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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
André Noro dos Santos
A Relação Homem-Máquina na Cultura Japonesa: A hibridação entre o corpo tecnológico e humano
através da animação Neon Genesis Evangelion
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
São Paulo
2013
André Noro dos Santos
A Relação Homem-Máquina na Cultura Japonesa: A hibridação entre o corpo tecnológico e humano
através da animação Neon Genesis Evangelion
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica – área de concentração: Signo e Significação nas Mídias – sob a orientação da Professora Doutora CHRISTINE GREINER
São Paulo 2013
Banca Examinadora
Aprovado em ____/____/________
Autorizo, para fins exclusivamente acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação por processos fotocopiadores e eletrônicos:
Assinatura: _________________________________________________________________
São Paulo, ________ de agosto de 2013.
Dedico este trabalho a minha mãe, Setsuko, cujo apoio foi fundamental para a realização deste curso.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Professora Doutora Christine Greiner, que me conduziu de modo
seguro e acolhedor nesta jornada de vida e acompanhou de perto toda a evolução da presente
pesquisa.
Aos meus pais Joseney e Setsuko pelo amor e apoio.
Ao doutor Marco Souza, pela inestimável contribuição com seu conhecimento e
valiosas sugestões.
À doutora Patrícia Borges pela amizade e sugestões preciosas.
À doutora Cecília Saito, pelo carinho e oportunidade de trabalhar no grupo de
pesquisa.
Aos amigos, Roberta e Marcelo, pela presença constante e apoio nos momentos de
insegurança.
À Cida e a todos os amigos que, de alguma forma, contribuíram para a realização da
presente Dissertação.
A CAPES, pela ajuda financeira durante a realização do mestrado.
RESUMO
O tema desta dissertação é a relação homem-máquina na cultura japonesa. Por tratar-se de um tema muito amplo, o objetivo principal da pesquisa foi analisar a série de animação Neon Genesis Evangelion, demonstrando como esta evidenciou a hibridação entre seres humanos e máquinas, de modo a propor uma reflexão acerca dos usos das novas tecnologias na sociedade contemporânea. Embora este objeto de estudo faça parte da cultura otaku – que marca a produção do Japão pop a partir de 1980, a hipótese principal da pesquisa é que a construção desses corpos híbridos sempre existiu na cultura japonesa e, ao contrário do que discutem vários autores ocidentais, para os japoneses não se trata de uma condição pós-humana. Desde o Japão tradicional, diversas modalidades de teatro de bonecos já propunham uma indistinção entre o corpo do manipulador e o corpo do boneco. Em termos metodológicos, analisou-se a linguagem da série de animação Neon Genesis Evangelion demonstrando como esta evidencia a hibridação estabelecida entre humano e máquina, sem sugerir, no entanto, que este tipo de relação tem início no Japão contemporâneo. Espera-se que a pesquisa contribua com o campo da comunicação, tanto no sentido de elucidar aspectos da cultura pop japonesa, como nas discussões acerca da relação entre corpo e tecnologia.
Palavras-chave: Animação japonesa. Homem-máquina. Corpo híbrido. Pós-humano
ABSTRACT
The topic of this dissertation is the man-machine relation in Japanese culture. As this is a very broad topic, the primary goal of this study was to analyze the animated series Neon Genesis Evangelion demonstrating how it shows the hybridization of human beings and machines in order to propose a reflection on the uses of new technologies in modern society. Although this object of study is part of the so-called otaku culture - that marks the production of Japanese pop since 1980, the main hypothesis of the research is that the construction of these hybrid bodies always existed in Japanese culture and that, contrary to what many Western authors state, for the Japanese this does not constitute a post-human condition. In Japanese tradition, various forms of puppet theater established no clear distinction between the body of the puppeteer and the body of the doll. In methodological terms, the proposal was to analyze the language of the animated series Neon Genesis Evangelion, demonstrating how it shows the hybridization of human and machine without suggesting, however, that this type of relationship originates in modern Japan. It is hoped that this study will contribute to the field of communication both in the sense of clarifying certain aspects of Japanese pop culture as well as in the discussions regarding the interface between the human body and technology. Keywords: Japanese animation. Man-machine. Hybrid body. Post-human.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Fragmentos de pergaminho Chojugiga 19
Figura 2 – Apresentação de artistas Kamishibai 20
Figura 3 – Hokusai Mangá 21
Figura 4 – A arte Ukiyo-e 22
Figura 5 – A batalha entre o Macaco e o Caranguejo e Momotaro 24
Figura 6 – O Coelho e a Tartaruga e Momotaro, o número 1 do Japão 25
Figura 7 – Momotaro no Umiwashi 26
Figura 8 – Hakujaden 27
Figura 9 – Tetsuwan Atomu (Astro Boy) 30
Figura 10 – A Viagem de Chihiro e O Castelo Animado 31
Figura 11 – Akira 37
Figura 12 – Chahakobi ningyo 40
Figura 13 – Zashiki karakuri, Dashi karakuri e Butai karakuri 41
Figura 14 – Sistema de funcionamento do Karakuri ningyo 42
Figura 15 – Gundam Wing Zero 44
Figura 16 – Mazinger Z 44
Figura 17 – Gundam 45
Figura 18 – EVA, Shinji e Anjo 45
Figura 19 – Cell e Data 46
Figura 20 – Androide Repliee Q1 47
Figura 21 – Robô que lava cabelo e Cama robótica 49
Figura 22 – Robô regente e Robôs músicos 49
Figura 23 – Robôs e humanos 50
Figura 24 – Kuruma ningyo 55
Figura 25 – Cenas do Kuruma ningyo 55
Figura 26 – Hitogata e Katashiro 57
Figura 27 – Imagens de EVA e Shinji 59
Figura 28 – O Homem de Seis Milhões de Dólares e Robocop 60
Figura 29 – Humanoide Cog 63
Figura 30 – Stelarc e suas performances 67
Figura 31 – A Árvore da Vida 71
Figura 32 – Lilith 74
Figura 33 – Tokio-3 75
Figura 34 – Gendo Ikari, Misato Katsuragi e doutora Ritsuko Akagi 75
Figura 35 – Pilotos adolescentes de EVA 79
Figura 36 – EVA 80
Figura 37 – Reações de Shinji em sincronia com as reações de EVA 81
Figura 38 – Equipamentos da Unidade EVA 82
Figura 39 – Piloto Shinji no Plug de entrada 82
Figura 40 – O lado animalesco de EVA 84
Figura 41 – EVA em Berserk 85
Figura 42 – Devaneios de Shinji 87
Figura 43 – Devaneios de Rei Ayanami 90
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 12
1 UM BREVE HISTÓRICO DA ANIMAÇÃO JAPONESA: DOS KARAKURI NINGYO
AOS MECHAS ........................................................................................................................ 16
1.1 O DESENVOLVIMENTO DA ANIMAÇÃO JAPONESA ............................................................. 16
1.2 AS ANIMAÇÕES JAPONESAS E A CULTURA ROBÓTICA: ENTRE OS KARAKURI NINGYO, MECHAS
E A ROBÓTICA MODERNA NO JAPÃO ....................................................................................... 35
1.3 O CORPO HÍBRIDO: A TRADIÇÃO JAPONESA E O PÓS-HUMANISMO ..................................... 53
2 NEON GENESIS EVANGELION: UM MUNDO APOCALÍPTICO ENTRE EVAS,
PILOTOS E ANJOS ............................................................................................................... 70
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 96
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 98
12
INTRODUÇÃO
A animação japonesa representa um relevante fenômeno de massa do final do século
XX, que juntamente com os mangás – os quadrinhos japoneses tornaram-se um rápido
veículo de comunicação da cultura japonesa, sobretudo a partir de 1980. Alcançou enorme
popularidade quando trouxe para as televisões do ocidente uma narrativa construída a partir
da cultura pop sem, contudo, deixar de refletir, traços da tradição cultural milenar.
O desenvolvimento da animação no Japão, entretanto, possui longa história. A
animação foi introduzida no Japão, importada do ocidente, a partir de 1910, em particular,
com os filmes de animação francesa Fantasmagoria, de Émile Cohl (GAN, 2009). Motivados
pela novidade, os desenhistas japoneses começaram a produzir suas próprias produções
audiovisuais, porém, sem deixar de enfatizar as suas tradições artísticas e culturais. Após a II
Guerra Mundial, o Japão experimentou novamente um contato intenso com ideias e costumes
vindos do ocidente, em especial, dos Estados Unidos da América (EUA). A partir daí, os
nipônicos absorveram as novas experiências, mesclando as suas tradições com as novidades
apreendidas do ocidente, construindo, assim, uma nova imagem das produções audiovisuais
japonesas. Especificamente, em relação às animações japonesas, as novidades em relação à
técnica, estética e traços característicos levaram o Japão a se consolidar na arte da indústria de
entretenimento, firmando-se, inicialmente, em seus próprios domínios, para, em seguida,
internacionalizar-se e obter respeitabilidade e status assegurado por volta do ano 2000.
A partir daí, tem-se uma visível influência das animações japonesas na cultura
ocidental. Esta se encontra em grifes, filmes, videoclipes etc., utilizando-se a temática
japonesa de animação. É justamente o gosto pela animação japonesa e mangás e o interesse
por temas que misturam elementos trazidos das culturas tradicionais e contemporâneas, que
levaram à escolha do objeto de pesquisa do presente estudo: a relação homem-máquina na
cultura japonesa através da série de animação Neon Genesis Evangelion (Shin Seiki
Ibangerion).
Trata-se de uma série televisiva composta de vinte e seis episódios, escritos pelo
diretor Hideaki Anno e produzidos pelo estúdio de animação Gainax (1995). É uma série de
animação pós-apocalíptica que gira em torno de uma organização paramilitar chamada NERV.
Em 2015, quinze anos depois de uma enorme catástrofe denominada “2º impacto”, que teve
consequências como a destruição da Terra e morte de muitos dos seus habitantes, a
organização NERV trabalha para evitar o “terceiro impacto”.
13
A organização, que tem como líder Gendo Ikari, é regida pela Organização das Nações
Unidas (ONU) e é responsável pela reestruturação da humanidade e as batalhas pela
sobrevivência da raça humana. Tais batalhas envolvem criaturas biocibernéticas – as EVAs,
abreviatura de Evangelion – pilotadas por adolescentes, sob controle da NERV, para combater
seres míticos chamados Anjos, enviados a Terra para aniquilar o que restou da raça humana.
A temática do apocalipse aparece com frequência em narrativas japonesas, e a
tecnologia e robótica estão presentes em diversos títulos da animação japonesa, em especial,
no gênero mecha. A relação entre robôs e animação japonesa tornou-se mais evidente com o
avanço tecnológico que se deu com a reconstrução do Japão após a II Guerra Mundial. A
animação japonesa tornou-se respeitada internacionalmente, e da mesma forma, o campo da
robótica também tem sido estimulado, tornando-se cada vez mais presente no cotidiano da
humanidade. Entretanto, apesar da presença da tecnologia e seu amplo desenvolvimento ter
ocorrido a partir do referido período, em que os valores culturais também foram revistos e a
cultura pop adquire forças e maior visibilidade, tem-se na cultura japonesa um histórico da
relação com os robôs desde o século XVII, representado pelo Karakuri ningyo – considerado
o primeiro robô japonês. Isto, em parte, pode explicar o fascínio e a aceitação dos aparatos
tecnológicos e dos robôs pelo povo japonês (MATTHEWS, 2003-2004).
Em Neon Genesis Evangelion, o avanço da ciência e da tecnologia permite aos
humanos, através do Projeto de Complementação Humana, a construção de ciborgues (EVAs)
e clones, que possam lutar contra os Anjos enviados a Terra para destruir a humanidade. Neste
sentido, as EVAs por si só, e alguns pilotos produzidos pelo referido projeto, são sugestivos de
uma condição pós-humana, onde se tem um contexto de proliferação e convergência de novas
tecnologias com a formação de um novo ser híbrido, maquínico e humano, com perspectivas
de modificação não somente do seu corpo, mas também de sua subjetividade, conforme
entendem alguns autores contemporâneos, como, Haraway (1985), Gray (1996), Hayles
(1996, 1999), Stelarc (1997, 2006), Sibília (2002), Lemos (2002), Santaella (2003), Regis
(2007) e Carvalho (2008).
A série selecionada para análise evidencia ainda uma aproximação e uma relação
muito intensa entre EVAs e pilotos, sugerindo a formação de um corpo híbrido em que não
haveria separação entre o corpo maquínico e o humano, onde a presença de um já pressupõe a
existência do outro. Através da interação, a série permite discutir questões relacionadas aos
14
sentimentos, emoções e identidades das pessoas, que só poderão ser afloradas a partir da
hibridação homem-máquina.
Na cultura tradicional japonesa a relação homem-máquina pode ser explicada através
da expressão “mono”, que significa corpo humano e corpo inanimado, conforme observado
nas diversas modalidades de teatro de bonecos, onde não se tem uma clara distinção da
separação entre o corpo do manipulador e o corpo do boneco, conforme se dá no teatro
kuruma ningyo (SOUZA, 2005).
Os aspectos apresentados acabaram por motivar a pesquisa da referida série de
animação, na busca da compreensão dos aspectos da relação homem-máquina na cultura
japonesa e as discussões contemporâneas sobre as condições pós-humanas.
A hipótese principal da pesquisa é que existe toda uma discussão contemporânea que
aposta na condição pós-humana, mas, ao contrário do que discutem vários autores ocidentais
(SIBÍLIA, 2002; LEMOS, 2002; SANTAELLA, 2003, CARVALHO, 2008), na cultura
japonesa, a construção dos corpos híbridos sempre existiu e, para os japoneses, não se trata de
uma condição pós-humana, e sim, uma condição humana. Logo, a série Neon Genesis
Evangelion sugere a possibilidade de entender a EVA como um ciborgue, mas propõe também
uma categoria distinta que dilui a dicotomia homem-máquina.
Diante do exposto, o objetivo geral da presente dissertação foi identificar e analisar a
linguagem da série de animação Neon Genesis Evangelion, e como esta evidenciou a
hibridação estabelecida entre humano e maquínico. Os objetivos específicos foram: a)
identificar através da série, a relação entre corpo do homem e o corpo maquínico no
desenvolvimento do corpo híbrido; e, b) discutir através da série o significado de corpos
híbridos na cultura japonesa e a condição pós-humana na sociedade contemporânea.
O presente estudo teve como aporte a visão de pesquisadores mencionados
anteriormente, entre outros que discutem as representações de ciborgues e corpos pós-
humanos, e em autores como Marco Souza, Yamaguchi e outros que estudaram as relações
entre os humanos e as máquinas, entre a “coisa” representando o ser inanimado e o ser
animado na concepção da tradição japonesa através da noção de mono. Alguns estudos já
realizados sobre a série, por autores como Amatte Lopes (2006), Mendes (2006), Zaminelli
(2011), serviram também de suporte para a concretização da presente pesquisa.
Na perspectiva de entender mais sobre o corpo híbrido como resultado de cruzamentos
de corpos, informações e interações com o ambiente, e não um lugar onde as informações são
apenas armazenadas tomou-se como referência a teoria corpomídia de Greiner e Katz (2005) e
15
autores, como, Clark (2011) – que discute o corpo híbrido como processo de distensão do
corpo – e Damásio (2000) – com suas explicações que relacionam sentimentos às emoções e
que poderiam auxiliar no entendimento da interação corpo-mente à luz da neurobiologia.
Em termos metodológicos, para o desenvolvimento da presente dissertação, foram
utilizados os recortes de alguns episódios da série de animação Neon Genesis Evangelion.
Fez-se ainda uma análise interpretativa visando identificar a relação homem-máquina que se
dá durante as batalhas entre EVAs e Anjos, e a participação do homem e seus conflitos
pessoais. Tais aspectos foram capturados por meio de elementos visuais e textuais existentes
na série.
O presente estudo estruturou-se em dois capítulos principais. No primeiro, “Um breve
histórico da animação japonesa: dos karakuri ningyo aos mechas”, tem-se: uma introdução ao
universo das animações japonesas; um breve panorama do desenvolvimento da animação
japonesa, sua associação com o mangá (os quadrinhos japoneses) e o cinema, além de
possibilitar a compreensão das raízes históricas e culturais do gênero mecha, categoria na qual
a série Neon Genesis Evangelion se insere. O capítulo dedicou-se ainda ao entendimento da
figura do ciborgue, da tecnologia robótica e a da condição pós-humana, por meio de revisão
teórico-conceitual com base em vários autores contemporâneos, confrontando-os com a
representação da relação entre corpos animados e inanimados na tradição cultural japonesa
através da noção de mono.
O segundo capítulo, “Neon Genesis Evangelion: um mundo apocalíptico entre EVAs,
pilotos e Anjos”, discorreu sobre a linguagem da série de animação, evidenciando os episódios
que envolvem a figura da EVA, a sua relação com o homem e a luta com os Anjos diante de
um iminente apocalipse.
Espera-se, com o resultado da presente pesquisa, contribuir para as discussões sobre as
relações entre os seres humanos e as máquinas, e como tal hibridação é vista na cultura
japonesa, em contraste com as reflexões em torno das condições pós-humanas na sociedade
contemporânea ocidental.
16
1 UM BREVE HISTÓRICO DA ANIMAÇÃO JAPONESA: DOS KARAKURI NINGYO
AOS MECHAS
1.1 O desenvolvimento da animação japonesa
A animação japonesa é considerada um dos principais representantes da cultura pop
nipônica pelo mundo. Juntamente com os mangás, os games e a música ou mesmo o cinema
tradicional, os animes, como são também conhecidos, tornaram-se os principais difusores da
cultura japonesa no mundo contemporâneo.
Apesar de ter se estabelecido no ocidente somente após a II Guerra Mundial, entre as
décadas de 1970 e 1980, a animação japonesa é detentora de uma história longa, mas que
sofreu modificação. A animação atual, com todas as características que lhe são pertinentes, foi
impactada por uma rede complexa de informação durante o século XX e, até hoje, continua
em processo.
A própria terminologia empregada para designar animação japonesa sofre
modificações ao longo do seu desenvolvimento.
Estudo realizado por Gan (2009), sobre o significado no Japão do termo “anime”,
descreve a origem do referido termo. De acordo com o autor, em 1910, no final do período
Meiji, as animações estrangeiras começaram a receber especial predileção por parte do
público. Em particular, os filmes de animação francesa Fantasmagoria, de Émile Cohl, que
apresentavam o herói “Le fantoche” (Dekobo, como se denominou o garoto herói), tornaram-
se muito populares sob o título japonês de dekobo shingacho (um novo livro de desenhos de
Dekobo). A série de animações rotuladas como “dekobo shingacho” se tornou extremamente
popular, e a expressão em si tornou-se, na época, sinônimo de animação. Posteriormente, a
expressão “senga eiga” (desenhos de linhas de filme) ou “senga kigeki” (desenhos de linhas
de filme cômico) passou a ser utilizada para se referir à produção japonesa de animações.
Na década de 1920, a expressão “mangá eiga” (filme de mangá) começou a ser
utilizada para se referir a animações com uma narrativa dramática. Fazia-se uso ainda do
termo “senga” (desenhos de linhas) para referir-se a animações com diagramas e propósitos
educacionais. Por volta de 1937, os filmes e desenhos animados começaram a ser chamados
de doga (imagens em movimento), mas o termo deixou de ser utilizado após a ocupação
americana no Japão, em 1945.
17
A palavra “anime” surge pela primeira vez em 1962, em uma revista de cinema
japonesa muito popular, chamada Eiga hyoron. Por volta de 1965, a expressão doga eiga
(imagem em movimento de filme) se tornou popular para designar ‘filme de animação’. A
palavra “japanimation” foi também utilizada entre o final da década de 1970 e o início da
década de 1980, porém, por pouco tempo, por causa da divulgação esparsa das animações
japonesas em países estrangeiros. Atualmente, animação e anime viraram os termos mais
utilizados e estabelecidos internacionalmente para designar o referido tipo de produção
audiovisual (GAN, 2009).
Existem duas correntes que buscam explicar o surgimento da expressão anime. A
primeira, defendida por Frederik L. Schodt (1997) e Alfóns Moliné (2004) sugerem que a
palavra anime seja uma derivação da expressão francesa dessin anime (desenho animado). A
segunda, e mais aceita, acredita que anime seja uma corruptela de animation (animação), do
inglês, falada pelos japoneses como animeeshon (SATO, 2007, p.31).
Em relação ao uso atual do termo “anime”, Gan (2009, p. 35) esclarece que
[…] fora do Japão, anime é usado principalmente como um termo referente à animação feita no Japão. Dentro do Japão, porém, a palavra anime, uma pronúncia abreviada de animação japonesa tem sido amplamente utilizada como uma abreviatura para toda a animação. No entanto, apesar da popularidade crescente e atenção da mídia em todo o mundo, o significado e o uso do termo ainda é ambíguo e não é empregado com um significado uniforme. Há um número de pessoas, especialmente no Japão, que persistem em diferenciar o significado de anime e animação, argumentando que anime é apenas uma parte do maior gênero de animação. Eles afirmam que nem todas as animações produzidas no Japão são de anime, enfatizando o caráter distintivo e o significado das obras que não se conformam com a imagem popular existente do anime.
Hayao Miyazaki, diretor do Estudio Ghibli, um dos principais estúdios de animação no
Japão, famoso por seus filmes de longa-metragem de animação de alta qualidade, explica que
o rápido desenvolvimento da indústria do anime esteve intimamente ligada à rica cultura do
mangá no país, porém, muitas vezes, várias convenções do mangá foram transferidas
diretamente para o anime sem que os artistas procurassem observar experiências diferentes a
fim de criar suas próprias expressões. Aquele diretor relata que não gosta do termo “anime”
porque este representa uma visão estreita de animação que se limita a animação de celuloide,
sem levar em consideração outras técnicas possíveis na expressão de animação.
Em muitas ocasiões, Miyazaki se refere às suas obras como eiga (filmes), observando
que estas são fundamentalmente diferentes do que tem sido chamado de anime (MIYAZAKI,
18
1998, p. 107; 2008 p. 82 apud GAN, 2009).
Neste sentido, na presente dissertação, utilizou-se, na maior parte das vezes, a
expressão ‘animação japonesa’ – termo mais amplo que não se restringe apenas aos desenhos
animados, mas a toda uma produção audiovisual.
Como o desenvolvimento da animação japonesa está muito relacionado com a história
das artes gráficas japonesas e do mangá (histórias em quadrinhos japoneses), nas linhas a
seguir, descreveu-se o início da história destas artes ‘irmãs’, sem, no entanto, ter a pretensão
de fazer um levantamento histórico profundo sobre o mangá no Japão e como tal forma de
manifestação chegou ao ocidente. Pretende-se aqui apenas apresentar dados que auxiliem na
compreensão do desenvolvimento da animação e possam facilitar o entendimento da série de
animação Neon Genesis Evangelion – objeto central do presente estudo.
Mangá é uma palavra japonesa utilizada para designar histórias em quadrinhos em
geral. É formada por dois ideogramas chineses: o man (漫) - que significa “humor ou algo
que não é sério”, e o gá (画) – que quer dizer “imagem ou desenho”. Durante a era Edo, o
referido termo foi utilizado para denominar desenhos exagerados, que significa literalmente
desenhos malucos. Os japoneses imaginavam manga como algo divertido e leve, como os
desenhos do povo na era Edo (MITSUGO, 2005 apud ROCHA, 2008).
Pode-se considerar que o surgimento do mangá data do século XI, no Japão medieval,
através de desenhos pintados sobre um grande rolo onde as histórias eram contadas à medida
que iam sendo desenrolados. Eram chamados de e-makimono. Estes podem ser considerados a
origem do mangá e de sua estrutura sequencial de narrativa.
Os e-makimono eram muito populares no século XII, e foi em tal período que o monge
chamado Toba (1053-1140) produziu o mais famoso deles: o chojugiga (Figura 1) - desenhos
caricatos de animais e pássaros. Aquele monge desenhava em pergaminhos animais
personificando figuras do meio social: monges e nobres, como crítica aos seus estilos de vida
(MOLINÉ, 2004). Conforme registra Luyten (2000, p. 91-92),
Os e-makimono são considerados a origem das histórias em quadrinhos no Japão. Muito abundantes nos séculos XI e XII, os e-makimono eram desenhos pintados sobre um grande rolo e contavam uma história, cujos temas iam aparecendo gradativamente à medida que ia sendo desenrolado. Dessa maneira, era construída, com estilo original, uma história composta de numerosos desenhos.
19
Figura 1 – Fragmentos de pergaminho Chojugiga. Os desenhos eram pintados sobre um rolo de papel ou seda.
Os desenhos de “linhas simples (de influência chinesa) e estilizadas, com personagens
de olhos grandes, surgiram porque a maioria da população era analfabeta no kanji1 e essa era a
melhor maneira de transparecer os sentimentos das personagens sem a utilização de
ideogramas” (FARIA 2004, p.13). Mas, os personagens de olhos grandes só voltam a fazer
sucesso na década de 1950, introduzidos por Osamu Tezuka, tornando-se uma das
características marcantes do mangá e animação japonesa modernos.
Ainda no século XII, surgiram os Kamishibai, que significa “teatro de papel”. Era uma
forma de contar histórias que se originou nos templos budistas do Japão, onde os monges
usavam o e-maki (pergaminhos que combinam imagens e textos) para o público – em sua
maioria, analfabetos. O Kamishibai permaneceu como um método de contar histórias por
séculos, mas ficou mais conhecido, após o seu renascimento, nos anos de 1920 até 1940,
quando contadores de história itinerantes ou kamishibaiya gaito, batiam dois pedaços de
madeira ligados por um cordão para anunciar a sua chegada às várias moradias. As crianças
que comprassem doces conseguiam os melhores lugares na frente do palco. Uma vez
organizada a audiência, as histórias eram encenadas, na maioria das vezes, utilizando-se um
pequeno palco de madeira. As apresentações possuíam muitos detalhes artesanais em que as
1 Kanji é um dos três alfabetos da língua japonesa. O kanji tem origem na China, e sua linguagem pictográfica apresenta-se em forma de ideogramas. Possui mais de 1.900 caracteres (SAITO, 2004, p. 25).
20
ilustrações inseridas apresentavam movimento em sua narrativa, representando uma
linguagem bem próxima do teatro e da animação.
O ressurgimento da Kamishibai pode ser associado com a grande depressão dos anos
1920, tornando-se um meio para que os desempregados pudessem ganhar uma quantia
pequena em dinheiro. A tradição foi largamente desestabilizada pelo advento da televisão nos
anos 1950, porém, a metodologia foi recentemente reavivada em bibliotecas e escolas
japonesas como recurso pedagógico (Figura 2).
Figura 2 – Apresentação de artista Kamishibai – reavivado recentemente nas bibliotecas e escolas públicas do Japão como recurso pedagógico.
Foi no período Edo ou Tokugawa (1603-1867), com a arte ukiyo-e, que a palavra
mangá foi utilizada pela primeira vez, em 1814. A palavra Ukiyo-e significa “pinturas do
mundo flutuante” ou “estampa xilográfica”. Eram gravuras feitas a partir de pranchas de
madeira, geralmente de temática cômica e, algumas vezes erótica, que retratavam assuntos da
vida urbana, bem como interpretavam os atores populares do teatro kabuki2, lutas de sumô3,
atividades e cenas das áreas boêmias. Podiam ser encontrados também motivos associados à
natureza, como, por exemplo, flores de cerejeiras (sakura) ou mudanças de estação
(MOLINÉ, 2004).
2 É uma forma de teatro japonês conhecida pela estilização do drama e pela elaborada maquiagem usada por seus atores. 3 É uma luta de origem japonesa, na qual dois lutadores se enfrentam em um ringue de formato circular (sem as “cordas” como as de boxe). O objetivo da luta é derrubar o adversário ou empurrá-lo para fora do ringue.
21
O ukiyo-e recebeu destaque entre as artes visuais no final do século XVII, durante a
Era Edo. Katsushika Hokusai, um dos artistas marcantes na arte da xilogravura japonesa e
pintor ukiyou-e, publicou em 1814, o primeiro dos quinze volumes de seu caderno de
desenhos, os quais ficaram conhecidos como Hokusai Mangá, pois, aqueles cadernos
continham os estudos do artista, ou seja, desenhos involuntários ou livres, alusão à tradução
literal da palavra mangá. Sua obra mais importante é a série de gravuras “Trinta e seis vistas
do Monte Fuji” (Figura 3). Figura 3 – À esquerda - fragmento de um dos livros que ficaram conhecidos como Hokusai Manga. A figura à direita, representa a Xilogravura mais famosa da série das “36 Vistas do Monte Fuji” de Hokusai (Hokusai: A Grande Onda e Kanagawa, das “36 vistas do Mount Fuji”, 1823-1829).
Gravett, em seu livro, faz uma analogia entre as pinturas xilográficas ukiyo-e e o
mangá moderno:
As linhas precisas, a composição arrojada e o uso meticuloso de padrões delicados e repetitivos, característicos de todas essas gravuras têm muita proximidade com o mangá, em que o trabalho dinâmico com o traço é a norma e as texturas são aplicadas em tons chapados e sem modulação. A relação é ainda mais clara nos mangás modernos ambientados num passado distante. Nesses casos, os artistas frequentemente fazem referencias conscientes à ukiyo-e e às outras gravuras (GRAVETT, 2006, p. 24).
O autor se refere especificamente ao mangá, mas o conjunto de descrições acima
podem ser aplicadas também à animação. Um exemplo é a animação Program (Um Coração
de Soldado), da série animatrix, lançado em 2003, no qual os produtores do desenho animado
se inspiraram nas pinturas ukiyo-e para compor o ambiente da era feudal japonesa (Figura 4),
utilizando tons chapados, com predominância do matiz preto, estando, portanto, presentes na
22
composição da referida animação, a forma, a essência e os caracteres cromáticos da pintura
ukiyo-e (ROCHA, 2008).
Figura 4 - A arte japonesa Ukiyo-e de impressão de gravura do período Edo. A figura à direita é uma representação do episódio 5 – Program (Um coração de soldado), da série de animação Animatrix.
Com a abertura de seus portos e o fim do isolamento durante a Era Meiji (1868-1912),
os japoneses são contaminados por outras culturas, inclusive, no que se refere ao desenho
humorístico japonês. Em 1862, o inglês Charles Wirgamn publicou a revista The Japan
Punch – a primeira revista de humor em estilo ocidental no Japão, inspirada pela revista
semanal britânica Punch. Inicialmente apelidada de punch-e (desenhos punch), foi
gradativamente conquistando os artistas japoneses até que, em 1890, teve o seu nome alterado
para mangá.
No final do século XIX, os japoneses conheceram as strips – tiras – de múltiplos
quadros inspirados em revistas europeias (inglesa, francesa e alemã) e estadunidenses,
iniciando, no referido período, a produção de quadrinhos.
Mas, foi em 1901, que Rakuten Kitazawa produziu Tagosaku to Morukubei no Tokyo
Kenbutsu (A Viagem de Tagosaku e Morukubei a Tóquio) – considerada a primeira história
em quadrinho japonesa.
Apesar da grande importância dos mangás para o desenvolvimento da animação
japonesa, esta teve origem no cinema, do mesmo modo como se deu com a animação no
ocidente.
As plateias do Japão tomaram conhecimento do cinema, por volta de 1896, com a
realização de exibições com aparelhos – como, por exemplo, o cinematógrafo dos irmãos
Lumière – e através da demonstração do sistema de projeção de filmes da Vitascope: empresa
americana formada por Thomas Armat e pelo inventor Thomas Edison. Poucos anos depois, o
Japão já começava a produzir seus próprios filmes mudos (HANDA, 1999).
23
A primeira grande produção do cinema japonês ocorre em 1913, quando o
diretor/produtor Shozo Makino uniu-se ao ator Matsunoke Onobe para realizarem a primeira
de várias versões de Chushingura4 (Os 47 Ronin5).
Os primeiros filmes japoneses eram documentários retratando, geralmente, aventuras
de época e história de samurais6 injustiçados, cenas de ruas e danças de gueixas7. Seguiram-se
dramas kabuki8 registrados em película, que eram projetados com o acompanhamento do
benshi: uma pessoa que reproduzia os diálogos do filme, interpretando as vozes dos vários
personagens durante a projeção – uma espécie de dublador ao vivo, que ficava ao lado da tela,
proferindo os diálogos e interpretando as imagens para a plateia (KUSANO, 2008).
Embora o cinema sonoro só tenha surgido em 1932, no cinema mudo nipônico,
diferente do cinema ocidental, sempre havia diálogos e sons produzidos pelo benshi
(HANDA, 1999). Tal fato pode ter influenciado a animação japonesa atualmente existente.
Nos desenhos americanos, os sons das falas são gravados primeiro e depois é feita a
animação. No Japão, o referido processo se dá de forma inversa. As dublagens são feitas
depois dos desenhos prontos. No estúdio Ghibli, dirigido por Hayao Miyazaki, fundado em
1985, além dos espaços para as dublagens, existe um anfiteatro para gravar a trilha sonora dos
desenhos com a participação de um maestro e sua orquestra, executando a música ao mesmo
tempo em que assiste ao desenho para fazer a sincronização.
De acordo com o curador do acervo de filmes do Centro Nacional de Cinema japonês,
Akira Tochigi9, tanto o cinema tradicional quanto a animação foram levados ao Japão como
culturas importadas. Como já referido no início do presente capítulo, os japoneses
conheceram as primeiras animações, por volta de 1910, importadas do ocidente. Eram curtas-
metragens mudos produzidos principalmente por animadores de Nova York, como John
Randolph Bray e Winsor McCay (SATO, 2005, p.30). No mesmo ano, várias animações
estrangeiras, inclusive a animação francesa Fantasmagoria, de Émile Cohl, foram importadas
4 É o nome da peça teatral (drama) mais famosa da história japonesa: retrata a história dos 47 ronin e da morte de seu mestre. 5 É a lenda mais famosa do código de honra Samurai: o Bushido. 6 Samurai era como se conhecia o soldado da aristocracia do Japão, entre 1100 a 1867. Suas principais características eram: a grande disciplina, A lealdade e sua grande habilidade com o katana (espada). 7 São mulheres japonesas que estudam a tradição milenar, a arte da sedução, dança e canto, e se caracterizam distintamente pelos trajes e maquiagem tradicionais. 8 Kabuki é uma forma de teatro japonês, conhecida pela estilização do drama e pela elaborada maquiagem utilizada por seus atores. 9 Extraído de texto sobre o cinema silencioso japonês elaborado para a II Jornada Brasileira de Cinema Silencioso, projeto desenvolvido pela cinemateca brasileira. Cf. BRASIL. Ministério da Cultura. Cinemateca brasileira. Disponível em: <http://www.cinemateca.gov.br/jornada/filmes_japones_texto2.html>. Acesso em: 14 mar. 2009.
24
pelo estúdio Fukuhodo e exibidas no Teatro Imperial Teikokukan, no bairro de Asakusa, em
Tóquio (GAN, 2009).
A novidade motivou os desenhistas japoneses, e os primeiros desenhos animados
nipônicos começaram a ser produzidos ainda na década de 1910 - muitas vezes, por iniciativa
individual de desenhistas. Em 1913, Seitaro Kitayama, a partir de seus primeiros desenhos em
papel e nanquim, conseguiu produzir alguns curtas-metragens, tais como: Saru Kani Kassen
(A Batalha Entre o Macaco e o Caranguejo), de 1917, e Momotaro (O Menino-Pêssego), de
1918 (Figura 5). Ambos tinham por base as fábulas infantis japonesas (SATO, 2005).
Momotaro foi o primeiro desenho animado japonês exibido no exterior (na França).
Em tal período, a limitação de recursos materiais e financeiros do Japão leva os
autores a experimentar várias formas de baratear os custos da produção, o que influenciaria as
características dos desenhos animados, como, por exemplo, o autor Oten Shimokawa, que em
1917, fotografou desenhos feitos em giz em uma lousa para produzir seus experimentos de
animação. No mesmo ano, Shimokawa inaugura a relação entre mangás e animação – que no
futuro viria a se fortalecer – e após certo sucesso em tiras de jornais, lança Imokawa Muzuko
Genkanban no Maki (O conto da zeladora Muzuko Imokawa).
Figura 5 – À esquerda, imagem de A batalha entre o Macaco e o Caranguejo, de Seitaro Kitayama (1917); À direita, representação de Momotaro, (1918).
De acordo com Sato (2005), os anos 1920 foram marcados por uma grande evolução
técnica na animação japonesa, sendo que em 1925, tem-se o lançamento de Uba Sute Yama
(A montanha das idosas abandonadas), produzido por Sanae Yamamoto (cujo nome original
era Zenjiro Yamamoto). Foi o primeiro drama animado japonês, que tinha como tema o
respeito e o cuidado com os idosos – uma espécie de versão curta-metragem em desenho do
filme Narayama-bushi ko (A balada de Narayama), lançado em 1983. Yamamoto produz uma
25
série de filmes de animação de tema educativo, e entre suas obras mais representativas, estão:
Usagi to Kame (O Coelho e a Tartaruga, de 1924) e Nippon ichi no Momotaro (Momotaro, o
número 1 do Japão, de 1928), (Figura 6).
Figura 6 – O Coelho e a Tartaruga (1924), figura à esquerda, e Momotaro, o número 1 do Japão (1928), à direita.
Outro pioneiro da produção de desenhos animados foi Noburo Ofuji, sendo seu
primeiro filme Baguda-jo no tozoku (O ladrão do castelo de Baguda, de 1926). Ofuji também
realizou vários filmes de animação com silhuetas, como, por exemplo, Kujira (A baleia), de
1927, e Osekisho (O inspetor da estação), de 1930 – este último, o primeiro desenho animado
sonoro japonês. Em 1937, o mesmo autor criou o primeiro desenho animado colorido
chamado Katsura Hime (A Princesa Katsura).
Ainda em 1927, Yasuji Murata produziu pela primeira vez no Japão, uma animação
nos mesmos métodos das animações americanas: desenhos sobre celulóide e full animation,
fotografando vinte e quatro imagens por segundo. A obra em destaque foi Tako no Hone (Os
ossos do polvo) (SATO, 2005).
Na década de 1930, o crescimento do regime militar até o final da II Guerra Mundial,
influenciou todo o aspecto da vida cotidiana e cultural do Japão. O governo passou a controlar
os estúdios de cinema, de animação e de propaganda. Durante a guerra contra a China, em
1933, todos os cinemas foram obrigados a exibir filmes e desenhos de caráter educacional
militar e propaganda pró-guerra, e animações americanas, como, por exemplo, Betty Boop e
Mickey Mouse, que até então eram muito populares entre os japoneses, foram proibidos.
Porém, apesar da censura e falta de liberdade de expressão, foi no período militar que a
26
animação japonesa mais evoluiu tecnicamente, graças ao incentivo financeiro do governo para
a produção do referido material (SATO, 2005).
Assim, tem-se naquele período a minissérie Sankichi Saru (O macaco Sankichi),
produzido por Mitsuyo Seo, entre 1933 e 1935, ilustrando os acontecimentos da época. Na
década seguinte, mais precisamente em 1943, é produzido o primeiro longa-metragem de
animação japonesa pelas mãos de Seo, a qual é chamada de “Momotaro no Umiwashi“, que
retrata a marinha japonesa e sua posição face ao ataque a Pearl Harbour na II Guerra Mundial
(Figura 7).
Figura 7 – Momotaro no Umiwashi (1943): longa-metragem de animação japonesa que retrata a marinha japonesa durante a II Guerra Mundial.
Com o fim da II Guerra Mundial, o Japão sofreu imediatamente um processo de
desmilitarização, e entre as consequências, deu-se a censura em relação ao material
nacionalista ou de propaganda bélica, exatamente o contrário da realidade anterior (LUYTEN,
2005). As mudanças promovidas pela ocupação americana em 1945, transformariam
drasticamente a economia e a cultura do Japão, influenciando até o idioma: antes da influência
norte-americana, os japoneses utilizavam a palavra “doga” (imagens em movimento) para
filmes e desenhos animados. Após tal período, o termo foi substituído pela expressão anime, a
fim de designar os desenhos animados da década de 1950 (SATO, 2005).
Diante da urgência na reestruturação da economia e a política do país, a animação
japonesa (que ainda não era vista como potência industrial) teve sua produção praticamente
interrompida, uma vez que as matérias primas, como, por exemplo, o celuloide, as tintas e os
filmes, eram importados, tornando aquela atividade praticamente inviável devido aos altos
custos ali existentes.
Foi um período em que o povo japonês procurou assimilar o modo de produção
americana e, aos poucos, foi se tornando autossuficiente, agregando a influência vinda do
27
exterior a elementos já existentes na sua cultura. Durante anos, o Japão consumiu o que foi
produzido nos Estados Unidos da América (EUA), desenvolvendo aos poucos um estilo
japonês de produzir animação. Os estúdios japoneses aprenderam muito ao observar o estilo
de produção criado na América e, embalados por nomes como Warner Bros e Walt Disney, os
estúdios começaram a se organizar no Japão.
Apesar das dificuldades do pós-guerra, na década de 1950, a produção de animação
apresentou uma melhora significativa. Em 1953, o diretor Noburo Ofuji, exibe no festival de
Cannes o curta-metragem Kujira (A Baleia), e, em 1955, ganha um premio no festival de
Veneza com a produção Yurei Sen (O Navio Fantasma).
Naquela década, o primeiro dos poucos estúdios japoneses a atingir real sucesso foi
Toei Animation Company, fundado em 1956. Era a entrada do Japão na animação
profissional.
No mesmo período, em 1958, Taiji Yabushita, produz a animação Hakujaden (A lenda
da Serpente Branca), pela produtora Toei Animation, sendo o primeiro longa-metragem
colorido (Figura 8). Tinha-se ali a história de um menino que se apaixona por uma menina
que, em outra vida, era uma serpente. Deu-se, então, o início ao desenvolvimento industrial da
animação no País (SATO, 2005, p. 33). Era o primeiro passo para uma nova fase da animação
japonesa, sobretudo, comercial.
Figura 8 –Anime Hakujaden (A lenda da Serpente Branca): o primeiro longa-metragem colorido, produzido por Taiji Yabushita, em 1958.
Muito discretamente, o estudio Toei seguiu a fórmula da Disney, tendo por base suas
criações em histórias populares do Oriente e da Europa, ao apresentar heróis que viviam em
companhia de encantadores animaizinhos. Depois da estreia e sucesso no Japão, as animações
foram distribuídos nos EUA, como se deu com o filme de animação Saiyuki (Alakazan, o
28
grande) – um longa-metragem baseado em um conto chinês, lançado no Japão, em 1960. Foi
um dos primeiros filmes de animação a ser lançado nos EUA, em 1961. O desenhista Osamu
Tezuka, que já fazia sucesso com os mangás, foi nomeado diretor do filme pela Toei
Company, embora sua participação tenha sido mais para promoção publicitária. O filme não
fez muito sucesso, o que fez com que a animação japonesa na época desaparecesse das TVs
americanas. Porém, considera-se que a participação de Tezuka naquele filme tenha
contribuído para o seu interesse pela animação, levando-o a fundar o seu próprio estúdio, em
1961.
Naquele período de transformações, Osamu Tezuka adquire grande importância nas
produções de mangá. Conhecido como o pai do estilo mangá e inventor da moderna indústria
japonesa de mangás, o médico e artista inaugura, em 1950, o estilo de desenho conhecido
atualmente: personagens de olhos grandes e expressivos, inspirados nos traços de Walt Disney
(MOLINÉ, 2004). Tezuka fez experiências com o formato dos quadrinhos americanos e
desenvolveu um estilo ainda mais visual, enfatizando gestos e olhares. Para Susan J. Napier10,
o estilo mais visual aparece quando a “ação vazava para os quadrinhos adjacentes,
impregnando-os e possibilitando aos olhos do leitor mover-se de modo mais dinâmico, mais
rápido”. Também introduziu a narrativa longa nos mangás, composta por duzentas páginas, o
que levou a necessidade de segmentar as histórias em vários capítulos, da mesma forma como
ocorre nas novelas transmitidas pela televisão.
Neste sentido, Gravett (2006, p. 28) destaca que Tezuka foi um marco na história do
manga.
Ele foi o principal agente da transformação do mangá, graças à abrangência de gêneros e temas que abordou, à nuances de suas caracterizações, aos seus planos ricos em movimento e, acima de tudo, à sua ênfase na necessidade de uma história envolvente, sem medo de confrontar as questões humanas mais básicas: identidade, perda, morte e injustiça.
Vários títulos de mangá se destacaram em seu trabalho, a saber: Jungle Taitei (Kimba,
o leão branco), de 1950; Tetsuwan Atom (Astro boy), de 1952; Ribbon no Kishi (A Princesa e
o Cavaleiro), de 1953; entre outros.
Porém, foi o contato com Hanna-Barbera Television, no final dos anos 1950, que fez
com que Tezuka observasse o potencial mercado para animação oferecido pela televisão.
10 Entrevista de Susan Napier, pesquisadora de mangá e anime nos EUA, para o making of do DVD Animatrix.
29
Estimulado novamente pelo Ocidente, aquele desenhista percebeu que a grande chance de
sucesso estava justamente na televisão, o que o levou a organizar, em 1961, o primeiro
estúdio japonês de animação para a televisão: o Mushi Productions. A partir daí, muitos de
seus mangás foram transformados em animação, contribuindo tanto na estética, técnica e na
temática, quanto na formação de uma indústria. Muito do que caracteriza o mangá inspirou a
composição do que hoje é a animação japonesa, como, por exemplo, os traços característicos
de ambas as mídias. Tezuka agregou aos quadrinhos as técnicas de enquadramento
cinematográfico e animação, que acabaram caracterizando o anime.
Sato (2005, p. 33, 36) define Osamu Tezuka como um divisor de águas nas duas
mídias: nos quadrinhos e na animação, e completa:
Ainda hoje é difícil mensurar o impacto que Tezuka e sua obra causaram na cultura japonesa do pós-guerra. A animação no Japão evoluiu tanto em técnica quanto em forma desde então, mas na essência nada de novo foi criado que não tivesse sido feito antes por ele. [...] – tudo o que hoje caracteriza o anime na aparência e no conteúdo foi antes testado pelo visionário Tezuka.
As animações japonesas só chegaram à televisão em 1963, no formato de séries. A
primeira série de animação da televisão japonesa foi Tetsuwan Atomu (Astro Boy,
literalmente, “Poderoso Atomo”), baseado em um mangá de Osamu Tezuka produzido de
abril de 1952 a março de 1968 (Figura 9). Foi um dos primeiros sucessos envolvendo figuras
ligadas à tecnologia ganhando, posteriormente, diversas adaptações de animação para a
televisão. Por ter sido a primeira, tornou-se referência na área. As transmissões tiveram início
a partir de 1963, cujo sucesso deu origem à indústria japonesa de animação, com sucesso
instantâneo no Japão e fora do país, sendo o primeiro momento de internacionalização da
animação japonesa.
Astro Boy era uma pequena criança robô que tinha poderes especiais, mas que não
podia crescer como uma criança normal; tinha vontades próprias, qualidades humanas. Foi
criado por um cientista para ocupar o lugar do filho que morrera em um acidente
automobilístico.
Tezuka foi o primeiro produtor de animações a exportar séries para fora do Japão, ao
assinar, em 1964, um contrato com a rede de televisão norte-americana NBC. A partir daí,
outros estúdios japoneses tomaram o mesmo caminho, passando a exportar suas produções,
principalmente para a Europa (SATO, 2005).
30
Figura 9 – Trabalho de Osamu Tezuka: a animação Tetsuwan Atomu (Astro Boy), foi lançada na televisão em 1963; reconhecidamente, um dos primeiros sucessos envolvendo figuras ligadas à tecnologia.
A partir da década de 1970, as animações japonesas se consolidam como ramo da
indústria de entretenimento do Japão. Naquele período, houve uma explosão de títulos com
robôs gigantes, denominados mechas (mékas), controlados por pilotos ou controladores que
entram nas máquinas para exercerem o seu controle. O discurso de muitas destas histórias
reside na possibilidade de uma integração entre o universo dos humanos e dos robôs, onde os
limites de cada um se encontram definidos por meio de graus variáveis de interação do
homem e a máquina. Entre estas, estão: Majingā Zetto (Mazinger Z), de 1972, e Groizer X
(Pirata do Espaço), de 1976, ambos criados por Go Nagai; Yamato (Patrulha Estelar), criado
em 1974, por Leiji Matsumoto; Mobile Suite Gundam, criado em 1979.
Nos anos 1980, através das produções de ficção científica exibidas em canais
japoneses a cabo, o gênero começa a se popularizar pelo mundo, a partir dos EUA, onde os
fãs de ficção científica passam a consumir avidamente tais animações – uma novidade no
gênero sci-fi. Na referida década, dá-se também uma retomada da produção da animação para
o cinema, como o lançamento do filme Akira, do diretor Katsuhiro Otomo, em 1988. Otomo
já era um consagrado desenhista de manga, quando lançou Akira, o que ajudou o seu
patrocínio e a parceria de vários estúdios para a criação do longa-metragem, que mesclou
animação computadorizada e tradicional em uma narrativa futurística cheia de violência.
A partir dos anos 1990, as animações japonesas experimentam uma explosão pelo
mundo e uma rápida penetração no mercado internacional, tornando-se popularizados com as
séries para televisão, sobretudo com Cavaleiros do Zodíaco e Dragon Ball.
31
Desde os anos 2000, devido à difusão da internet banda larga pelo mundo, a animação
japonesa é impulsionada a níveis inéditos de consumo. O desenvolvimento das novas
tecnologias eletrônicas foi capaz de otimizar a produção das animações e impulsioná-las
através da forma globalizada de consumo por meio da internet, elevando o status da animação
japonesa.
Devido à tal expansão, surgiram no Japão, grandes estúdios, bem como grandes
diretores. O maior exemplo é o Studio Ghibli, fundado em 1985, por Hayao Miyazaki, ex-
estagiário da Toei Company. Miyazaki produziu vários longas, séries de TV e Original Vídeo
Animations (OVAs– animação produzidas para a distribuição em vídeo, não para o cinema,
nem para a televisão) de sucesso. No ocidente, Miyazaki ficou conhecido por duas de suas
belíssimas obras de animação – Sen to Chihiro No Kamikakushi (A Viagem de Chihiro), de
2001, e Hauru No Ugoku Shiro (O Castelo Animado), de 2004 (Figura 10). Ambas
concorreram ao Oscar de melhor animação, sendo que a primeira conquistou o prêmio.
Figura 10 – À esquerda: A Viagem de Chihiro, lançado em 2001, ganhou o Oscar de melhor animação da Academia norte-americana. À direita: O Castelo Animado, lançado em 2004.
No Brasil, as animações japonesas ficaram mais conhecidas desde os meados dos anos
1980, quando algumas emissoras de televisão começaram a exibir séries como Speed Racer,
Zillion e Candy Candy. Porém, foi com a exibição da série de animação Os Cavaleiros do
Zodíaco, nos anos 1990, pela Rede Manchete, que a animação japonesa começou a ganhar
espaço, abrindo as portas para outros sucessos do Japão, como, por exemplo, Sailor Moon,
Dragon Ball, entre outros, que começaram a ser exibidos no Brasil, tanto em emissoras de
televisão aberta como fechada (FARIA, 2007).
32
Exemplos à parte, devido à grandiosidade da produção, a animação japonesa tornou-se
um produto de exportação, apresentando características próprias, algumas das quais merecem
destaques.
Quando se fala em animação japonesa, logo se recorda de olhos grandes e brilhantes,
corpos longilíneos e cabelos coloridos e espetados. A utilização de ângulos de câmera dando
ênfase à dramaticidade das relações sociais intensifica a proximidade entre o leitor e o
universo psicológico das personagens, potencializando gestos ou olhares. Segundo Ortiz
(2000, p.165), foi um resultado de aperfeiçoamento de técnicas cinematográficas adaptadas ao
papel, por parte dos desenhistas, permitindo que as histórias em quadrinhos e animação
japonesas utilizassem um conjunto de técnicas, filmadas com trilho, para dar a impressão de
movimento, planos longos e ângulos diferenciados das câmeras.
Outra característica marcante das séries de animação japonesa, bem diferente da
maioria das animações ocidentais, é a serialização, ou seja, a história continua de um capítulo
para outro e tem fim, sendo muitas vezes exibidas em temporadas, como as sitcom11
ocidentais, por exemplo.
Além da organização em séries, nas histórias das animações e mangás, o tempo não
para. Diferentemente dos desenhos e quadrinhos americanos, nos quais os heróis têm sempre
a mesma idade e as histórias podem não se alterar com o tempo, sendo até intermináveis, nas
produções japonesas, as histórias acabam. E ainda, os personagens sofrem os efeitos do
tempo, como em Dragon Ball, em que o personagem Goku começa criança, cresce, casa, tem
filhos, envelhece, e, por fim, morre (FARIA, 2007).
Rocha (2008), em seu estudo sobre a arte da animação, atenta para o fato de que as
animações japonesas e mangás possuem um fluxo narrativo alongado em vários capítulos ou
episódios, possibilitando um amadurecimento e desenvolvimento psicológico dos
personagens conforme a história se desenvolve.
Além do padrão geral das animações japonesas e mangás descritos, dependendo da
imaginação do artista criador, os personagens podem apresentar coloridos nos olhos
(vermelho, amarelo, lilás) e nos cabelos, o que possibilita, muitas vezes, identificar os autores
pelo estilo de seus traços, como os de Hayao Miyasaki, autor dos longas-metragens A viagem
11 Sitcom, abreviatura da expressão inglesa situation comedy ("comédia de situação", em uma tradução livre). É um estrangeirismo utilizado para designar uma série de televisão com personagens comuns, onde existem uma ou mais histórias de humor encenadas em ambientes comuns, tais como: família, grupo de amigos, local de trabalho etc.
33
de Chihiro e O Castelo Animado; Akira Toriyama, autor de Dragon Ball; e, Hideaki Anno, de
Evangelion.
Acerca dos chamativos olhos dos personagens de animação, Freitas (2010, p. 3)
descreve:
A estética do anime é singular. Olhos grandes e expressivos chamam a atenção. O porquê disso, segundo especialistas, é que os olhos são considerados o espelho da alma. Assim sendo, os olhos do desenho devem refletir o que vai por dentro do personagem, ou simplesmente aquilo que ele está sentindo.
Para a animação japonesa, o papel do protagonista ou dos protagonistas, é
fundamental, pois, geralmente, é a partir do protagonista que se desenrolam os conflitos ou se
fixam os objetivos das jornadas fictícias. Como explica Goto (2012), em geral este herói é
movido por uma grande aspiração, que lhe possibilita mostrar sua determinação e valor.
Cada indivíduo traz um conjunto de valores bem construídos. Eles têm objetivos,
ambição, esperança, sonhos e força de vontade para lutar, criando uma identidade entre o
espectador e o personagem. Por mais que o personagem seja irreal ou fictício, com cabelos
azuis, olhos lilás sem pupila, corpos exageradamente alongados, os telespectadores se
identificam com os mesmos, pois estes apresentam emoções e vivências comuns de cada
pessoa. É o que acontece, por exemplo, em Dragon Ball, Pokemon, Naruto, e o piloto Shinji
em Neon Genesis Evangelion, entre muitas outras animações.
Na reflexão sobre a caracterização da animação japonesa, Freitas (2010 apud LEITE,
2011, p. 76) relata: “O realismo dado à retratação da vida é outra característica marcante. Isso
porque o sofrimento é visto pelo povo japonês como algo a ser enfrentado”. E ainda: “O
personagem deve vencer as adversidades, seus próprios medos e fraquezas”. Tal fato pode ser
observado em Neon Genesis Evangelion, quando o piloto Shinji é obrigado a pilotar um robô
chamado EVA, mesmo sem nunca ter exercido a função de piloto e, ao mesmo tempo,
enfrentar a autoridade do pai.
Neste sentido, é comum, em muitas histórias, os personagens serem massacrados ou
judiados, desacreditados e, às vezes, até humilhados, mas são persistentes e não desistem. De
acordo com Rocha (2008), o que chama a atenção do espectador é que, independente dos
assuntos abordados na animação e no mangá, os aspectos sociais, emocionais e
comportamentais das pessoas são refletidos: as relações afetivas e profissionais, problemas
sociais, tais como: desemprego, moradores de rua, bullying, vícios, violência, preconceito, etc.
34
E ainda, o fato da maioria das histórias se passarem em locais comuns, como, por exemplo,
escola, ruas, ambientes de trabalho, retratando hábitos corriqueiros como levantar cedo,
estudar, ir para o trabalho, adormecer em trens e metrôs etc., cria uma aproximação e
identidade com o espectador.
Portanto, ter conhecimento, das tradições, crenças, hábitos e valores japoneses é um
fator que permite melhor usufruir e entender este tipo de produção. Conforme ressalta Sato
(2005, p. 41),
[...] embora os animes sejam considerados ‘produto de exportação’ japonês, [...] trazem características próprias que para serem usufruídas e apreciadas em sua globalidade dependem cada vez mais de um profundo conhecimento das tradições, crenças, hábitos e valores dos japoneses, mesmo passando por adaptações para se adequarem ao público de outros países.
Diante do exposto, apesar da influencia ocidental, a animação japonesa reflete muito o
espírito da tradição cultural milenar do povo japonês.
35
1.2 As animações japonesas e a cultura robótica: entre os karakuri ningyo, mechas e a
robótica moderna no Japão
Susan Napier, pesquisadora da Universidade de Texas, EUA, em seus estudos sobre
animação japonesa, apresenta a classificação que adotaremos para examinar o gênero. De
acordo com Napier (2001), as animações japonesas podem ser resumidas em três grandes
grupos: festivos, épicos e apocalípticos. As animações classificadas pela autora como festivas,
abrangem produções, cujo tema principal gira em torno de acontecimentos cotidianos, em sua
maior parte ocorridos, no que poderia facilmente ser identificado pelo espectador como
contemporâneo a ele. No caso dos épicos, de uma forma geral, a história se dá no período
correspondente ao Japão Feudal, envolvendo personagens dessa época, como por exemplo,
guerreiros samurais, mercenários, camponeses. E, as animações classificadas como
apocalípticas são, em sua maioria, acontecimentos que ocorrem em futuros não muito
distantes, onde há sempre situações relacionadas à ciência e tecnologia, classe em que se situa
a série de animação Neon Genesis Evangelion, objeto deste estudo.
Na história do Japão, os desastres naturais, ocupações ou ataques de países
estrangeiros, são acontecimentos que estão sempre presentes. Como no mundo real, em clima
de constante reconstrução, nas produções audiovisuais, o país exporta para o mundo
narrativas que abordam com frequência o apocalipse ou a humanidade que luta para
sobreviver em um mundo pós-apocalíptico, onde a capital Tóquio é constantemente atacada
por criaturas malignas, robôs gigantes, grandes catástrofes naturais ou até mesmo doenças que
aniquilam os humanos da terra (ZAMINELLI, 2011).
O termo “apocalipse” vem do grego apokalypsis, e para o cristianismo significa o
último livro do Novo Testamento, no qual, se encontram registradas as revelações sobre o fim
do mundo, feitas a João Evangelista. Pode significar também revelação, profecia12.
Historicamente, o Japão conseguiu provar para o mundo a capacidade de aprender,
reinventar e desenvolver. O lema “Oitsuke, Oikose”, ou seja, “Alcançar, Superar” da Era
Meiji (1868 – 1912), quando ocorreu a abertura dos portos japoneses, parece estar presente
em muitos episódios sofridos pelo país.
Com a explosão das bombas atômicas, em Hiroshima e Nagazaki, ocorridos em 1945,
cidades inteiras foram devastadas muito rapidamente, se aproximando a relatos bíblicos que
preveem a destruição da humanidade.
12 Significado retirado do Dicionário Houaiss, 2001.
36
No Japão, a temática do apocalipse aparece, com frequência, em vários gêneros e
linguagens, particularmente, nas obras cientifico-ficcionais. Para Matthews (2003-2004), há
uma corrente de pensamento que defende a existência de uma íntima ligação entre a maneira
japonesa de entender o apocalipse e os episódios de destruição ocorridos no país. A visão
diferenciada dos japoneses em relação aos eventos apocalípticos residiria, também, na
experiência de reconstrução do país vivida logo após a II Guerra Mundial. O povo japonês
vivenciou a experiência de ver tudo destruído e, depois tudo organizado e reconstruído, graças
às intervenções tecnológicas e humanas, o que possibilitou uma elevação do Japão ao status
de potência tecnológica. Obviamente, como lembra Amatte Lopes (2006, p. 30), que “a
experiência de reconstrução não é privilégio do povo japonês, mas ser atacado por bombas
atômicas ainda é uma exclusividade da nação japonesa”.
A convivência com devastações e, a presença marcante da tecnologia no cotidiano
japonês, deve ter contribuído para a aceitação dessas situações, obtendo uma grande
importância nas histórias apocalípticas.
As produções do subgênero Apocalíptico englobam narrativas que estão relacionadas
com a possibilidade de um “fim dos tempos”. Amatte Lopes (2006, p. 30), propõe dois tipos
de animações japonesas que tratam do apocalipse:
A primeira trata de uma destruição iminente onde ainda existe a possibilidade de que esta seja evitada. Na maioria dos casos, assim como nas histórias do subgênero Mecha, o molde do arquétipo do herói, envolvendo a busca por redenção e aprendizado, são motes dessas narrativas. O segundo tipo de abordagem lida com um fato já consumado, enfocando as mudanças causadas pelo evento destrutivo, a adaptação dos sobreviventes e, em geral, uma tentativa de reconstrução daquilo que foi destruído.
Na animação japonesa existem vários títulos que abordam mundos destruídos ou
ameaçados de destruição. Um grande exemplo é a animação Akira (lançado em 1988 pelo
diretor Katsuhiro Otomo), publicado primeiro como mangá, em 1982. A narrativa se passa em
um mundo pós-apocaliptico, no ano de 2019. A cidade de Tóquio é reconstruida após a III
guerra mundial. A capital Neo-Tóquio, vive entre a violência de gangues adolescentes, uma
sociedade com uma juventude alienada e um governo corrupto. Em meio à decadência, a
cidade é ameaçada por jovens com poderes sobrenaturais (Figura 11).
37
Figura 11 – Akira se passa no ano 2019, após a III Guerra Mundial, na cidade de Tóquio, reconstruída após a II Guerra Mundial.
De acordo com Napier, as animações classificadas como apocalípticos abordam
também, temáticas ligadas à ciência e à tecnologia, que são na verdade, herança da ficção
científica, um gênero pertencente à literatura e às artes cinematográficas (AMATTE NETO,
2006).
Neon Genesis Evangelion é uma série de animação, que apresenta uma temática sobre
o apocalipse, na qual, estão presentes dois grupos ligados ao binômio ciência e tecnologia. As
figuras dos cientistas e dos membros de sua equipe estariam na série, materializando uma
imagem de ciência, enquanto que todos os equipamentos utilizados e produtos frutos de seus
trabalhos (computadores, máquinas, ciborgues, clones etc.), seriam a representação da
tecnologia dentro da animação.
Para Keller (1992, p.25), “o que diferencia a tecnologia da ciência é que a ciência é
sobre descobrir e explicar e a tecnologia é sobre projetar e fazer. Assim, a tecnologia
relaciona-se com a execução e método, entretanto, a tecnologia moderna pede emprestada à
ciência as bases de seu conhecimento”.
Apesar do enquadramento de Neon Genesis Evangelion no grupo dos apocalípticos, a
série também se insere na subdivisão mecha13 (meka) da classificação proposta pelas
produtoras. Mecha é uma subclassificação que engloba produções com a presença de robôs
gigantes controlados por um piloto ou controlador, comuns em algumas obras de ficção
13 Classificação utilizada pelas produtoras dos animes e mangás. Tem uma função mais comercial apresentando maior quantidade de classes, divididas por temática e faixas de público, separadas por sexo e faixas de idade.
38
científica, mangá e animação. Uma grande parte das animações japonesas, apresenta mechas
de tamanho gigantesco.
De acordo com Matthews (2003-2004), embora, a animação japonesa e a robótica
tenham se originado e desenvolvido em caminhos diferentes, eles formam uma simbiose
única e multifacetada. Um aspecto interessante da cultura japonesa em relação à essas
representações, é que, ao contrário do ocidente, que demonstra mais dificuldade em aceitar a
crescente ocupação das máquinas, o Japão demonstra maior aceitação dos aparatos
tecnológicos, incluindo os robôs. O autor refere também, que o público japonês demonstra
certo fascínio e um sentimento de que a convivência com as máquinas e robôs, faz parte do
cotidiano. Isso, conforme o autor, possibilita a criação de uma série de imagens das creatures
mechatronics, termo inglês que dá origem ao nome dado aos robôs que aparecem nas
animações japonesas.
O grande desenvolvimento tecnológico no Japão ocorreu após a II Guerra Mundial,
nas décadas de 1950 e 1960, período que coincide com o momento em que os valores
culturais estão sendo revistos e a cultura pop japonesa adquire força, tornando-se cada vez
mais difundida pelo mundo e a tecnologia e seus aparatos passam a fazer parte de várias
linguagens, inclusive da animação. A partir desse período começam a ser representados nas
animações, elementos ligados à ciência e a tecnologia: cientistas, laboratórios, computadores
de última geração e os robôs e suas variantes.
Essas imagens fazem o público imaginar que o interesse do Japão pelo mundo da
robótica começou no período pós guerra. Entretanto, existe na cultura japonesa um histórico
da relação com os robôs desde o século XVII, representado pelo Karakuri ningyo,
considerado o primeiro robô japonês.
Karakuri é uma palavra japonesa de duplo sentido. Pode significar “mecanismo” ou
“truque”, seria um mecanismo feito com o intuito de enganar, como os que os ilusionistas
usam e ningyo, por sua vez, é escrito pela composição de dois caracteres, uma para “pessoa” e
outro para “forma”, seria algo como “em forma de gente”. Literalmente obtem-se uma
composição, que pode servir para definir autômato humanóide: um mecanismo com a forma
de uma pessoa. Mas popularmente, este nome composto pode simplesmente ser traduzido
como “boneco ou fantoche”. Karakuri ningyo tem como principal objetivo, entreter e causar
surpresa nas pessoas, através dos seus gestos, acrobacias ou truques de mágica.
Os primeiros documentos desses bonecos datam do século XVII e constam de
relíquias e anotações sobre sua construção, mas existem histórias de mecanismos em forma de
39
bonecos desde o final do período Heian (794 – 1192), e, através de uma lenda do início do
século XII. Conta-se através dessa lenda que um príncipe já idealizava a criação de um
karakuri, em um período de dificuldades pelo qual passava sua comunidade. O príncipe
mandou criar um grande boneco capaz de carregar dois baldes cheios de água, um em cada
braço, para irrigar a plantação arruinada pela seca. A comunidade se uniu e se revezava em
encher os baldes para que o boneco pudesse realizar a sua proeza. Não se sabe a veracidade
desse fato, mas isso mostra a relação muito antiga, e que aproxima os japoneses da robótica14.
No Japão, o karakuri é visto como uma arte. Os bonecos são feitos de madeira e de
forma totalmente artesanal. Receberam uma grande influência dos relógios mecânicos levados
por missionários portugueses para o Japão e se popularizaram durante o século XVI. Embora
estes bonecos não sejam títeres (boneco que se move por cordéis e engonços), eles apresentam
características similares às marionetes, pois são movidas através de dispositivos mecânicos
como: molas, água, ar, areia e mercúrio. Havia também, aqueles movidos à corda e espetos,
recebendo o auxílio humano. Alguns são bonecos autômatos15, ou seja, fantoches ou
marionetes movidos por um mecanismo semelhante ao de relógios.
Pouco tempo depois da criação do karakuri ningyo, o Japão passou por sua época de
isolacionismo, proibindo todo o contato e influência estrangeira. Apesar disso, a tradição do
karakuri continuou. Além disso, utilizando os mecanismos do relógio, que o Japão conhecia
da China, e que também, havia sido importado do ocidente, houve um desenvolvimento na
fabricação, tornando as bonecas cada vez mais complexas, com capacidade de executar uma
variedade cada vez maior de tarefas e divertimentos.
O karakuri ningyo pode ser dividido em três grupos de acordo com suas funções: os
Zashiki karakuri, Dashi karakuri e Butai karakuri.
O primeiro deles são os zashiki karakuri, utilizados em casa para funções domésticas
simples, normalmente para impressionar os visitantes. A primeira boneca karakuri e o modelo
mais famoso é o Chahakobi ningyo, usado para carregar chá. Quando o chá era colocado na
bandeja, o mecanismo era ativado e a boneca começava a andar em direção à visita para servi-
la. Depois que o visitante bebesse o chá, ele colocava o copo de volta na bandeja, o que
novamente ativava o bonequinho, fazendo com que ele voltasse e devolvesse a xícara ao
anfitrião (figura 12). Esta boneca karakuri realiza seis movimentos distintos, utilizando-se
14 Informação obtida através do site KARAKURI.INFO – Karakuri Origins. Disponível em: http://karakuri.info/. Acesso em set/2012. 15 Autómato, em termos técnicos, indica um engenho que consegue realizar determinada tarefa de forma independente, uma vez acionado.
40
apenas de uma mola espiral. Os Zashiki karakuri são considerados os de mecânica mais
complexa, e o ápice seria o Yumihiki Doji, uma boneca arqueira, que atirava flechas em um
alvo (Figura 13).
Os Dashi karakuri eram usados nos festivais religiosos. Tinham a simbologia de
divindades e, até hoje, continuam sendo utilizados durante os Matsuri (Festivais), sendo
conduzidos em cima de carros alegóricos. No país todo, há mais de 200 carros alegóricos e
mais de 600 bonecos desse tipo.
Figura 12 – Chahakobi ningyo: a boneca karakuri usada para carregar chá. À direita: detalhes da estrutura do Karakuri ningyo, sem os trajes típicos.
Outros tipos são os Butai karakuri feitos para apresentações teatrais conhecidas como
ningyo jyoururi ou ningyo bunraku, e foram responsáveis por popularizar os bonecos entre o
povo japonês da época (Figura 13).
Além de apresentações como as danças, havia também acrobacias e truques de mágica,
ganhando um ar de magia e misticismo. Consta que alguns bonecos aparentam ter vida,
embora tenham movimentos mecânicos, possivelmente devido à magia, lendas e mitologia
que o envolvem16.
16 Informação extraída do site KARAKURI.INFO – Butai Karakuri. Disponível em: http://karakuri.info/. Acesso em set/2012.
41
Figura 13 – À esquerda: Zashiki Karakuri, o boneco arqueiro. No centro: Dashi Karakuri, usadas em festivais religiosos; à direita: Butai Karuki preparados para apresentações teatrais.
Entretanto, a popularidade do universo dos bonecos karakuri ganhou mais força na era
Edo, mais precisamente em 1662, quando Oumi Takeda criou o teatro de bonecos e começou
a fazer apresentações teatrais em Doutonbori, província de Osaka, que ficou conhecido como
Takeda Karakuri. As apresentações fizeram grande sucesso e por isso se estenderam por
muitos anos, até 1772, quando fechou o último teatro para apresentação de karakuri ningyo
(HILLIER, 1976, p. 36).
A forma como o karakuri ningyo executa os movimentos de dança está diretamente
relacionada com os gestos e movimentos tradicionais associados às diversas artes teatrais do
Japão, entre as quais o bunraku17 e o kabuki (KUSANO, 2008). Muitas das características da
arte de representar foram também absorvidos pelo teatro de bonecos kuruma ningyo que será
abordado no tópico seguinte.
Não é a intenção deste trabalho, investigar as artes teatrais japonesas, mas sim
observar que existe uma relação destas com as formas de expressão e movimentos
desempenhados no teatro de bonecos autômatos karakuri.
O karakuri ningyo representa papel importante no desenvolvimento dos bonecos
mecânicos, e estaria próximo dos atuais bonecos mecanizados ou robôs.
Na época em que o karakuri ningyo foi criado, não existia nenhum manual do gênero
no mundo para criação de máquinas com forma humana. Nesse sentido, Hanzo Hosokawa,
teve um papel importante no desenvolvimento desses bonecos com sua obra Karakuri-zui, o
livro mais antigo do Japão sobre o assunto, publicado em 1796, na era Edo, com explicações
detalhadas sobre o sistema de funcionamento dos karakuri ningyo.
17 Bunraku é o teatro de bonecos japonês.
42
Abaixo, na Figura 14, são mostradas as ilustrações e detalhes das anotações dos
mecanismos internos de bonecos karakuri. Os diagramas são uma visão interna e do conjunto
de uma boneca que serve chá. O interior da boneca parece ter sido feito de madeira, fio e
materiais de mola.
Figura 14 – Detalhes do sistema de funcionamento interno do karakuri ningyo, ilustrados no livro Karakuri-zui.
Dentre os artesãos de karakuri, há que se destacar três principais: Hanzo Yorinao
Hosokawa, Benikichi Ohno e Hisashige Tanaka (considerado mestre das artes mecânicas
durante o período Edo e fundador da Toshiba). O karakuri era rodeado de um misterioso
segredo. Além dos seus criadores, não era permitido a mais ninguém ver seus mecanismos e
como eram construídos. Estes segredos eram vitais e o mestre dos mecanismos do karakuri
era visto como um trabalhador reservado e solitário.
Conforme observado, o karakuri era produzido utilizando-se a criatividade e a técnica
para gerar uma ação. No caso, seria um movimento, um dispositivo, algo que utilizasse o
meio como energia (gravidade, madeira, molas). Portanto, karakuri pode ser entendido como
um mecanismo que dirige uma máquina, e considerado uma das formas originais de robôs.
O objetivo de revisitar o karakuri ningyo foi evidenciar a longa relação da sociedade
japonesa com a robótica.
A tradição karakuri contribuiu diretamente para a modernização industrial do Japão,
manifestando-se também na cultura popular. Talvez isso explique, em parte, o porquê de certo
fascínio do público japonês pelo tema e o orgulho de tudo que se refere a tecnologia que
engendram diferentes linguagens como: o cinema, o mangá e a animação nos quais com muita
frequência, estão presentes os robôs gigantes.
43
Na história da animação japonesa, encontram-se diversos títulos pertencentes à
classificação que envolvem robôs, porém, como o recorte deste projeto pretendeu contemplar,
especificamente, a série Neon Genesis Evangelion, foi dada maior ênfase à subdivisão mecha
da classificação proposta pelas produtoras. Fundamentalmente, são histórias que envolvem a
salvação da humanidade de alguma ameaça, terráquea ou não, através da utilização de robôs
capazes de amplificar os poderes de seus controladores.
A palavra mecha (メカmeka), se origina da abreviatura do termo inglês “mechanical”
(mecânico). Mecha é um estilo de animação bem popular no Japão, muito relacionado com a
ficção cientifica. No subgênero mecha, a figura do robô desempenha papel fundamental no
desenvolvimento das histórias, estabelecendo uma relação entre o robô e o piloto, que
funciona, na maioria das vezes, como controlador ou manipulador. Os personagens entram em
robôs gigantes ou máquinas, para enfrentar um inimigo desconhecido. Em geral, são histórias
que envolvem a salvação da humanidade de alguma ameaça através da utilização de robôs
capazes de amplificar os poderes de seus controladores. Essas máquinas podem diversificar-se
muito em tamanho, forma e aparência. A maioria são construções de humanoides (formato
antropomórficos), ou de animais gigantes, cujos principais oponentes, são monstros gigantes
ou outros mechas.
A primeira série de animação mecha foi Mazinger Z, produzida em 1972 por Go
Nagai. A história girava em torno de um robô gigante, controlado por um menino chamado
Koji, para lutar contra alienígenas enviados pelo Dr. Inferno. Mazinger Z tinha a capacidade
de desprender-se do garoto e disparar raios infravermelhos de seu peito. Com o decorrer das
séries, ele adquiriu novos poderes, entre os quais, a capacidade de voar.
Considera-se, no entanto, que a popularidade dos mechas, começou com o surgimento
da série Gundam, em 1979. A saga de Gundam é a série com robôs gigantes, criados para
lutar contra os malfeitores. No futuro distante, o planeta Terra evolui para uma situação de
superpopulação. Os continentes não suportam mais a quantidade de humanos, e a única
solução é lançar a população excedente em colônias autossuficientes pelo espaço. As
colônias, na verdade, são naves cilíndricas gigantescas, batizadas de Slides, movidas por
energia solar e dotadas de atmosfera, solo e gravidade próprias para a subsistência dos
humanos. Esta animação mudou o conceito de mecha, ao introduzir os robôs reais. Estes
desempenham papéis secundários, e o piloto representa uma função mais importante na
história. A série permitiu o desenvolvimento de uma mecânica possível de ser reproduzida
44
em forma de brinquedos (Figura 15), na medida em que, executam os mesmos movimentos e
transformações dos robôs da série de TV (MENDES, 2006).
Figura 15 – Brinquedo do Gundam Wing Zero, robô da série Mobile Suite Gundam Wing, que como no desenho animado transforma-se em um avião.
Identifica-se, nas animações japonesas e nos mangás, diferentes tipos de robôs, como
por exemplo, os super robôs e o robô real. O super robô é um termo usado, no mangá e
animação, para descrever um robô gigante, super-potente, extremamente resistente a danos.
As histórias são centralizadas nos robôs, dotados de personalidade e controlados à distância
pelos humanos, considerados seres inferiores. A primeira animação que utilizou o termo super
robô, para representar os padrões do gênero, foi Mazinger Z (Figura 16).
Figura 16 – Mazinger Z: Primeira série de animação mecha, produzida em 1972 por Go Nagai. Mazinger é um representante dos Super Robôs. À direita: Estátua do robô Mazinger Z no Japão.
Por outro lado, nas animações com robô real, os personagens normalmente pilotam
robôs exclusivos, criados especialmente para eles, e o foco, está nos personagens, com
48
Se Astroboy inaugurou, na década de 1960, as animações do gênero mecha, em 1979
estreou na TV japonesa Kidou Senshi Gundam (Mobile Suite Gundam) anime que mudaria o
conceito dos mechas ao introduzir robôs “reais”, ou seja, robôs que possuem uma mecânica
possível de ser reproduzida no mundo real, em brinquedos, na medida em que esses executam
os mesmos movimentos e transformações dos robôs da série de TV. Todos os desenhos
animados da família Gundam foram patrocinados por uma grande empresa de brinquedos
(figura 55).
Figura 55 – Brinquedo do Gundam Wing Zero, robô da série Mobile Suite Gundam Wing, que como no desenho animado transforma-se em um avião. (ART BOOK V, [199-?], p. 34-35)
O outro marco desse estilo corresponde exatamente ao objeto dessa pesquisa, a
série Neon Genesis Evangelion, que em 2005 completou 10 anos.
Em síntese, é possível montar o seguinte quadro resumo:
45
poderes psíquicos, ou habilidades sobre-humanas. O robô torna-se secundário, neste tipo de
animação. A primeira série a introduzir o robô real foi Mobile Suit Gundam (1979), que,
juntamente com The Super Dimension Fortress Macross (1982), formam a base do que mais
tarde foi denominado de anime robô real. (Figura 17).
Figura 17 – A popularidade dos mechas começou com a produção da série Gundam, em 1979. Foi a primeira série a introduzir a idéia de robô real, cujo maior foco está no piloto. No gênero mecha o piloto entra no robô para comandá-lo (círculo amarelo).
Outro marco do estilo mecha corresponde exatamente ao objeto desta pesquisa, a série
Neon Genesis Evangelion, lançada em 1995. Em Neon Genesis Evangelion, o piloto Shinji
comanda um robô gigante, chamado EVA, para destruir seres extra terrestres, os Anjos, que
invadem a terra para aniquilar a humanidade (Figura 18).
Figura 18 – À esquerda: robô gigante EVA comandada pelo piloto Shinji (superior à direita). A figura inferior à esquerda, é a representação de um Anjo que invade a terra para destruir a humanidade.
46
Além dos mechas, algumas animações e produções audiovisuais envolvem seres mais
independentes que os robôs, sendo representados pelos androides. A palavra androide serve
para designar qualquer ser que tenha a forma de um homem. Entretanto, devido o seu uso em
várias obras de ficção científica, o termo passou a ser usado mais especificamente para
descrever robôs com aparência humana. Estes seres, com aparência humanoide, apresentam
autonomia, dispensando o piloto ou controlador, tornando-o algo parecido com uma
simulação, uma espécie de humano robotizado.
Exemplos destes seres são os androides, que aparecem no manga e na animação
Dragon Ball, de Akira Toriyama, conhecidos como Cell. Em Star Trek: The next Generation,
há um androide semi-humano chamado Data, que possui inteligência, porém ainda não
apresenta emoções (Figura 19).
Figura 19 – Cell, androide que aparece no manga e anime Dragon Ball (à esquerda), e Data, um androide semi-humano de Star Trek: the next generation. Possui inteligência, mas ainda não apresenta emoções (à direita).
O Japão é um dos países líderes em produção de robôs e a sua visão do século XXI
engloba a coexistência de humanos e robôs. Para os japoneses os robôs não constituem só
ferramentas industriais, acessórios domésticos ou brinquedos, mas também uma parte da
cultura, entretenimento e arte.
Nas últimas décadas, o campo da robótica tem sido estimulado pelos avanços
tecnológicos e está se tornando cada vez mais prevalente na sociedade, na indústria e nas
nossas casas.
Máquinas e robôs inteligentes estão se tornando cada vez mais comuns na atualidade,
com milhares de produtos fabricados, muitas vezes, com pouca ou nenhuma participação
humana, sendo manipulados por computadores inteligentes e máquinas.
47
Cientistas japoneses construíram no ano de 2005, o que dizem ser o androide mais
parecido com humanos - a novidade que imita uma mulher ganhou o nome de “Repliee Q1”
(CHAMBERLAIN, 2005; WHITEHOUSE, 2005). Ela possui uma pele flexível de silicone,
ao contrário do plástico duro, usado em outros protótipos. Vários sensores e motores
permitem que ela se movimente de uma forma mais parecida com os humanos. A androide
pode mover as pálpebras e as mãos, como os humanos, e apresenta movimentos que simulam
a respiração (Figura 20). O professor Hiroshi Ishiguru, da Universidade de Osaka, projetista
da androide, afirmou que, um dia, os androides poderão enganar os humanos, levando-os a
pensar que são todos da mesma espécie. "Eu desenvolvi muitos robôs antes, mas percebi a
importância da aparência. Uma aparência semelhante à dos humanos dá uma forte presença ao
robô" (WHITEHOUSE , 2005).
Figura 20 – A Repliee Q1 possui uma pele flexível de silicone, move pálpebras e mãos como os humanos. Ao lado, o Professor Ishiguro enfatiza a importância da aparência de seus robôs.
Em entrevista publicada por David Whitehouse (2005), da BBC News website (British
Broadcasting Corporation), o professor Ishiguru explicou: "A Repliee Q1 pode interagir com
as pessoas. Pode responder ao toque. Fico satisfeito, mas ainda temos um longo caminho pela
frente", disse Ishiguru. O professor afirmou que poderá ser possível construir um androide
que se passe por humano, mesmo que seja por um período curto. "Um androide pode fazer
isso por um período curto, cinco a dez segundos. Entretanto, se selecionarmos
48
cuidadosamente a situação, podemos estender este período para, talvez, dez minutos", disse.
"Mais importante, descobrimos que as pessoas se esquecem que ela é uma androide quando
estão interagindo. Conscientemente é fácil ver que ela é androide, mas, inconscientemente,
reagimos como se ela fosse uma mulher", acrescentou.
A mesma equipe já havia construído o androide Repliee R1, com aparência de uma
menina japonesa de cinco anos de idade. Ela fazia sinais com o braço e se movia em nove
direções diferentes. Possuía sensores, debaixo da pele do braço, que lhe permitiam reações
diversas, conforme as pressões impingidas.
De todos os países desenvolvidos, o Japão detém o recorde de possuir os robôs mais
avançados do setor industrial. As empresas japonesas continuam a deter um monopólio na
produção de robôs industriais, sendo utilizados em fábricas ao redor do mundo. Robôs
humanoides, mais realistas, agora capazes de cantar, dançar e atuar, são utilizados como
exemplos de proezas tecnológicas do Japão. Robôs à disposição do público são, cada vez
mais, capazes de realizar tarefas comuns, em casa e no escritório. Alguns até possuem a
capacidade de cumprir tarefas como, por exemplo, de atendentes, recepcionista e, os
protótipos projetados para cuidar de idosos e deficientes físicos, têm mostrado resultados
interessantes (JAHDHAMI, 2011).
O envelhecimento da população levou a um aumento da demanda por trabalhadores
em saúde e enfermagem - papéis que muitos no Japão não querem exercer – que poderão ser
preenchidos por robôs.
Um dos exemplos mais recentes é um robô fabricado pela Panasonic, capaz de lavar o
cabelo de idosos (PEREIRA, 2012). Outro exemplo é a cama robótica - a RoboticBed®
(Figura 21). Nasceu como uma cama elétrica, mas agora já incorpora funções avançadas, para
auxiliar uma pessoa a passar da cama para uma cadeira de rodas, e dela de volta para a cama,
sem auxílio18. Vários protótipos de exoesqueleto robótico continuam a ser testados,
destinados a aumentar a força física e mobilidade dos idosos.
Além da criação de robôs com capacidade de realizar tarefas cotidianas, a criatividade
dos japoneses, os levaram a inventar um robô que rege uma orquestra sinfônica19 e robôs
18 Informação publicada pela Redação do Site Inovação Tecnológica, em 10 de outubro de 2011. Disponível em: http://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=panasonic-robos-hospitais&id=010180111010 Acesso realizado em 14 de maio 2013. 19 Informação publicada no site da UOL-Entretenimento-música, em 14 de maio de 2008. Robô da Honda rege Sinfônica de Detroit. Disponível em: http://musica.uol.com.br/noticias/ap/2008/05/14/robo-da-honda-rege-sinfonica-de-detroit.htm. Acesso realizado em 22 maio 2013.
49
músicos que tocam diversos instrumentos e, juntos, formam uma banda de jazz20 (Figura 22). Figura 21 – À esquerda: Robô que lava cabelo - 24 dedos robóticos oferecem a melhor massagem que se pode obter de um robô. À direita: Cama robótica - O principal objetivo desta cama é dar autonomia a doentes e idosos que vivem sós.
Figura 22 – As figuras superiores representam o robô Asimo, da Honda, regendo a Orquestra Sinfônica de Detroit. Abaixo: apresentação de robôs músicos que tocam jazz, desenvolvidos pela fabricante de carros Toyota.
20 Informação publicada no site Japão em Foco em 4 de fev de 2012. Robôs músicos que tocam jazz – Só no Japão! http://www.japaoemfoco.com/robos-musicos-que-tocam-jazz/#ixzz2VxG8Auex Disponíve l em: ht tp : / /www.japaoemfoco.com/robos -musicos -que - tocam - jazz / . Acesso rea l izado em22 maio 2013.
50
O Japão está chegando, cada vez mais, perto de atingir metas que só existiam na ficção
científica. Embora os robôs sejam encontrados em diferentes culturas ao redor do mundo, os
japoneses têm sua própria cultura de lidar com os robôs. A tecnologia foi adotada de diversas
formas pelo povo japonês, entretanto, os robôs ganharam lugar muito especial em seus
corações, tornando-se parte permanente da cultura japonesa (Figura 23).
De acordo com Tymothy Hornyak, há uma grande diferença na maneira como os
japoneses se aproximaram dos robôs. Os nipônicos sentem uma vontade irresistível de tratá-
los como seres, em vez de apenas máquinas sem vida, tornando-os parceiros (HORNYAK,
2006 apud JAHDHAMI, 2011).
O artigo de Jonathan Skillings “No Japão, os robôs também são pessoas”, reflete o
ponto de vista social, e a vontade do povo japonês em ter robôs como seus parceiros de vida
diários (SKILLINGS, 2006 apud JAHDHAMI, 2011).
Figura 23 – As pessoas interagem com os robôs como se fossem humanos. Os japoneses sentem uma vontade irresistível de tratá-los como seres humanos, em vez de apenas máquinas sem vida.
51
Boa parte das pesquisas afirma que, a principal razão da aceitação da tecnologia
robótica pelos japoneses são devidas às religiões predominantes no Japão: o Xintoísmo e o
Budismo21. No Xintoísmo, a crença no animismo em objetos inanimados se manifesta através
do conceito de kami (deuses). O mundo da natureza tem significados sagrados, representando
deuses, que possuem poderes, como: espíritos da natureza, protetores ancestrais e divindades.
Todos esses elementos são passíveis de possuírem sentimentos, emoções, vontades ou
desejos, e até mesmo inteligência. O principio básico do Xintoísmo evoca harmonia com a
natureza, que é considerada sagrada. Desta forma, a conexão entre a humanidade e a natureza,
que provém do Xintoísmo, e o cultivo das ações positivas sobre a vida humana proporcionado
pelo Budismo, ajudam a explicar a aceitação, pelos japoneses, de robôs em seus meios e a
busca pela construção de máquinas humanoides (GERACI, 2006).
Na cultura japonesa, portanto, a humanidade e a natureza são processos contínuos.
Diferente do ocidente que considera a natureza e a humanidade como uma dicotomia, para os
japoneses, todas as coisas são vivas, todas as coisas são conscientes, ou todas as coisas têm
alma.
Por esse motivo, na tradição japonesa, a relação entre o ser animado e inanimado, o
homem e a máquina, consegue ser explicado através do conceito de mono, onde a presença de
um já pressupõe a presença do outro. O humano e o maquínico se mesclam para a
personificação de um corpo único, em que não se consegue identificar as fronteiras entre o
homem e a máquina. Na religião e na filosofia japonesa, o corpo não pode ser separado da
alma e portanto, o corpo não é descartado em prol da salvação da alma, como é comumente
aceito no ocidente (GERACI, 2006, p. 10).
Outro fator de aceitação da robótica é que, a maioria do povo japonês admira e assiste
muito aos programas de animação japonesa e desenhos animados desde a sua tenra idade,
sendo isso uma das justificativas para que muitos cientistas e engenheiros de robôs
humanoides se inspiram em personagens da animação japonesa para a realização seus
projetos.
Apesar de muitas pesquisas atribuírem o papel da tecnologia e, especialmente da
robótica, ao Japão contemporâneo e a cultura pop, trata-se de um interesse muito mais antigo,
21 Ao longo da história japonesa, estas duas religiões, tem sido as que mais contribuíram para que os japoneses compreendessem a si próprios e ao mundo a que pertencem. O Xintoísmo é a religião tradicional do Japão e o Budismo, é uma religião hindu que chegou ao Japão entre os séculos VI e VII D.C., vinda da Coréia e da China. Informação obtida do site http://www.aikikai.org.br/art_xint_budismo.html.
52
que encontra fundamento na relação entre humanos e objetos, remontando ao século XII, com
o a produção dos primeiros bonecos mecanizados.
As representações até aqui apresentadas são consideradas máquinas “puras”, sem
nenhuma participação humana em sua configuração corpórea. Porém, a medida que surge a
possibilidade de uma união física entre máquina e humano, tanto na ficção como na vida real,
é que aparece a figura do ciborgue.
A série de animação Neon Genesis Evangelion, se desenvolve num mundo pós-
apocalíptico, onde ciborgues gigantes chamadas EVAs são conduzidas por pilotos
adoslescentes, para combater as criaturas que chegam à terra com o objetivo de aniquilar a
humanidade. Máquinas e humanos se juntam para lutar pela sobrevivência humana, e, em
vários momentos, a série mostra a existência de uma hibridação entre EVAs e pilotos
representando uma relação homem-máquina.
Em Neon Genesis Evangelion a relação entre animado e inanimado se encaixa em um
viés religioso de criação, de dar vida. É como Deus criando o Universo, a Terra, a
humanidade. A série tem toda essa relação animado/inanimado, representado pela relação
humano/máquina, e também, a questão religiosa de criar vida. A criação das EVAs e dos
clones, corresponde a um imaginário religioso, do inanimado ao animado, da máquina ao
humano.
A série de animação é apresentada no capítulo 2, porém, para facilitar o entendimento
e a compreensão da relação entre maquínico e humano, foi realizado, no tópico seguinte, um
breve resgate de como, tradicionalmente, o Japão enxerga a relação homem-máquina, bem
como, procurou-se compreender essa relação, buscando diversos autores contemporâneos que
discutem os ciborgues e a condição pós-humana.
53
1.3 O corpo híbrido: a tradição japonesa e o pós-humanismo
O Japão é um país símbolo da tradição e famoso por preservar a cultura milenar. Ter
conhecimento das tradições, crenças, hábitos e valores japoneses são fatores que permitem
melhor usufruir e entender as artes e as suas produções audiovisuais.
Desse modo, apesar da influência ocidental, a animação japonesa reflete o espírito da
tradição cultural milenar, encontrando um solo fértil para mesclar a tradição e o novo. Em
relação a esse aspecto, Kusano (1993) e Almeida (2005), apontam que, a animação parece ter
absorvido muito das artes teatrais japonesas e, em particular, dos teatros de bonecos. Além
disso, a presença constante da religião nativa do Japão, o Xintoísmo, mantém a crença de
“espíritos vivos” em objetos inanimados.
Mesclam-se, portanto, mitologia e realidade e a relação homem-natureza e homem-
máquina é tratada de forma mágica, diferentemente do Ocidente.
Assim, nas diversas modalidades de teatro de bonecos japoneses, nunca houve uma
separação entre o corpo do manipulador e o corpo do boneco. Na cultura japonesa a relação
do ator-manipulador com o objeto manipulado pode ser explicada através de um conceito
milenar que relaciona religião e filosofia. É através da noção de mono que fica claro como se
estabelece essa ligação íntima entre os dois seres. Mono na língua japonesa oral pode ser
traduzido, como objeto ou pessoa, significando ao mesmo tempo, corpo inanimado e corpo
animado, enquanto que na língua japonesa escrita esses dois significados não se confundem,
pois são escritos por ideogramas diferentes (SOUZA, 2005, p.65).
De acordo com o autor, (2005, p. 47), o Japão tem uma tradição de teatro de animação
que apresenta uma variedade de técnicas manipulatórias advindas de vários séculos e que
passou por diferentes fases de formação. Embora não seja possível determinar com precisão a
época exata do seu aparecimento, alguns registros de rituais religiosos que continham certos
elementos teatrais são citados desde o começo da civilização japonesa, através de pequenos
bonecos, que eram manipulados, manualmente, por sacerdotisas, monges ou por devotos em
cerimoniais, celebrações ou festivais. Essas práticas, inicialmente com propósitos religiosos,
são considerados, de acordo com estudiosos modernos, o marco inicial para o teatro de
animação japonesa, pois, mesmo que não tivessem um princípio artístico, eles se expressavam
basicamente através de encenações (BANAITRES, 1999; LANG, 2000; MESCHKE e
SORENSON, 2002, apud SOUZA, 2005, p. 48). Com o passar do tempo, as performances
54
animadas começaram a se apresentar com intuito do entretenimento, deixando aos poucos de
lado os preceitos religiosos.
Estudos realizados por Giroux e Suzuki (1991) e Kusano (1993), relatam que no Japão
antigo, até quase o final do século XV, os bonecos eram construídos e utilizados para fins
religiosos. Inicialmente denominados hitogata (formas humanas), só aproximadamente a
partir do ano de 1600 é que começam a ser chamados de ningyo (bonecos), com finalidade
maior de entretenimento.
Portanto no Japão, o teatro de animação está intimamente ligado ao desenvolvimento
de teatro de bonecos e, uma das formas que utiliza a animação de bonecos à vista do público,
é o chamado “Kuruma Ningyo”.
De acordo com Marco Souza (2005), o kuruma ningyo surgiu no final do período Edo
(1603-1867). Tinha como formato inicial uma estrutura muito rudimentar da qual fazia parte
um único manipulador sentado em um tipo de talhão que movimentava dois bonecos
pequenos apenas com as mãos, além de fazer as vozes deles e narrar a história. Uma primeira
grande mudança nessa arte foi realizada por um artista chamado Koryu Nishikawa I (1824-
1927), a partir de 1852, substituindo o talhão por carrinho, passando a ser conhecido pelo
nome de kuruma Ningyo. Neste, o animador fica sentado no carrinho e tem a possibilidade de
se deslocar pelo palco com o boneco. No kuruma Ningyo, cada boneco é animado por
somente um artista.
O carrinho, denominado kuruma em japonês, possui cerca de 20 cm de altura, 25 cm
de comprimento, 15 cm de largura e dispõe de três rodas. Com a ampliação das possibilidades
de deslocamento através do espaço cênico surgem também novas possibilidades gestuais para
os bonecos (SOUZA, 2005). O animador do boneco fica preso ao carrinho e o faz andar
através de suas próprias passadas (Figura 24).
Entretanto, para atuar no Kuruma Ningyo, há um intenso treinamento desde a infância.
Desde a década de 1990, o treinamento se inicia aos cinco anos de idade com o aprendiz
apenas assistindo aos espetáculos e conhecendo através do ponto de vista do público o seu
ofício. Aos doze ou treze anos de idade o aprendiz inicia efetivamente o seu treinamento, com
exercícios corporais que formam seu corpo para as necessidades futuras do animador.
Somente um pouco mais tarde é que ele passa a ter contato direto com os bonecos (ibidem).
55
Figura 24 – Cenas do teatro de bonecos Kuruma Ningyo.
A partir de 1994 foi introduzida uma nova característica ao Kuruma Ningyo: a
animação dos pés do boneco com os pés do próprio animador. Sentado no kuruma, os pés do
animador encaixam-se nos calcanhares do boneco e cada passo seu corresponde a um passo
do boneco22 (Figura 25). Assim, os movimentos que impulsionam o deslocamento do boneco
e do carrinho parecem vir do próprio boneco. Além disso, o fato do animador estar ligado
diretamente ao seu boneco, através de seus braços e suas pernas e todo o seu corpo ser
dedicado à função de animar o boneco, permite gestos mais refinados em sua interpretação.
Para Marco Souza,
O estabelecimento dessas relações teatrais através da ligação completa dos membros do sujeito com os membros do objeto deixou os gestos no palco mais largos e vigorosos e com uma precisão muito maior, ressaltando mais ainda a percepção de um corpo que surge da interação entre outros dois corpos [...] (SOUZA, 2005, p.65).
Figura 25 – Cenas do kuruma ningyo. À direita, detalhe do animador sentado no kuruma. 22 As cenas de apresentação do teatro Kuruma Ningyo foram extraídas da internet. <http://www.vncs.ca/wordpress/hachioji-kuruma-ningyo-at-uvic-wed-may-22nd-730pm/ Acesso em 29 nov. 2012.
56
No kuruma ningyo a relação entre o corpo do animador e o corpo do boneco exige
uma interação perfeita e constante no sentido de dar vida ao boneco. A coexistência entre
estes corpos é uma das bases do Kuruma Ningyo e segundo Souza,
O estilo refinado do Kuruma Ningyo provém de um método no qual a compreensão e a expressão dos fundamentos rítmicos do manipulador e do manipulado exigem uma interação constante entre corpo e objeto que permite com que um se estruture em função do outro. Por isso, para estar em cena no Kuruma Ningyo, corpo e objeto não apenas atuam conjuntamente, mas têm, de fato, que existir, ou melhor, que coexistir para agir como uma mesma ação, como um mesmo empenho expressivo e estético (SOUZA, 2005, p.59).
O animador veste-se inteiramente de negro e transforma-se em uma espécie de sombra
do boneco. Desta maneira, o boneco passa a ter vida através de movimentos que parecem vir
dele mesmo. Para Souza, isto significa que,
O corpo e o objeto, desse jeito, estariam mutuamente conectados através de uma sobreposição que é evidenciada por uma combinação, em certo sentido, tão indistinta (ressoando no sentido de contaminação), que promove uma sensação de indeterminação entre o quanto um conforma ou é conformado pelo outro. No Kuruma Ningyo, portanto, um princípio artístico básico é que não há corpo sem objeto e nem objeto sem corpo (SOUZA, 2005, p.60).
Na tradição japonesa tanto a feitura quanto a manipulação dos objetos seguem
preceitos religiosos e filosóficos, como por exemplo, os princípios representados pelo
dualismo dos bonecos Hitogata e Katashiro23 (SARANDO, 1996 apud SOUZA, 2005, p. 51),
que tiveram seu primeiro registro histórico durante o periodo Heian (794-1112 d.c). Hitogata
significa “forma humana”, e Katashiro significa “forma substituta” (Figura 26). Esses
bonecos são objetos místicos carregados de crenças sagradas usadas como emblemas da
presença de um espírito em ritos de adoração. Acredita-se, mesmo na atualidade, que é a
forma substituta que possui o dom sobrenatural de absorver os malefícios e de curar as
enfermidades das pessoas (SOUZA, 2005, p. 51). No entanto, de acordo com o autor, o
Katashiro, que é a forma substituta, necessita da presença e da conexão com a forma humana,
23 Figuras obtidas dos sites: http://www.oomoto.jp/poColeta/Coletanea6.pdf ; http://www.yushimatenjin.or.jp/pc/saiji/ooharai.htm; Acesso realizado em junho 2013.
57
o Hitogata para se manifestar e proteger as pessoas ou objetos. O hitogata junto com a forma
substituta assume uma espécie de sombra (kage em japones). Portanto, é através dos bonecos
Hitogata e Katashiro que se pode caracterizar a forma humana como correspondente ao
manipulador, e a forma substituta como correspondente ao objeto acontecendo entre os dois
uma revelação da natureza oculta das coisas (CHIKAMATSU, apud SOUZA, 2005, p.53),
(Figura 26).
Figura 26 – À esquerda: Hitogata (forma humana) e o certificado de purificação pessoal. À direita: Katashiro (forma substituta) e o certificado de purificação material. O Hitogata é um formulário de pedido para purificação espiritual, cujo fundo representa uma figura humana. O Katashiro é o formulário voltado para bens materiais.
Essa relação, de objeto inanimado e animado, pode ser explicado através do conceito
de mono. Objetos (mono inanimados) conectam os elementos visíveis que constituem o
ambiente de um indivíduo (mono animado) com a totalidade invisível do mundo. Na tradição
japonesa, mono se refere às raízes que um objeto tem em ambas as dimensões visíveis e
invisíveis do mundo. E nesse sentido, de acordo com Yamaguchi (1991, p. 8), na cultura
japonesa, a exposição de um objeto ou lugar, por exemplo, “tinham a intenção de fazer os
aspectos invisíveis do mono visíveis por meio do mono materializado. Isso quer dizer que o
que é visível emerge do fundo invisível que circunda um objeto”.
Mono é a expressão da existência orgânica, de um corpo que possui um significado ou
sentimento, mesmo quando representado por um objeto. Um exemplo é o termo yama. A
palavra yama originalmente denotava uma montanha, mas tornou-se associada com o lugar
onde residem as divindades. Desta forma, yama assumiu o sentido de espaço de mediação
entre os humanos e os deuses (YAMAGUCHI, 1991).
Os primitivos acreditavam que nas montanhas, rios, árvores, e em outros elementos da
natureza existiam a presença de espíritos, fato este que originou a personificação de muitos
58
deuses em formas humanas, os quais eram venerados pelos homens. Essa demonstração pode
ser geralmente, mais viável no espaço do teatro tradicional japonês, onde há sempre um
personagem xamã-sacerdote caracterizado na performance.
O xamã-sacerdote é capaz de perceber a existência de espíritos locais em cada um dos
lugares que visita em suas viagens por todo o país. Suas percepções levam à aparição de
demônios intimamente relacionados com a história ou as lendas do lugar em particular. Esta
capacidade do sacerdote de fazer com que os demônios locais se manifestem é uma evidência
de sua competência para reagir ao chamado de mono (YAMAGUCHI, 1991, p. 8).
A influência do mono resulta também dos lugares em que os objetos são encontrados e
da forma como eles são usados. Greiner, na apresentação do livro de Cecília Saito (2004),
explica que, “para os artista do Mono-ha24, como Suza Kishio, a palavra mono está sempre ao
lado do silencio e a natureza da coisa é sempre anônima. Isso significa que a coisa não é nada
além daquilo ao qual ela está conectada (LUCKEN, 2003:218 apud SAITO, 2004)”. Essas
‘coisas’ também não estão apartadas dos espaços que as rodeiam.
Para Souza (2005, p. 65-66), mono está relacionado a “uma crença nipônica comum
que acredita que um espírito reside nos objetos que as pessoas usam por muitos anos”. A
partir da convivência com os objetos, ocorre um desenvolvimento de uma alma neles, ou a
transferência para eles da alma da pessoa que possui o objeto. O autor, explica um pouco
mais:
Acredita-se através do mono que qualquer dano causado ao objeto, afeta o seu possuidor e de acordo com a convicção popular os seres humanos e os objetos existentes no mundo são entidades com características próprias que devem se complementar para que possam existir em conjunto e beneficiar um ao outro. Pelo viés do mono, os objetos com que as pessoas interagem não são, então, apenas coisas inócuas, eles incorporam sentidos e fazem parte da vida daqueles que convivem com eles.
As crenças religiosas e mitológicas do povo japonês são fatores que contribuem para
esse sentimento popular e talvez esclareça essa amabilidade para com a figura do híbrido. As
religiões mais difundidas são o xintoísmo e o budismo, que cultuam seres míticos, híbridos,
meio humano, meio animal, contribuindo para a aceitação de figuras híbridas meio homem,
meio máquina.
24 Mono-ha é o nome dado ao grupo de artistas do século 20 japoneses. Significa “escola das coisas” constiuindo-se em importante movimentos de arte no Japão.
59
Na série Neon Genesis Evangelion, o objeto maquínico toma corpo e torna-se uma
estrutura personificada quando associado ao corpo do piloto. Isso nos remete ao conceito de
mono, pois o corpo passa a ter vida através de gestos e movimentos que aparentemente vem
da máquina, mas são regidos pelo piloto. Aqui, de modo semelhante ao kuruma ningyo, o
piloto assume a função de sombra da máquina, inseparáveis do corpo que se move como se
tivesse vida própria.
Portanto, a partir dessa percepção da tradição japonesa de mono procuraremos, no
próximo capítulo, analisar a hibridação que ocorre entre o piloto e seu robô EVA na série de
animação Neon Genesis Evangelion. Para o olhar ocidental, esta relação homem-máquina tem
sido estudada a partir do conceito de pós-humano. No entanto, como observamos
anteriormente, no contexto japonês a relação homem-máquina parte de outras questões.
Em Neon Genesis Evangelion, inicialmente a figura de uma máquina chamada EVA, é
apresentado ao espectador como a representação de um grande e poderoso robô pilotado por
adolescentes. Porém, nos episódios 01 e 02, ao fim da primeira batalha de EVA-unidade 01,
tanto o espectador como o piloto Shinji se deparam com uma criatura diferente. Vemos EVA
recolhida para reparos, e naquele momento o “robô” mostra-se como uma criatura biológica.
Percebe-se que a sua superfície, na verdade, é uma armadura, um invólucro para uma criatura
biológica, munido de próteses e outros aparatos tecnológicos que serviriam para amplificar as
suas forças e a do piloto, mas que também são usados para mantê-lo sob controle humano
(Figura 27). Estamos, portanto, possivelmente diante de um ser híbrido que envolve a união
entre orgânico e inorgânico e que nos remete a figura de um ciborgue.
Figura 27 –Acima, à esquerda: EVA recolhida para reparos. Ao lado, a parte interna da EVA formada por aparatos tecnológicos. Abaixo, à esquerda: EVA observa Shinji como se o identificasse. Ao lado, EVA reage sem nenhum piloto, demonstrando que não se trata de um simples robô.
60
Na maioria das produções que envolvem ciborgues podemos encontrar seres humanos,
com implantes maquínicos inseridos, com o objetivo de ampliar seus poderes e/ou preservar
sua vida. Podemos citar como exemplo de produções audiovisuais que surge nessa linha, a
série televisiva da década de 1970,O Homem de Seis Milhões de Dólares (1973), ou o filme
Robocop (1987). Em ambos os casos, homens comuns tem suas habilidades ampliadas através
da hibridação com máquinas, tornando-os praticamente indestrutíveis (Figura 28).
Figura 28 – Nas produções que envolvem ciborgues como O Homem de seis milhões de dólares e Robocop, seres humanos apresentam implantes maquínicos para ampliar seus poderes e/ou preservar sua vida.
Em geral, a figura do ciborgue é representada através de um misto de homem e
máquina, no qual o lado humano representa a consciência e os sentimentos e ao lado máquina
cabe a força, a racionalidade e a longevidade.
O termo ciborgue surgiu da contração da expressão “organismo cibernético” (em
inglês CYBernetic ORGanism = cyborg). Atribui-se a Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline o
seu primeiro emprego e definição, em um artigo chamado Cyborgs and space, de 1960
(CLYNES apud GRAY, FIGUEROA-SARRIERA & MENTOS, 1995). Estes autores
consideram ciborgue como um organismo cibernético. Seria “a engenharia da união entre
sistemas”. Ressaltaram a importância de adaptar o homem a ambientes extraterrestres
inóspitos, revelando que sob a figura do ciborgue cultivam-se os sonhos de vencer as barreiras
da exploração espacial. Sua proposta era alterar física e quimicamente o corpo humano de
modo que um astronauta pudesse adaptar-se ao espaço para que ele ficasse “livre para
explorar, criar, pensar e sentir” ao invés de ser obrigado a, “além de pilotar sua nave”, manter-
se “continuamente checando coisas e fazendo ajustes com o objetivo meramente de manter-se
61
vivo”, condição que o limitava a ser um “escravo da máquina (CLYNES apud MAFFESOLI,
1995, p. 31).
A partir da definição de “união entre sistemas”, muitas outras interpretações foram
construídas, tendo sempre a hibridação como um ponto em comum. De acordo com Chris
Gray (1995), Clynes referiu-se apenas à hibridação entre maquínico e orgânico, mas nas
últimas décadas do século XX, ao mesmo tempo em que, houve uma popularização da idéia
de ciborgue, as definições se tornaram mais amplas e genéricas, dando oportunidade a
diversas abordagens dessa hibridação, tais como, intervenções tecnológicas no organismo,
biotecnologias implantadas por sob a pele, ou as redes e softwares otimizando tarefas
cognitivas.
Uma definição que se tornou clássica foi a proposta apresentada por Donna Haraway,
que em 1985 lançou o Manifesto Ciborgue, um sinalizador de que os estudos dos produtos
tecnológicos ganhariam, cada vez mais importância. Haraway, preocupada com as
transformações sociais, definiu o ciborgue como um cruzamento entre máquina e organismo;
uma criatura da realidade social, mas também da ficção. A autora definiu o ciborgue como
“um organismo cibernético híbrido: é máquina e organismo, uma criatura ligada não só à
realidade social como à ficção. (...) criaturas simultaneamente animal e máquina que habitam
mundos ambiguamente naturais e construídos" (HARAWAY, 1994, p. 243-4).
A pesquisadora apresenta uma idéia diferente de ciborgue, em relação àquela surgida
nos anos 1960. Enquanto o ciborgue de Clynes & Kline, tinha sido concebido como um
‘super-homem’ capaz de sobreviver em ambientes não-terrestres e hostis, Haraway entende o
fenômeno como uma forma de libertação, como possibilidade de um mundo pós-gênero, sem
pretensões de concentração de poder. Segundo Haraway, certos dualismos presentes nas
tradições ocidentais são essenciais às práticas de dominação onde o eu domina todos aqueles
que foram constituídos como outros. Para a autora “a cultura high-tech contesta – de forma
intrigante – esses dualismos. Não está claro quem faz e quem é feito na relação entre o
humano e a máquina.” (HARAWAY, 2000, p. 100). Neste sentido, a definição de Haraway
parece mais próxima dos entendimentos da cultura japonesa, com a ressalva de aderir à
nomeação “pós-humano”.
Em 1995, Gray, Mentor e Figueroa-Sarriera lançaram um artigo intitulado
“Cyborgology: Constructing the knowledge of Cybernetic Organisms”, no qual, consideraram
ciborgue qualquer pessoa com órgão, membro ou suplemento artificial. Incluíram, também,
todos os imunizados, e, todos os que se utilizavam da psicofarmacologia para pensar ou
62
comportarem-se ou sentirem-se melhor.
De acordo com Gray, Mentor e Figueroa-Sarriera (1995, p. 2),
Este fundir do evoluído e do desenvolvido, esta integração entre construtor e construído, esses sistemas de carne e circuitos inanimados foram chamados de muita coisa: sistemas biônicos, máquina virtuais, ciborgues. São figuras centrais do século XX (...) Há muitos ciborgues entre nós. Qualquer pessoa com um órgão, membro ou suplemento artificial (como um marca-passo), qualquer um reprogramado para resistir a doenças (imunizado) ou drogado para pensar/comportar-se/sentir-se (psicofarmacologia) melhor é tecnicamente um ciborgue.
Dessa forma, o ciborgue, mescla fisicamente novas tecnologias, sendo corrigido e
expandido com próteses de todos os tipos, que ajudam nas deficiências humanas,
potencializam os nossos sentidos e transforma-nos, apresentando uma nova realidade para o
corpo humano.
De acordo com essa visão, o significado de hibridação se torna mais amplo,
considerando todos nós como ciborgues em potencial. Para Katherine Hayles (1996), os
ciborgues podem ser de dois tipos: os técnicos e os metafóricos. Os ciborgues no sentido
técnico incluem pessoas com marca-passos eletrônicos, junções artificiais, sistema automático
de administração de medicamentos, lentes implantadas na córnea, e pele artificial. Para a
autora, estimava-se que esta situação corresponde a cerca de 10% da população dos EUA. Os
outros 90% seriam considerados ciborgues metafóricos só pelo fato de usarem aparatos
técnicos/tecnológicos a fim de possibilitar a realização de uma tarefa como, por exemplo,
quando usamos o teclado do computador ou o joy stick de um videogame conectando um
circuito cibernético com a tela, ou o neurocirurgião guiado por um microscópio de fibra ótica
durante uma cirurgia (HAYLES, ibidem).
André Lemos, identifica ainda dois tipos de ciborgue: o protético e o interpretativo. De
acordo com o autor, ciborgue protético é o indivíduo que tem funções fisiológicas garantidas
por qualquer dispositivo eletrônico ou mecânico, conceito semelhante ao ciborgue técnico de
Hayles. Sua definição para ciborgue interpretativo está diretamente ligada aos meios de
comunicação de massas e à cultura de massa e do espetáculo. Para ele, todos nós ao
utilizarmos qualquer informação, imagem ou conceito que chegou a nós mediado por uma
máquina, para a partir dele construir ou significar algo, nos tornamos ciborgues interpretativos
(LEMOS, 2002, p. 187)
Essas subdivisões e interpretações em torno do conceito de ciborgue ampliam bastante
63
as possibilidades de entendimento dessa figura. Para alguns, seríamos todos ciborgues, para
outros, essa nomenclatura se aplicaria apenas àqueles que usam máquinas implantadas no seu
sistema biológico (AMATTE LOPES, 2006).
E o que dizer então da Inteligência Artificial em que os pesquisadores dessa área
almejam remover a mente do cérebro humano e transferí-la para um computador.
Em Mentes e Máquinas (1998, p.138), Teixeira descreve três robôs desenvolvidos no
laboratório de R. Brooks, no Massachusetts Institute of Technology – MIT: Allen, Herbert e
Cog. Os dois primeiros são ciborgues capazes de executar movimentos e tarefas programadas,
entretanto, o terceiro robô citado por Teixeira é o humanoide Cog25, em desenvolvimento no
MIT, motivado pela hipótese de que a inteligência humanoide requer interação dos
humanoides com o mundo. Com forma e capacidade quase humanas, foi projetado para
interagir com o mundo e aprender de forma semelhante à cognição humana, tentando simulá-
la ou replicá-la (Figura 29). Se o projeto for bem sucedido, Cog poderá sentir e pensar como
um ser humano, e o homem terá conseguido fazer as máquinas aprenderem como ele.
Figura 29 – Humanoide Cog, em desenvolvimento no Massachusetts Institute of Technology – MIT. Projetado para ter forma e capacidades quase humanas.
Assim, da mesma forma que na ficção científica, caminhamos para um estado onde
será quase impossível distinguir a separação entre o maquínico e o humano, trazendo o
ciborgue da ficção para o cotidiano.
Estamos vivendo num momento em que as novas tecnologias vêm transformando o
mundo contemporâneo de modo que as possibilidades e perspectivas que se abrem para o
25 Cog. MIT - Humanoides Robotics, 2006. Disponível em: http://www.ai.mit.edu/projects/humanoid-robotics-group/cog/overview.html . Acesso em: dez 2012.
64
sujeito parecem se tornar infinitas. Surgem assim, promessas de novos desenvolvimentos na
mistura do orgânico e não orgânico na figura do ciborgue, em busca de um corpo que não
envelhece, de uma mente que se perpetua, de uma vida desvinculada do corpo ou uma vida
virtual.
Essa condição que entende o humano para além de si, através da relação homem
máquina, tem sido considerada uma condição pós-humana, sendo, de uma maneira geral,
definida como “um ser híbrido, uma união de dois elementos - o humano e o tecnológico -
que faz com que o homem ultrapasse as limitações físicas ou mentais expandindo suas
próprias capacidades utilizando-se de artifícios e recursos tecnológicos” (CARVALHO,
2008).
Na condição pós-humana, há um contexto de proliferação e convergência de novas
tecnologias, que por sua vez impacta diretamente em nossa subjetividade e em nossa maneira
de encararmos até a nós mesmos, com a formação de um novo ser humano, como discutem
vários autores contemporâneos (HARAWAY, 1985; GRAY, 1996; HAYLES, 1996, 1999;
SIBILIA, 2002; SANTAELLA, 2003, 2007; FELINTO, 2005).
De acordo com Santaella (2003), o termo pós-humano vem sendo empregado desde o
início dos anos 1990, especialmente por artistas ou teóricos da arte e da cultura. A expressão
tem sido usada para sinalizar as grandes transformações que as novas tecnologias da
comunicação estão trazendo para tudo o que diz respeito à vida humana, tanto no nível
psíquico quanto social e antropológico. Autores como Stelarc (1997, 2006) e Sibília (2002),
defendem a idéia de que se trata de um passo evolutivo da espécie. Essas evoluções se
referem às modificações não apenas mentais, mas também corporais, biomoleculares, pelos
quais o ser humano vem passando. E nesse aspecto, as experiências e o avanço do Projeto
Genoma Humano são exemplos da associação da biotecnologia com a informática, com o
objetivo de decifrar o mapa genético da espécie humana, para descobrir a origem das doenças
genéticas e a busca de tratamento e prevenção. De acordo com o pensamento pós- humanista,
o desenvolvimento biotecnológico consiste também na possibilidade de intervir sobre os
mecanismos da vida, um processo que era lento e exclusivo da seleção natural. A evolução de
uma nova espécie de bionte26 leva bilhões de anos através da seleção natural, enquanto que o
homem precisou de apenas algumas décadas para produzir, a ovelha Dolly, o primeiro ser
projetado artificialmente, através de clonagem genética.
26 Ser vivo, matéria viva desenhada pela seleção natural.
65
Além disso, os desenvolvimentos tecnológicos apontam para as possibilidades de
formas de existência pós-humana, que o estudioso Roy Ascott (2003) prefere chamar de pós-
biológicos devido à emergência de uma era úmida (moist) que nascerá da junção do ser
humano molhado (wet) com o silício seco (dry), especialmente a partir do desenvolvimento
das nanotecnologias que, inseridas abaixo da pele, de forma silenciosa, passarão a interagir
com as moléculas do nosso corpo.
Essa inserção de novas tecnologias, corrigindo e expandindo o nosso organismo com
próteses de todos os tipos, ajuda nas deficiências humanas, potencializa os nossos sentidos e
transforma-nos, apresentando uma nova realidade para o corpo humano. E para um futuro
próximo, pode-se esperar uma grande integração entre o tecido orgânico e a máquina, através
de robôs e da nanotecnologia. Um exemplo disso são as pesquisas desenvolvidas por Bachelet
e Douglas da Universidade de Harvard com os nanorobôs que caçam e destroem células
cancerosas (STAUT, 2012).
Em seu livro “O Homem Pós-Orgânico”, Sibilia pontua que, na era atual, o progresso
científico ameaça acabar com o papel central do humano e o próprio progresso científico
parece tomar o papel central nessa “evolução”. O corpo humano, cada vez mais invadido e
modificado pela tecnologia, e cada vez mais em interação com aparatos técnicos estaria,
segundo os pensadores pós-humanos, tornando-se ultrapassado em relação ao progresso
técnico: É nesse contexto que surge uma possibilidade inusitada: o corpo humano, em sua antiga configuração biológica, estaria se tornando “obsoleto”. Intimidados pelas pressões de um meio ambiente amalgamado com o artifício, os corpos contemporâneos não conseguem fugir das tiranias (e das delícias) do upgrade. Um novo imperativo é internalizado, num jogo espiralado que mistura prazeres, saberes e poderes: o desejo de atingir a compatibilidade total com o tecnocosmos digitalizado. Para efetivar tal sonho é necessário recorrer à atualização tecnológica permanente: impõem- se, assim, os rituais do auto-upgrade cotidiano (SIBILIA, 2002, p. 13).
A autora recorre aos pensamentos do sociólogo português Hermínio Martins, para
explicar que passamos de uma tradição prometéica, da mitologia grega, através do mito
Prometeu, para uma tradição fáustica da mitologia alemã, através do mito de Fausto. Na
tradição prometéica o homem conquista o domínio da técnica e pensa a tecnologia como a
possibilidade de estender e potencializar gradativamente as potencialidades do corpo (sem
aspirar ao infinito, guardando certo respeito pelo que é humanamente possível e pelo que
ainda pertence ao território divino). Em outras palavras: Prometeu forneceu à humanidade a
66
técnica para que os homens pudessem utilizá-la para desenvolver experimentos, máquinas e
ferramentas. Ao contrário, a tradição fáustica, vê na tecnociência a possível superação do
corpo, a possibilidade de transcender a condição humana: o pós-humano (SIBÍLIA, 2000, p.
13).
De acordo com a lenda popular alemã, cuja origem está nos poemas de Johann Goethe
(1808)27, Fausto é um médico mágico e alquimista que desiludido com o conhecimento de seu
tempo, faz um pacto com o demônio Mefistófeles. O demônio, como parte do contrato,
fornece à Fausto a energia estimuladora da paixão pela técnica e pelo progresso.
Para Sibília,
a tecnociência contemporânea, por ser um saber fáustico, almeja ultrapassar todas as limitações biológicas ligadas à materialidade do corpo humano, […] As pesquisas em biotecnologia, por exemplo, não se conformam com a realização de meras melhorias cosméticas ou com o aditamento de próteses para os organismos danificados. Não pretendem apenas ampliar ou estender as capacidades do corpo humano, […] enxerga no instrumental tecnocientífico a possibilidade de criar vida. […]. Fáustico, ele pretende exercer um controle total sobre a vida, superando as suas limitações biológicas; inclusive, a mais fatal de todas elas: a mortalidade. (SIBÍLIA, 2000, p. 49-50).
Seguindo esse pensamento, Régis entende o pós-humano como um passo evolutivo da
espécie. “Nesse caso, o prefixo ‘pós’ implica a idéia, não apenas de um estágio posterior,
como também ontologicamente mais avançado da espécie. São nas definições de pós-humano
que encontramos os desejos de superação mais radicais.” (RÉGIS, 2007, p. 3-4).
Na busca dessa superação das limitações biológicas, é possível atingir o
desenvolvimento pós-evolutivo, como podemos observar através das performances realizadas
pelo artista australiano Stelarc (1997, 2006), cujo trabalho explora e estende o conceito de
corpo através da acoplagem de dispositivos protéticos. Para ele o corpo tornou-se obsoleto e
ineficiente: uma estrutura a ser modificada. O autor acredita que se pode ir além da pesquisa
por um estágio mais avançado, indo à busca da imortalidade.
As performances, envolvendo conexões extras corpóreas e inserções através da pele,
são executadas em seu próprio corpo. Stelarc fez várias apresentações no Japão, Europa e
27 A primeira versão era apenas um esboço conhecido como Urfaust (Proto-Fausto). Foi composta em 1775. A versão definitiva só seria escrita e publicada por Goethe no ano de 1808, sob o título Faust, eine Tragödie (Fausto, uma tragédia).http://pt.wikipedia.org/wiki/Fausto_(Goethe)
67
Estados Unidos. Algumas de suas performances são: Terceira Mão, Braço Virtual, Corpo
Virtual, Escultura Estomacal, Cabeça Protética, Orelha Extra, Hexapod e Eskeleton (Figura
30).
Figura 30 – Performances executadas por Stelarc.
A Terceira Mão de Stelarc é uma prótese constituída por um braço e uma mão, feitos à
imagem do membro do artista, que se conecta ao seu braço direito natural. A mão protética
possui a capacidade de segurar, soltar, apertar, afrouxar, e é dotada de tato, embora
rudimentar. Com esse experimento, Stelarc (2006) afirma que a pele não pode ser mais vista
como o limite entre o ser humano e o mundo. Atualmente ela está atravessada e penetrada
pela tecnologia. Sua superfície está rompida, demovendo a diferença entre o interior e o
exterior. A pele, como interface, está obsoleta.
Stelarc, ao realizar as performances para validar seus argumentos em prol da
obsolescência do corpo biológico, afirma que,
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Simplesmente o corpo criou um ambiente de informação e tecnologia com o qual não mais consegue lidar. Esse impulso para acumular de forma contínua mais e mais informação criou uma situação na qual a capacidade da córtex humana simplesmente não consegue absorver e processar de forma criativa toda essa informação. Foi necessário criar tecnologia para fazer aquilo que o corpo não mais consegue realizar. Ele criou uma tecnologia que supera em muito algumas capacidades dele mesmo. A única estratégia evolucionista que vejo é, [...] incorporar a tecnologia ao corpo [...] tecnologia ligada simbioticamente e implantada no corpo cria uma nova síntese evolucionária, cria um híbrido humano - o orgânico e o sintético se unindo para criar um novo tipo de energia evolucionária (STELARC, apud MONTEIRO, 2003).
Podemos observar, portanto, que o pensamento fáustico é expresso, por exemplo,
nessa dependência do upgrade do corpo, seja por meio de intervenções cirúrgicas ou pelo
acoplamento cada vez maior com aparatos tecnológicos que permite que a mente e, por
conseguinte o pensamento possa ser analisado através da informática, de impulsos elétricos,
etc.
De acordo com Sibília,
“enquanto as próteses clássicas se inspiravam na metáfora do robô, a tecnociência fáustica de vocação ontológica28 abandona o modelo mecânico para assumir de vez a analogia digital e submeter o organismo ao upgrade informático” (SIBÍLIA, 2002, p. 137).
Portanto, de acordo com essas concepções, pós-humanos seriam uma simbiose de
humanos e inteligência artificial, ou consciências carregadas no computador, ou o resultado
de pequenos, mas profundos aprimoramentos tecnológicos em um humano biológico. O que
se destaca nessas definições é o desejo da superação dos limites do humano, tendo como ápice
o upload da consciência no computador (RÉGIS, 2007).
Para Katherine Hayles, esses processos evolutivos são considerados padrões que
podem ser transmitidos de um meio ao outro, independentemente de um peso, de uma massa
corpórea. Fica implícito que, as diferenças entre homens e máquinas cerebrais são pequenas,
se é que existem. Os homens são “entidades que processam informações e que são
essencialmente similares às máquinas inteligentes” (HAYLES, 1999, p. 7).
Nessa perspectiva, os seres humanos entram numa realidade virtual através do que
Santaella (2003) define como “corpo plugado” que ao conectarem-se a um cabo, a mente
28 Ontologia (em grego ontos e logoi, "conhecimento do ser") é a parte da filosofia que trata da natureza do ser, da realidade, da existência dos entes e das questões metafísicas em geral. Referência disponível em: http://www.dicionarioinformal.com.br/ontologia/.
69
abandona o corpo e vive situações criadas pelo computador. E dessa forma, de acordo com a
autora, não se pode prever nem diagnosticar com muita certeza sobre o que acontece quando
os circuitos eletrônicos penetram no cérebro, misturando-se com a química do corpo.
Essas novas realidades levam a uma reconstituição de conceitos e de interpretações,
fazendo com que os mundos – real e imaginado – fiquem mais próximos, dando uma nova
interpretação à concepção de corpo, o que leva também a geração de novas representações
para esse corpo, agora híbrido.
Em Neon Gênesis Evangelion encontramos um exemplo de representação dessas
novas espécies: EVAs, criaturas cibernéticas, criadas para lutar contra os Anjos que chegam a
terra para destruir a humanidade.
Nossa proposição, no próximo capítulo, foi apresentar a obra, uma história que se
desenvolveu num mundo pós-apocalíptico, examinando onde era possível, na série, identificar
a representação da relação estabelecida entre homem e máquina. A série aborda aspectos
psicológicos do homem e questões de identidade para dar eficácia aos mistérios da narrativa.
O objetivo foi buscar fragmentos que possibilitassem entender a hibridação homem-máquina,
através do conceito de pós-humano e do conceito da tradição japonesa de mono, presentes
nessa série de animação, demonstrando as principais diferenças das duas propostas.
70
2 NEON GENESIS EVANGELION: UM MUNDO APOCALÍPTICO ENTRE EVAs,
PILOTOS E ANJOS
A série de animação Neon Genesis Evangelion ou, simplesmente, Evangelion, foi
produzida pelo Estudio Gainax, e dirigida por Hideaki Anno, inicialmente, como série de
animação, para depois ser adaptada para a linguagem de mangá.
Neon Genesis Evangelion, em japonês Shin Seki Ibangerion, é uma animação
composta por 26 episódios, que, começou a ser exibida pela TV Tókio, de outubro de 1995 a
março de 1996. Uma compilação de todos os episódios exibidos na TV, exceto os dois
últimos, foi lançada em 1997, com o nome de “Evangelion: death and rebirth” (Shito Shinsei,
em japonês). No mesmo ano, em julho de 1997, a série de animação foi complementada pelo
longa-metragem “The End of Evangelion”, lançado nos cinemas em julho de 199729. Estes
produtos audiovisuais são os pontos de partida de uma gigantesca franquia Evangelion, como,
por exemplo, os mangás, filmes, jogos de video, RPG, música, entre outros, construída graças
ao incrível sucesso da série de animação Neon Genesis Evangelion.
Um ponto marcante da produção de Anno é a personalidade do autor, impressa nas
escolhas feitas por ele. De acordo com as suas declarações (em entrevistas publicadas em sites
e revistas especializadas), verificamos que Anno busca criar em Neon Genesis Evangelion
uma obra autoral, na qual, as suas influências dominantes não vêm da televisão ou de filmes
de ficção, e sim da literatura, da religião e da cultura tradicional japonesa. Para muitos fãs30, a
obra de Anno é a combinação perfeita de idéias de mitos, referências religiosas, mechas, caos
e agências secretas.
Além do próprio nome da série de animação Neon Genesis Evangelion (romanização
do grego, “νέογένεσηευαγγέλιο”, literalmente Evangelho da Nova Era), as influências
religiosas apresentam-se com denominações de objetos, de seres não humanos e entidades
divinas, com referências a passagens bíblicas como Adão e Eva, anjos e apresentação de
símbolos sagrados da religião cristã, tais como, cruz, lança ou manto. São estruturas que
praticamente nasceram com o cristianismo e os representam da forma mais abrangente
possível: o criacionismo, dogmas divinos e cristãos. O símbolo da "Árvore da Vida" provinda
29 The End of Evangelion reúne o que seria a primeira versão dos capítulos finais da série televisiva, os episódios 25 (“Aria”) e 26 (“Sinceridade pra você”), de acordo com a Gainax, produtora do animê. 30 Essa informação pode ser confirmada através de websites mantidos por fãs da série. Em língua portuguesa o website mais visitado é <<http://www.santuariodosanjos.hpg.ig.com.br>>, a partir dele diversos links podem ser encontrados direcionando para outros websites similares.
71
da Cabala31, existente também, com outros nomes e significados semelhantes na cultura
nórdica, por exemplo, estão entremeados nas imagens e narrativas da série. Tal símbolo
aparece logo na abertura da série, chamado de “Sephiroth no ki” (Árvore de Sephiroth),
referindo-se ao Diagrama Sefirótico ou Árvore da Vida (Figura 31), que contém, nas suas
estruturas, as chaves para os segredos do universo, bem como as chaves para os mistérios do
coração e da alma humana. Os ensinamentos cabalísticos explicam as complexidades do
universo material e imaterial, bem como a natureza física e metafísica de toda a humanidade.
Figura 31 – À esquerda: o símbolo da Árvore da Vida, provinda da Cabala. À direita: figuras de Sephiroth no ki, que aparecem na abertura da série Neon genesis Evangelion.
Observou-se ainda que, além dos objetos e símbolos religiosos que aparecem na série,
há todo um imaginário religioso, e referências em torno da alma, que é um símbolo religioso.
O próprio nome da organização secreta SEELE significa “alma” em alemão. A alma é o ser,
representa a identidade, a particularidade, além de ser o indício principal da ligação
humano/divino ou humano/religião. Como símbolo religioso, no cristianismo e no judaísmo, a
alma representa o que difere os seres humanos de outros seres vivos. É a presença da criação
31 Cabala (também Kabbalah, Qabbala, cabbala, cabbalah, kabala, kabalah, kabbala) é uma sabedoria que investiga a natureza divina. Kabbalah é uma palavra de origem hebraica que significa recepção. Informação publicada no site http://pt.wikipedia.org/wiki/Cabala. Acesso realizado em maio 2013.
72
divina no humano, representando o viés religioso. Em Neon Genesis Evangelion, os robôs
EVAs têm almas, indicando que são muito mais que simples máquinas. A série mostra que o
corpo é frágil, mas a alma persiste mesmo depois da morte. Portanto, a alma é o grande
símbolo desse imaginário religioso.
A grande inovação no universo da animação promovida por essa série foi centrar o
conflito nos problemas pessoais das personagens principais. Desse modo, deslocou o centro
de atenção das lutas, principal enfoque das animações japonesas que seguem a linha mecha,
para o universo humano e psicológico das personagens.
Para este trabalho, foram utilizados alguns episódios da série da animação Neon
Genesis Evangelion, dando ênfase àqueles relacionados à hibridação homem-máquina, e que
será apresentada e discutida a seguir.
A história de Evangelion desenvolve-se em um mundo pós-apocaliptico. Acontece em
2015, quinze anos após o “Segundo Impacto”, nome dado a uma grande explosão no
continente Antártico causada, segundo os dados oficiais, pelo impacto de um meteorito de
grandes dimensões semelhante ao “Primeiro Impacto”, que dizimou toda a população de
dinossauros do planeta. Com a economia em declínio e os impactos ambientais, a população
diminuiu consideravelmente.
A informação correta do “Segundo Impacto” está sob o poder de uma organização
chamada NERV que recebe apoio financeiro e é supervisionada por outra organização secreta
não governamental com poderes de decisão que é a SEELE.
A verdade declarada para o “segundo impacto” é a queda do meteoro, mas na
realidade é que as Nações Unidas escondem o fato de que a Terra não foi atingida por um
meteoro, mas sim atacada por um ser conhecido como Anjo (Angel), ou apóstolo no original
Shito em japonês. De acordo com o Red Cross Book (2009)32, Anjos são as formas de vida
que se originaram de "Lilith", o segundo Anjo. Podem ser de qualquer tamanho ou forma: um
grande octaedro, tão pequeno quanto um vírus ou até mesmo uma sombra sem forma tangível.
Vários são os Anjos enviados para destruir a humanidade: Adão, Lilith, Sachiel, Shamshel,
Ramiel, Gaghiel, Zeruel entre outros.
Na série de animação em estudo, Adão foi o primeiro anjo, o gigante de luz visto na
Antártida. Escrito no Gênesis do Antigo Testamento da Bíblia, Adão foi o primeiro ser
humano criado por Deus a sua semelhança. O rumor de que Adão estaria preso no subsolo da
32 Livro da Cruz Vermelha é o panfleto, autorizado pela Gainax Company, vendido no cinema para aqueles que foram ver o filme “The End of Evangelion”. Contém glossário e comentários sobre a produção.
73
central NERV era falso. O gigante no subsolo de fato era Lilith. O verdadeiro Adão é um
embrião trazido da Alemanha. Os cientistas da NERV usaram a Teoria S2 (Super Solenóide)33
para acordá-lo, mas com receio de que todos os Anjos fossem acordados, começaram a
degenerar Adão ao seu estado embrionário, gerando uma liberação de energia que resultou no
Segundo Impacto.
O segundo Anjo é Lilith, o ser de onde toda a vida teve origem, sendo considerada
uma fonte de vida. Como Adão, Lilith é uma Semente da Vida, sendo co-igual a Adão. Os
outros Anjos são descendentes de Adão, mas Lilith é a progenitora dos humanos34. Portanto,
embora Lilith seja considerada o segundo Anjo, de fato, ela não é um Anjo, e sim um humano.
Porém de acordo com versões alternativas35, Lilith é considerada a primeira mulher de Adão.
É referida em diversos textos antigos, assim como no Antigo Testamento da Bíblia. Lilith é
também referida na Cabala como a primeira mulher do bíblico Adão, sendo a antecessora de
Eva.
Por muito tempo Lilith foi incorporada nas profundezas da Terra, e devido às
mudanças das placas tectônicas, foi se instalar numa posição abaixo do que se tornaria
Hakone, Japão, formando a enorme caverna subterrânea denominada “Geofront”.
Em algum momento indeterminado, no passado recente, Lilith foi descoberta pela
SEELE. Foi mantida crucificada, em uma cruz gigante36, no nível mais profundo e secreto da
NERV (Figura 32), e usada como uma fonte renovável de LCL (Link Connected Liquid - algo
como “elo conectado por líquido”) para as Unidades Evangelion (o LCL de fato era o sangue
de Lilith). A SEELE e a NERV usaram Lilith para vários experimentos, em seguida,
intencionalmente deixaram-na crescer, até determinado ponto, com o objetivo de ser usada
para a Instrumentalidade e iniciar o Terceiro Impacto.
33 Um gerador de energia baseado na "Solenoid Theory" (Teoria da Bobina Elétrica). O tempo de operação de uma EVA seria extendido ao infinito. Todos os Anjos funcionam de acordo com a teoria S2. Acesso realizado em jan 2013. 34 Informação obtida do site http://wiki.evageeks.org/Lilith. Acesso realizado em maio 2013. 35 Informação obtida do site Neon Genesis Evangelion – o terceiro impacto. http://pt-br.neongenesisevangelion.wikia.com/wiki/Terceiro_Impacto. Acesso realizado em junho de 2013. 36 Há várias teorias tentando explicar o que significa o L.C.L., mas parece que, na verdade, é o que foi chamada de “a sopa da vida”. Informação obtida do site http://evangelionbr.wordpress.com/red-cross-bookglossrio
74
Figura 32 –Lilith, considerada a progenitora dos humanos. Seu corpo foi usado para criar EVA-unidade 01 e a piloto Rei Ayanami. Foi mantida crucificada no nível mais profundo e secreto da NERV.
Existem muitos mistérios sobre onde e como a NERV conseguiu obter a Lilith. Ela é
vital para as EVAs. O seu sangue, o LCL, e o seu corpo foi usado para criar a piloto Rei
Ayanami e a EVA-Unidade 01, além de ser o meio para o processo do Terceiro Impacto.
Após quinze anos, os Anjos voltam a terra para desafiar os sobreviventes de uma
humanidade reconstruída em Tokio-3, uma cidade erguida recentemente na área de Hakone,
no Japão.
A cidade de Tókyo-3 é uma fortaleza construída através da mais alta tecnologia e que
suporta qualquer ataque. Foi erguida sobre uma caverna em forma esférica, denominada
Geofront. Com pontos estratégicos, como túneis e armas para combate, a cidade possui
prédios que, em caso de ataque, são recolhidos para o interior da caverna e remontados de
cabeça para baixo (Figura 33).
No Geofront fica a base da Nerv, organização responsável pela construção e controle
de robôs gigantes chamados Evangelions (EVAs), pelo projeto de complementação humana37
e experimentos com clones. É comandada por Gendo Ikari, e administrada pela Organização
das Nações Unidas - ONU. Na organização também trabalham a Major Misato Katsuragi
comandante das ações táticas em defesa da cidade; e a Doutora Ritsuko Akagi (Figura 34),
37 A Complementação Humana pretendia unir todos os seres humanos em um só corpo e uma única consciência.
75
responsável pela engenharia, manutenção das EVAs e do sistema informacional de alta
tecnologia chamado MAGI que é o computador cérebro da agência secreta NERV.
Figura 33 –Tokio-3, uma cidade fortaleza erguida sobre uma caverna denominada Geofront. A cidade possui prédios, que em caso de ataque, são recolhidos para o interior da caverna e remontados de cabeça para baixo.
Figura 34 –Da esquerda para a direita: Gendo Ikari, major Misato Katsuragi e doutora Ritsuko Akagi.
As primeiras cenas de Neon Genesis Evangelion mostram um cenário onde aparecem
alguns prédios submersos, aparentemente destruídos há muito tempo, representado por um
ambiente deserto. Ao fundo, ouve-se uma voz comunicando que todos os moradores devem se
dirigir para os seus respectivos abrigos. Metrôs e ruas desertas. Poucos são os sinais de vida
nesse lugar, exceto pela movimentação de veículos militares. Somente uma revoada de um
grupo de pássaros quebra o silêncio. Um carro aparece e a motorista comenta aparentemente
preocupada: “Não devia tê-lo perdido”. Essa é a fala da personagem Misato Katsuragi,
retirado do primeiro episódio da série. Misato é major da operação da NERV e tinha a missão
de encontrar Shinji Ikari, para ser um dos pilotos de EVA.
76
Essas primeiras cenas mostram um mundo pós-apocaliptico onde a única arma capaz
de defender os homens são robôs gigantes conhecidos como unidades EVA (Evangelion) e
comandadas por pilotos adolescentes.
EVAs são as armas mais eficientes para combater os Anjos, criaturas que atacam a
terra com o objetivo de chegar ao subsolo da NERV, onde supostamente se encontra Adão, o
primeiro Anjo.
O nome formal da EVA é “Arma de Combate Decisivo de Propósito Genérico em
Forma Humanóide” (em japonês, “Hanyou Ninkei Kessen Heiki – Jinzou Ningen
Ibangerion”). Criadas como resultado de quatorze anos de pesquisa, as EVAs são criaturas
biocibernéticas concebidas a partir do código genético retirados dos restos deixados pelo
primeiro Anjo, chamado Adão, ao chegar a terra. Esse é o motivo pelo qual são chamadas
EVAs, uma alusão a Eva, a primeira mulher criada a partir da costela de Adão segundo a
mitologia judaico-cristã. Embora não se saiba ao certo o que são os Anjos, a NERV tinha
conhecimento do seu poder destrutivo.
A hipótese é a de que tenham sido enviados por Deus para destruir a humanidade,
como uma espécie de “segundo diluvio”, e que estes seres foram previstos pelos Manuscritos
do Mar Morto. Esses manuscritos são coleção de centenas de textos e fragmentos de texto
encontrados em cavernas de Qumran, no Mar Morto, no fim da década de 1940 e durante a
década de 1950, sendo citados na série como sendo a principal fonte de informação da NERV
e da SEELE. Esses manuscritos são considerados a versão mais antiga do livro Torah livro
sagrado do judaísmo, levando, portanto, a pensar na ligação entre Neon Genesis Evangelion e
o judaísmo.
Através dessa hipótese haveria uma estagnação no processo evolutivo da raça humana,
identificada pelo “projeto de complementação humana” da NERV, ou seja, a possibilidade de
“evolução” entre os humanos teria chegado ao limite e a solução estaria nos Anjos.
Obviamente, o sentimento de autopreservação gerou uma reação por parte da humanidade,
levando a criação de EVAs. São os únicos instrumentos que a humanidade dispõe para
enfrentar a ameaça dos Anjos, representando uma esperança de salvação para o mundo pós-
apocalíptico (AMATTE LOPES, 2006).
A série de animação não consegue explicar com clareza o projeto de complementação
humana, mas o assunto é abordado nos episódios 25 e 26. Visa levar a humanidade para outro
patamar, transformando toda a existência humana em um organismo total de forma única.
Através desse projeto toda a raça humana seria destacada de sua forma física, transformando-
77
se em uma forma de gel biológico, onde toda a humanidade seria uma única forma de vida e
todas as mentes e almas se tornariam uma só.
Em Evangelion, a biotecnologia se junta com o instrumental informático para a
conquista da imortalidade. O projeto de complementação humana, secretamente desenvolvido
pela NERV poderia ser considerado um projeto de desenvolvimento pós-humano. Através
desse projeto foram concebidas EVAS a partir dos restos deixados pelo primeiro Anjo (Adão)
ao chegar a Terra. Foram também concebidos pilotos, como Ayanami, resultado de várias
clonagens genéticas. Porém, como veremos mais adiante, nesta série EVAs e pilotos clones
apresentam reações e sentimentos característicos de humanos.
Entretanto, nem Shinji e nem o espectador tem ideia, nos primeiros momentos, do que
sejam EVAs, Anjos ou NERV. Ao longo da série, vamos descobrindo os mistérios,
acontecimentos e dúvidas da trama.
Para pilotar essas máquinas gigantes, são escolhidos pilotos humanos, adolescentes,
que por coincidência nasceram no mesmo ano do Segundo Impacto. A escolha é feita pelo
Comitê de Complementação Humana da NERV, cabendo-lhe a decisão de quem pode pilotar
cada uma das unidades EVA.
As unidades EVAs só podem ser pilotadas por adolescentes de 14 anos e que são
órfãos de mãe. A relação EVA-piloto é específica e única para cada um dos pilotos. É como se
cada EVA tivesse sido feita para aquele piloto. EVAS e pilotos representam os dois
personagens focados no recorte desta dissertação: o maquínico e o humano.
Os pilotos adolescentes são denominados de acordo com a ordem em que são
encontrados: primeira, segunda, terceira, quarta criança e assim por diante, apresentadas aqui
por ordem de convocação: Rei Ayanami, Asuka Langley Souryu, Shinji Ikari, nosso
protagonista e Touji Suzuhara.
A história começa quando Shinji Ikari é levado para conhecer a NERV. Lá encontra
seu pai Gendo Ikari, comandante da NERV e do projeto Adão, além do projeto de
Complementação Humana. Quando Shinji chega à NERV, descobre que na verdade seu pai
precisa dele para que ele controle a EVA-Unidade 01 e lute contra outro Anjo que está
atacando a cidade de Neo-Tokyo 3.
Shinji Ikari, o nosso protagonista, é o primeiro piloto a ser apresentado na série, mas é
a “terceira criança” a pilotar uma EVA, a unidade 01. Seu pai é o comandante da NERV,
Gendo Ikari, sendo que, sua mãe, Yui Ikari, foi uma das pesquisadoras-chefe do Projeto EVA.
Presenciou o desaparecimento da própria mãe em 2004, durante uma experiência com a
78
Unidade 01, mas era muito novo para lembrar-se do ocorrido. Foi abandonado pelo pai aos
cinco anos de idade, passando a morar com seu professor (sensei) até completar 14 anos
quando é chamado para pilotar a EVA-01 durante o ataque do 3º Anjo. Ao chegar a Neo-
Tokyo 3 passa a morar com sua superiora no comando de operações e tutora legal, Misato
Katsuragi. Shinji tem um caráter introvertido e sempre se preocupa com o que os outros
pensarão dele. Inseguro e complexado tem a tendência de se afastar das pessoas por temer
magoá-las ou ser magoado por elas. Sofre do chamado "Complexo do Porco-Espinho" (Taijin
Kyōfūshō), transtorno psicológico que faz com que seu comportamento seja paradoxal, ao
mesmo tempo ansiando pela proximidade das pessoas, e evitando essa mesma proximidade
com medo de se machucar ou, por sua vez machucar tais pessoas. Seus únicos amigos são o
Toji Suzuhara e Kensuke. Revolta-se ao descobrir que o pai era o comandante da NERV e que
o teria mandado buscar, pois lembra que foi abandonado quando criança.
Outra criança é Rei Ayanami. Ela é chamada de “primeira criança”, pois foi a primeira
a pilotar uma EVA, a unidade 00, e a segunda a ser apresentada na série. Rei é piloto de testes
e parece estar completamente integrada a sua missão. Fala pouco e não questiona diante de
uma ordem, mesmo quando a ordem põe em risco sua integridade física. É aparentemente sem
emoções, tão introvertida quanto Shinji. Rei na verdade é uma série de clones feitos a partir
do que sobrou de Yui Ikari, a mãe de Shinji, que foi absorvida por EVA-01 em um teste de
ativação da unidade. A atual Rei é a terceira clone. A primeira foi morta pela Dra. Naoko
Akagi, criadora do sistema MAGI que em seguida suicida-se. A segunda clone foi morta em
combate contra o 16º Anjo. Sua alma é a mesma, embora a personalidade seja diferente
devido as suas relações com o ambiente.
Asuka Langley Soryu é a “segunda criança” a pilotar um EVA, a unidade 02. É
apresentada somente no episódio 08. Nasceu nos Estados Unidos, mas possui descendência
alemã e japonesa. Apesar de seu grande intelecto é extremamente arrogante e hostil,
principalmente com Shinji, e sua história é tão trágica quanto à das outras crianças; foi criada
por tutores já que seu pai abandonou a ela e a sua mãe, que não suportando essa perda,
enforcou-se. Muito falante e questionadora não aceita ser colocada em segundo plano. Criada
na Alemanha e ao voltar ao Japão, demonstra “estranhar” os costumes orientais.
A “quarta criança” é Touji Suzuhara, piloto da EVA-unidade 04. No começo, Suzuhara
odeia Shinji e o culpa de ferir sua irmã durante a luta contra o 3º Anjo, mas depois se tornam
amigos. Na série, a unidade de Suzuhara é contaminada por um Anjo, momento em que o
capitão Gendou Ikari obriga Shinji a destruir esta unidade. Shinji se recusa, para não ferir o
79
amigo piloto, e seu pai isola os comandos da EVA-01, obrigando-o a assistir a destruição da unidade de Suzuhara. Parece que a função da “quarta criança” é desencadear a reação de Shinji contra as ordens de seu pai (Figura 35).
Figura 35 –Os pilotos adolescentes: Shinji Ikari (protagonista), Rei Ayanami, Asuka Soryu e Touji Suzuhara.
Em Neon Genesis Evangelion verifica-se que, nas batalhas entre EVAs e Anjos
supostamente estariam em jogo à continuidade da raça humana. O homem de Evangelion já se
assemelha a sabedoria divina, pois com o conhecimento tecnológico e a ciência necessária
para a sua existência consegue realizar clones, robôs gigantes orgânicos e construir uma
cidade fortaleza com toda a tecnologia para impedir a invasão dos Anjos. E por isso, o homem
tem que enfrentar um Deus furioso com seus Anjos para aniquilar uma humanidade que tenta
se igualar a ele (ZAMINELLI, 2011).
Na série, EVAs são capazes de neutralizar um Campo AT (AT Field – “Absolute
Terror Field” ou Campo de Terror Absoluto)38, uma barreira defensiva praticamente
impenetrável criada pelos Anjos e por EVAs. É justamente por possuírem esta capacidade que
as EVAs são as únicas capazes de derrotar os Anjos.
Mas, o que são EVAs? No primeiro aparecimento de EVA na série, logo no episódio
01, o autor de Neon Genesis Evangelion apresenta uma gigantesca figura, a EVA, que nos faz
pensar em uma máquina, um grande robô, com necessidade de um piloto e de energia para o
seu funcionamento. No episódio 02, ao rememorar a batalha com o Anjo, é mostrado uma
38 Campo de força produzido biologicamente por Anjos e EVAs. As armas convencionais não conseguem penetrar nesse campo. Na psicologia, significa o muro imaginário que os pacientes com ego elevado e autismo produzem.
80
EVA que reage sem comandos e sem necessidade de energia externa, mostrando uma
independência que não é característico de uma máquina (Figura 36).
Figura 36 – EVA 01, em pé, observando-se o cabo de energia que o conecta à NERV. No centro e àdireita EVA em posição de ataque.
Vamos percebendo que sua superfície funciona como uma armadura, para uma
criatura biológica que é mantida sob controle humano, e somos levados a entender que se trata
de um híbrido, que envolve a união entre orgânico e maquínico.
Aos poucos, vamos descobrindo que não é uma simples máquina. Esta criatura é um
ser biológico vivo, com máquinas cibernéticas e computadores conectados em seus corpos.
Suas funções surgem de uma interação entre o corpo orgânico e o corpo tecnológico. Estamos
então diante de um ciborgue.
Ao longo da série, também verificamos EVA apresentando uma ligação muito próxima
com o piloto, podendo ser observado nas sequencias em que EVA, ao sentir-se ameaçada,
reage da mesma forma que o piloto, dando a ideia de que existe uma sincronia e
complementariedade entre os dois. Ferimentos e dor ocorridos em EVA são percebidos pelo
piloto, como se vê na figura 37.
Dessa forma, a série apresenta essa figura sob dois pontos de vista: O primeiro, se
considerarmos apenas a junção entre orgânico e inorgânico, por si só EVA já apresenta
características próprias de um ciborgue técnico (Hayles, 1996) ou protético (Lemos, 2002). O
lado orgânico de EVA foi fruto de engenharia genética, produzido pelo projeto de
complementação humana, enquanto que a parte mecânica foi resultado de experiências da
engenharia mecatrônica.
Portanto, ao examinarmos as EVAs sozinhas, sem o piloto verificamos que esses seres
são ciborgues. Possuem DNA retirado de um Anjo, misturado com o DNA de um humano, e
81
uma estrutura mecânica. Aparentemente o corpo físico de EVA-01, pilotada por Shinji, foi
fabricado usando-se o DNA de Lilith. Por essa razão, a EVA-01 se transforma na única
substituta de Lilith como ferramenta para a Complementação Humana. Porém, EVA-01
apresenta a alma de Yui Ikari, a mãe do piloto. Yui participou integralmente do Projeto no
Laboratório de Evolução Artificial em Hakone, Japão. Ela serviu como teste para Contato
Experimental da Unidade 01 em 2004, mas desapareceu durante o teste. Shinji fica sabendo
depois que Yui teve suas memórias apagadas e que deu origem a Rei Ayanami, piloto da
Unidade 00 e que também serviu como parte da instrumentação da Unidade 01.
Figura 37 – Sequencia retirada do episódio 02 de Neon Genesis Evangelion – nesta sequencia a Unidade 01 reage em sincronia com o piloto mesmo sem ligação física entre os dois. Dor sentida pela EVA é sentida também pelo piloto.
As unidades EVA apresentam certos equipamentos que os evidenciam como ciborgue,
tais como, aparatos maquínicos localizados na estrutura do plug de entrada39 de onde vem a
energia que lhe confere a capacidade de movimento e que lhe permitem ser operadas por um
piloto humano (Figura 38).
EVA funciona por meio de conexões neurais que se estabelecem entre a máquina e
piloto. Essa ligaçao se dá através do líquido LCL onde o piloto é imerso no plug de entrada
(Figura 39). A conexão neural permite que o piloto transmita suas reaçoes e reflexos a EVA e
vice versa. Recebem autonomia de combate junto com o piloto por meio de um cabo de
energia que o liga eletricamente.
Enquanto os Anjos possuem um motor S² (S² Kikan) (motor Super Solenóide), que é
um órgão localizado no interior do núcleo de um Anjo que lhe confere uma fonte ilimitada de
energia, os Evangelions não nascem com motores S², sendo assim, normalmente, dependentes
de uma fonte externa de energia - energia essa que é fornecida através de um cabo de
39 Estrutura usada para “inserir” os pilotos adolescentes nas unidades EVA - os robôs Evangelion.
82
alimentação (cabo umbilical) ou bateria interna.
As imagens abaixo são representações das próteses presentes nas Unidades EVA.
Figura 38 – Detalhes de alguns equipamentos da Unidade EVA. Acima: Plug de entrada e Cabo de força. Abaixo: Travas de segurança que conecta EVA à NERV.
Figura 39 – O piloto é imerso no Plug de entrada ( círculo branco), onde ocorrem as conexões neurais entre EVA e piloto através do líquido LCL. Da esquerda para a direita: plug de entrada; Shinji no plug de entrada dentro da EVA; Shinji no plug de entrada imerso no líquido LCL
No decorrer da série, a função de cada prótese vai sendo revelada ao espectador, como
por exemplo, no episódio 10, quando Azuka entra na lava de um vulcão à procura de um anjo
e a integridade de EVA é garantida através das próteses. Em outros momentos, outras próteses,
como o plug de energia funcionam como limitador da EVA. A cada capítulo vamos
descobrindo, que a tecnologia aplicada a EVA tem a função de conferir-lhe poder, mas
também de controlar os seus instintos.
Na verdade, as unidades EVAs apresentadas desta forma, corresponderiam a corpos
83
pós-humanos que na visão de Stelarc representariam um corpo oco. De acordo com o autor, o
corpo tornou-se muito vulnerável, incapaz de acompanhar as máquinas que o próprio homem
criou. "A estratégia deveria ser a de tornar o corpo oco, endurecê-lo e desidratá-lo para fazê-
lo mais durável e menos vulnerável" (STERLARC, 1997, p. 56). Portanto, nessa condição, o
corpo transforma-se em mera ferramenta ou objeto. EVA seria apenas um reservatório para o
piloto.
No entanto, a série mostra também a figura de EVA, sob um segundo aspecto,
associada à figura do piloto.
Nesse momento, EVA aparece como “ampliador” das funções do piloto. Sob esse
ponto de vista, EVA funcionaria como um aparato tecnológico que amplia as potencialidades
de um ser humano. Isso, de acordo com Andy Clark, seria uma forma de distensão do corpo
do piloto e vice versa. De acordo com o autor, as máquinas e as novas tecnologias em contato
com o homem são incorporadas ao corpo como se sempre tivesse feito parte dele. Portanto, o
corpo não acaba no limite onde ele acaba (CLARK, 2011).
Percebe-se que EVA vai além de um simples revestimento de metal e uma arma bélica,
é um ciborgue humanoide que necessita de uma alma dentro de si para exercer seu papel.
Nesse aspecto, muito embora, EVAs se configurem como ciborgues, elas são incompletas. É
como se fossem um invólucro à espera de uma alma, de uma consciência, a espera do seu
piloto.
Por esse prisma, a associação entre EVA e piloto pode ser entendida através da noção
de mono, referido no capítulo anterior. EVA e piloto funcionam como se um estivesse
acoplado ao outro, como um corpo só.
Em vários momentos da série verificamos comportamentos que só se manifestam em
EVA se conectado ao Shinji, e vice versa. Mas, somente gradativamente, ao longo dos
episódios vamos percebendo que se trata de uma hibridação EVA-piloto.
Então, o que é EVA? Shinji faz a pergunta que nós espectadores também gostaríamos
de fazer.
No episódio 7, o piloto de EVA – 01, Shinji Ikari, também pensa sobre isso:
“ O que é a EVA?
O plug de entrada está emitindo um cheiro parecido com sangue,
mas me sinto tão confortável e relaxado aqui!
Por quê?
Agora estou pensando sobre isso: Eu não sei nada sobre EVA”.
84
Shinji permanece sentado dentro do plug de entrada, ligado eletricamente a EVA por
meio do cabo de eletricidade, uma referencia ao cordão umbilical que os bebês utilizam para
se nutrir no corpo da mãe (RED CROSS BOOK, 1997, p. 20). Posteriormente, o plug de
entrada será preenchido pelo LCL, liquido que se assemelha ao amniótico, em uma referencia
ao útero materno. Assim, a presença materna é representada por EVA – 01 que protege Shinji
tal como uma mãe resguarda seu filho. A explicação é que Yui Ikari foi absorvida por EVA
Unidade 01, tendo sua alma unida a alma de EVA, sendo por isso que esta EVA só aceita
Shinji dentro dela, rejeitando qualquer outra criança. Protegido dentro de EVA, o herói está
pronto para a batalha.
Em outro momento, estamos diante de uma EVA sem controle, mostrando o seu lado
animalesco e autônomo (Figura 40). Sempre que EVA se sente ameaçada o instinto de
sobrevivência sobressai e seu corpo reage em busca da liberdade. Essa reação aparece no
episódio 16, quando EVA dilacera e obtém o motor S2 do Anjo. Ao presenciar a cena, a Dra.
Ritsuko, demonstra dúvidas sobre a sua criação e a função da EVA de proteger a humanidade,
e diz:
“nunca vi a EVA tão assustadora assim [...]
Será que ela está do nosso lado?”
Figura 40 – A figura nos mostra o lado animalesco da EVA ao se libertar do Anjo. EVA dilacera e obtém o motor S2 do Anjo, o que poderá lhe conferir energia ilimitada.
65
“Meu Deus, que monstro nós copiamos?! (...) nunca vi o EVA tão assustador quanto hoje (...)
Será que ele está mesmo do nosso lado?”67
É a partir deste ponto da série, no final do episódio 16, que o espectador é
encaminhado para revelações acerca da figura do EVA. À medida que os fatos se desenrolam
fica mais claro para o espectador essa oposição entre o controle humano e o instinto animal do
EVA. Como podemos ver pela seqüência de frames a seguir, sempre que ocorrem falhas nos
aparatos maquínicos enquanto o EVA está sendo ameaçado o instinto de sobrevivência aflora
na criatura e seu corpo reage tornando-o senhor de si. Temos, de um lado, o controle, o
racional, imposto pelas próteses, e, do outro, o instinto animal que é suprimido por essas
próteses.
67 Fala da Dra. Ritsuko, no episódio 16, logo após presenciar o momento em que o Eva se liberta do 12° Anjo.
85
Outro momento, é quando EVA, no episódio 19, liberta-se de parte de sua armadura
(Figura 41). Estamos novamente diante de EVA sem controle, sendo explicado no episódio
que ela teria entrado em berserk40. Mesmo quando EVA entra em berserk, o piloto Shinji se
sente confortável.
No estado de berserk a NERV não consegue ter o controle de EVA. Dra. Ritsuko Akagi
fica horrorizada ao ver EVA Unidade 01 totalmente sem controle. Esse comportamento de
EVA poderia ser atribuido ao fato de que ela como mãe estaria protegendo seu filho. Esse
instinto é mostrado na série como sendo também, algo à procura de oportunidades para se
libertar. De acordo com Amatte Lopes (2006, p. 66), “é possível construir um paralelo entre
essa busca por libertação identificada em EVA e a busca por respostas presente, sobretudo, na
figura do piloto Shinji”. Pode significar um momento de revolta de Shinji que não quer ser
apenas um instrumento da NERV para erradicar os seres alienígenas. Isso reforça a
importancia da relação entre EVA e piloto na série, para a manifestação desses sentimentos.
Figura 41 – Momento em que EVA-Unidade 01 entra em berserk. Sem energia, assume o controle de si mesmo. Sequencia retirada do Episódio 19, onde EVA se liberta dos limitadores devorando o Anjo.
40 Berserk é identificado como o momento de fúria que atinge a unidades EVA, onde elas próprias assumem o controle de si.
86
As análises a partir de agora, passarão a ser em torno da relação humano e maquínico
onde as questões referentes a hibridação são apresentadas e os aspectos relacionados à
subjetividade das personagens ganham importância.
Desde os primeiros episódios da série, o espectador começa a conhecer as inquietações
de Shinji Ikari, o nosso protagonista. Ele se questiona sobre sua identidade e seu papel
enquanto piloto, bem como as razões que o levam a buscar reconhecimento através de EVA.
Shinji é uma pessoa muito insegura e submissa, e não entende o motivo pelo qual foi
designado para assumir o comando de EVA. Porém, se sente confortável e seguro ao pilotar a
EVA.
Aos poucos vamos conhecendo piloto e EVA e a importância da relação humano e
máquínico, como um corpo só, sugerindo a relação de hibridação.
A hibridação - a perda de definição de fronteiras entre EVA e piloto, pode ser
observada em várias sequencias da série, como já referidos nos episódios 01 e 02.
Também é observada no episódio 16, quando o piloto Shinji, dentro da unidade 01, é
mergulhado em um mundo paralelo de devaneios em torno de sua identidade.
Durante esse episódio o espectador é levado a acompanhar os devaneios de Shinji. Ele
continua dentro de EVA. É o momento em que ele vê seu corpo projetado na sua própria
imagem. O devaneio se projeta em um vagão de trem em movimento (Figura 42), que
segundo Amatte Lopes (2006, p. 76), “ pode ser interpretado como uma alusão ao constante
desejo de fuga que acomete o piloto da unidade 01”.
É o que se verifica quando Shinji é transportado à sua imagem aos cinco anos de idade
quando fugiu de seu pai (Figura 42). A personagem que responde aos questionamentos de
Shinji é a projeção da imagem dele com cinco anos de idade. A imagem de abandono pelo
pai, a necessidade de estar junto à mãe, o sentimento de solidão só são aflorados porque o
Shinji estava acoplado a EVA.
Nesse momento não há participação de outros personagens. Tudo o que vemos são os
devaneios do piloto.
Ainda no episódio 16, Shinji perde seu corpo físico dentro do plug de entrada após
conseguir uma sincronizaçao máxima com a unidade 01.
87
Figura 42 – À esquerda: Shinji é transportado à sua imagem aos cinco anos de idade. O espectador é levado a acompanhar os pensamentos de Shinji. Tudo ocorre em um vagão de trem. À direta: Imagem do abandono de Shinji pelo pai aos aos cinco anos de idade.
De acordo com a teoria exposta na trama, ele perdeu a “borda do ego” e agora está
perdido dentro da própria EVA. Enquanto as medidas vão sendo tomadas do lado de fora, pela
NERV, na tentativa de reverter esse processo, dentro da EVA, Shinji se confronta com seus
pensamentos e suas inquietações. Nesta sequencia, os devaneios de Shinji continuam, mas
evidenciam a importância que a aceitação por parte dos outros tem para ele, agora dando
ênfase aos múltiplos “Eus” que compõem um indivíduo e qual é a relação de Shinji com o seu
papel de piloto, como se observa na fala da personagem Shinji Ikari, retirado do episódio 16:
“Quem é?
Shinji Ikari…
Eu sou Shinji Ikari.
Eu sou você. Este “eu” está dentro de outro “eu”.
O “eu” sempre foi composto por dois “eus”.
Sim, o “eu” que é observado e o “eu” que se observa (…)
Estes diferentes Shinji Ikari formam o verdadeiro Shinji Ikari (…)
Seu medo é dos Shinji Ikari que existe na mente dos outros”.
No episódio 20, a série Neon Genesis Evangelion mostra ao espectador o valor que
Shinji atribui ao seu papel de piloto, e neste momento o confronto no vagão de trem ocorre
com Rei Ayanami.
Nesta seqüência é ela quem questiona:
88
Rei: “O que é solidão? O que é felicidade?
Por que os outros são gentis com você?”
Shinji: Porque eu sou um piloto da EVA.
Porque eu piloto a EVA eles me tratam bem.
Esta é a razão pela qual existo.
Isso é tudo que constitui minha razão de viver.
Então preciso pilotar a EVA (...)
Certo. Não posso perder.
É como me dizem, eu devo pilotar a EVA.
É como me dizem, eu devo ganhar! Do contrário (...).
(trecho extraído do episódio 20, parte integrante da seqüência “Forma da Mente.
Forma do homem”)
Embora, durante esses devaneios a figura de EVA pouco apareça, sendo
completamente ausente na sequencia em que EVA-unidade 01 confronta o 12oAnjo, pode-se
constatar que sem a presença de EVA essa inserçao ao “mundo interior” do Shinji não teria
sido desencadeado, reforçando assim, a importância da relação de hibridação entre a unidade
01 e o piloto.
Dentro de EVA, o piloto (Shinji) se confronta com seus pensamentos e suas inquietações. Essa perda de materialidade pode ser entendida como a representação da máxima hibridação entre as duas criaturas. É o momento onde o duo, o híbrido, volta momentaneamente a ser um só (AMATTE LOPES, 2005, p. 69).
Verificamos que, nas duas seqüências acima, Shinji trava um diálogo com seus “Eus”,
projetados diante dele, e com outras personagens que o afetam direta ou indiretamente.
Esses episódios mostram alguns momentos da série, onde são retradas as inquietações
das personagens, especialmente do nosso protagonista, em relação as próprias identidades.
Assim como os questionamentos de Shinji, o espectador também é envolvido por questões em
torno da pergunta “quem sou eu?”, “quem é o outro?” , “o que é um humano?”. Isso também
pode ser observado no monólogo da personagem de Ray Ayanami, no episódio 14.
89
“Da terra vermelha vem o humano, do chão
Nascido do homem e mulher é o humano ���
Cidade... Criação humana;
EVA... Criação humana ���
O que é um humano? Criação de Deus? ��� Criação Humana? ���
As coisas que tenho são minha vida e alma.
Sou um vaso para meu coração.
Entry plug: o trono para a alma ���
Quem é essa? Sou eu? ��� Quem sou eu? O quê sou eu? ���
O quê sou eu? ��� O quê sou eu? ��� O quê sou eu?
Eu sou eu mesma ���. Essa... Essa coisa, sou eu. ��� Essa coisa formada, sou eu. ���
Essa sou eu que pode ser vista ���. Ainda que eu sinta que não sou eu. ���
Muito estranho. Sinto como se meu corpo fosse dissolver.
Não consigo mais me ver…Minha figura está desaparecendo…
Sinto a presença de alguém que não sou eu.
Quem está aí, além de mim?
Ikari-kun (é o Shinji)41
Capitã Katsuragi , Dra Akagi , Colegas,
Piloto da unidade-02, Comandante Ikari
Quem é você? Quem é você? Quem é você? Quem é você?”
Rei Ayanami, é a piloto resultante de vários processos de clonagens, mas demonstra
sentimentos e questionamentos em relação à própria identidade, como se verifica no episódio
25, quando ela se confronta com os seus diversos clones (Figura 43).
“Quem sou eu? Sou Rei Ayanami.
Quem é você? Você também é Rei Ayanami?
Por que todas essas são eu?
Não sou falsa e nem uma imitação. Eu sou Rei Anayami
Você é um objeto, que pretende ser humana.
Não! Eu sou eu. Eu me tornei eu mesma com a instrumentalidade dos laços e
relacionamentos que existem entre eu e os outros.
Sou formada pela interação com os outros.
A interação com as pessoas e o tempo mudaram meu coração e minha mente [...]”.
41 grifo nosso
90
Figura 43 – Rei Anayami em seus devaneios em busca da identidade e humanidade. À direita, os diversos clones de Rei Anayami.
As reflexões acima são bons exemplos de como a série retrata as divagações e
pensamentos das personagens sobre a conduta da humanidade e as suas inquietações em
relação as suas próprias identidades e questionamentos psicológicos.
Aspectos psicológicos são apresentados, em relação à presença materna. Apesar da
raiva que Shinji nutre do pai, quando resolve aceitar ser o piloto daEVA – unidade 01, ele diz:
“É…, agora, esse robô está precisando de mim…” . Na verdade, quem precisa da EVA, ou da
mãe, é o piloto, que necessita de alguma coisa que contenha suas emoções.
Pode-se perceber que quando Shinji é transportado para um mundo paralelo, o pai e a
mãe estão presentes de maneira direta ou indireta, o que evidencia o conflito edipiano, uma
referencia da convergência da narrativa de Evangelion e o mito de Édipo Rei. O conflito se
manifesta no rancor que o filho nutriu pelo pai, que se convertem em ódio quando esse o
chama de covarde. É esse ódio que impulsiona o menino para a batalha. A presença paterna
está representada nos pensamentos: “Um robô criado por um pai que me abandonou... [...]
Meu pai nunca mais vai me chamar de covarde.” Nessas frases, Shinji externaliza seu
ressentimento e rancor em relação ao pai que o abandonou.
Mas esses dilemas vividos por Shinji refletem também os conflitos psicológicos atuais
vividos, principalmente, pelos adolescentes, em processo de maturação, quase sempre
baseados na necessidade de serem reconhecidos pela família e pela sociedade.
Em Neon Genesis Evangelion, encontramos um aparente abandono e solidão,
representado pela figura de Shinji que cedo tem de viver sozinho para se preparar para a vida,
estabelecendo uma luta entre pai e filho que é comum, por exemplo, na sociedade japonesa.
Principalmente se o pai é uma pessoa importante, um comandante que desempenha um cargo
91
superior na profissão. Isto representa uma forte pressão sobre Shinji, que vive um grande
conflito interior por não possuir a atenção de seus pais. No caso desta personagem, mesmo
distante do filho, Gendo IKari não deixa de cumprir sua função paterna, o que,
paradoxalmente, o transforma num modelo para o próprio filho: um homem que cumpre seu
papel social enfrentando e lutando muito para conseguir seu espaço na sociedade.
Acreditando ter sido abandonado pelo pai, Shinji é obrigado a enfrentar o mundo, a
virar adulto e para isto precisa aprender a lutar. A função paterna e social é demonstrar para o
filho que a sociedade é cruel e precisa ser enfrentada, numa visão maniqueísta do mundo, isto
é, da luta entre o bem o mal. Se ficar em casa protegido pela mãe não fará nada da sua vida,
tornando-se uma pessoa sem futuro. Por isso, ele deve ter muita garra e coragem, o que
acrescenta mais um desafio para Shinji — que é ausência da figura materna. Esta é a realidade
dos jovens na sociedade globalizada e que a série procura mostrar.
No livro Red Cross Book (1997, p.6), encontram-se referencias de que,
o grande tema de Evangelion é o “coração das pessoas” (a alma das pessoas). Isso também é uma das atrações da série que não pode ser encontrada em outros trabalhos que envolvem animês. A relação com os outros, o significado da própria existência, o que é “ser…Evangelion” …
Como se observa, todos os sentimentos do piloto Shinji são aflorados, mas ao mesmo
tempo contidos, quando na presença de EVA. O próprio Shinji sabe que sem a EVA ele é um
ser inútil e dispensável. Da mesma forma, EVA só consegue se libertar se acoplado à Shinji,
ressaltando a importância da ligação homem-máquina estabelecida entre as duas personagens.
Podemos interpretar, portanto, que sem a hibridação com a EVA a personagem de
Shinji Ikari não existiria enquanto indivíduo. Ele mesmo, em seus devaneios, considera que o
respeito e os amigos conseguidos são atribuídos à sua ligação a EVA, ou seja, Shinji Ikari sabe
que ele só “significa algo” se ligado a este ser biocibernético que lhe garante características
humanas e sobre-humanas.
Assim, o corpo passa a ter vida através de gestos e movimentos que aparentemente
vem de si, porém é regido pela sua sombra. É como acontece em kuruma ningyo quando o
animador assume a função de sombra do boneco, inseparáveis do corpo que se move como se
tivesse vida própria. Isto significa que “o corpo e o objeto estariam mutuamente conectados”
(SOUZA, 2005, p. 60).
92
Observa-se que o objeto maquínico toma corpo e torna-se uma estrutura personificada
quando associado ao corpo do piloto. São como imagens que vem de dentro e que se
misturam com as imagens que vem de fora. É como esclarece Greiner e Katz, em relação aos
processos de troca de informação entre o corpo e o ambiente, no qual “a presença de um,
anuncia a possibilidade da presença de outros” (GREINER e KATZ, 2001, p. 72).
Essa forma de ver o corpo híbrido nos remete ao modo como se percebe o corpo na
cultura japonesa, através do conceito de mono. Através dessa percepção, o corpo híbrido não
significa condição pós humana, mas sim uma condição humana.
E isso se reflete na própria relação do Japão com a robótica. Para os japoneses os
robôs também são humanos. No entendimento de Clark (2011), ele não são considerados
simples máquinas ou objetos, mas uma distensão do corpo.
De acordo com Amatte Lopes (2005, p. 81),
A série deixa claro que, para o próprio Shinji Ikari, ele só “significa algo” se ligado a este ser biocibernético que lhe garante características extra-humanas (força, armas, um campo A.T.) e características humanas, como, por exemplo, reconhecimento e respeito por parte dos outros.
Assim, a série Neon Genesis Evangelion, apresenta uma visão de corpo, onde, apesar
de EVA representar uma máquina, que poderia ser considerado um corpo oco, ela deixa de ser
um mero invólucro após a hibridação com o piloto. EVA representa o corpo hospedeiro, e o
piloto se coloca enquanto alma e enquanto mente. É como a representação mãe-filho. O corpo
volta a funcionar como um invólucro sagrado não havendo separação entre o mundo cognitivo
e o subjetivo. EVA e piloto agem integrados como mente e alma, como um só corpo. É
quando os sentimentos e as emoções do piloto e de EVA são aflorados, revelando o estado de
vida dentro do organismo.
Em relação a essa união de corpos Damásio, em seu livro Em busca de Espinosa
(2004), descreve que para o filósofo Espinosa, mente e corpo são manifestações de uma
substância única, apontando o organismo como dotado de tendência natural para sua própria
regulação.
Damásio explica que, para Espinosa, “a idéia de um objeto certamente não pode
ocorrer sem a existência de um corpo e sem a ocorrência de certas modificações nesse corpo,
modificações essas que foram causadas pelo objeto” (DAMÁSIO, 2004, p. 226). Nessas
afirmações Espinosa está especificando um conjunto de dependências funcionais e afirma
93
que, sem o corpo não há mente.
Conforme escreve Damásio, “precisamos descobrir de que modo as representações do
corpo se tornam subjetivas, de que modo se tornam parte do ser que as possui” (DAMÁSIO,
2000, p. 192). No livro O Mistério da Consciência (2000), o autor esclarece que uma mente
consciente é aquela que é informada simultaneamente das relações do seu próprio organismo
e dos objetos que rodeiam esse organismo.
E nessa perspectiva, Katz e Greiner, ensinam que o corpo híbrido é o resultado de
cruzamentos de corpos, informações e interações com o ambiente, e não um lugar onde as
informações são simplesmente armazenadas. Através da teoria Corpomídia, as autoras
apontam que: “As informações que são capturadas pelo nosso processo perceptivo, passam a fazer parte do corpo de uma maneira bem singular: são transformadas em corpo. O corpo não é um meio por onde as informações simplesmente passam, pois toda a informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é o resultado desses cruzamentos e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas” (KATZ e GREINER, 2005, p. 131).
Para Greiner, o corpo não pode ser considerado apenas um recipiente, mas sim um
processo de trocas com o ambiente, no qual “as informações passam a fazer parte do corpo de
maneira bastante singular: são transformadas em corpo”. As informações que chegam entram
em contato com as que já estão tornando o corpo resultado desse cruzamento (GREINER,
2005, p. 130).
No Japão, os objetos inanimados são revelados através da relação entre o sujeito e o
ambiente, vivenciadas como modos interativos que fazem com que a forma como os
japoneses relacionam-se com a natureza, com o espaço, com a sociedade, com os objetos, uns
com os outros, apontem para uma unificação, conforme indica Okano,
Uma idéia de unidade, uma indistinção de consciência de si e de outro, uma não consciência de si, uma negação da existência de um centro de referência. Desse modo, o sujeito e o objeto se fundem: o objeto não objeta, a alteridade se encontra ausente e a noção do sujeito se perde. É um conceito muito difícil de ser compreendido numa civilização ocidental em que o sujeito, sempre como centro do universo, antropocêntrico, decifra o mundo como alteridade e o objeto se encontra estável, sempre como uma entidade separada do sujeito. A dualidade sujeito-objeto é algo peculiar no pensamento ocidental (OKANO, 2002, p. 42)
94
A série Neon genesis Evangelion expõe a relação homem-máquina do ponto de vista
da cultura tradicional japonesa. Ao contrário da percepção ocidental que considera a relação
homem-máquina como uma condição pós-humana (SIBÍLIA, 2002; SANTAELLA, 2003), a
série mostra a existência de uma ligação física e mental dos pilotos com seus robôs. Seus
corpos se confundem e se complementam em busca de uma identidade e humanidade.
Homem e máquina se mesclam passando a fazer parte de uma única materialidade. Através da
série, percebemos que Shinji tem o seu valor reconhecido como piloto e como pessoa, quando
associado à máquina. O próprio Shinji entende que é completamente inútil e dispensável sem
a EVA quando ele mesmo diz: “Esta é a razão pelo qual existo”. Assim, de acordo com a série,
sem a hibridação com a EVA a personagem de Shinji Ikari não existiria enquanto indivíduo.
Isso se relaciona com o entendimento de mono presente na cultura tradicional japonesa.
A forma como Hideaki Anno aborda os ciborgues e clones na série, reflete a maneira
como os japoneses percebem a relação com a ciência e a tecnologia. Se observados através
do olhar ocidental, os ciborgues e clones, resultantes do projeto de complementação humana,
poderiam ser considerados pós-humanos; entretanto, de acordo com a cultura japonesa, trata-
se de condições humanas. Isso fica claro, quando em vários episódios da série, é revelada ao
espectador uma independência de EVA mostrando que não se trata de uma característica
maquínica, mas de um robô que se comporta como humano e apresenta emoções. As EVAs,
na verdade, não são robôs, elas não são apenas máquinas de guerra, elas são seres vivos que
servem de ferramenta para a luta contra outros seres vivos, os Anjos. Na série, os Anjos
começam também apenas como máquinas enviadas para exterminar os seres humanos, mas à
medida que o número de Anjos cresce, pode-se verificar que eles evoluíram como o ser
humano. Eles aprenderam, criaram novos métodos de tentar cumprir sua missão.
O mesmo se verifica com Rei Ayanami, a piloto resultante de vários processos de
clonagens. Na série, ela não representa um clone simplesmente, visto que, apresenta
sentimentos e inquietações similares aos humanos em relação à própria identidade.
Portanto, a tecnologia apresentada em Neon Genesis Evangelion se confunde com os
elementos humanos em busca de um “eu” formado não só pela visão que o indivíduo tem de
si, mas também pela visão que os “outros” tem dele. A própria série fornece elementos
capazes de levar o espectador a perceber e sentir que a interação homem-máquina é necessária
para a busca da humanidade e da identidade, como se fosse a imagem materializada no corpo.
Desta forma, conseguimos verificar através desta série, que na cultura japonesa, existe
um sentimento popular através do conceito de mono, de que os seres humanos e os objetos
95
são entidades, cada um com suas características, mas que devem se complementar para que
possam existir em conjunto e beneficiar um ao outro. Através desse conceito é possível
entender as questões de identidade e humanidade como um processo que é construído na
confluência com agentes culturais, míticos e religiosos, pelo meio e também por uma relação
homem-máquina.
96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da pesquisa apresentada, percebemos que, embora o objetivo do estudo fosse
identificar a relação homem-máquina através da série de animação japonesa Neon Genesis
Evangelion, fez-se necessário construir um contexto de discussão. A animação japonesa conta
com uma longa história. Conforme o exposto, as primeiras animações chegaram ao Japão por
volta de 1910, trazidas do ocidente graças ao cinema. Os desenhistas japoneses sentiram-se
motivados, iniciando a produção dos primeiros desenhos animados ainda naquela década.
Houve um sistema de convergência durante o processo de constituição das animações
que abarca discussões de linguagem e modos de vida do país. O Japão passou a conviver com
uma quantidade crescente de aparatos tecnológicos, tornando-se referência nos campos da
robótica e informática. É um dos países líder na produção de robôs, e a coexistência de
humanos e robôs sempre foi muito aceita naquela nação.
Apesar de o maior desenvolvimento tecnológico ter ocorrido depois da II Guerra
Mundial, observou-se que o Japão possui um histórico de relação com robôs desde o século
XII, a partir dos karakuri ningyo. Tal proximidade faz com que a tecnologia e seus novos
aparatos sejam abordados por várias linguagens no Japão, ou seja, as animações são apenas
uma faceta de um amplo panorama de experimentações.
Juntamente com a relação precoce do Japão com a robótica, uma característica
importante para a aceitação da tecnologia pelo povo japonês foi a presença da religião nativa
do Japão, o Xintoísmo, que mantém a crença de “espíritos vivos” em objetos inanimados. Os
japoneses contam com uma postura filosófica mais flexível, onde não há limites claros
estabelecidos entre o orgânico e o inorgânico, entre a arte e o entretenimento, e chegam a
admitir a convivência com diferentes formas de vida. Neste sentido, a aproximação entre arte,
religião e filosofia torna factível a aceitação de corpos híbridos.
A hipótese formulada pela presente dissertação é que o desenvolvimento dos corpos
híbridos sempre existiu na cultura japonesa e, ao contrário do que discutem vários autores
ocidentais, para os japoneses, não se trata de uma condição pós-humana. No decorrer da
pesquisa, tanto no que se refere aos estudos de uma história mais geral (do corpo, dos robôs e
da animação), como na análise específica da série de animação Neon Genesis Evangelion, a
especificidade dos entendimentos nipônicos foi se tornando cada vez mais evidente no sentido
de apoiar a hipótese proposta.
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Como desdobramento deste trabalho, pretendemos aprofundar no projeto de doutorado
algumas questões que não puderam ser discutidas e detalhadas no tempo desta dissertação.
Alguns dos principais problemas que surgiram durante o processo, sinalizam, por exemplo,
que:
1) A relação entre o corpo e a tecnologia não pode ser entendida a partir da lógica da
“extensão”, mas a partir da lógica da distensão, como propõe a teoria corpomídia de
Katz e Greiner, a partir da interlocução com as discussões do cientista Andy Clark.
2) Nas considerações de alguns neurocientistas ocidentais, como o próprio Clark, a noção
de pós-humanidade também não faz sentido, uma vez que o organismo humano está
sempre em evolução e a inclusão de próteses, bem como as relações entre corpos
animados e inanimados, não compromete a sua humanidade.
3) O tema “corpo-tecnologia” torna-se, portanto, um entre outros aspectos, que
fragilizam a dualidade entre Oriente e Ocidente. As zonas de contaminação parecem
cada vez maiores, dificultando a permanência das linhas abissais que separam essas
culturas.
4) Ao chegar ao Brasil, a cultura das animações japonesas e, de forma mais ampla, o
universo otaku, carrega consigo inquietações mais amplas que não se restringem
apenas a técnicas especificas de como criar um anime ou mangá. Talvez a importação
maciça de jogos, animes, mangás e comportamentos diversos (moda, cosplay, música
pop etc.) inaugurem novas possibilidades de dialogo entre Brasil e Japão,
reorganizando modos de vida e modos de pensar.
O projeto de doutorado ainda está sendo definido, mas certamente será mobilizado por
inquietações que surgiram nos últimos dois anos e pedem por uma continuidade.
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