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Acabou-se de imprimir pela editora Poexílio, em dezembro de 2014, em Brasília, Distrito Federal, o livro ANIMALIA, com dezessete poemas e um pósfacio de Carlos Felipe Moisés. Edição alternativa de 33 exemplares, confeccionados manualmente. Com duas tiragens asssinadas pelo autor. A primeira identificada de A a I, com 6 linoleogravuras assinadas pelo ilustrador, impressas sobre papel de arroz japonês, e mais 4 desenhos reproduzidos sobre papel Filipaper, 180 g/m², para o autor e editores. A segunda tiragem com 6 linolegravuras, impressas sobre papel reciclado 220 g/m², assimadas e numeradas de 1 a 24. Textos impressos sobre papel Marrakech, Linha Plus 180 g/m², na cor Mostarda. Capa executada em papel Filipaper, 180 g/m² na cor branca. Projeto gráfico e ilustrações de Zenilton Gayoso. Edição de Antonio Miranda e Zenilton Gayoso. Livro e gravuras protegidos por envelopes de papel livre de ácido, na cor banca. Obra em formato e-book com livre acesso no Portal de Poesia Ibero-americana
Citation preview
A N I M A L I A
CARLOS FELIPE MOISÉS
A N I M A L I A
17 poemas seguidos de um Posfácio
POEXÍLIO
S U M Á R I O
Galo 1
Tarântula 3
Escaravelho 5
Lagartixa 7
Ratazana 11
Peixe 13
Polvo 15
Um pássaro 17
Cão cego 19
Lobo 25
Cavalo de fogo 27
Boi para Guilhermino 29
Touro negro 31
Ápis 33
Unicórnio 35
Cavalo alado 37
Minotauro 39
Posfácio 41
GALO
A madrugada se aproxima
e traz consigo o manto frágil
da bruma. O galo acorda e canta,
absorto, alheio ao seu contágio.
Alheio não : desconfiado.
Os olhos fecha e abre a garganta.
É o grito alado de quem sabe :
a noite é curta, a vida é tanta.
Enquanto a manhã principia
e engole o último clarão
da lua, o galo entoa o seu
canto roufenho e raspa o chão.
E canta e raspa e escava aflito,
buscando ali, no chão deserto,
alguma sombra que por ele
enfrente a luz do dia incerto.
1
TARÂNTULA
para JOÃO MOURA JR.
Canta
e no cantar desfia
o seu segredo.
Prenhe de si
a voz
escorre severa
multiplicada em teia
soluços
gemidos.
Em cada nó
um coração perdido.
Indiferente
ela tece
azul
a cantar.
A voz são lágrimas
a teia é antiga
o canto nunca
há de cessar.
3
ESCARAVELHO
As patas são seis,
às vezes se encolhem no fim da tarde,
somem de vez em noites de luar.
Enquanto os cornos vibram,
minúsculos pulmões se inflamam.
É uma bola de fogo
imaculadamente
branca.
Em volta,
os párias apertam o cerco
em busca das placas multicoloridas
que se soltam da carcaça
ainda quente.
As patas são seis e escavam
aflitas.
Soluça até raiar o dia
e reinicia a escavação.
Não sabe onde esconder
o arco-íris
cravado
no dorso que nunca verá.
5
LAGARTIXA
para MARGARIDA
O peito é de vidro.
Os olhos, porcelana
delicada e astuta.
Da língua
escorre
o néctar sutil.
As patas são de estanho
mas sabem se mover
imóveis : mal flutuam.
O ventre é quase nada :
pura transparência
onde se escondem
o dorso e seus andaimes.
Não tem entranhas.
A pele
de tão fina
já não é :
limita
semovente
o nada de fora
e o quase nada
de dentro.
7
O peito é de vidro
mas às vezes se desmancha
em pétalas.
Dentro
pulsa um coração
que imobiliza
tudo em torno.
O rabo, sim,
é feito de algo
insuspeitado :
nuvem
algas
milhares de roldanas
e desejos
enrodilhados na engrenagem
que espaneja o chão
e foge
para o céu aberto.
RATAZANA
É ódio
ou brisa
o que lhe escorre
entre a baba
e as patas sutis
aquém e além
do focinho
enviesado?
Barata, perce-
vejo, aranha, noz
moscada, pólen :
os olhos miúdos
destilam
o puro gozo de roer
a própria alma
enquanto
o fino rabo se alteia
e foge
e aponta
para o teto esburacado.
11
PEIXE
para JOÃO LUIZ LAFETÁ
Manhã
percorre seus pagos
não vê senão anêmona
açafrão miosótis
onde só bolhas de ar
restos de nuvens.
Tarde
pastoreia o sol
e entrega à própria sorte
o líquido jardim.
Não sabe de onde vem
mas sabe que virá
o reino transparente
que lhe cabe.
Noite
cansado de tanger
rebanho insubmisso
repousa
e sonha que tem asas.
Nada lhe detém o voo.
A pele
coberta de espuma
rebrilha ao luar.
13
POLVO
Parece mover-se lentamente
mas gira em torno do eixo invisível
a velocidades espantosas.
Esculpe maravilhas na água
oito braços que cortam
blocos precisos.
Depois se cansa.
Expele o negro óleo do tédio
(cortina? biombo?)
e ao limbo devolve
as imagens sonhadas.
Segue girando
eternamente. 15
UM PÁSSARO
Voo sem pássaro dentro.
ADOLFO CASAIS MONTEIRO
Entre as sombras que vi
dorme um pássaro. Ver
é só um gesto apagado
em penumbra : medo
de espantar o voo apenas
entretido no sono do pássaro.
O voo, sim, adormece
no pássaro que se sonha
adormecido.
Entre as sombras que vejo
um pássaro desperta e parte
em busca do voo afugentado
para sempre perdido.
17
CÃO CEGO
...mas ainda tens o faro
o pelo macio
pronto
para a ternura do afago
& mais um ou dois
dos teus outrora
inumeráveis sentidos.
Ah, não chores não!
Tuas mortas pupilas
se resumem agora
a esse límpido espelho
onde me contemplo?
Então eu te empresto
meus olhos e pronto!
Seguimos vendo
os dois
o que já não vês
mas vês
melhor
do que eu.
Não vês? Ele continua
aí, estirado no mesmo
sofá onde te afagava (
a mochila jogada
ao lado da TV)
: não
sentes o calor da mão
sobre teu pelo macio?
19
Teu focinho frio sorria.
Tuas pupilas vazias
refletem agora um naco
do abismo que nos unia.
Eu sempre soube :
um cão
segue sem hesitar
o chefe da matilha.
Sempre achei
que me seguias
mas não
(agora sei)
: era ele o teu chefe
o teu o meu o
nosso guia.
Não vês?
Eu vejo e te digo :
ele aí está
o nosso menino
aninhado
no sofá azul
a sorrir
a guiar como sempre
a desgarrada matilha.
Ele pede que te acalmes
assim assim :
aconchega-te a mim.
Chora um pouco,
ele não se importa,
pode até fazer bem (
desde que saibas :
esquecer dói tanto
quanto lembrar). Então
fiquemos assim
: meus olhos perdidos
nos teus
a esperar
o dia em que te guiarei
tu me guiarás.
Que mais podes fazer
por mim?
LOBO
Calado
abraça a neblina
e cerra os olhos
como quem desmaia.
Púrpura, mágoa
sem remédio,
as patas enredadas
em silêncio e lama :
tudo em volta é solidão
doçura.
E ninguém sabe
de onde vem
nem como
o uivo alucinado
que lhe sai da boca
e rasga a noite
como um coração
que arde.
25
CAVALO DE FOGO
São quatro cavalos de fogo
são quatro cavalos a fustigar
a face do horizonte próximo.
São quatro cavalos em fúria
são quatro cavalos perdidos
no espaço que brota de suas narinas
e fende a manhã como foles imensos.
Os olhos são lagos de lava
são quatro cavalos de fogo.
Um dorso de bronze cresce
e um pássaro ruflando as asas
nasce de suas crinas.
São quatro cavalos alados
: fornalhas do dia que explode
e rompe os tambores da terra
ao ritmo do mar em fúria.
São quatro cavalos de fogo
esculpidos no espaço que abriram.
São quatro cavalos retidos
no instante em que o sol
se derrama de suas narinas
e cobre o mundo visível
: auréola negra.
27
BOI PARA GUILHERMINO
O boi de março e sua baba.
GUILHERMINO CÉSAR
O boi sabe da baba que escorre, sabe
da vida inútil que erra e em si não cabe.
O boi sabe pisar a terra como quem flutua
entre o remorso alheio e a campa nua.
O boi sabe do peso do seu casco errante
e do lago perdido num olhar distante.
O boi sabe, amoroso, raspar o chão
e ruminar na mesma palha sonho e coração.
O boi sabe esperar paciente o que não vem
e mesmo que viesse já viria sem.
O boi sabe, afinal, que a baba escorre
e fica e em volta o dia (como tudo) morre.
Mais não sabe o boi nem saber precisa.
Já lhe basta a afagar o dorso a mansa brisa.
29
TOURO NEGRO
Dia e noite arrasta
no sopé da montanha
o cortejo de astros
que pendem
do seu dorso abandonado.
Uma vez por ano
as mandíbulas se agigantam
e da garganta inflamada
irrompe
a lava que tinge de rubro
o firmamento sonhado.
Entre o magma ancestral
e a pedra refeita
seus olhos rutilam.
Ao reabrir o cortejo
ergue-se nas patas traseiras
para avistar
ao longe
a flor azul que brota
todo ano
no topo da montanha.
31
ÁPIS
O sangue escorre sobre
o jovem touro negro.
No dorso, uma águia,
sob a língua, um escarabeu.
No coração em chamas
o nome bem amado de Mnévis.
33
UNICÓRNIO
De ordinário manso
mas imprevisível.
Alimenta-se de moscas,
folhas tenras, lembranças.
Desperta com o dia
e soletra um a um
os nomes bem amados.
A memória
um prodígio : espessa
como a aspa solitária
com que raspa as trevas
e afugenta a escuridão.
Nada teme
salvo um dia acordar
depois da aurora.
(Quem
lhe cobrirá de sonho
o morto coração?)
35
CAVALO ALADO
Foi como ervas e arrancaram-no.
Hoje pasta absorto em campo sombrio
(perdido voo, exílio nefasto) e
lambe cicatrizes de ferida nenhuma.
Às vezes relincha, reclina
o dorso à procura de um rasto,
resto de fome clandestina,
mas não rasteja : ergue a fronte
e sopra dardos de fogo no horizonte.
O pouco do nada que lhe coube
é muito. O peito chora sem lágrimas
enquanto a cauda e a mansa crina
ondulam (brisa leve, pranto
alheio), rolando nas dunas
e nas ervas que foi, entre urzes.
Arrancaram-no mal raiou a madrugada.
Hoje pasta absorto entre sombras,
alimenta-se da noite e sabe
que eterno dura. Mais nada.
37
MINOTAURO
Abrasado em sonho, uma vez foi rei
de um reino sem refúgio nem fronteira.
Reinou além do seu país e sua grei
enquanto ruminava a hora derradeira.
Seu coração de lava incendiou
a memória de dálias e jacintos
e o segredo que o vento lhe negou
se converteu em treva e labirinto.
Estrelas e nuvens teve a seus pés
(o sonho azul de toda criatura)
e tudo recusou. Um trono fez
do nada em que abrigou sua loucura.
Hoje devora gafanhotos e o mel
destila do seu flanco sem idade.
Reino em ruínas, seu manto é o céu
onde pasta serena majestade.
39
P O S F Á C I O
1. A ficção precisa fazer sentido
Minha relação com os animais nunca foi além do trivial.
Nascido e criado no meio do asfalto, em São Paulo, mas num tempo
em que a cidade ainda estava a meio caminho entre o rural e o
urbano, lembro-me do homem das cabras oferecendo o leite morno,
ordenhado na hora, que fez a alegria de muitas manhãs da minha
infância; lembro-me de um ou outro amigo com o seu peixinho de
estimação, o seu papagaio ou o seu canário; às vezes passavam por
ali uns cavalos, umas mulas, uns gatos ariscos, umas galinhas
assustadas, umas pombas desgarradas. E tive meus cachorros, todos
vira-latas recolhidos da rua; tive até uma tartaruga, hostilizada com
vigor pelo canino do momento. Os bichos me entretinham e me
divertiam, eu os achava sempre curiosos e os tratava com carinho,
mas nunca me apeguei em especial a nenhum deles. Os esporádicos
passeios ao zoológico da Água Funda, ao Parque da Água Branca
ou ao aquário da Ponta da Praia, em Santos, onde até baleias havia,
nunca me atraíram, a não ser pelo passeio em si.
Do final da adolescência em diante, nunca mais tive
animais em casa, até que minha filha, criança, quase duas décadas
atrás, insistiu em que queria ter um cachorro – que
surpreendentemente nos acompanha até hoje. Perdido o faro,
perdidos quase todos os instintos, a amorável cadela se arrasta um
pouco pela sala ou pelo quintal, mas o que faz mesmo, con gusto, é
dormir placidamente, dia e noite. É o “Cão cego”, do poema assim
chamado, o mais recente do meu pequeno zoo.
Mas, literariamente, a história outra. Ao me deparar com a
folha em branco, não sempre, mas eventualmente, este ou aquele
bicho assoma à lembrança, ou é forjado a partir do nada, para me
atrair de modo tão intenso quanto inexplicável. E então é como se o
animal escolhido ao acaso (gostaria que todos pudessem ter sido
41
recolhidos da rua, como os cães da infância) fizesse parte
inalienável do meu cotidiano e de todas as dimensões possíveis da
minha vida, a vida toda.
De onde proveio o impulso que tive, um dia, de grafar no
topo da página a palavra “Polvo” e escrever o poema respectivo?
Polvo? Bicho mais improvável! É só uma palavra. Bem, devo ter
visto algum, no aquário da infância ou em alguma gravura, e não
precisei mais do que isso. Mas poderia dizer o mesmo da lagartixa,
do lobo, do boi... Já do cavalo alado ou do unicórnio, nem isso. A
exceção é o cão cego: este eu sei onde está e de onde vem.
Explicação não tenho. Esses bichos não fazem parte da
minha vida, embora ocupem um espaço considerável na ficção dos
meus poemas. À realidade isso não faz falta, mas a ficção, como se
sabe, precisa fazer sentido. Explicar de onde vêm esses bichos que
se metamorfoseiam em poemas, definitivamente, não sei. Mas até
saberia interpretar (são só palavras, não é mesmo?). Começaria
assim: a diferença entre o homem e o bicho é que este não é
obrigado a fingir que é racional. O homem é um animal racional?
Basta prestar atenção a qualquer bicho para perceber que não,
apenas finge ser. Saber até saberia, mas prefiro deixar a
interpretação para um ou outro amigo isento, que se incumbiu de
fazê-lo, como veremos adiante.
O que eu sou, ou o que nunca serei mas gostaria de ser,
esses bichos dizem por mim, naqueles momentos em que o pudor
me impede de tentar dizê-lo, mais uma vez, por conta própria. É
tudo uma questão de estar ou não estar distraído.
2. No mundo non me sei parelha
Na nossa tradição entranhadamente lírica, o poeta é
condenado a viver trancafiado nas quatro paredes do próprio ego, a
repetir ad nauseam o único verbo que lhe é dado conjugar, para
valer: eu sou. Pode parecer pouco mas na verdade é muito: tarefa de
Sísifo. O ego é uma caverna escura e sem fundo, que o poeta lírico,
espeleólogo do vazio, explora com indisfarçável júbilo, insciente de
que, quanto mais insista, mais longe estará do que tanto almeja: o
predicativo adequado à forma verbal de sua predileção.
Eu sou o quê? Já no limiar da nossa Era, Fernando Pessoa
atinou com a única resposta possível: Não sou nada, nunca serei
nada, não posso querer ser nada.
No entanto insistimos, vimos insistindo há séculos. Por
isso, ensimesmar-se deixou de ser, há muito, desculpa ou artifício,
vindo a ganhar status de segunda natureza: para o poeta lírico,
trancado no oco da caverna, a autocontemplação é tão natural como
respirar, embora a partir do século XVIII, ou a partir da grande
rebelião romântica, os ares por ali sejam cada vez menos
respiráveis.
“No mundo non me sei parelha”: não sei de ninguém, no
mundo, que se assemelhe a mim... Não é o que afirma o Pai de
todos os poetas líricos da língua, esse inefável Paio Soares de
Taveiros? Ah, se tivéssemos o depoimento de dona Maria Pais
Ribeiro, a Ribeirinha, a dedicada “mia senhor branca e vermelha”,
que teve de ouvir calada a jactância do mais velho dos trovadores:
Saiba Vossa Senhoria que a mim ninguém se iguala! Que preciosos
comentários ela faria!
Mas, sabemos bem: solilóquio de ego aprisionado em si
mesmo, o lirismo não dispensa a plateia, embora não lhe conceda a
menor chance de se manifestar. Haverá grande mal nisso?
Aparentemente, não. Assim tem sido, desde sempre, e assim
continua. Gonzaga não diz à sua doce Marília: “Eu tenho um
coração maior que o mundo”? O mesmo Pessoa do ceticismo
radical não assevera: “Eu vejo que não tenho par nisso tudo neste
mundo”? (O cenário, como se vê, nunca é a casa, um canto
qualquer do quintal ou da rua: é sempre a largueza imensurável do
“mundo”.) Mas se afirmá-lo não é difícil, prová-lo é praticamente
impossível – dando-se de barato que a Ribeirinha, a Marília Bela ou
a Musa definitiva do engenheiro naval Álvaro de Campos – essa
que consola, que não existe e por isso consola – estivessem todas de
fato interessadas nas provas de que o seu poeta é o sujeito único,
inigualável, que ele diz ser.
Para isso temos a caverna sem fundo, de onde brota o
manancial inesgotável da forma verbal eu sou, multiplicada ao
infinito. Se todos soubessem que a única resposta possível é mesmo
não sou nada, teríamos só um fiozinho d’água rala e não o
caudaloso rio da ensimesmada tradição lírica. Afinal, há perguntas
que têm resposta certa e infalível, já outras não – como esta, “Quem
sou eu?”, do poeta sem parelha. Perguntar pode ser ainda mais
interessante caso não se saiba que não há resposta. O que vale é
estar a caminho e não chegar aonde quer que seja. A tradição
garante que o lirismo autocentrado é o tao da arte literária.
Autocentrado? Bem, aí já começamos a resvalar para outra
esfera, não propriamente estético-literária, mas, digamo-lo com
simplicidade, a da cortesia e da civilidade. O ensimesmamento
lírico não raro anda de braço dado com vaidade, autocomiseração,
carência afetiva, chantagem emocional, narcisismo, egolatria,
megalomania; a convicção, em suma, de que toda gente – não só a
Ribeirinha, a Marília Bela e a Musa consolatrix – está deveras
interessada nas miudezas que brotam do oco da caverna. Escorado
nessa ilusão, o poeta se julga no direito de impor a quem quer que
seja a presença do seu ego inflado, como se para além dele nada
mais houvesse de interessante no mundo. Viagem sem fim e sem
retorno?
Parece que não. Há saídas, sempre houve. Nada obriga o
poeta a viver mergulhado em si mesmo. Será preciso lembrar que
voltar-se para fora, pelo menos uma vez ou outra, não é nada
difícil? Nem é necessário criar personagens e dar voz a cada uma
delas, como fazem os poetas dramáticos, ou como fez o dos
heterônimos, com seu drama em gente. Basta falar das coisas,
qualquer coisa, aí fora, que tenha existência em si, independente da
existência (ou não) do poeta desparelhado. Se alguma dúvida restar,
é só repetir com Rimbaud: Je est un autre. E o leitor que trate de
entender que, além de dizer eu sou, o poeta também pode dizer eu é
– frase, aliás, gramaticalmente correta. É só perceber que eu é uma
terceira pessoa, não é só a pessoa que fala mas também a pessoa de
quem se fala. O duplo do mesmo.
3. Poesia e teatro
Querer encontrar por trás do polvo, ou de qualquer outro
motivo literário, o fato, o acidente ou a vivência biográfica que lhe
teria dado origem, e que o “explicaria” como causa eficiente, é
perpetuar um equívoco, é tomar como natural e “verdadeiro” um
artifício historicamente datado: o formalismo clássico, gestado e
consolidado pela mente idealista dos homens da Renascença.
Paul Veyne, o grande historiador da cultura, assevera (em
seu L’élegie érotique romaine: l’amour, la poésie et l’occident):
desde Petrarca todos nós, leitores de poesia, nos habituamos a
divisar, no recesso de toda obra poética, a voz particular de um ego
que expõe publicamente suas dores e alegrias pessoais, datadas e
situadas. A partir daí, ao contrário do que ocorria na Antiguidade,
quando era aceita como forma de encenação, a poesia lírica passa a
ser encarada sob a égide do “realismo”, como confidência íntima.
Camões, nosso petrarquista exemplar, colabora para endossar e
reforçar o hábito, alertando-nos: “Sabei, pois, que segundo o amor
tiverdes / Tereis o entendimento dos meus versos”. Desde então, o
primado da voz particular e da subjetividade, que irmana sujeito-
poeta e sujeito-leitor, tem sido encarado como verdade
inquestionável, segunda natureza, indissociável do lirismo. E poesia
passa por ser isso mesmo: entrelaçamento de subjetividades,
sensíveis e permeáveis, propiciado pela franqueza com que o poeta
nos expõe sua subjetividade modelar.
Tal franqueza faculta a todos, dos primeiros leitores de
Petrarca aos leitores dos poetas nossos contemporâneos, o acesso a
esse entrelaçamento, que nos mantém na firme convicção de que
estamos fortemente ancorados na realidade (a mesma dos poetas,
pois não?), quando talvez estejamos apenas a alimentar a fantasia
de que assim seja, ludibriados ou pelo engenho e a arte dos poetas,
ou pela força da inércia. Ou pelo prazer em se iludir.
Hoje sabemos (a malícia pós-moderna nos põe a salvo
dessa ilusão, embora não nos torne imunes a outras) que nem em
Petrarca nem em Camões nem em nenhum dos nossos grandes
poetas, antigos e modernos, o ego que nos fala em seus versos
“retrata” a subjetividade ou a vida privada do cidadão responsável
por esses mesmos versos. Hoje preferimos falar em “eu lírico”, para
contrapô-lo à conjectura de um “eu empírico”, e já não exigimos do
poeta a “sinceridade” que dele se esperava, desde os tempos de
Petrarca.
A razão é, afinal, elementar. A partir do cogito cartesiano,
pouco a pouco fomos ganhando consciência de que esse ego, no
qual ser e existir almejam sustentar-se, não é senão construto men-
tal, algo que só aparece para o mundo na emergência da fala, fieira
de palavras, simulacro de realidade. A linguagem humana não tem
como dizer o mundo. Schopenhauer não hesitou: “O mundo é a
minha representação do mundo”, e certa pós-modernidade nos
convencerá de que tudo são relatos, tudo são discursos – ficções
que variam ao infinito, supostamente no encalço de uma subjacente
verdade singular (a verdade do eu ou a verdade do mundo), à qual
não temos acesso.
Ao proferir “eu”, Petrarca, Camões ou qualquer poeta já
não tem mais como dizer com sinceridade o que lhe vai pela vida
íntima. Adorno (Dialética negativa) chama a atenção para o fato de
que “quanto mais soberanamente o eu se eleva sobre o ente, tanto
mais ele se transforma sub-repticiamente em objeto e revoga
ironicamente seu papel constitutivo. Sem a alteridade, o
conhecimento se degeneraria em tautologia; o conhecido seria o
próprio conhecimento” O que daí provém será sempre simulação,
representação figurada, encenação, teatro – tal como o fora entre os
antigos e, ao que parece, nunca deixou de ser.
“Um poeta, desde que seja de fato poeta”, assinala o
mesmo Paul Veyne, “nunca é sincero. Sua alma é mobiliada com
certo número de sentimentos, assim como a dos outros homens;
além disso, nessa mobília há também um espelho, que reflete o
resto do mobiliário. Nós só pensamos no mobiliário, esquecendo
que o espelho é um móvel a mais; a alma que contém esse móvel de
Narciso ou de exibicionista não é igual a outra que tivesse o mesmo
mobiliário, mas não tivesse o espelho. Além do quê, esse espelho
fabrica aquilo que se presume que reflete.”
A grande rebelião romântica (refiro-me ao romantismo
primordial, de Blake, Novalis, Goethe, Schiller e outros, e não à
liquefação a que Musset, Lamartine e seguidores o reduziram) fez o
resto. A entronização do individualismo e o coroamento do sujeito
como senhor absoluto dos Céus e da Terra, condenaram esse mes-
mo sujeito a amargar, a partir daí, a crise insolúvel da identidade
perdida. Com a grande revolução romântica, o homem moderno
perdeu o que nunca teve: a possibilidade de dizer eu sou, e
completar a frase sem hesitar e sem enrubescer. Apogeu e
decadência, como em tudo o mais, se confundem.
Uma das saídas, como eu dizia, antes que esse largo
desvio me afastasse (um pouco) da meta prevista, é falar das coisas
em redor: a aspirina, o catar feijão, a bailadora andaluza, o futebol
– como o fez, em sua lição esplêndida, João Cabral de Melo Neto.
Mas o poeta pernambucano jamais pretendeu iludir-se, ou a seus
leitores. Por isso não teve pejo de esclarecer, à exaustão, a quem
não soubesse ler, o que sempre saltou aos olhos dos mais atentos:
falar das coisas é uma forma enviesada de falar de si. Nada a ver
com o objetivismo ou o descritivismo de barrocos e parnasianos,
enrodilhados nas filigranas do lampadário de cristal ou de uma
estatueta qualquer – forma pela forma. E já que entramos nessa
seara – a da lição cabralina – não custa reforçar a ideia. Anti-
subjetivo? Anti-sentimental? Só para quem não saiba ler. Na nossa
tradição lírica, há poucos poetas tão personalistas, tão emotivos e
tão comprometidos com os sentimentos como João Cabral. O fato
de ele ter sabido disfarçá-lo com mão de mestre (o poeta não é um
fingidor?) só depõe contra os maus leitores.
Falar das coisas... Falar de bichos, por exemplo. Uma vez
ou outra (muito menos do que gostaria), tenho tido a satisfação de
pelo menos tentar.
4. Os bichos
O “Polvo”, um dos primeiros que veio a ter lugar neste pequeno
zoo, foi assim interpretado por meu querido e saudoso amigo José
Paulo Paes:
Mesmo quando se volta para temas exteriores, o
autor de Subsolo continua a nos falar de si, não fosse
a sua uma expressão entranhadamente lírica.
Quando, por exemplo, ele se põe a descrever um
polvo com seus oito braços a esculpir “maravilhas na
água”, a objetividade da descrição não demora a
assumir um viés subjetivo a partir do instante em
que, cansado do seu balê aquático, o polvo “expele o
negro óleo do tédio / (cortina? biombo?) / e ao limbo
devolve / as imagens sonhadas”. Como não ver aqui
um alter-ego, propositalmente grotesco, do poeta
entediado de dar uma fugaz vida fictícia, no
imaginário da arte, a sonhos até então confinados ao
subsolo ou ao limbo do invivido? (Folha de São
Paulo, 1989)
Já a “Lagartixa”, essa cuja “pele de tão fina já não é: limita
semovente o nada de fora e o quase nada de dentro”, foi dos meus
animais o que mais chamou a atenção de Álvaro Cardoso Gomes –
como José Paulo Paes, outro poeta e crítico, e amigo de longa data:
O poema nasce dessa articulação entre um “fora”, a
fina pele, e um “dentro”, o ventre, que é “pura
transparência”. A lagartixa, animal rastejante, é
anatomicamente retalhada pelo poeta. Seu bisturi
caótico revela-nos, aparentemente sem método, as
partes constitutivas do todo: peito, olhos, língua,
patas, ventre, entranhas, pele, coração e rabo, cada
uma delas remetendo a uma imagem: vidro,
porcelana, néctar, estanho, transparência, andaime,
pétalas, nuvem, alga. Em suma, o poeta, a partir da
lagartixa, instaura inusitados nexos entre os reinos
mineral, animal e vegetal, fundindo isto e aquilo e
eliminando a alteridade, a separação entre as coisas.
Na verdade, realiza uma anti-anatomia: o
retalhamento do animal é ilusório: ao invés de
reduzi-lo a partes sem um todo, aponta o caminho
para um absoluto de relatividades ou para o “céu
aberto”, virtualidade da imaginação, superando nossa
condição nadificante e condenada à dor, ao
desalento. (Revista de Crítica Literaria
Latinoamericana, 2000)
Eu não teria nada a acrescentar. O polvo e a lagartixa aí
estão, por inteiro. Em relação aos outros animais (gostaria que
fossem todos tomados como de estimação) eu só saberia, quando
muito, repetir o que José Paulo Paes e Álvaro Cardoso Gomes já
assinalaram.
Se tentasse forjar as minhas interpretações (resistir quem
há-de?), não iria além de umas breves notas, simploriamente
explicativas, como as que seguem.
Galo – que bicho folgado esse, à espera de que
alguém realize por ele o que só a ele interessaria
realizar! Tarântula – canta sem cessar (embora
tarântula não cante nem teça) exatamente porque não
há segredo algum a ser revelado. Escaravelho –
melhor para ele não poder ver o dito arco-íris.
Ratazana – nem ódio nem brisa: são apenas os
buracos da alma que, não se sabe como, foram
banidos para o teto. Peixe – até que seria interessante
um peixe voador ou um pássaro anfíbio, mas nada
disso é real. Um pássaro – ver, dormir e voar: ou
acontece de uma vez, e acabou, ou passa-se o resto
da vida a esperar que aconteça. Cão cego – Millor
Fernandes já o definiu: o pior cego é o que quer ver.
Lobo – homo lupus homini? Cavalo de fogo – parece
uma fotografia, instantâneo mal enquadrado, meio
fora de foco.
Boi para Guilhermino – o velho poeta Guilhermino
gostava desse boi; a mansa brisa até hoje nos
consola. Touro negro – que mais se poderia dizer
desse patético animal apaixonado por uma flor azul?
Ápis – o touro que não chegou a Ápis, destino!
Pessoa dixit. Unicórnio – quem lhe cobrirá de sonho
o morto coração? Cavalo alado – soprar dardos de
fogo no horizonte deve ser muito bom; as asas
servem para disfarçar. Minotauro – é um touro
humanizado ou um homem que, por fim, se
animalizou?
E aí está. Mais não digo, pois mais não tenho que dizer.
Salvo um derradeiro comentário, à guiza de remate, instigado por
esse homem-touro ou touro-homem – bicho dúbio, aliás. Começa a
me parecer um pouco fora do lugar.
Os animais me atraem pelo que têm de humano: a
plenitude do ser que cada um é, sem precisar expressá-lo. A
humanal criatura, não. O homem não é o que de fato é; só chega a
ser o que for capaz de traduzir em palavras. Por isso, esta Animalia
passa ao largo da ilusão do “Salve as baleias!” ou “Salve o mico-
dourado!”, e não tem a mais remota afinidade com a fantasia dos
que amam de paixão a todos os animais, indistintamente,
dedicando-lhes o afeto, a atenção e o respeito que sonegam aos seus
irmãos humanos.
Os animais me interessam apenas na medida em que me
ajudam a preservar, em mim e em todos nós, o pouco de
humanidade que nos restou.
São Paulo: 22/05/2013
C.F.M.
Acabou-se de imprimir pela editora Poexílio, em dezembro de 2014, em Brasília, Distrito Federal, o livro ANIMALIA, com dezessete poemas e um pósfacio de Carlos Felipe Moisés. Edição alternativa de 33 exemplares, confeccionados manualmente. Com duas tiragens asssinadas pelo autor. A primeira identificada de A a I, com 6 linoleogravuras assinadas pelo ilustrador, impressas sobre papel de arroz japonês, e mais 4 desenhos reproduzidos sobre papel Filipaper, 180 g/m², para o autor e editores. A segunda tiragem com 6 linolegravuras, impressas sobre papel reciclado 220 g/m², assimadas e numeradas de 1 a 24. Textos impressos sobre papel Marrakech, Linha Plus 180 g/m², na cor Mostarda. Capa executada em papel Filipaper, 180 g/m² na cor branca. Projeto gráfico e ilustrações de Zenilton Gayoso. Edição de Antonio Miranda e Zenilton Gayoso. Livro e gravuras protegidos por envelopes de papel livre de ácido, na cor banca. Obra em formato e-book com livre acesso no Portal de Poesia Ibero-americana <www.antoniomiranda.com.br>
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