica­c;ao dos romances das pec;as de tese. A originalidade do neo-rea­lismo Italiano em relac;ao as principais escolas realistas anteriores e a escola sovietica e de nao subordinar a realidade a nenhum ponto de vista a priori. Ate mesmo a teoria do Kino-glass, de Dziga Vertov, s6 utilizava a realidade bruta das atualidades para ordena-la sobre 0 espectro dialetico da montagem. De outro ponto de vista, 0 teatro, mesmo realista, dispoe da realidade em func;ao das estruturas dramaticas e espetaculares. Seja para servir aos inte­resses da tese ideo16gica, da ideia moral ou da ac;ao dramatica, o realismo subordina seus emprestimos a realidade a exigencias transcendentes. 0 neo-realismo s6 conhece a imanencia. E unica­mente do aspecto, da pura aparencia dos seres e do mundo que ele pretende, a posteriori, deduzir os ensinamentos neles conti­dos. Ele e uma fenomenologia.

No plano dos meios de expressao, 0 neo-realismo vai, portan­to, ao encontro das categorias tradicionais do espetaculo; em pri­meiro lugar, quanto a interpretac;ao. Em sua concepc;ao classica que procede do teatro, 0 ator expressa alguma coisa, urn senti­mento, uma paixao, urn desejo, uma ideia. Com sua atitude e sua mimica, ele permite aos espectadores ler sobre seu rosto como num livro aberto. Nessa perspectiva, fica combinado implicitamente entre 0 espectador e 0 ator que as mesmas causas psico16gicas pro­duzem 0 mesmo efeito fisico, e que se pode sem ambiguidade remontar de urn ao outro. E propriamente 0 que se chama "a interpretac;ao" .

Dai result am as estruturas de mise-en-scene: 0 cenario, a luz, ° angulo e 0 enquadramento da filmagem serao a imagem do com­portamento do ator, mais ou menos expressionistas. Elas contri-

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buem por seu lade a confirmar 0 senti do da ac;ao. Enfim, a de­composic;ao da cena em pIanos e a montagem destes equivale a urn expressionismo no tempo, a uma recomposic;ao do evento con­forme uma durac;ao artificial e abstrata: a durac;ao dramatica. Quase todos esses dados gerais do espetaculo cinematografico serao questionados pelo neo-realismo.

Em primeiro lugar, os da interpretac;ao. Ele pede ao interprete para ser antes de expressar. Tal exigencia nao implica necessaria­mente na renuncia ao ator profissional, mas e normal que ela tenda a substitui-Io pelo homem da rua, escolhido unicamente por seu comportamento geral, sendo sua ignonlncia da tecnica teatral menos uma condic;ao necessaria que uma garantia contra 0 expres­sionismo da "interpretac;ao". Para De Sica, Bruno era uma silhueta, urn rosto, urn andar.

As do cenario e da filmagem. 0 cenario natural e para 0 cena­rio construido 0 que 0 ator e para 0 profissional. Ele tern, por outro lado, como conseqiiencia, suprimir, ao menos parcialmente, as possibilidades de composic;ao plastica pela luz artificial que os estudios autorizam.

Talvez seja, porem, sobretudo a estrutura do relato a mais radical mente subvertida. Ela tern 0 dever de respeitar a verdadeira durac;ao do evento. Os cortes que a logica exige so poderiam ser, no maximo, descritivos; a decupagem nao deve de maneira alguma acrescentar algo it realidade que subsiste. Se ela participa do sen­tido do filme, como em Rossellini, e porque os vazios, os brancos, as partes do evento que nos deixam ignorar sao eles proprios de uma natureza concreta: pedras, que faltam no edificio. Como na vida nao sabemos tudo 0 que acontece aos outros. A elipse na montagem classica e urn efeito de estilo; em Rossellini, ela e uma lacuna da realidade, ou antes, do conhecimento que temos dela e que e por natureza limitado.

Assim, 0 neo-realismo e uma posic;ao ontologica antes de ser estetica. Por isso, a aplicac;ao de seus atributos tecnicos como uma receita nao 0 reconstitui necessariamente. Como a rapida decadencia do neo-realismo americano 0 prova. E, ate mesmo na Halia, falta muito para que todos os filmes sem atores, inspirados num fait divers e rodados em externas, valham mais que os melo­dramas tradicionais e espetaculares. Em contrapartida, e licito chamar de neo-realismo urn filme como Crimes da alma, de Miche­langelo Antonioni, pois, apesar dos atores profissionais, da arbi­trariedade policial da intriga, de certos cenarios luxuosos e dos tra­jes barrocos da heroina, 0 realizador nao recorre a urn expressio-

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nismo exterior aos personagens, ele funda todos seus efeitos sobre a maneira de existir, de chorar, de andar e de rir deles. Eles sao pegos no dedalo da intriga como os ratos de laboratorio, obriga­dos a passar por urn labirinto.

Imagino que vaG opor a isso a diversidade dos estilos nos melhores cineastas italianos. Zavattini e 0 unico que conhec;o a ousar, sem vergonha, confessar-se neo-realista. A maioria protesta a existencia de uma escola realist a italiana que os engloba. Mas isso e urn reflexo de criador em relac;ao aos criticos. Enquanto artista, 0 diretor tern mais consciencia de suas diferenc;as do que de seus trac;os comuns. 0 termo neo-realista foi jogado como uma rede sobre 0 cinema Italiano do pos-guerra, todos procuram rasgar por sua conta as malhas onde se pretende prende-los. Mas apesar de tal reac;ao normal, que tern a vantagem de nos fazer refletir cada vez sobre uma classificac;ao critica por demais comoda, penso que ha boas razoes para mante-la, fosse contra os proprios interessados.

A definic;ao sucinta que acabei de dar do neo-realismo pode parecer, por ceTto, superficialmente desmentida pela obra de urn Lattuada, de visao calculista, sutilmente arquitetural, pela exube­rancia barroca, a eloqiiencia romantica de urn De Santis, pelo sen­tido teatral refinado de urn Visconti, que com poe a realidade mais vulgar como uma mise-en-scene de opera ou de tragedia classica. Tais epitetos sao sumarios e contestaveis, mas em nome de outros epitetos possiveis, que confirmariam, por conseguinte, a existencia das diferenc;as formais, das oposic;oes de estilo. Esses tres direto­res sao tao diferentes uns dos outros quanto de De Sica. E, no entanto, 0 parentesco comum deles fica evidente se olharmos urn pouco mais de cima e sobretudo se, deixando de comparar esses cineastas entre eles, nos referirmos aos cinemas americanos, fran­ces ou sovietico.

Acontece apenas que 0 neo-realismo nao existe fatalmente em estado puro, e que nao podemos conceber sua combinac;ao com outras tendencias esteticas. Os biologos, porem, distinguem nas caracteristicas hereditarias decorrentes de parentes dissemelhantes certos fatores ditos dominantes. E 0 que ocorre com 0 neo-rea­lismo. A teatralidade exacerbada de urn Malaparte, em 0 Cristo proibido, pode dever muito ao expressionismo alemao; 0 filme nao deixa de ser realista, radicalmente diferente do que foi 0 expres­sionismo realista de urn Fritz Lang, por exemplo.

Afastei-me, porem, aparentemente muito de De Sica. Foi ape­nas para poder melhor situa-Io na produc;ao italiana contempora-

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nea. E possivel, com efeito, que a dificuldade da abordagem cri­tica sobre 0 realizador de Milagre em Milao fosse justamente 0

indicio mais significativo de seu estilo. Sera que a impossibilidade em que nos encontramos de analisar suas caracteristicas formais nao procede do fato de ele representar a expressao mais pura do neo-realismo, do fato de Ladroes de bicicleta ser como que 0

ponto zero de referencia, 0 centro ideal em torno do qual gravitam sobre sua orbita particular as obras dos outros grandes diretores? Seria essa propria pureza que a tornaria indefinivel, ja que tern como proposito paradoxal nao 0 de fazer urn espetaculo que pare~a real, e sim, de modo inverso, 0 de instituir a realidade em espetaculo: urn homem anda na rua e 0 espectador se surpreende com a beleza do homem que anda. Ate maiores informa~6es, ate que seja realizado 0 sonho de Zavattini de filmar sem montagem 90 minutos da vida de urn homem, Ladroes de bicicleta e, incon­testavelmente, a expressao extrema do neo-realismo. 2

Pelo fato de ela ter precisamente por objeto negar a si propria, por ser perfeitamente transparente a realidade que ela revela, seria, no entanto, ingenuidade concluir que tal mise-en-scene nao exista. E inutil dizer que poucos filmes foram mais minuciosamente pre­parados, mais meditados, mais cuidadosamente elaborados, porem todo 0 trabalho de De Sica tende a dar a ilusao do acaso, a fazer com que a necessidade dramatica tenha 0 carater da contingencia. Ou melhor, ele conseguiu fazer da contingencia a materia do drama. Nada acontece em Ladroes de bidcleta que nao pudesse ter acontecido: 0 operario poderia por sorte, no meio do filme, encontrar sua bicicleta, as luzes da sala seriam acesas e De Sica viria se desculpar por nos ter incomodado, mas, no final das con­tas, ficariamos mesmo assim contentes pelo operario. 0 maravi­Ihoso paradoxo desse filme e que ele tern 0 rigor da tragedia e que, no entanto, tudo acontece por acaso. Mas e justamente da sintese dialetica dos valores contrarios da ordem artistica e da desordem amorfa da realidade que ele tira sua originalidade. Nao ha nenhuma imagem que nao esteja carregada de sentido, que na~ enterre na mente a ponta aguda de uma verdade moral inesquecivel, nenhuma tambem que traia por trair a ambiguidade ontologica da realidade. Nenhum gesto, nenhum incidente, nenhum objeto e ali determi­nado a priori pela ideologia do diretor. Se eles se ordenam com clareza irrefutavel no espectro da tragedia social, e como os gnios de limalha no espectro do ima: separadamente. Porem, 0 resul­tado des sa arte on de nada e necessario, onde nada perdeu 0 canl­ter fortuito do acaso, e justamente 0 de ser duplamente convin-

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cente e demonstrativa. Pois, afinal, nao e surpreendente que 0

romancista, 0 dramaturgo ou 0 cineasta nos fa<;am encontrar esta ou aquela ideia: e que eles as colocaram ali de antemao, impregna­ram sua materia com elas. Ponha sal na agua, fa<;a com que a agua evapore no fogo da reflexao e reencontrarao ali 0 sal. Mas se a agua e pega diretamente na fonte, e da natureza dessa agua ser salgada. Bruno, 0 operario pode achar sua bicicleta como pode ganhar na loteria (ate os pobres ganham na loteria), mas esse poder virtual apenas salient a ainda mais a atroz impotencia do homem pobre. Se ele achasse sua bicicleta, entao a enormidade da sorte condenaria ainda mais a sociedade, ja que ela faria da volta a ordem humana, a felicidade mais natural, uma especie de mi­lagre sem pre~o, urn favor exorbitante: significaria a sorte de nao ser ainda mais pobre.

Podemos ver 0 quanto esse neo-realismo esta longe da concep­<;ao formal que consiste em vestir uma historia com a realidade. Quanto a tecnica propriamente dita, Ladroes de bicicleta foi, como muitos outros filmes, rodado na rua com atores nao-profis­sionais, mas seu verdadeiro merito e bern outro: e 0 de nao trair ~ essencia das coisas, de as deixar _em principio existir por si so hvremente, de as amar em sua singularidade particular. Minha irma, a realidade, diz De Sica, e a realidade gira em torno dele como os passaros em torno de Poverello. Outros colocam-na na gaiola e Ihe ensinam a falar, mas De Sica conversa com ela, e e a verdadeira linguagem da realidade que percebemos, a palavra irre­futavel que so 0 amor podia expressar.

Para definir De Sica e preciso, portanto, remontar a pr6pria origem de sua arte, que e a ternura e 0 amor. 0 que Milagre em Milao e Ladroes de bicic/eta tern em comum, apesar das divergen­cias mais aparemes do que reais (que seria faeil demais enumerar), e a afei~ao inesgotavel que 0 autor tern por seus personagens. E significativo que, em Milagre em Milao, nenhum dos maus, e sequer dos orgulhosos ou traidores, sao antipaticos. 0 judas do terreno baldio que vende os casebres de seus companheiros ao vul­gar Mobbi nao suscita a raiva do espectador. Ele nos divertiria antes, com sua fantasia de "vilao" de melodrama, que ele usa desa­jeitadamente: e urn traidor "born". Tambem os novos pobres que conservam na degrada~ao a arrogancia dos bairros nobres nao passam de uma variedade da fauna humana, e nao sao, portanto, excluidos da comunidade dos vagabundos, mesmo se fazem pagar uma lira pelo par do sol. E e preciso amar do mesmo modo 0 par

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do sol para ter a ideia de cobrar 0 espetaculo, como para aceitar tal comercio de tolos. Podemos notar que, em Ladroes de bicicleta, nenhum dos personagens principais e antipatico. Sequer 0 ladrao. Quando Bruno consegue enfim por as maos em cima dele, 0

publico estaria moralmente disposto a lincha-Io (como a multidao o teria feito urn pouco antes de Bruno). Mas 0 achado genial da cena e justamente nos obrigar a engolir a raiva tao logo ela surge, e desistir de julgar como Bruno desistira de dar queixa. Os unicos personagens antipaticos de Milagre em Miltio sao Mobbi e seus companheiros, mas no fundo eles nao exist em realmente, e sao ape­nas simbolos convencionais. No momento em que De Sica os mos­tra de urn pouco mais de perto, por pouco nao sentimos surgir uma curiosidade terna por eles. "Pobres ricos", somos tentados a dizer, "como estao decepcionados". Ha varias maneiras de amar, inclusive a Inquisi~ao. As eticas e as politicas do amor estao amea­~adas pel as piores heresias. Desse ponto de vista, 0 odio e muitas vezes terno. Mas a afei~ao que De Sica tern por suas criaturas nao Ihes faz correr nenhum risco, ela nada tern de amea~ador ou de abu!.ivo, e uma gentileza cortes e discreta, uma generosidade libe­ral, e que nao exige nada em troca. A caridade nao entra ai, fosse pelo mais pobre ou pelo mais miseravel, pois a caridade violenta a dignidade de quem e seu objeto. Ela domina sua consciencia.

A ternura de De Sica tern uma qualidade bern particular, e por isso dificilmente se presta a qualquer generaliza~ao moral, reli­giosa ou politica. As ambiguidades de Milagre em Miltio e de Ladroes de bicicleta foram amplamente utilizadas pelos democra­tas-cristaos ou pelos comunistas. Melhor assim: cabe as verdadei­ras parabolas dar uma parte a todos. Nao me parece que De Sica e Zavattini tent am dissuadir quem quer que seja. Nao ousarei afir­mar que a gentileza de De Sica tern mais valor "em si" que a ter­ceira virtude teologal ou que a consciencia de classe, mas vejo na modestia de sua posi~ao uma vantagem artistica obvia. Ela garante sua autenticidade e, ao mesmo tempo, Ihe as segura sua universali­dade. Tal inclina~ao ao amor e menos uma questao de moral que de temperamento pessoal e etnico. Uma disposi<;ao bem-sucedida natural que se desenvolveu num clima napolitano; eis 0 que con­cerne a autenticidade. Mas essas raizes psicologicas estao mais pro­fundamente enterradas que as camadas de nossa consciencia culti­vadas pelas ideologias partidarias. Paradoxalmente, e devido a qualidade singular, ao sabor inimitavel delas, ja que nao foram catalogadas nos herbarios dos moralistas e dos politicos, elas esca-

DE SICA DIRETOR 287

pam a censura deles, e a gentileza napoli tan a de De Sica torna-se, gra<;as ao cinema, a mais vasta mensagem de amor que nosso tempo teve a sorte de ouvir des de a de Chaplin. Se tivessemos duvida de sua importancia, bastaria salientar a presteza com que a critica partidaria procurou anexa-Ia em seu dominio: qual 0 par­tido, com efeito, que poderia deixar 0 amor para 0 outro? Nossa epoca nao tolera mais 0 amor livre. Mas ja que todos podem rei­vindicar, com a mesma verossimilhan<;a, a propriedade deste, e tambem 0 amor autentico, 0 amor ingenuo que atravessa os muros das cidadelas ideologicas e sociais.

Rendamos gra<;as a Zavattini e a De Sica pela ambiguidade de sua posi~ao, e evitemos ver nisso uma habilidade intelectual, no pais de Don Camillo, a preocupa<;ao totalmente negativa de dar garantias a todos para obter todos os carimbos da censura. Trata-se, ao contrario, de uma vontade posit iva da poesia, 0 estra­tagema de urn enamorado que se expressa at raves das metaforas de seu tempo, mas tomando 0 cuidado de escolhe-Ias para abrir todos os cora~5es. Se fizeram tantas tentativas de exegese politica de Milagre em Mitao, foi porque as alegorias sociais de Zavattini nao sao a ultima instancia de seu simbolismo, os proprios simbo­los sendo apenas alegoria do amor. Os psicanalistas nos ensinam que nossos sonhos sao 0 contrario perfeito de uma manifesta<;ao livre de imagens. Se eles express am algum desejo fundamental, mascarando-se de urn duplo simbolismo, geral e individual, e para atravessar necessariamente 0 dominio do "super-ego". Mas tal censura nao e negativa. Sem ela, sem a resistencia que ela op5e a imagina~ao, 0 sonho nao existiria. So podemos considerar Mila­gre em Miltio como a tradu<;ao, no plano de onirismo cinematogra­fico e at raves do simbolismo social da ltalia contemporanea, do born cora<;ao de Vittorio De Sica. Assim ficaria explicado 0 que ha de aparentemente esquisito e inorganico nesse filme estranho, cujas solu<;5es de continuidade dramatica e indiferen<;a a qualquer logica narrativa poderiamos dificilmente compreender de outro modo.

Observemos, de passagem, 0 que 0 cinema deve ao amor das criaturas. Nao conseguiriamos compreender inteiramente a arte de urn Flaherty, de urn Renoir, de urn Vigo e sobretudo de urn Chaplin se nao procurassemos antes de que variedade particular de ternura, de que afei<;ao sensual ou sentimental seus filmes sao o espelho. Acredito que, mais do que qualquer outra arte, 0 cinema e a arte propria ao amor. 0 proprio romancista, em suas rela<;5es

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com seus personagens, precisa mais de inteligencia que de amor; sua maneira de amar e principal mente de compreender. A arte de urn Chaplin, transposta para a literatura, nao poderia evitar urn certo sentimentalismo; foi 0 que permitiu a urn Andre Suares, homem de letras por excelencia, evidentemente impermeavel a poe­sia cinematografica, de falar do "cora~ao vii" de Carlitos; esse cora~ao, porem, encontra no cinema a nobreza do mito. Cada arte, e cada fase da evolu~ao de cada uma delas, tern sua escala de val ores especifica. A sensualidade tema e divertida de urn Renoir, a mais dilacerante de urn Vigo encontram na tela urn tom e uma tonica que nenhum outro meio de expressao poderia Ihes ter dado. Entre tais sentimentos e 0 cinema existe uma afinidade misteriosa que por vezes e recusada aos maiores. Ninguem alem de De Sica pode hoje pretender a heran~a de Chaplin. J a observa­mos como, enquanto ator, ha nele uma qualidade de presen~a, uma luz que metamorfoseia sorrateiramente 0 roteiro e os outros interpretes, a ponto de nao podermos pretender interpretar diante de De Sica como se alguma outra pessoa desempenhasse 0 mesmo pagel. Nao conhecemos na Fran~a 0 interprete brilhante dos fil­mes de Camerini. Foi preciso que ele se tornasse celebre como dire­tor para que seu nome fosse notado pelo publico. Ele nao tinha entao urn fisico de gala, porem, quanto mais seu charme era sensi­vel, menos ele era explicavel. Mero ator nos filmes de outros cine­astas, De Sica ja e diretor, pois sua presen~a modifica 0 filme, influencia seu estilo. Urn Chaplin concentra sobre si mesmo, nele mesmo, a irradia~ao de sua ternura, 0 que faz com que a cruel­dade nem sempre seja excluida de seu universo; muito pelo contra­rio, ela tern, com 0 amor, uma rela~ao necessaria e dialdica, como podemos nota-Io em Monsieur Verdoux. Carlitos e a pro­pria bondade projetada no mundo. Ele est a pronto para amar tudo, mas 0 mundo nem sempre the responde. Em compensa<;ao, parece que De Sica diretor difunde em seus interpretes 0 amor potencial que ele possui como ator. Chaplin tambem escolhe seus interpretes com cuidado, mas e sabido que ele sempre 0 faz em rela<;ao a si mesmo, e para iluminar melhor seu personagem. A humanidade de Chaplin e encontrada em De Sica, mas universal­mente repartida. De Sica tern 0 dom de comunicar uma intensi­dade de presen<;a humana, uma gra<;a desconcertante do rosto e do gesto que, em sua singularidade, testemunham irreversivelmente em favor do homem. Ricci (Ladroes de bicicleta), Toto (Milagre em Mildo) e Umberto D, por mais afastados que estejam fisicamente de Chaplin e de De Sica, nos fazem contudo pensar neles.

DE SICA DlRETOR 289

Estariamos enganados se pensassemos que 0 amor que De Sica tern pelo homem, enos obriga a Ihe manifestar, seja 0 equiva­lente de urn otimismo. Se ninguem e real mente mau, se diante de cada hom em singular somos obrigados a abandonar a acusa<;ao, como Ricci diante do ladrao, e preciso dizer entao que 0 mal que, no entanto, existe no mundo, esta num lugar que nao e 0 cora<;ao do homem, que ele est a em algum lugar na ordem das coisas. Pode­riamos dizer: na sociedade, e teriamos em parte razao. De certo modo, Ladroes de bicicleta, Milagre em MUdo e Umberto D sao requisitorios de carMer revolucionario. Sem 0 desemprego, a perda da bicicleta nao seria uma tragedia. Mas e evidente que tal explica­<;ao politica nao da conta de todo 0 drama. De Sica protest a con­tra a compara<;ao de Ladroes de bicie/eta com a obra de Kafka, sob pretexto que a aliena~ao de seu heroi e social e nao metafisica. E verdade, mas os mitos de Kafka nao perdem nada de seu valor se os considerarmos como alegoria de certa aliena<;ao social. Nao e necessario crer em urn Deus cruel para sentir a culpa do senhor K. 0 drama, ao contrario, consiste nisso: Deus nao existe, 0 ultimo escritorio do castelo esta vazio. E essa, talvez, a tragedia especi­fica do mundo moderno, a passagem para a transcendencia de uma realidade social que pari sozinha sua propria deifica~ao. Os sofrimentos de Bruno e de Umberto D. tern causas imediatas e visi­veis, mas percebemos que ha tambem urn residuo insoluvel, feito da complexidade psicologica e material das rela~oes sociais, e que tanto a excelencia das institui~oes quanto a boa vontade de nosso proximo nao podem bastar para fazer desaparecer. A natureza desse nao e menos positiva e social, mas sua a<;ao nasce, todavia, de uma fatalidade absurda e imperativa. E isso que faz, na minha opiniao, a grandeza e a riqueza do filme. Ele satisfaz duas vezes a justi<;a: atraves de uma descri<;ao irrecusavel da miseria do prole­tariado, mas tambem atraves do apelo implicito e constante de uma exigencia humana que a sociedade, qualquer que ela seja, tern o dever de respeitar. Ele condena 0 mundo onde, para sobreviver, os pobres sao obrigados a roubar entre si (~ policia defende muito bern os ricos), mas tal condena<;ao necessaria nao e suficiente, pois nao e apenas uma organiza<;ao historica dada que esta em causa, ou uma conjuntura economica particular, mas a indiferen<;a congenita do organismo social, enquanto tal, a aventura da felici­dade individual. Dito de outro modo, 0 paraiso terrestre estaria situado na Suecia, onde as bicicletas ficam noite e dia ao longo das cal<;adas. De Sica gosta demais dos homens, seus irmaos, para nao desejar que todas as causas possiveis da miseria deles desapa-

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rer;am, mas ele nos lembra tam bern que a felicidade de cada homem e urn milagre do amor, em Milao ou em outro lugar. Vma socie­dade que nao multiplica as ocasioes de sufoca-lo ja e melhor que a que semeia 0 odio, porem a mais perfeita ainda nao engendraria o amor, que continua a ser urn negocio privado, de homem para homem. Em que pais seriam conservadas as tocas de coelho em cima de urn campo de petroleo? Em que outro a perda de urn papel administrativo nao seria tao angustiante quanto 0 roubo de uma bicicleta? Esta na ordem da politica de conceber e promover as condir;oes objetivas da felicidade individual, mas nao faz parte de sua natureza respeitar as condir;oes subjetivas dela. E e aqui que 0 universo de De Sica esconde urn certo pessimismo necessa­rio e pelo qual nos nunca the seremos bastante gratos, porque nele reside 0 apelo das possibilidades do homem, 0 testemunho de sua ultima e irrefutavel humanidade.

Falei do amor, poderia ter dito poesia. As duas palavras sao sinonimos ou, pelo menos, complementares. A poesia nao e senao uma forma ativa e criadora do amor, sua projer;ao sobre 0 uni­verso. Embora estancada e devastada pel a desordem social, a infan­cia dos sciuscias manteve 0 poder de transformar sua miseria em sonho. Nas escolas primarias francesas ensina-se aos alunos: "Quem rouba urn ovo rouba urn boi". De Sica nos diz: "Quem rouba urn ovo sonha com urn cavalo". 0 poder milagroso de Toto, que the foi transmitido por sua avo adotiva, e ter conser­vado da infancia uma capacidade inesgotavel de defesa poetica: a gag que acho mais significativa em Milagre em Mildo e aquela na qual vemos Emma Gramatica se precipitar para 0 leite derrubado. Qualquer outra pessoa criticaria a falta de iniciativa de Toto e lim­paria 0 leite com urn pano, enquanto que a precipitar;ao da boa senhora nao tern por objetivo senao transformar a pequena catas­trofe num jogo maravilhoso, urn riacho no meio de uma paisagem com suas dimensoes. Ate a tabuada de multiplicar;ao, outro terror intima da infancia, que se torna, pela grar;a da velhinha, urn sonho. Toto urbanist a batiza as ruas e as prar;as "4 vezes 4 igual a 16" ou "9 vezes 9 igual a 81", pois esses frios simbolos matematicos sao para ele mais bonitos que os nomes mitologicos. Ainda aqui acontece de pensarmos em Carlitos; ele tambem deve ao espirito de infancia seu extraordinario poder de transformar 0 mundo para urn melhor uso. Quando a realidade the resiste, e que ele nao pode muda-la materialmente, ele muda seu sentido. Assim, em Em busca do ~Uro, a danr;a dos paezinhos, ou entao os sapatos na marmita, com a pequena diferenr;a de que Carlitos, sempre na

DE SICA DIRETOR 291

defensiva, reserva esse poder de metamorfose unicamente para sua vantagem, ou no maximo unicamente em prol da mulher que ele ama. Em Toto, ao contrario, ele irradia para os outros. Toto nao pensa urn so instante nas vantagens que a pomba poderia the ofe­recer, sua alegria se identifica com a que ele po de difundir a sua volta. Quando ele nao po de fazer mais nada pelo proximo, cabe­lhe ainda se transformar segundo imagens diversas, ora claudicando para 0 manco, pequeno para 0 anao, cego para quem so tern urn olho. A pomba nao e senao a possibilidade superflua de realizar materialmente a poesia, pois a grande maioria dos hom ens precisa de urn auxiliar para sua imaginar;ao, mas 0 proprio Toto nao sabe o que fazer com ela, se nao for para 0 bern dos outros.

Zavattini me disse: "Eu sou como urn pintor diante de uma campina e que se pergunta por que folhinha ele deve comer;ar". De Sica e 0 diretor ideal des sa profissao de fe. Ha a arte de pin­tar campinas como retiingulos de cor. E tam bern ados autores dramaticos que dividem 0 tempo da vida em episodios que, em comparar;ao com 0 instante vivido, sao aquilo que a folhinha e em relar;ao a campina. Para pintar cada folhinha e preciso ser 0

douanier Rousseau. No cinema e preciso ter pel a criar;ao 0 amor de urn De Sica.

Nota sobre Umberto D

Ate 0 dia em que vi Umberto D, eu considerava Ladroes de bicie/eta como 0 limite extremo do neo-realismo no que concerne a concepr;ao do relato. Hoje, me parece que Ladroes de bicie/eta ainda esta longe do ideal do tema zavattiniano. Nao que eu consi­dere Umberto D "superior". A superioridade sem igual de Ladroes de bicie/eta continua a ser a reconciliar;ao paradoxal de valores radical mente contraditorios: a liberdade do fato e 0 rigor do relato. Os autores, porem, so atingiram tal reconciliar;ao com 0 sacrificio da propria continuidade da realidade. Em Umberto D, varias vezes vislumbramos 0 que seria urn cinema verdadeiramente realista quanto ao tempo. Urn cinema da "durar;ao".

Devemos precisar que essas experiencias de "tempo continuo" nao sao de modo algum originais no cinema. Em Festim diab6lico, por exemplo, Alfred Hitchcock realizou urn filme de 90 minutos sem interrupr;ao. Trata-se, porem, justamente de uma "ar;ao", como no teatro. 0 verdadeiro problema nao se apresema em rei a­r;ao a continuidade da pelicula impressionada, mas em relar;ao a estrutura temporal do evento.

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2<)' ANDRe. BAZIN

"Em Umberw D, virias vezcs vislumbramos 0 que scrill. urn cinema vcrda~ ddTamente realists quanto ao tempo. Urn cinema da 'duraclo·."

Se Festim diab6lico p6de seT rodado sem mudanc;as de plano, sem parada de filmagem, e oferecer. no cntantc, urn espetaculo dramatico. foi porque as acontecimentos ja estavam ordenados oa obra tealral canforme urn tempo artificial: 0 tempo do teatro (como hi 0 da musica ou da danea).

Em pelo menos duas ceoas de Umberto D as problemas do lema e do raleira se apresentam de modo totalmente diferente. Trata-se ali de lornar espetacular e dramatico 0 pr6prio tempo da vida. a duracao natural de urn seT a quem nada de particular acontece. Pense notadamente no ato de se deitar de Umberto D, que entTa no quarto e pensa estar com (ehre, e, principaimente, no acordar da empregada. Essas duas seqiiencias constituem pro­vavelmente a performance limite de urn certo cinema. no plano daquilo que poderiamos chamar de "0 tema invisivel". i.~tO e, totalmente dissolvido no fala que ele suscitou. enquanto que, quando urn filme e tirado de uma "hist6ria", essa permanece dis­tinta como 0 esqueleto sem os musculos; podemos sempre "con­tar 0 filme".

A funl;Ao do tema nAo e aqui menos essencial, mas faz parte de sua natureza ser totalmenle reabsorvida pelo roteiro_ Se quiser-

01::. SICA DIRETOR 2<)'

mos, 0 tema existe antes, nllo existe mais depois. Depois, 56 hi 0 fato que ele pr6prio previu. Se pretendo contar 0 filme a alguem que n!o 0 viu, 0 que raz, por exemplo, Umberto D no quarto au Maria, a empregada, na cozinha. a que me resta para dizer? Urna poeira impaJpavel de gestos sem significal;llo, em que meu interlo­cutor nao podera ler a menor ideia da emOl;:ao que cativa 0 espec­tador. 0 tema e aqui de antem!o sacriflcado. como a cera perdida da fundil;llo de bronze.

No plano do roteiro, esse lipo de tema corresponde a urn roleiro imeiramente fundado no comportamenlo do alor. Ja que o tempo verdadeiro do relato nao e 0 do drama, mas a dural;!o concrela do personagem, tal objelividade nao pede se traduzir em mise-en-sane (roteiro e a~o) scnao alraVl!s de uma subjelivi­dade absoluta. Quero dizer que 0 filme se identifica absolutamente com aquilo que 0 ator faz, e sorneme com isso. 0 mundo exterior encootra-se reduzido ao pape:l acess6rio dessa a~o pura que se basta a si mesma, como algas que, sem ar. produzem 0 oxigenio de que precisam. 0 alor que representa uma certa ac!o, que "in­terpreta urn papel". se dirige sempre em parte a si pr6prio, pois se refere mais ou menos a urn sistema de convem;Oes dramaticas geralmente admitidas e ensinadas nos conservat6rios. Tais conven­I;Oes nao lhe ajudam em nada aqui: ele esta inleirarnente nas m!os do diretor nessa imital;Ao lotal da vida.

E claro que Umberro D nao e urn filme perfeilo como Lodrr}es de bidcleta. Mas hA para lal diferenca uma juslificativa: sua ambi­I;ao era superior. Menos perfeilo no conjunto, mas certamente mais perfeilo e mais puro em cerlos fragmentos: aqueles em que De Sica e Zavallini se mostrarn inleiramente fieis a estetica neo­realista. Por isso nao SIC deve acusar Umberto D de n!o sei que sentimentalisrno facil, de que apelo pudico a caridade social. As qualidades e ate os defeitos do filme estao alem das categorias morais ou politicas. Trata-se de urn " relat6rio" cinernalogn\fico, de uma constatal;llo desconcertante e irrefulavel sobre a condil;aO humana. Podemos ou nao apreciar que tal relal6rio seja feito sobre a vida de urn pequeno funcionario que vive numa pens!o familiar, ou a de uma jovem empregada gravida. mas e certo, em todo caso, que 0 que acabamos de saber sobre 0 velho ou sobre a menina, atraves de seus infortunios acidentais, concernem antes de tudo a condil;!O humana. Nao hesitarei em afirmar que o ci nema raramente foi tao longe na lomada de consciencia do fato de ser homem. (E tambem, afioal de contas, do fato de ser cachorro.)

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ANDRI! BAZIN

UmMrIO D: "0 cinema rarameme foi 1110 !onle na tomada de con§CI~nda do fato de stf homem. (E tambbn, afinal de cont.a.5. do fato de stf c:achorro)".

Ate 0 momento a literatura dramatica nos deu, sem duvida, urn conhecimento exato da alma humana, mas que, no que diz respeito ao homem, tern urn pouco da mesma relacao que a fisica ch\ssica com a materia: 0 que os eruditos chamam de uma macro­fisica, que s6 vale para os fen6menos de cerra escala. E e claro que 0 romance dividiu ao extremo tal conhecimento. A fisica sen­limental de Proust e microsc6pica. Mas a materia dessa microfi­sica do romance e interior: e a mem6ria. 0 cinema na.o substitui necessariamente 0 romance nessa busca do homem, mas e supe­rior a ele em pelo menos urn ponto: 0 de apreender 0 homem ape· nas no presente. Ao "tempo perdido e reencontrado" de Marcel Proust, corresponde de ceria forma 0 "tempo descoberto" de Zavattini; este e, no cinema contemporaneo, algo como 0 Proust do presente do indicativo.

NOTAS

I. Em tuto de 19S2 roi publicado em it.li.no pelas I:dilions Gu.nda (parma. 1953). {A prcsent~ tradu~o (oi (rita a partir de lua tradu~ rranCt5l .) (N.T .) 2. cr. nOla IObn~ Umbuto D no final do capitulo.

XXIV UMA GRANDE OBRA:

UMBERTOD'

Milogre em Mildo 56 provocou disc6rdia; a originalidade do roteiro, a mistura do fantastico e do cotidiano, 0 gosto de nossa epoca pela criptografia poUtica tinham suscitado em torno dessa obra ins6lita, na falta do entusiasmo geral que acolheu LadrfJes de bicicleta, uma espkie de sucesso de esdindalo (do qual Micheline Vian, com urn humor implacavel, desmontou perfeitamente 0

mecanismo num excelente artigo dos Temps Modernes). Em torno de Umberto D organiza·se uma conspiracAo do silencio, uma reti· cenda amuada e ferrenha, que fazem com que 0 pr6prio bern que se pode escrever parece condenar 0 filme a uma estima sem eco, enquanto que uma especie de rabugice surda, de desprezo (incon· fesso devido ao passado glorioso dos autores), animam secreta· mente a hostilidade de mais de urn critico. Nilo havera sequer bata· Iha de Umberto D. ..

Trata·se, no entanto, de urn dos filmes mais revolucionarios e mais corajosos nAo apenas do cinema italiano, mas da producAo euro.,eia dos ultimos dois anos, de uma pura obra-prima que a hist6ria do cinema certamente consagrara, se nAo sei que distracao ou que cegueira daqueles que gostam do cinema 0 deixem afundar no momento na mediocridade de uma estima reticente e ineficaz. Que 0 publico va fazer fila para ver Essas mulheres ou Frulo pro;­bido, 0 fechamento dos pronlbulos tern alguma coisa a ver com isso, mas aflnal de contas deve haver em Paris alguns mil hares de espectadores para esperar do cinema outrOS prazeres. Sera que vai ser preciso que Umberto D saia de cartaz antes do termo justa para a vergonha do publico parisiense1

A principal causa dos mal-entendidos sobre Umberto D reside na comparal;Ao com LadrDes de bidcJeta. Dirao, com alguma apa·

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urn e mais importante que 0 outro: ja que a igualdade ontol6gica deles destr6i, em seu pr6prio principio, a categoria dramatica. Vma seqiiencia prodigiosa, que permanecera como urn dos apices do cinema, ilustra perfeitamente tal concep<;ao do relato, e logo, da mise-en-scene: e 0 levantar matinal da empregada que a camera se limita a olhar em suas minimas ocupa<;oes matinais: rodando, ainda sonolenta, na cozinha, jogando agua nas formigas que inva­dem a pia, moendo 0 cafe ... 0 cinema se torna aqui 0 contrario dessa "arte da elipse" a qual facilmente gostamos de acreditar que ele est a fadado.

A eJipse e urn processo de relato 16gico e portanto abstrato; ela supoe a analise e a escolha, organiza os fatos conforme 0 sen­tido dramatico ao qual eles devem se submeter. De Sica e Zavat­tini procuram, ao contrario, dividir 0 evento em eventos menores e estes em eventos menores ainda, ate 0 limite de nossa sensibili­dade pela dura<;ao. Assim, a unidade-evento num filme classico seria 0 "acordar da empregada": dois ou tres pianos breves basta­riam para significa-Io. A essa unidade de relato, De Sica substitui uma seqiiencia de eventos menores: 0 acordar, a travessia do cor­redor, a inunda<;ao das formigas etc. Observemos, porem, mais urn deles. Vemos 0 fato de moer cafe se dividir, por sua vez, numa serie de momentos aut6nomos, como por exemplo, 0 fechar da porta com a ponta do pe esticado. Quando a camera segue, aproximando-se dela, 0 movimento da perna, serao as apalpade­las dos dedos dos pes na madeira que se tornarao finalmente 0

objeto da imagem. Sera que ja disse aqui que 0 sonho de Zavattini e fazer urn

filme continuo com 90 minutos da vida de urn homem a quem nada aconteceria? Para ele isso e 0 "neo-realismo". Duas ou tres seqiiencias de Umberto D fazem mais que deixar vislumbrar 0 que poderia ser tal filme: elas ja sao alguns de seus fragmentos realiza­dos. Nao nos enganemos, porem, sobre 0 sentido e 0 aicance, aqui, da no<;ao de realismo. Trata-se sem duvida, para De Sica e Zavattini, de fazer do cinema a assimptota da realidade. Mas para que seja, em ultima instancia, a pr6pria vida que vire urn espeta­culo, para que ela nos seja, nesse puro espelho, mostrada afinal como poesia. 0 cinema a transforma nela mesma, enfim.

NOTA

I. France-Observateur, outubro de 1952.

, '

XXV CABIRIA, OU A VIAGEM

AOS CONFINS DO NEO-REALISMOI

Nao sei, no momenta em que escrevo este artigo, qual sera a acolhida reservada ao ultimo filme de Fellini. Desejo que seja a altura de meu entusiasmo, mas nao escondo que elc pode encon­trar duas categorias de espectadores reticentes. A primeira estaria na parte popular do publico, aqueles que a hist6ria simplesmente decepcionani, com a mistura de algo ins61ito e de aparente inge­nuidade quase melodramatica. A prostituta de grande cora<;ao s6 lhes parecendo aceiulvel com tempero de serie nair. A outra per­tenceria a "elite", felliniana urn pouco a contragosto. Obrigada a admirar Na estrada da vida e mais ainda A trapara, por causa de sua austeridade e de seu lado do filme maldito: estou esperando que ela acuse Noites de Cabiria de ser urn filme bern feito demais, em que quase nada e deixado ao acaso, urn filme esperto e habil. Deixemos a primeira obje<;ao que nao traz serias conscqiiencias senao do ponto de vista das bilheterias. A segunda merece ser refu­tada com mais minucia.

E verdade que a menor surpresa sentida nas Noites de Cabi­ria nao e que, pela primeira vez, Fellini soube amarrar urn roteiro com as maos de mestre, uma a<;ao sem falhas, sem lengalenga e sem lacunas, na qual ele nao poderia fazer os cortes escuros e as retifica<;oes de montagem as quais foram submetidos Na estrada da vida e A trapara.2 E claro que Abismo de um sonho e ate mesmo Os boas-vidas nao foram construidos de modo desastroso, mas sobretudo a medida que a tematica especificamente felliniana se exprcssava ali no ambito dos roteiros relativamente tradicio­nais. Com Na estrada da vida, as ultimas muletas sao rejeitadas, a hist6ria ja nao e determinada pelos temas e pelos personagens,

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ela nao tern mais nada a ver com 0 que se chama uma intriga, talvez sequer a palavra "a<;ao" Ihe possa ser aplicada! 13 0 que acontece tambem com A trapara.

Nao que Fellini tenha desejado retornar aos alibis dramaticos de seus primeiros filmes, muito pelo contnirio. Noites de Cabiria situa-se para alem de A trapara, mas as contradi<;oes entre 0 que chamarei a tematica vertical do autor e as exigencias "horizon­tais" do relato estao, desta vez, perfeitamente resolvidas. 13 no inte­rior do sistema felliniano, e so nele, que as solu<;oes foram encon­tradas. Isso nao impede que nos enganemos e tomemos essa des­lumbrante perfei<;ao por uma facilidade, quando nao por uma trai­<;ao. Eu nao defenderia, alias, que, nesse ponto ao menos, Fellini nao tenha usado urn pouco de trapa<;a consigo mesmo: nao faz ele com que a surpresa atue no personagem de Fran<;ois Perier, cuja distribui<;ao me parece, alias, urn erro? Ora, e evidente que todo efeito de "suspense", ou somente todo efeito "dramcitico", e essencialmente heterogeneo ao sistema felliniano, no qual 0

tempo nao poderia servir de suporte abstrato e dinamico, de pano­rama a priori para a estrutura do relato. Em Na estrada da vida, como em A trapa(,:a, 0 tempo existe so mente como meio amorfo dos acidentes que modificam, sem necessidade externa, 0 desti­no dos herois. Os acontecimentos nao "ocorrem", mas eles caem ali, surgem dali, vale dizer, sempre conforme uma gravidade verti­cal e de modo algum para obedecer as leis de uma causalidade horizontal. Quanto aos personagens, eles so existem e mudam com referencia a uma pura dura<;ao interior, que eu sequer qualificarei de bergsoniana, na medida em que ados "Dados Imediatos da Consciencia" continua impregnada de psicologismo. Evitemos, concordo, os termos vagos do vocabulario espiritualista. Nao vamos dizer que a transforma<;ao dos hero is se efetua a nivel da alma. 13 preciso pois, ao menos, que seja naquela profundeza do ser on de a consciencia so envia raras raizes. Nem por isso a do inconsciente ou do subconsciente, mas antes la on de est a em jogo o que Jean-Paul Sartre chama "0 projeto fundamental", no nivel da ontologia. Por isso 0 personagem felliniano nao evolui: ele amadurece ou, em ultima analise, se metamorfoseia (dai a meta­fora das as as do anjo, sobre a qual voltarei a falar logo mais).

Urn falso melodrama

Limitemo-nos, por enquanto, a feitura do roteiro. Abandono, portanto, e repudio a surpresa de Oscar, trapaceiro retardado,

1 NOITES DE CABIRIA 301

em Noites de Cabiria. Fellini, alias, deve ter percebido seu pecado, pois, para consuma-Io ate 0 final, sequer hesitou em fazer Fran­<;ois Perier usar oculos escuros, quando ele vai virar "mau". Qual 0 problema?! 13 uma concessao minima, e eu desculpo tran­qiiilamente 0 realizador por ela, preocupado em evitar dessa vez os perigos extremos a que a decupagem sinuosa e por demais libe­ral de A trapara 0 tinha conduzido.

Ainda mais que ela e a (mica e que, para todo 0 resto, Fellini soube dar a seu filme a ten sao e 0 rigor de uma tragedia, sem recor­rer a categorias alheias a seu universo. Cabiria, a prostitutazinha de alma simples, cheia de esperan<;as, nao e urn personagem do repertorio melodramatico, pois as motiva<;oes de seu desejo de "sair daquilo" nada tern a ver com as ideias da moral ou da socio­logia burguesa, pelo menos enquanto tais. Ela nao despreza de modo algum sua profissao. E se existissem cafetoes de cora<;ao puro capazes de compreender as pessoas e de encarnar, sequer 0

amor, mas a confian<;a na vida, ela provavelmente nao veria nenhuma incompatibilidade entre suas esperan<;as e suas ativida­des noturnas. Ela nao deve uma de suas maio res alegrias, seguida de uma decep<;ao ainda maior, ao encontro casual com uma vedete famosa de cinema que, por bebedeira e dor de cotovelo, vai leva­la a seu suntuoso apartamento? 0 que faria suas amigas morrerem de inveja. Mas a aventura acabara de modo lamentavel, e e, no fundo, porque na pratica a profissao de prostituta so traz decep­<;oes, que ela deseja, mais ou menos conscientemente, sair dela para 0 amor impossivel de urn rapaz honesto que nao the pedira nada. Se chegamos, portanto, aparentemente a conclusao do melo­drama, e, em todo caso, por caminhos bern diferentes.

Noites de Cabiria, como Na estrada da vida, como A trapara (e, no fundo, como Os boas-vidas), sao a historia de uma ascese, de urn despojamento e, deem a isso 0 sentido que quiserem, de uma salva<;ao. A beleza e 0 rigor de sua constru<;ao procedem, dessa vez, da perfeita economia dos episodios. Cada urn deles, como disse acima, existe por e para si mesmo, em sua singulari­dade e pitoresco de acontecimento, mas ele participa dessa vez de uma ordem que sempre faz aparecer, posteriormente, sua abso­luta necessidade. Da espera a esperan<;a, tocando 0 fundo da trai­<;ao, do escarnio e da miseria, Cabiria segue urn caminho cujas paradas a preparam para a etapa que a aguarda. Pensando bern, ate mesmo 0 encontro do benfeitor dos mendigos, cuja intrusao me parece a primeira vista urn admiravel achado felliniano, revela-

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se necessaria para faUT Cabiria mais adiante cair na armadilha da confian~a: pais, se tais homens existem. lodos as milagres sa.o posslveis e, com cia, nae ficaremos desconfiados com 0 apareci­mento de PeTier.

Nao vou repetir mais uma Vel tudo 0 que se pode escrevcr da mensagem fclliniana. AJias, cia e sensivelmcnte a mesma desdc Os boas-vidas. scm que tal repeti~o seja. nalUraimenie. 0 sinal de uma tStcrilidadc. Muilo peJo cootnino, e a variedade pr6pria aos "diretores". senda a unidade de inspira!;ao 0 signa dos verdadeiros "autores". Talvez eu possa, POTern, tentar, a luz dessa nova obra­prima, elucidar urn poueD mais a essencia do eslilo de Fellini.

Urn re.Usmo das aparencias

Em principio, e absurdo e derris6rio pretender excl . I-lo do neo-realismo. Nao poderiamos, com cfcilO. pronunciar tal conde· na,,:io a n:io ser em nome de criterios puramente ideol6gicos. E verdade que 0 realismo felliniano, se ele e social em seu ponto de partida, nao 0 e em seu objeto, 0 qual e sem pre tao individual quanlO em Tchekh6v ou Dosloievski. 0 realismo, mais uma vez, nao se define pelos fins, mas pelos meios, e 0 neo· realismo por uma ceria rela"ao denes meios com seus fins. 0 que De Sica tern em comum com Rossellini e Fellini nao e com certeza a significa· "ao profunda de seus filmes - mesmo se acontece de essas signifi· cal;:6es mais ou menos coincidirem -, mas a primazia dada, tanto em uns quanto nos ouiros, i representa~Ao da realidade sobre as estruturas dram;hicas. Mais precisamente, a urn " realismo" que procede a urn 56 tempo do naluralismo rornanesco, pelo conl eildo, e do lealro, pelas estruluras, 0 cinema ilaliano substiluiu urn rea· lismo, digamos, para encurtar, "fenomenoI6gico", em que a reali· dade nao e corrigida em func;Ao da psicologia e das exigencias do drama. A rela~Ao entre 0 sentido e a aparencia encontrando--se, de certo modo. invert ida: esta sempre nos e proposta como uma descoberta singular, uma reve la~ao quase documentaria que con· seT'Va seu peso de pitoresco e de detalhes. A arte do diretor reside, pois, em sua destreza para fazer surgir 0 sentido desse evento. pelo menos aquele que ele Ihe atribui, sem com isso acabar com as ambiguidades. 0 neo·realismo assim definido nao e. portanto, de modo algum a propriedade dessa ideologia, au mesmo daquele ideal , tampouco exclui urn outro, tal como a realidade, justamente, nAo exclui 0 que quer que seja .

NOtTES DE CABIRIA 303

Noites de CQbirio. de Ftderico Fellini : "Tudo K passa, com ereho, como st, tendo chqldo 10 &rIu de interesse pelu lpar!ncin. nO! percriJlu emos Igorl 01 penolllienl, nlo mall entre os objetos, mu por trln5par!ncil. auavb delC$" .

o que nao estou longe de pensar e que FeUini e 0 realizador que vai mais longe, hoje, na estetica do neo.rea1ismo, tao longe que a atravessa e se encontra do outrO lado.

Consideremos antes.de tudo a que ponto a m~n·sdne felli· niana esta livre de qualquer sequela psicol6gica. Seus personagens nunca se definem por seu "caraler", mas exclusivamente por sua aparencia. Evito voluntariamente 0 {ermo "comportamento", que se tornou restrito demais. pois a maneira de agir dos personagens e apenas urn elemento de nosso conhecimento. N6s as apreende· mos alravCs de muitO$ oulros signos, nllo somente, e 6bvio, alra· yes do roslo, do andar, de tudo 0 que faz do corpo a crOSla do ser, mais ainda, parern, talvez pelos indicios mais eJCteriores, na fronteira do indivlduo e do mundo, como 0 cabelo, 0 higode, a roupa, os 6culos (unico acess6rio do qual aconlece a Fellini de abusar como de urn truque). Depois, indo mais longe ainda, e 0 cenario que tern urn papel, nllo certamente num sentido expressio· nisla, mas atraves dos acordos e desacordos que se eslabelecem entre 0 rneio e 0 personagem. Penso notadamente nas extraordi· nirias rela"Oes de Cabiria com 0 panorama inusitado onde Naz· zari a levou: cabare e apanarnento luxuoso ...

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304 ANDRE BAZIN

Do outro lado das coisas

E aqui, pon!m, que tocamos a fronteira do realismo e que, indo ainda mais longe, Fellini nos leva para 0 outro lado. Tudo se passa, com efeito, como se, tendo chegado ao grau de interesse pel as aparencias, nos percebessemos agora os personagens, nao mais entre os objetos, mas por transparencia, atraves deles. Quero dizer que, insensivelmente, 0 mundo passou da significacao a ana­logia, e depois da analogia a identificacao com 0 sobrenatural. Lamento tal palavra equivoca que 0 leitor pode substituir, agosto, por poesia, surrealismo, magia ou qualquer outro termo que expresse a concordancia secreta das coisas com urn duplo invisivel de que de certa maneira nao sao senao 0 esboco.

Desse processo de "sobrenaturalizacao" tomarei urn exemplo, dentre outros, na metafora dos anjos. Desde seus primeiros filmes, Fellini e possuido pel a angelizacao de seus personagens, urn pouco como se 0 estado angelical fosse no universo felliniano a referen­cia ultima, a medida do ser. Podemos seguir seu curso explicito ao menos a partir de Os boas-vidas: para 0 carnaval, Sordi se fan­tasia de anjo da guarda; urn pouco mais tarde, como que por acaso, e uma estatua de anjo de madeira esculpida que Fabrizzi furta. Mas tais alusoes sao diretas e concretas. Mais sutil, e ainda mais interessante por ser provavelmente inconsciente, e a imagem em que vemos 0 frade que desceu da arvore onde trabalhava, car­regando nas costas urn comprido feixe de galhos. Tal gesto nao era nada alem de uma alegre notacao realista, talvez ate mesmo para Fellini, ate termos visto, no final de A trapara, Augusto ago­nizando na beira da estrada: ele percebe na luz enevoada do ama­nhecer urn cortejo de criancas e camponeses, carregando nas cos­tas feixes de galhos: anjos estao passando! Sera preciso lembrar tambem, no mesmo filme a maneira como Picasso desce uma rua fazendo asinhas com sua capa de chuva. E igualmente 0 mesmo Richard Basehart que aparece a Gelsomina como uma criatura sem gravidade, toda brilhante sobre seu fio aereo na luz dos projetores.

A simbologia felliniana e inesgotavel e a obra inteira pode­ria com certeza ser estudada unicamente desse ponto de vista. 3

Seria apenas importante recoloca-Ia na logica neo-realista, pois podemos ver que tais associacoes de objetos e personagens, atra­yes dos quais 0 universo de Fellini se constitui, so tiram seu valor e preco do realismo, ou, melhor dizendo, talvez, do objetivismo da notacao. Nao e de modo algum para parecer urn anjo que 0

Irmao carrega desse modo 0 feixe, mas bastaria ver a asa nos

1 NOITES DE CABIRIA 305

galhos para metamorfosear 0 velho frade. Assim, e possivel dizer que Fellini nao contradiz 0 realismo, tampouco 0 neo-realismo, mas, antes, que ele 0 realiza ultrapassando-o, numa reorganiza­cao poetica do mundo.

Revolu~ao do relato

Fellini opera tal realizacao renovadora tambem a nivel do relato. Certamente, desse ponto de vista, 0 neo-realismo tambem e uma revolucao da forma em direcao ao fundo. A primazia do evento sobre a intriga levou, por exemplo, De Sica e Zavattini a substituir essa ultima por uma micro-acao, feita de uma atencao, indefinidamente dividida, pel a complexidade do evento mais banal. Ao mesmo tempo, toda hierarquia, de obediencia psicolo­gica, dramatica ou ideologica, entre os eventos, era condenada. Nao que 0 diretor deva naturalmente renunciar a escolher 0 que ele decide nos mostrar, e sim porque tal escolha ja nao se da mais com referencia a uma organizacao dramatica a priori. A sequencia import ante pode tambem ser, dentro dessa nova perspectiva, uma longa sequencia "que nao serve para nada", de acordo com os criterios do roteiro tradiciona1.4

No entanto, mesmo em Umberto D, que talvez represente a experimentacao extrema dessa nova dramaturgia, a evolucao do filme segue urn fio invisivel. Fellini parece ter arrematado a revolu­cao neo-realista, inovando 0 roteiro sem qualquer encadeamento dramatico, fundado exclusivamente sobre a descricao fenomenolo­gica dos personagens. Em Fellini, sao as cenas de ligacao logica, as peripecias "importantes", as gran des articulacoes dramaticas do roteiro que servem de raccords, e sao as longas sequencias des­critivas, aparentemente sem incidencia sobre 0 desenrolar da "a­cao", que constituem as cenas realmente importantes e revelado­ras. Sao, em Os boas-vidas, as perambulacoes noturnas, os pas­seios idiotas na praia; em Na estrada da vida, a visita ao convento; em A trapara, a noitada no cabare ou 0 reveillon. E quando eles nao agem que os personagens felliniaIlos mais se revelam, com sua agitarao, ao espectador.

Se, contudo, os filmes de Fellini comportam tensoes e paro­xismos que nao deixam nada a desejar ao drama e a tragedia, e porque os acontecimentos desenvolvem ali, na falta da causali­dade dramatica tradicional, fen6menos de analogia e eco. 0 heroi felliniano nao chega a crise final, que 0 destroi e salva, pelo enca­deamento progressivo do drama, mas porque as circunstancias

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pel as quais ele e surpreendido acumulam-se nele, como a energia das vibra<;oes num corpo em ressonancia. Ele nao evolui, mas se converte, oscilando, para acabar, como os icebergs, cujo centro de flutua<;ao se deslocou invisivelmente.

Olhos nos olhos

Gostaria, para conduir, e concentrar numa observacao a inquietante perfeicao de Noites de Cabiria, de analisar a ultima imagem do filme, que me parece no conjunto a mais audaciosa e mais forte de Fellini. Cabiria, despojada de tudo, de seu dinheiro, de seu amor, de sua fe, encontra-se, esgotada, num caminho sem esperanca. Surge urn grupo de rapazes e mocas que cant am e dan­cam enquanto caminham, e Cabiria, do fundo de seu vazio, remonta lentamente para a vida; ela comeca de novo a sorrir e logo a dan car . Percebemos 0 que tal final poderia ter de artificial e de simbolico se, pulverizando as objecoes de verossimilhanca, Fellini nao soubesse, com uma ideia de mise-en-scene absoluta­mente genial, fazer com que seu filme entrasse num plano supe­rior, identificando-nos de repente com sua heroina. Muitas vezes se evocou Chaplin a proposito de Na estrada da vida, mas nunca fiquei muito convencido com a comparacao, forcosamente enfado­nha, de Gelsomina e de Carlitos. A primeira imagem, nao apenas digna de Chaplin, mas igual a seus achados mais belos, e a ultima de Noites de Cabiria, quando Giulietta Masina se volta para a camera e seu olhar encontra 0 nosso. So Chaplin, acredito, na his­toria do cinema, soube fazer uso sistematico desse gesto que todas as gramaticas do cinema condenam. E, sem duvida, ele seria ino­portuno se Cabiria, pregando os olhos nos nossos, se dirigisse a nos como uma mens age ira da verdade. Mas 0 supra-sumo desse traco de mise-en-scene, e 0 que me faz admirar a genialidade, e que 0 olhar de Cabiria passa varias vezes pel a objetiva da camera sem nunca parar. As luzes da sala sao aces as sobre essa ambigui­dade maravilhosa. Cabiria e ainda sem duvida a heroina das aven­turas que viveu diante de nos, atras da mascara da tela, mas e tam­bern, agora, aquela que nos convida com 0 olhar para segui-la na estrada que toma. Convite pudico, discreto, bastante incerto para que possamos fingir acreditar que ela se dirigia para outro lugar; bastante certo e direto tambem para nos tirar de nos sa posi­Clio de espectador.

NOITES DE CABIRIA 307

NOTAS

I. Cahiers du Cinema, n2 76, novembro de 1957. 2. Ai de mim, os fatos me desmentem: a versao original projetada em Paris apre­senta pelo menos urn longo corte em rela~ao it de Cannes, justamente 0 do "visi­tante de Saint Vicent de Paul" evocada mais adiante. Assistimos, porem, Fellini - ;e ele for responsavel por tal corte - pronto a se deixar convcnccr facilmcnte da "inutilidadc" de seqiiencias no mais das vezes notaveis. 3. Cf. 0 artigo de Dominique Aubier, Cahiers du Cinema, n 2 49. 4. E 0 casu da seqiiencia cortada.

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XXVI DEFESA DE ROSSELLINJI

Carta a Aristarco, redator-chefe de Cinema Nuovo

Meu caro Aristarco,

Ha muito tempo que quero escrever este artigo e que recuo meses a fio diante da importancia do problema e de suas multi­pi as incidencias. E tambem porque tenho consciencia de meu des­preparo te6rico em relaC;ao it seriedade e it perseveranc;a com as quais a critica de esquerda estuda e aprofunda 0 neo-realismo. Ainda que tenha saudado, desde seu aparecimento na FranC;a, 0

neo-realismo italiano e que, desde entao e sem falta, nao tenha parado, acredito, de Ihe consagrar a melhor de minha atenc;ao de critico, nao posso pretender opor it sua uma teoria coerente e reC0-locar, tao completamente como voce 0 faz, 0 fen6meno neo-rea­lista na hist6ria da cultura italiana. Acrescente a isso que ha algum risco de ridiculo em parecer querer das lic;ao aos italianos sobre seu pr6prio cinema e voce tera as principais razoes que me fizeram tardar em responder mais cedo it sua proposta de discussao, no seio do Cinema Nuovo, das suas pr6prias posic;oes criticas e de sua equipe sobre algumas obras recentes.

Gostaria ainda de Ihe lembrar, antes de entrar no vivo do debate, que as divergencias internacionais, ate mesmo entre criti­cos de uma mesma gerac;ao, que tudo parece, alias, aproximar, sao freqiientes. Tivemos a experiencia disso, por exemplo, nos Cahiers du Cinema, com a equipe de Sight and Sound, e confesso, sem vergonha, que foi em parte a grande estima que Lindsay Anderson tinha por Amores de apache, de Jacques Becker, filme que foi urn fracasso, na Franc;a, que me levou a reconsiderar minha propria opiniao e a descobrir no filme virtudes secretas que haviam me escapado. E verdade que a opiniao estrangeira se perde tam-

DEFESA DE ROSSELLINI 30<)

bern, de vez em quando, por desconhecimento do contexto da pro­duc;ao. Por exemplo, 0 sucesso fora da Franc;a de certos filmes de Duvivier ou de Pagnol esta fundado evidentemente sobre urn mal-entendido. Admiram neles uma certa interpretac;ao da Franc;a que parece, no exterior, maravilhosamente exemplar, e confundem esse exotismo com 0 valor puramente cinematografico do filme. Reconhec;o que tais divergencias nao sao de modo algum fecundas e suponho que 0 sucesso no exterior de certos filmes italianos que voces desprezam, com razao, procede do mesmo mal-entendido. Nao penso, no entanto, que no essencial, seja 0 caso dos filmes que nos opoem, tampouco do neo-realismo em gera!. Antes de tudo, voce reconheceria que a critica francesa nao estava errada de ser no inicio mais entusiasta que a critica italiana a respeito dos filmes que sao hoje a gl6ria incontestavel de ambos os lados dos Al­pes. No que me diz respeito, me orgulho de ser urn dos raros criti­cos franceses que sempre identificou 0 renascimento do cinema ita­liano com 0 "neo-realismo", mesmo na epoca em que era de bom­tom proclamar que essa expressao nao significava nada, e continuo ainda hoje pensando que tal palavra ainda e a mais apropriada para a designac;ao da escola italiana no que ela tern de melhor e de mais fecundo.

E tambem por isso, no entanto, que me inquieto com a maneira pel a qual voce 0 defende. Sera que ousarei Ihe dizer, caro Aristarco, que a severidade de que Cinema Nuovo da provas em relac;ao a certas tendencias consideradas por voces como involu­c;oes no neo-realismo me faz recear que voces poem fim, sem 0

saber, na materia mais viva e mais rica de seu cinema? Quanto a mim, admiro 0 cinema Italiano com bastante ecletismo, mas ha severidades que admito quando vindas da critica italiana. Que 0

sucesso na Franc;a de Pdo, amor e cilime Ihes irrite, eu posso com­preender, e urn pouco como 0 dos filmes de Duvivier sobre Paris, para mim. Em contrapartida, quando eu vejo voces criarem caso com 0 cabelo desgrenhado de Gelsomina ou tratar como abaixo da critica 0 ultimo filme de Rossellini, sou forc;ado a achar que, sob pretexto de integridade te6rica, voces contribuem para esterili­zar certos ramos mais vivazes e mais pro meted ores do que persisto em chamar de neo-realismo.

Voce me fala de sua surpresa diante do sucesso relativo de Viagem a Itdlia, em Paris, e sobretudo diante do entusiasmo quase unanime da critica francesa. Quanto a Na estrada da vida, seu triunfo e aquele que voce sabe. Esses dois filmes vern relanc;ar oportunamente, nao apenas no interesse do publico mas na estima

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310 ANDRE BAZIN

dos intelecmais, 0 cinema italiano que ja vinha perdendo veloci­dade ha urn ou dois anos. 0 caso dos dois filmes e, por divers as razoes, diferente. Penso, no entanto, que lange de ter sido sentido aqui como uma ruptura com 0 neo-realismo, e menos ainda como uma involuc;ao, eles nos deram a sensac;ao de invenc;ao criativa, mas na linha direta da genialidade da escola italiana. Vou tentar explicar por que.

Antes, porem, confesso repugnar a ideia de urn neo-realismo definido exclusivamente em relac;ao a um unico de seus aspectos presentes e que limit a a priori as virtualidades de suas evoluc;oes futuras. Talvez seja a culpa de se ter uma cabec;a muito teorica. Acredito, antes, que seja pela preocupac;ao em deixar a arte sua liberdade natural. Nos periodos de esterilidade, a teoria e fecunda para analisar as causas da seca e organizar as condic;oes do renas­cimemo, mas quando se tem a sOfte de assistir a admiravel flora­c;ao do cinema Italiano ha dez anos, nao seria mais perigoso do que vantajoso lanc;ar exclusoes teoricas? Nao que nao se deva ser severo; ao contrario, a exigencia e 0 rigor critico me parecem ainda mais necessarios, mas eles devem zelar em denunciar os compro­missos comerciais, a demagogia, a queda de nivel das ambic;oes mais do que querer impor quadros esteticos a priori aos criadores. Quanto a mim, me parece que um diretor cujo ideal estetico se aproxima de nossas concepc;oes, mas que so admite, no principio de seu trabalho, introduzir 10 ou 20070 delas nos roteiros comer­ciais que ele po de filmar, tem menos merito do que aquele que mal ou bem faz filmes que estao conformes a seu ideal, mesmo se sua concepc;ao do neo-realismo nao e a sua. Ora, para 0 pri­meiro, voce se content a com objetividade em gravar a parte que escapa ao compromisso, concedendo-lhe apenas duas estrelas em suas criticas, enquanto que rejeita 0 segundo, sem recurso, ao inferno estetico.

Rossellini seria sem duvida menos culpado, a seu ver, se tivesse filmado 0 equivalente da Quando a mulher erra ou de Passado que condena, mais do que Giovanna D'arco AI rogo ou Angst. Meu proposito nao e de defender 0 autor de Europa 51, em detri­mento de Lattuada ou de De Sica; a politica do compromisso pode ser defendida ate certo ponto que nao empreenderei em determinar aqui, mas me parece que a independencia de Rossel­lini da a sua obra, 0 que quer que se pense por outro lado, uma integridade de estilo, uma unidade moral que sao coisas raras no cinema e que forc;am, antes mesmo da admirac;ao, a estima.

DEFESA DE ROSSELLINI 311

Mas nilo e no terre no metodologico que espero defende-lo. Meu pleito tera por objeto 0 proprio fundo dos debates. Rossel­lini foi real mente e ainda e neo-realista? Parece-me que voce Ihe concedera 0 ter sido. Como contestar, com efeito, 0 papel desem­penhado por Roma cidade aberta e Paisa, na instaurac;ilo e no desenvolvimento do neo-realismo? Mas voce descabrira sua "invo­luC;ilo", ja sensivel em Alemanha ano zero, decisiva, segundo voce, a partir de Stromboli e de Francisco arauto de Deus; catastrMica com Europa 51 e Viagem a [talia. Ora, de que acusam essencial­mente tal itinerario estetico? De abandonar cad a vez mais aparen­temente a preocupac;ilo do realismo social, da cronica da atuali­dade em prol, e verdade, de uma mensagem moral cad a vez mais sensivel, mensagem moral que podemos, conforme 0 grau de rna vontade, solidarizar com uma das duas grandes tendencias politi­cas italianas. Recuso de saida deixar descer 0 debate para esse ter­reno por demais contingente. Mesmo se houvesse simpatias demo­cratas-cristils (da qual nilo conhec;o nenhuma prova publica ou pri­vada), Rossellini nilo seria por isso excluido a priori como artista de qualquer possibilidade neo-realista. Deixemos isso. E verdade, todavia, que se tern 0 direito de recusar 0 postulado moral ou espi­ritual que cada vez mais claramente se mostra na obra, mas tal recusa nilo implicaria a recusa estetica na qual se realiza a mensa­gem, a nilo ser se os filmes de Rossellini fossem filmes de tese, isto e, que se reduzem a dar uma forma dramatica as ideias a prio­ri. Ora, nilo ha diretor Italiano cujas invenc;oes possam ser menos dissociadas da forma, e e justamente a partir dai que eu gostaria de caracterizar seu neo-realismo.

Se a palavra tern algum sentido e quaisquer que sejam as diver­gencias que possam surgir sobre minha interpretac;ilo, a partir de urn certo acordo minimo me parece que 0 neo-realismo se opoe, em principio, essencialmente, nilo apenas aos sistemas dramaticos tradicionais, mas ainda aos divers os aspectos conhecidos do rea­lismo - tanto em literatura quanto no cinema - pela afirmac;ao de certa globalidade do real. Tiro tal definic;ilo, que me parece justa e comoda, do padre A. Ayfre (con forme Cahiers du Cinema, n Q 17). 0 neo-realismo e uma descric;ilo global da realidade por uma consciencia global. Entendo com is so que 0 neo-realismo se opoe as esteticas realistas que 0 precederam, e notadamente ao na­turalismo e 0 verismo, naquilo que seu realismo nilo recai tanto sobre a escolha dos temas, e sim sobre a tom ada de consciencia. Se quiser, 0 que e realidade em Paisa e a resistencia italiana, mas 0

que e neo-realista e a mise-en-scene de Rossellini, sua apresentaCilo

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1I2 ANOR~ BAZIN

L 'omOrt, de Robttto Rossellini: " Rossellini 10511 de diur que no princlpio de SUI ~o dl m~n-.sdfle reside 0 amOT nAo apenas por 5eU$ per5O­ItaIcns, mas pelo real enqUIDIO W. e ~ juSiamenle e5$Ii arnor que the proltle dissoclar 0 que I realidade uniu: 0 penonaarm t K'U centrio·' .

a urn 56 tempo eliptica e sintetica dos acontecimentos. Ainda em outros (ermos, 0 neo~reaJismo se recuS3, por definicio, a analise Jpoliti.c~mor I pSlcologica, 16gica, social au tudo 0 Que auise­~dos personagens e da a~!lo deles . Ete considera a realidade como urn bloca. nao e claro. incorn (eens ver.maSiilClissocl ve.

or 1550 0 neo-reaJismo ~adlUllWte uan 0 n 0 necessaria­mente anti..apetacular (embora a C!J>etacularidade Ihe seja efcth vamente alheia). ao menDS radicalmenle anti-~al, a medid!..9!lc a interpreta~!o do ator tcalral sup6e uma anaIise psicologica dOL sentimentos e urn expressionismo fisico, simbolo de toch, uma ~ de categorias morais.

o que nAo significa, muito pelo contrario, que 0 neo-realismo se reduza a nAo sei que documenlarisrno objetivo. Rossellini gost.!

e dizer que no principia de su Ao da mise-e resid o arnor n 0 apenas par seus personagens, mas pelo real en uanto tal, e e justarnenteesSe amor Ilue Ihe prOI Issociar..a...Que...a...u:a: lidade uniu: a persona..8em e seu cenario. 0 neo-realismo nao define, portaDlo, uma r~usa de lamar posi~o em rela~o ao mundo, lampouco de julga-Io. mas supOe. com efeilo, uma ati­tude menial; e sempre a rea1idade vista atraves do anisla, refra-

\

DEFESA DE ROSSELLINI 3Il

t-ada por sua consciencia, mas por toda sua conscicncia, e nAo por sua razAo, sua paido au crencas, e r~omposta a partir dos ele.. mentos dissociados. Gostaria de dizer que 0 artina realista tradi­cional (Zola, par exemplo) analisa a realidade e enlAo refaz uma sintese conforrne sua conce~Ao moral do mundo, enquanto que a consciencia do direlor neo-realista a filtra. Scm duvida sua cons­cicncia, como qualquer conscicncia, nAo deixa passar todo 0 real, mas sua escolha nAo e nem 16gica, nem psicol6gica: e ontol6gica, no senlido em que a imagem da realidade que nos restituem per­mancee global, da mesma maneira, se quiserem uma metMora. que uma fotografia em preto-c-branco nAo e a imagem da reali­dade decornpasta e r~omposta "sem a cor", mas uma verdadeira marca do real, uma especie de modeJagem luminosa onde a cor nAo aparece. Ha identidade ontol6gica entre 0 objeto e sua foto­grafia. Me farei melhor compreender com urn exemplo. que toma­rei precisamente em Viagem a It6lia, 0 publico fica facilmente decepcionado com 0 filme A medida que Napoles s6 apar.ccc de maneira incornPleta e fragmentaria. Essa reaJidade nlo e, com efeito. senAo a milesima parte d!l.QYe se paderia mOSlrar, mas 0 ~uco que vemos, algumas eslatuas em urn museu, mulheres gra:­vidas, uma escava~Ao em Pompeia, urn pcda~ de procisslo de SAo> Januario, passui, contudo-, esse caraler global que me parcee essencial. !! Napoles "filtrada" pda consciencia da herolna, e se a paisagem e pobre e Iimitada, e porque essa conscicncia de bur­guesa mediocre e ela mesma de uma rara pobreza espiritual. Toda­via. a Napoles do filme nAo e falsa (0 que paderia ser, em com pen­sa~40, urn documentario de Ires horas). mas e uma paisagem men­tal a urn s6 tempo objetiva como uma pura fotografla e subjetiva como uma pura conscicncia. Compreendemos que' a atitude de Rossellini para com seus personagens e seu meio geogrifico e social e. em segundo grau, a de sua heroina diante de NApoles, com a diferen.;a que a conscitncia dele e a de urn artista com muita cultura e, na minha opinilo. com rara vitalidade espirilual.

Oesculpe-me se falo por meliforas. e que nlo sou fil6sofo e nAo posso me fazer entender mais diretamente, Tentarei, portanto, fuer mais uma compara~lo . Direi das formas de arte c1Assica e do realismo lraditional que elas constr6em as obras como se cons­troem casas, com tijolos ou pedras de cantaria. Nlo se trata de contestar nem a utilidade das casas, nem sua eventual beleza. nem a perfeila apropria.;lo dos tijolos para tal emprego, mas hi de se convir que a realidade do lijolo esli bern menos em sua composi­~o do que em sua ronna e resislcncia. Nao passaria pela ca~

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31' ANDRt BAZIN

"Afirmo. pois. que V~m d il6liQ ~ neo-reaJiSl . ... ..

de ninguem derini·lo como urn peda!;o de argila, poueo importa sua originalidade mineral, mas 0 que conta e a comodidade de seu volume. 0 tijolo e urn clemento de casa. 1550 esta inscrito em Sllas pr6prias aparendas. Podemos fazer 0 mesmo raciocinio, por exemplo, com as pedras de cantaria que compOem uma ponte. Elas ~ encaixam perfeitamente para format a ab6bada. Porem, blocos de rocha dispersos num vau slo e continuam a sec rochas. a realidade de pedras delas nlo e afetada pois, saltando de uma para a Qutra, me sirvo delas para alravessar 0 rio. Se pude fazer provisoriamentc para mim tal uso, foi porque soube dar ao acaso da disposi~lo delas meu complemento de inven~o. acrescentar 0

movimento que, sem modifiear a natureza e apar~ncia delas. Ihes deu provisoriamente urn sentido e uma utilidade.

Do mesmo modo 0 filme neo-realista tern urn senlido, mas a posler;ori, A medida que pennite a nossa conscicncia passar de urn falo para outro, de urn fragmenlo de realidade ao sciuinte, enquanto que 0 scnlido e dado a prior; na cornposif;Jo artistica c1issica: a casa jA estA no tijolo.

DEFESA DE ROSSELLINI

Se rninha anAlise e exala, decorre dal que 0 lermo de neo-rea­Iista nunca deveria seT empregado como substantivo, a nAo ser para designar 0 conjunto de diretores neo-realistas. 0 neo-realismo nAo existe em si, M apenas diretores neo-realistas, sejarn des mate­rialislas, cristAos, comunistas ou 0 que se quiser. Visconti e neo­realista em La ferro (reina, que c1ama a revolta social, e Rossel­lini e neo-realista em Francisco 0 araUfO de Deus, que iluslra urna realidade purarnente espiritual. 56 recusaria 0 epiteto • pes.soa que dividiria, para me convencer, 0 que a realidade uniu.

Afirmo, pois. que Viagem d lt6lia e neo-realista e bern mais que 0 ouro de N6poles. por exemplo, que admiro rnuito, mas que procede de um realismo psicol6gico e sUlilrnenle teatral, apesar de todas as nOlaf;Oes realistas que procuram nos dar em lroea. Diria mais: de todos os diretores e Rossellini quem me parece ler levado mais longe a estetica do neo-realismo. Disse que nllo havia neo-realismo puro. A atitude neo-realista e um ideal do qual se pode mais ou menos aproximar. Em todos os filmes ditos neo·rea­lislas, hA ainda reslduos do realismo tradicional espetacular, dra­mAtico ou psicol6gico. oderiamos analisA-Ios da seguinte manara: a realidade documenlAria rnalS guma sen 0 esta oulra coisa, conforme 0 caso, ~ 1> tiel das imagens, 0 sen­timent. social, a poesia, 0 ct.mico etc. Des.se modo, suia inutil procurar dissociar em Rossellini 0 acontecimento do efeito dese- t jado. NAo hi nada nele de literArio ou de poetico, nem mesrno nada, se quisermos, de "belo" no sentido caricato da ~aYTa: eTe s6 encena fatos. Seus personagens estJo como que assombrados pelo dem6nio da rnobilidade, oSirmAozinhos de Francisco de Assis nllo tern outra maneira de render ~as a ~nAo andar apt. E a alucinanle marcha para a moTte do garoto de AlemoiiiiQ £!!O zero! que 0 testo, a muaan~, 0 movimento nsico consti..:­tuem para Rossellini a pr6 ria essmcia do real humano. E tam~m. alravt$Sar 0 cenArio, sendo que todos atravessam mais ainda de passagem 0 personagem. 0 universo rosselliniano e urn univeno de atos puros~ insignificantes ~ mBi'ilOs, masque preparalq. como ue' rtvelia de Deus~ revela 10 subitamente deJlumbranle de sc:u senlido. 0 ~ue ocorre com 0 milagre da Viogem d /lolio invi~ivel para os dois her6is, Quase invislvel mesmo para a cAmera: e ahAs ambiguo (pais Rossellini nAq, pretende que seja urn milagre, mas apenas 0 conjunlo de grilos e empurrOes que e assirn chama-do), mas cujo choque contra a consciencia dos personagens pro-voca inesperadamente a precipitaf;Jo do arnor deles. Ninguem,

Page 157: Andre Bazin - O Cinema Ensaios

)16 ANDRI:: BAZIN

Fioretti (Roberto R05Seltini): "Respellar 0 rtal nlo~, com efeilo, acum\l~r II lparlocias. ~. 10 contrtr}o, despoj'·lo de ludo 0 que nlo l essencial. It

chepr *' tOialidadc dmlro da simplicidadc".

me par~e. mais que 0 aulor de Europa 51 I conseguiu enceoar acontecimentos com urn eslrutura eSlttica mais dura, mais inlegra, com uma lranspar!ncia mais perreila, na qual (osse menos possi· vel discernir outra eoisa que Da.O 0 pr6prio acontecimento. Assim como urn corpo pode se apresentar em estado amorfo au cristali­zado. A arte de Rosselli ni e saber dar aos ratos a urn 56 tempo sua estrutura mais densa e mais elegante; nAo a mais graciosa. porem a mais aguda, a mais direla au a mais decisiva. Com cle. o neo-realismo encontra naturalmente 0 eslilo e os recursos da abstra~ao_ Respeitar 0 real nao e, com efeita, acumular as aparen­das, e, ao contrario, despoja-Io de tudo 0 que nAo e essencial, e ehegar ~ 10taHdade dentro da simplicidade. A ane de Rossellini e como que linear e mel6diea. E verdade que varios de seus filmes fazem pensar num es~o, 0 traco indica mais do que pinta. Mas sera prceiso considerar lal seguranca do Iraco como pobreza ou preguica? Seria 0 mesmo que erilicar Matisse. Talvez Rossellini seja, com efeito, mais desenhista do que pintor, mais contina do que romaneisla. porem a hierarquia nlo esta nos generos, mas apenas nos aninas.

/

DEFESA DE ROSSELLINI 1I7

Nlo espero, caro Arist8ICO, Ihe ler convencido. Alias, quase nlo podemos convencer com argumentos. Muitas veZe5 a con vie­Clo qu~ colocamos neles conta mais . Fiearia feliz sO com 0 fato de a mm~~, onde voce ~ncontrara 0 ceo da admiraclo de alguns outros cntlCOs meus anllgos, poder, ao menos, abalar a sua.

NOTA

I. Cin~Q Nllo'lO.

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XXVII EUROPA 51 1

Tendo come<;ado com uma obra-prima incompreendida (Um­berto D), 0 ana termina com outra obra-prima maid ita, Europa 51, de Roberto Rossellini. Como haviam criticado De Sica por ter feito urn melodrama social, acusam Rossellini de entregar-se a ide­ologia politica confusa e dessa vez mais reacionaria. Mais uma vez nao passou de urn engano quanto ao essencial e de urn julga­mento sobre 0 tema fazendo abstra<;ao do estilo que the confere seu sentido e dignidade estetica. Uma mo<;a rica, e frivola, perde seu filho unico que se suicida, numa noite em que sua mae, preo­cup ada demais com mundaneidades, 0 mandou ir se deitar sem lhe dar aten<;ao. 0 choque moral e tao violento que mergulha a pobre mo<;a numa crise de consciencia cuja solu<;ao ela procura, a principio, na a<;ao social, seguindo os conselhos de seu primo intelectual comunista. Mas pouco a pouco ela tern a sensa<;ao de que is so nao passa de urn plano intermediario que ela deve ultra­passar em dire<;ao a uma mistica bern pessoal da caridade, para alem das categorias da politica e mesmo da moral social ou reli­giosa. Assim, ela e levada a cuidar de uma prostituta ate sua morte, e depois a ajudar a fuga de urn jovem criminoso. Esta ultima iniciativa provoca urn esdindalo e seu proprio marido, que cada vez a compreende menos, prefere ve-Ia intemada numa "casa de saude" com a cumplicidade de toda a familia assustada com sua demencia. Tivesse ela se inscrito no Partido Comunista ou entrado no convento e a sociedade burguesa teria achado menos o que dizer disso: a Europa 51 e 0 mundo dos partidos e das bri­gad as sociais sob todas as formas. Desse ponto de vista, e verdade que 0 roteiro de Rossellini nao esta livre de ingenuidades, e ate mesmo de incoerencias, e, em todo caso, de pretensao. Percebe-

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EUROPA 51 319

mos, em particular, 0 que 0 autor tomou emprestado da biogra­fia de Simone Weil, sem encontrar, alias, sua solidez de pensa­mento. Tais reservas, porem, nao ficam de pe diante da totali­dade do filme, que e preciso compreender e julgar a partir de sua mise-en-scene. De que valeria, reduzido a seu resume logico, 0 idiota, de Dostoievski? PQCs_~_ Rossellini urn verdadeiro diretor, 1,

~--------~--- -- - - --~ -- ~~ ~-- ~ ~~

a forma do filme nao e nele 0 enf~t<!_go roteiro, mas sua propria \ materia. 0 autor deAlemciizh(i~no zero e pessoal e profunda-

~ mente obcecado pelo escandalo da morte das crian<;as e mais ainda pelo suicidio delas. E em tome dessa autentica experiencia espiri­tual que 0 filme ganha corpo; 0 tema da santidade laica, tema eminentemente modemo, se destaca naturalmente dai; sua organi­za<;ao mais ou menos habil pelo roteiro importa pouco; 0 que conta e que cada seqiiencia e uma especie de medita<;ao, de canto cinematografico, por intermedio da mise-en-scene sobre os temas principais. Nao se trata de demonstrar, mas de mostrar. E como resistir a comove-nte-presen~a-espiritual de Ingrid Bergman e, para al~m da interprete, ficar insensivel a tensao de uma mise-en-scene em que 0 universe parece se organizar sobre as mesmas linhas de for<;a espirituais, ate desenha-Ias tao legivelmente quanto a lima­lha de ferro sobre 0 campo magnetico do ima? Raramente a pre­sen<;a do espiritual nos seres e no mundo foi expressa com uma evidencia tao deslumbrante.

E verdade que 0 neo-realismo de. urn Rossellini parece aqui bern diferente, se nao contraditorio, do de De Sica. Parece-nos, no entanto, judicioso aproxima-Ios como os dois polos de uma mesma escola estetica. La onde De Sica escava a realidade com uma curiosidade cada vez mais tenra, Rossellini, ao contrario, parece despojar cada vez mais, estilizar com urn rigor doloroso, mas implacavel, em suma, encontrar 0 classicismo da expressao dramatica atraves da interpreta<;ao e da escolha. Porem, com um~ pouco mais de aten<;ao, esse classicismo pro cede da mesma revolu- . \ <;ao neo-realista. Para Rossellini, como para De Sica, trata-se de . "" repudiar as categorias da interpreta<;ao e da expressao dramatica \ para obrigar a realidade a entregar seu sentido a partir unicamente , das aparencias. Rossellini nao faz seus atores interpretarem, nao lhes faz expressar este-()U aque-k sentimento, mas os obriga ape~ nas a estar de uma certa maneira diante da camera. Em tal mise-en-scene, 0 lugar respectivo dos personagens, a maneira de andar, de se deslocar no cenario, seus gestos tern muito mais importancia que os sentimentos que se desenha sobre seus rostos,

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320 ANDRE BAZIN

ou ate mesmo do que eles dizem. Alias, que "sentimentos" Ingrid Bergman poderia expressar? Seu drama vai muito alem do que qualquer nomenclatura psicol6gica. Seu rosto nao e senao 0 rastro_ d~m~ certa qualidade de sofrimento. ~.---- ..

Que tal mise-en-scene pe9a uma estiliza9ao tao evoluida quanta se queira, Europa 51 oferece a pr6pria evidencia desta. Urn filme desses e 0 contnirio do realismo "feito ao vivo": 0 equivalente de uma escritura austera e estrita despojada por vezes ate a ascese. Nesse ponto, 0 neo-realismo encontra a abstra9ao classica e sua generalidade. Dai 0 aparente paradoxo: a boa versao do filme nao e a versao italiana dublada, mas a versao inglesa, na qual foi con­servado 0 maximo de vozes originais. No limite desse realismo, a exatidao da realidade social exterior se torna novamente indife­rente. As crian9as das ruas de Roma podem falar ingles sem que tal inverossimilhan9a passe por nossa cabe9a. A realidade, por intermedio do estilo, reata com as conven90es da arte.

NOTA

I. Texto escrito em 1953.

1

iN DICE DOS FILMES CITADOS

Abismo de urn sonho (Lo sceicco bianco) 299

Aconteceu naquela noite (It happe­ned one night) 102

Atlieu Leonard 48 Adliltera (Le diable au corps) 82,

93,94,95, 100, 106, 121, 195, 196

Affaire est dans Ie sac, L' 48 Afrique vous parle, L' 34 Aleluia (Halleluyah) 102 Alemanha ano zero (Germania

anno zero) 79, 188, 269, 279, 311,315,319

Amore, L' 312 Amores de apache (Casque d'or)

308 Amores de Carmem (Carmem) 93 Angst 310 Anjos do pecado (Les anges du

peche) 112, 114 Annapurna 41 Antro de perdi~ao (Destry) 218 Ao rufar dos tambores (Drums

along the Mohawk) 209 A sombra de uma dlivida (Shadow

of a doubt) 137 Assim sao os fortes (Across the

wide Missouri) 213 Atire a primeira pedra (Destry rides

again) 209 Au loin une voile 54

Aurora (Sunrise) 69, 102 Aventura de Kon-Tiki, A (Kon-Tiki)

37, 38, 39, 46

Balao Vermelho, 0 (Bailon rouge) 55, 57, 58, 59, 64

Bandeirantes do Norte (Northwest passage) 209

Bandido, 0 (II bandito) 234, 237, 248

Beijos que torturam (Wild Bill Hickok) 201

Besta Humana, A (La bete humaine) 75

Bim Ie petit iine 54 Boas-vidas, Os (I vitelloni) 299,

301,302,304,305 Boireau 126 Bola de sebo (Boule de suif) 203

IBoudu salvo das aguas (Boudu sauve des eaux) 130

Braque 181 Brutos tambem amam, Os (Shane)

211,212,215,220,221

Cais de sombras (Quai des brumes) 74

Caminho do diabo, 0 (Devil's doorway) 216

Cantando na chuva (Singin' in the rain) 231

Caprices 172

Page 160: Andre Bazin - O Cinema Ensaios

322 ANDRE BAZIN

Caravana do ouro, A (Virginia city) 209

Carrossel da esperanc;:a, (Jour de fete) 48, 49

Certo capitao Lockhart, Urn (The man from Laramie) 218

Ceu amarelo (Yellow sky) 202 Ceu sobre 0 pantano (Cielo sulla

palude) 272, 276 Cidadao Kane (Citizen Kane) 64,

75,77,78,79,91,100,154,198, 244, 245, 246, 254, 259, 260

Cimbo 33 Cipiao, 0 africano (Scipione I'afri­

cano) 235, 265 Circo, 0 (The circus) 64 Conde de Monte Cristo, 0 (Le

Comte de Monte Cristo) 62 Conflito de paixoes (Mourning

becomes Electra) 138, 139 Congorilla 33 Conquistadores, Os (Western

Union) 209 Consciencias mortas (Ox-bow inci­

dent) 211 Continente dos deuses, 0 (Conti­

nente perduto) 44, 45 Corac;:ao manda, 0 (Quattro pass

fra Ie nuvole) 235, 237, 248, 265,267

Coroa de ferro (La corona di ferro) 234, 235, 236

Crime em Paris (Quai des Orfevres) 68

Crimes d'alma (Cronaca di un am ore) 282

Crin blanc 54,59,61,63 Cristo proibido, 0 (II Cristo proi­

bito) 283 Croisiere noire, La 33 Culpa dos pais, A (I bambini ci

guardano) 236, 278 Cyrano de Bergerac 128

Dama das camelias, A (La dame aux camelias) 146

Dama do lago, A (Lady in the lake) 137

Dames du bois de Boulogne, Les 82, 105, 108, 109, 110, Ill, 112, 151

Danse de mort, La 146, 147 Delator, 0 (The informer) 70 De Renoir a Picasso 176 Dernieres vacances, Les 182, 194,

196, 197, 198 Desencanto (Brief encounter) 265,

266, 277 Deus branco (White shadows in the

south seas) 33 Dia na vida, Urn (Un giorno nella

vita) 236 Diabo feito mulher, 0 (Rancho

Notorious) 216 Dominio dos barbaros (The fugitive)

91 Duelo ao sol (Duel in the sun) 212 Dulce, paixao de uma noite (Douce)

195

E Deus criou a mulher (Et Dieu crea la femme) 230

Eldorado 118 Em alguma parte da Europa (Va­

labol Europaban) 187 Embrutecidos pela violencia (Along

the great divide) 202, 214 Em busca do Ouro (The gold rush)

100, 290 Em nome da lei (In nome della legge)

265 Encourac;:ado Potemkin, 0 (Bro­

nenosets Potymkin) 100, 102, 233, 242, 259, 263

Enganar e perdoar (The cheat) 81 Entree des artistes, L' 112 E 0 sangue semeou a terra (Bend

of the river) 216 Epopeia tragica (Scott of the Antar­

tics) 35, 36 Espoir, L' (Sierra de Teruel) 89,

91, 154, 155, 197, 198,240 Esquina do pecado (Back Street)

70 Essas mulheres (Ado rabies creatu­

res) 295

fNDlCE DOS FILMES CIT ADOS 323

Estrangeiro,O 197,257 Estrada de Santa Fe, A (Santa Fe

trail) 209 Eterna ilusao (Rendez-vous de

juillet) 35 Eternel silence, L' 33, 35, 36, 38 Europa 51 (Europe 51) 310, 311,

316,318,320

Familia ex6tica (DrOie de drome) 48

Fantomas 86, 248 Farrebique 240, 245, 246, 258,

259, 260, 272 Fee pas comme les autres, Une 55 Ferias do sr. Hulot, As (Les vacan­

ces de M. Hulot) 49, 51, 53 Festim diab6lico (Rope) 62, 130,

291,292 Firn de Sao Petersburgo, 0 (La fin

de Saint-Petersbourg) 74, 263 Fora das grades (Run for

cover) 215 Francisco arauto de Deus (Fran­

cesco giullare di Dio) 311, 315 Frankenstein 70 Fruto Proibido (Fruit defen­

du) 295 Fugitivo, 0 (I am a fugitive from

chain gang) 70 Furia (Fury) 74

Gabinete do dr. Caligari, 0 (Das kabinett des Dr. Caligari) 150, 151

Galante aventureiro, 0 (The Wes-terner) 209, 216

Geux au paradis, Les 132 Giovanna d' Arco al rogo 310 Gli uomni che mascalzoni 236 Golpe de miseric6rdia (Colorado

territory) 214 Goya 172, 176 Grande ilusao, A (La grande illu­

sion) 75, 234 Grilhoes do passado (Confidential

report ou M. Arkadin) 62 Groenland 37

Guernica 172, 176 Guerrieri 172

Hamlet 83, 98, 99, 100, 104, 130, 138, 153, 154, 160, 165,

Henrique V (Henry V) 123, 124, 130, 132, 133, 134, 139, 153, 156, 157, 160, 165

Hist6ria de urn chapeu de palha (Le chapeau de paille d'Italie) 195

Homem ate 0 fim (The kentuckian) 217

Homem invisivel, 0 (The invisible man) 70

Homem sem rumo (Man without a star) 216

Homens indomaveis (Silver lode) 213

Idiota, 0 (L'idiot) 93,319 Idolo caido, 0 (The fallen

idol) 93, 100 II sole sorge ancora 238, 257 Interludio (Notorious) 137 Intolerancia (Intolerance) 75

Jardim do pecado (Garden of evil) 217

Jean de la lune 163 Jezebel 70, 72 Johnny Guitar 215 Journal d'un cure de campagne, Le

82, 83, 93, 96, 104, 105, 107, Ill, 112, 116, 117, 120, 121, 122

Joyeux microbes, Les 182 Julio Cesar (Julius Caesar) 161

Ladroes de Bicicleta (Ladri di bici­clette) 79, 92, 112, 266, 267, 269, 270, 271, 272, 273, 274, 275, 276, 277, 278, 279, 284, 285,286,288,289,291,293, 295, 296

Lanc;:a partida, A (Broken lance) 215,217

Lirio partido, 0 (Broken blossoms) 75, 100

Page 161: Andre Bazin - O Cinema Ensaios

324 ANDRE BAZIN

Lobisomem (Nosferatu) 69, 118, 150, 233

Louisiana story 62, 63 Luzes da ribalta (Limelight) 169

Macbeth - reinado de sangue (Macbeth) 98, 123, 130, 138, 152, 153, 156, 158

Madame Bovary 94, 121 Mae (Matt) 274 Malheurs de la guerre, Les 172 Man of Aran 40, 145 Manada, A (The overlanders) 200 Manolete 142 Manon des sources 166,167,168,

169, 170, 171 Mar verde (Sea of grass) 216 Marius 166, 167 Martirio de Joana d'Arc, 0 (La

passion de Jeanne d'Arc) 70, 112,118,146,148,150,151

Matador, 0 (The gunfighter) 213

Matar ou morrer (High noon) 202, 211,212,214,221

Medicin, malgre lui 130, 132 Medico e 0 monstro, 0 (Dr. Jekyll

and Mr. Hyde) 70 Melhores anos de nossas vidas, Os

(The best years of our lives) 100, 101

Melodic der Welt 34 Meu amigo, Amelia e eu (Occupe­

toi d'Amelie) 130, 139 Milagre em MiHlo (Miracolo a

Milano) 278, 279, 284, 285, 286,287,288,289,290,295,296

Minas do rei Salomao, As (King Salomons's mines) 34

Miseraveis, Os (Les Miserables) 82 Moana 33 Monsieur Verdoux 100, 288 Mulher do padeiro, A (La femme

du boulanger) 167 Mulher faz 0 homem, A (Mr. Smith

goes to Washington) 70 Mundo do silencio, 0 (Le monde

du silence) 42, 43, 44

Mystere Picasso, Le 122, 178, 179,180,181,183,184,185,186

Na estrada da vida (La strada) 299, 300, 305, 306, 309

Nanook, 0 esquimo (Nanook of the north) 33, 62, 63, 145

Nave Bianca, La 234 Nibelungos, Os (Die Niebelungen)

118,150,152,233 No caminho da vida (Putovka v

Gisnye) 240 No tempo das diligencias (Stage­

coach) 70, 72, 100, 102, 146, 203,205,206,209,210,215,221

Noites de Cabiria (Le notti di Cabi­ria) 234,299, 300, 301, 103, 306

Onesime et Ie beau voyage 126 Opera dos pobres, A (Die Drei­

groschenoper) 48 Ouro de Napoles, 0 (L'oro di

Napoli) 315 Ouro e Maldi~ao (Greed) 70, 118,

233

Pacto de honra (Saskatchewan) 214 Paisa 79, 91, 198, 233, 237, 239,

244, 246, 247, 250, 252, 253, 254, 255, 256, 259, 261, 264, 267,269,272,274,279, 311

Paixao dos fortes (My darling Clementine) 210

Paixao e sangue (Underworld) 199 Pao, amor e ciume (Pane, amore e

gelosia) 309 Partie de campagne, Une 94, 121 Passado que condena (La spiaggia)

310 Pastor de almas (The pilgrim) 84,

206 Patto col diavolo 265 Pecado mora ao lado, 0 (The seven

year itch) 227, 228 Pecado original, 0 (Les parents

terribles) 98, 100, 123, 130, 132, 134, 135, 136, 138, 146, 153, 154, 157, 169

...

fNDlCE DOS FILMES CITADOS 325

Pequeno mundo antigo (Piccolo mondo anti co) 236

Perfida (Little foxes) 76, 98, 123, 125, 130, 138

Piscator 263 Plage de la Garoupe, La 181 Poder da mulher, 0 (Westward

the women) 213 Por quem os sinos dobram (For

whom the bells tolls) 90, 255 Pre~o de urn homem, 0 (The naked

spur) 216, 219 Princesa de Cleves, A (La princesse

de Cleves) 197 Proscrito, 0 (The outlaw) 212

Quadragesimo-primeiro, 0 (Sokok Perviy) 226

Quando a mulher erra (Stazione termini) 310

Que viva Mexico 274 Quo Vadis 234

Rastros de odio (The sear­chers) 219

Regiao do odio (The far country) 216

Regra do jogo, A (La regIe du jeu) 76,80, 100, 148, 195, 198,257

Rideau cramoisi, Le 59 Rio bravo (Rio Grande) 213 Rio da aventura, 0 (The big sky)

214, 216 Rio das almas perdidas, 0 (River

of no return) 217 Rio sagrado (Le fleuve) 121 Rio Vermelho (Red river) 214, 216 Roma cidade aberta (Roma citta

aperta) 233, 236, 239, 242, 256, 264, 277, 311

Roma citta libera 248 Romantico aventureiro (Un'aven­

tura di Salvator Rosa) 236 Roue, La 67 Rubens 176

Salario do medo, 0 (Le salaire de la peur) 184

Sang d'un poete, Le 59, 165 Sangue de herois (Fort apa­

che) 210, 211 Sangue do meu sangue (House of

strangers) 215 Scarface, a vergonha de uma na~ao

(Scarface) 70,71,100,102,199 Sete homens sem destino (Seven

men from now) 219,220,221, 223

Si jolie petite plage, Une 53 Silence de la mer, Le 116 Sinfonia pastoral (La symphonie

pastorale) 82, 96, 97, 121 Soberba (Magnificen( Ambersons)

62,64,76 Sombra do patibulo, A (La char-

treuse de Parme) 92, 93 Sortilegios (Sortilege) 249 S.O.S. 103, 234 Stromboli 311 Sua unica saida (Pursued) 214

Tabu 33, 69, 240, 241, 274 Tarza (Tarzan) 34 Terra trema, La 79, 80, 258, 259,

260,261,262,263,272,276,315 Thomas Gomer 91 Topaze 157, 159, 168 Trader horn 34 Tragica persegui~ao (Caccia tragica)

257, 261 Tragico amanhecer (Le jour se leve)

72,74, 100 Trapa~a, A (II bidone) 299, 300,

301, 304, 305 Tres mosqueteiros, Os (Les trois

mousquetaires) 82

Ultima porta, A (La derniere chan­ce) 240

Ultimo bravo, 0 (Apache) 211, 217

Ultimo milionario, 0 (Le dernier milliardaire) 48

Umberto D 288,289,291,292, 293, 294, 295, 296, 297, 298, 305,318

Page 162: Andre Bazin - O Cinema Ensaios

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326 ANDRE BAZIN

Valente a muque (Fran~ois 1er) 47

Vampiros, Os (Les vampires) 86, 248

Van Gogh 122, 172, 174, 176 Velho e 0 novo, 0 (Staroye i

novoye) 67, 84 Vera Cruz 217 Viagem a Italia (Viaggio in Italia)

309,311,313,314,315 Vidas amargas (East of eden) 217 Vitimas da torment a (Scius-

cia) 233, 236, 239, 248, 249, 264, 267, 278, 279

Viver em paz (Vivere in pace) 238, 265,267

Volta de Frank James, A (The return of Frank James) 209

Voyage surprise, Le 48 Voyageur sans bagages, Le 123,

128, 149

Winchester 73 207

Zero de comportamento (Zero de conduite) 187

Ziegfeld follies 70

, 1

Page 163: Andre Bazin - O Cinema Ensaios

A m(q:lca como linguagem Ernst Schurmann 192 pp.

As diversas manifestac;:oes musicais que Bur­giram ao longo da hist6ria 04.0 aconteceram por acaso, mas tim uma explicac;:60 eeon6-mica, polftica e cultural, de acordo com 0

momenlo em que Burgiram. A partir dessa constatac;:60, 0 aulor elahara uma inleressan­tissima analise critica dos diversos conceitos da leoria musicallradiciooal.

A Linguagem Autoritaria - relevisdo e Persuasdo Mllrill TherezlI FrllQlI Rocco

Silvio Santos tornou-se sinOnimo de domingo a tarde pela sua lonoevidade no video. A ana­lise do verbal desta verdadeira "instituic;:4.o de lazer televisivo" mereceu uma tese de Ii­vre-docltncia , laureada com grau mAximo. A autora cheqa a um resullado antes suspeito, mas que nunca havia sido desnudado: a lin­quagem do apresenlador e espontlnea, mas aulorita.ria e brutal. Um prec;:o muito .,Jto pa­ra a felicidade do bad.

Arte e Utopja - Arte de nenhuma pcute Teixeira Coelho, 200 pp., 14 x 21 em.

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111 \ ' II' ,

Arie e utopia manlem enlre si relot;6es ins/d­veis e conOituosos. Que quer a arte quando SOMa com 0 u/opia? Com 0 que SOMa a so· ciedade quando sonba com a arie? Neste li­VTO, Teixeira Coelho aponla para as relot;6es entre arie e utopia . Discule 0 lugar do arie no sociedade perieito, 0 conleudo politico do ohIO dearie, eosonhodoseslilos, do Roman­Usmo (} Pop Art .

M£M6RIA DA T£L£NOV£LA BRASIL£IRA

[smoel Fernandes - 14 x 21 em - 524 pp. Em 1963 no TV Excelsior, entrovo no or2·S499 Ocupado, a primeiro telenovelo do televisdo brosileiro. E aquilo que com~u Umidomen · Ie como umo experiimcia televWvo trons/or­mou-se numo verclodeiro paixoo nocional. De 16 pro cO, j610rom produzidos mais de 400 novelas e minisseries. lsmael Fernandes pes­quisou uma por umo, reuniu nomes de atores, atrues, diretores, os resumos dos hist6rias, e compilou 0 pn'meiromanual completo do te­lenovela no Brosil.

CINEMA 2 A lmagem-tempo Gilles Deleuze

JuntlUldo a filolOfia e 0 cinema, Oeleuze desfila dilUlte de n~ olbos meaires como Chaplin, HerzOQ, Anlonion!, Godard e Vdconti. entre ou­tros, para nele. IUlcorar at lUl6li.se. que faz entre a pa.saado • 0 pre.ente, a mem6ria e 0 aconteci­mento. S.u estudo precedente, A Lmogem-Mov;­menlo, tambem 101 editado pela Bra.illenM.

A Llnguagem Cinematogr{rllca Marcel MlIrtin

Escrito de maneira acessivel a qualquer amador de cinema, com an.ilises amparadas em inumeros exemplos, asta obra e um au­t6ntico clAssico da bibliografia da setima ar­teo Ao deixar claro para 0 leitor como se compOem as imagens cinematogr.ilicas, seus elementos visuais e sonoros significati­vas, Marcel Martin aiinna que a Unquagem cinematograiica deve ser entendida a partir dos filmes tais como sao leitos. t essa prod­midade que seduz definitivamente 0 leit~r e a cinefilo.

Page 164: Andre Bazin - O Cinema Ensaios

Os fUmes d. Kurosawa De Donald Richie Tradu9!o de Maria Antonia Van Acker 256pp. - 21 x 28cm

Sequndo 0 proprio Kurosawa, esta obra e se­quramente a mais meticuloso e competente trabalho escrito sobre seus filmes. Apresenta as historias, as fichas tecnicas e 0 dia-a -dia dos seus 28 £ilmes, inc1uindo ISO fotos de ce­nas. Definitivamente, este japones nascido em To­quio em 1910 conquistou 0 mundo com a bele­za e genialidade de seus filmes. 0 livro confir­ma e registra esta cerleza.

SHOAR - Vozes e laces do Holoea uato

Claude Lonzmonn - 272 pp. - 14 x 21 em Nove horos e meio de tesfemunhos e depoi­mentos pessoais de sobrevivenfes dos cam-posde concentro¢o de Auschwitz, Sobibor, Treblinka, e do Gue/o de Vars6via . Foi com eles que Claude Lanzmnnn filmou Shoah um documenl6rio impressiononle e aplaudi: do pelo cr/lica inlernocional por norror 0

Holocauslo judeu segundo a mem6rio dos v/timas. Nestelivro, 0 seu texto in/egral, com apresentot;iio de Simone de Beauvoir.

Sendo Mar - Glauber Rocha e a estfHica do lome Ismail Xavier, 172 pp., 14 x 21 cm

Senao Mar an aliso 0 cinema de Glauber Ro. cha e a "estetico do fome" em suo expressiio mais genulna, no momento do apogeu do Ci. nema Novo, bem como a contrapde a clOssi­COS como 0 Pagado! de Promessas e 0 Can ­gaceiro. Nesse percurso 0 cinema de Glau­ber revela-se como insldncioprivilegiado pa. ro discutir a intima re/ot;iio entre arle e ideo­logia.

PAULO EMIUO - Um Jntelactual no l jnba d. lrent.

Carlos Augusto Calil/Maria Teresa Machado - 14 x 21 em - 404 pp. Com seu anticonformismo radical e um des· concerlonte bom humor, Paulo Emilio Salles Gomesjamais abandonou 0 pensamen,to po­litico, mesmo quando se dedicava a lict;iio ou a critica cinematogrdlica.Neste volume, umo reuniiio de arligos, cr6nicas e moniles­los dispersos de suo obra polemica e conies· tadora .

SIGNAGEM DA TELEVISAo

Decio Pignaton - 14 x 21 cm . 192 pp. Muito mais do que a simples linguagem tele· vlsiva, 0 que DecioPignaiari onalisa neste Ji­vro e a sua signogem: aquila que esM por trosdasnovelosda Globo, dosprogromasde audil6rio do Silvio Santos e Chacrinha, e dos gols da rociada. Todo um sistema de sig­nilicat;iio que, aparentemenie ceulto, Iroha· lha 0 inconscienie do espectador. Basta gl­ror 0 seietor.

o Camaval dcu Imagens Michele e Armand Mattelart

Como um pais de Terceiro Mundo como 0

Brasil conseque uma produ~!o intemaciona­U:r:ada capaz de compeU! com series norte­americanas? Ao tratar da nossa fic<;Ao televi­siva, esta livro lan<;a um olbar de "eatrangei­ro" sobre a sociedade brasileira. Primeiro moatrando como 0 produto televisivo sa inse· ra no Mercado intemacion&l e depowlevan­tando 0 dilema sobre 0 monop6lio da televi­NO - Eltado ou mercado?

( I