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Análise político-estratégica do ataque terrorista a Charlie Hebdo na França Domingo 11 de Enero de 2015 22:33   Tradução: Graça Salgueiro    Além do esperado desdobramento midiático, o demencial ataque terrorista de um grupo jihadista contra os funcionários da revista de humor político    Charlie Hebdo em Paris, convida os dirigentes políticos e os estrategistas de segurança nacional nos países ocidentais a revisar as atuais relações políticas, econômicas, culturais e diplomáticas com o enigmático submundo muçulmano, porque depois dos ataques terroristas do 11 de setembro nos Estados Unidos, 11 de março na Espanha e 7 de julho em Londres, o salafismo mudou o mundo do século do século XXI para sempre. E apesar do sucedido daí em adiante, o problema ainda se vê como um assunto policial sem a importância estratégica de segurança nacional que lhe corresponde.   O ponto de inflexão desta vez foi a reiterada publicação de caricaturas humorísticas acerca da concepção político-religiosa e filosófica do profeta Maomé. De imediato, o entorno jornalístico reagiu com justificada ira pela demencial ação islâmica contra os jornalistas e caricaturistas, porém muito poucos analistas se detiveram para averiguar por que isto ocorreu? De onde surgiu a idéia? Foi um fato isolado? Há outros objetivos? Procede da Al-Qaeda ou do Estado Islâmico (ISIS)? É uma resposta violenta a séculos de espoliação dos europeus às comunidades árabes? Estamos às portas do choque de civilizações estabelecido por Huntington? E mil dúvidas mais.   A guisa de análise político-estratégica, abordaremos estas interrogações e trataremos de responder um a um:    1. Por que isto ocorreu? Há várias razões. Uma e a mais elementar é que a revista Charlie Hebdo especializada em humor político estava na mira dos jihadistas, e inclusive já havia sido alvo de um atentado terrorista três anos atrás. Outros argumentos com igual fundo, indicam que no mundo islâmico há incubado um ódio insepulto contra a Europa e, no caso da França, pelos séculos de espoliação e colonialismo sobre a Argélia e Tunis. E mais recentemente sobre a Síria e o Líbano, e outras regiões onde há muçulmanos. A isto soma-se o espúrio tratado secreto Sykes-Picot de 1916 que repartiu a seu bel prazer amplas regiões do Oriente Médio, re-desenhou fronteiras e afetou muitos interesses geo-políticos de comunidades locais.     Para rematar, quando a ambição ocidental visualizou os efeitos da Primavera Árabe para se apropriar da riqueza líbia, o presidente francês Nicolás Sarkozy, que de passagem queria ocultar uma obscura contribuição de 50 milhões de dólares à sua campanha provenientes do regime de Khadaf, pressionou e encabeçou os bombardeios que destruíram a Líbia e hoje a têm a beira de ser um Estado falido, amedrontado por milicianos sunitas, tribos regionais e ânsias separatistas por todo lado.    Quando se produziu o golpe militar em Mali, a França acudiu pressurosa com tropas para “restituir” a “democracia”, mas claro, com o interesse de se apropriar das riquezas malinenses e erradicar o salafismo jihadista que instalaram em uma república independente ao norte de Mali, os Tuareg, os mercenários de Khadaf que ficaram sem trabalho, o ramo local da 1 / 4

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Análise político-estratégica do ataque terrorista a Charlie Hebdo na FrançaDomingo 11 de Enero de 2015 22:33

    Tradução: Graça Salgueiro      Além do esperado desdobramento midiático, o demencialataque terrorista de um grupo jihadista contra os funcionários da revista de humor político     Charlie Hebdo em Paris, convida os dirigentes políticos e os estrategistas de segurançanacional nos países ocidentais a revisar as atuais relações políticas, econômicas, culturais ediplomáticas com o enigmático submundo muçulmano, porque depois dos ataques terroristasdo 11 de setembro nos Estados Unidos, 11 de março na Espanha e 7 de julho em Londres, osalafismo mudou o mundo do século do século XXI para sempre. E apesar do sucedido daí emadiante, o problema ainda se vê como um assunto policial sem a importância estratégica desegurança nacional que lhe corresponde.     O ponto deinflexão desta vez foi a reiterada publicação de caricaturas humorísticas acerca da concepçãopolítico-religiosa e filosófica do profeta Maomé. De imediato, o entorno jornalístico reagiu comjustificada ira pela demencial ação islâmica contra os jornalistas e caricaturistas, porém muitopoucos analistas se detiveram para averiguar por que isto ocorreu? De onde surgiu a idéia? Foium fato isolado? Há outros objetivos? Procede da Al-Qaeda ou do Estado Islâmico (ISIS)? Éuma resposta violenta a séculos de espoliação dos europeus às comunidades árabes?Estamos às portas do choque de civilizações estabelecido por Huntington? E mil dúvidas mais.     A guisa de análise político-estratégica, abordaremos estas interrogações e trataremos deresponder um a um:       1. Por que isto ocorreu? Há várias razões. Uma e a mais elementar é que a revista CharlieHebdo especializada em humor político estava na mira dos jihadistas, e inclusive já havia sidoalvo de um atentado terrorista três anos atrás. Outros argumentos com igual fundo, indicamque no mundo islâmico há incubado um ódio insepulto contra a Europa e, no caso da França,pelos séculos de espoliação e colonialismo sobre a Argélia e Tunis. E mais recentemente sobrea Síria e o Líbano, e outras regiões onde há muçulmanos. A isto soma-se o espúrio tratadosecreto Sykes-Picot de 1916 que repartiu a seu bel prazer amplas regiões do Oriente Médio,re-desenhou fronteiras e afetou muitos interesses geo-políticos de comunidades locais.        Para rematar, quando a ambição ocidental visualizou os efeitos da Primavera Árabe para seapropriar da riqueza líbia, o presidente francês Nicolás Sarkozy, que de passagem queriaocultar uma obscura contribuição de 50 milhões de dólares à sua campanha provenientes doregime de Khadaf, pressionou e encabeçou os bombardeios que destruíram a Líbia e hoje atêm a beira de ser um Estado falido, amedrontado por milicianos sunitas, tribos regionais eânsias separatistas por todo lado.      Quando se produziu o golpe militar em Mali, a França acudiu pressurosa com tropas para“restituir” a “democracia”, mas claro, com o interesse de se apropriar das riquezas malinensese erradicar o salafismo jihadista que instalaram em uma república independente ao norte deMali, os Tuareg, os mercenários de Khadaf que ficaram sem trabalho, o ramo local da

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Al-Qaeda e jihadistas internacionais que viajaram da Europa, Estados Unidos, China eAustrália à zona para apoiar as guerras conexas à Primavera Árabe.       E como se faltasse outro elemento para complicar este xadrez de ressentimentos políticose geo-políticos, o estouro da Primavera Árabe induziu milhares de jihadistas internacionais aviajar para a Síria, Egito, Tunis e Líbia, para se unir ao ISIS, à Al-Qaeda e às milícias sunitas,extremistas financiados em parte por xeques do Golfo Pérsico que não as querem ver em seusreinos e emirados, porém que as estimulam desde crianças com o wahabismo ou salafismo depredicação, que assim se diga o contrário, induz a alguns deles a dar o passo para o salafismoqutbista da guerra santa. É um limite fino, que os sunitas ultra-conservadores pérsicos nãoquerem reconhecer, mas que com dupla moral apóiam.       Nesse ambiente há sobradas razões para atacar os infiéis cristãos franceses, causadoresdesde a óptica da Umma sunita (califado único de adoração a Alá e aos ensinamentos deMaomé) de graves lesões contra a integridade islâmica extremista, portanto, a jihad contraqualquer objetivo ocidental é uma obrigação moral, principalmente neste caso em que os“infiéis” estavam profanando a sagrada semelhança do profeta.      2. De onde surgiu a idéia? Embora ainda nenhum grupo tenha se atribuído publicamente aautoria do ato macabro, e os serviços de inteligência dos Estados Unidos assegurem que estesterroristas foram treinados pela Al-Qaeda no Yemen, é evidente que a idéia e a ordem domassacre saiu das mesquitas onde uns poucos, mas muito incisivos imanesultra-conservadores sunitas, aproveitam a liberdade de expressão e de movimento que lhespermitem os países ocidentais, para alienar filhos de imigrantes muçulmanos chegados aoprimeiro mundo para sobreviver das desgraças de pobreza, miséria, violência e opressão emseus povos de origem. Enviam-nos de regresso a seus países para treinar e aí cresce a cadeiado terror, quase impossível de controlar.      Para tal, os imanes utilizam algumas razões históricas válidas atadas ao fundamentalismoreligioso. Assim, convencem os futuros terroristas de que os ocidentais são causadores demuitas dessas desgraças então, a solução é a jihad, ou guerra santa contra infiéis, até que oislam seja universal, ao custo que seja, justificado neste caso pela posição satírica da revistaparisiense contra os credos islâmicos extremistas.      3. Foi um fato isolado? Não. A Al-Qaeda, ISIS e os jihadistas que pululam no Oriente Médioe no norte da África, ou que crescem exponencialmente no Ocidente, estão convencidos deque há um inimigo infiel poderoso, ao qual deve-se destruir mediante atos de terrorismo, vistospor eles como martírio.       4. Há mais objetivos? O que foi dito antes indica que há mais objetivos similares nos países

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ocidentais, com a circunstância agravante de que milhares de jihadistas vão à Síria,Afeganistão, Paquistão, Líbia, Mali, Tunis, Sudão, etc., treinam, participam de ações terroristasou em combates de guerrilhas, se aperfeiçoam na guerra e voltam a seus países de origempara formar mais e tecnicamente melhor jihadistas, com a vista posta em destruir o Ocidenteao preço que for.      5. O mundo está às portas de um choque de civilizações? No futuro imediato ainda não,mas se continuar o incremento de ações terroristas contra civis ocidentais, com as dificuldadeslegais e físicas que os governos e os serviços de segurança experimentam para combater ascélulas terroristas islâmicas, a óbvia reação de fundamentalistas cristãos e islamofóbicos que jáapareceram nos Estados Unidos, Europa e Austrália, se multiplicará pelo mundo comconseqüências imprevisíveis.      Em conclusão, o sangrento ataque jihadista contra a revista francesa Charlie Hebdo é partede uma cadeia de ações e, por desgraça, prováveis ataques em outros lugares do mundo têmprofundas raízes em ressentimentos de velha data contra os países ocidentais, desta vez porumas caricaturas ofensivas a seus olhos contra o profeta, porém sempre haverá umajustificação social, histórica, geo-política ou econômica para fazê-lo porque na mentalidadeultra-conservadora do salafismo jihadista, a única versão válida da vida humana é a dossunitas ortodoxos, que concebem a violência como o meio para alcançar seus fins.      Os serviços de inteligência ocidentais devem pôr maior ênfase na investigação acerca dasatividades e planos dos imanes extremistas nas mesquitas e o desmascaramento de jihadistasincrustados nas comunidades imigrantes muçulmanas assentadas nos países ocidentais. Osmuçulmanos que são líderes cívicos e religiosos dessas comunidades devem apoiardecididamente o esforço ocidental para combater o terrorismo e punir penalmente os salafistasincrustados. E os governos islâmicos moderados que governam o Oriente Médio, devemcombater o terrorismo sem trégua, não só com repressão mas com abertura mental para outrasconcepções religiosas atenuadas pelo bom senso, sem cair no perigoso extremismo.      Do contrário, serão cada vez mais e permanentes as ações terroristas perpetradas porjihadistas dispostos a morrer em nome de Alá, do Corão, da suna, do Cadiz e do ódio insepultocontra os poderes ocidentais que no passado espoliaram seu solo, levaram idéias contrárias aoextremismo muçulmano e os minimizaram como cultura.      Obviamente, esta e qualquer ação terrorista merece repúdio total e exige puniçõesexemplarizantes, porém um fenômeno terrorista nascido e incubado em raízes históricas,culturais, religiosas e de ódios insepultos não se soluciona com solidariedade, nem commanifestações de rechaço, pois entre outras coisas aos terroristas, sejam comunistas ouislâmicos, não lhes importam as críticas nem as manifestações populares de rechaço. Suamente está enfocada em causar o impacto publicitário e golpear o adversário, o mais perto

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Análise político-estratégica do ataque terrorista a Charlie Hebdo na FrançaDomingo 11 de Enero de 2015 22:33

possível de seu coração político-estratégico.       Então, a solução é muito mais complexa do que a ação policial ou militar no campo debatalha, ou na previsão de inteligência. Exige inteligência, ponderação, análise e ações atadasa objetivos político-estratégicos. Eis aí o desafio.   * Coronel Luis Alberto Villamarín Pulido Analista de assuntos estratégicos -  www.luisvillamarin.com   

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