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A presente aproximação à temática “ética e literatura” destina-se a deliberar sobre o impacto da ética, no seu sentido católico-doutri- nário, no momento crucial do desenvolvimento da prosa narrativa lusófona, que representa o Barroco literário. O problema em relação à obra escolhida, o Compêndio narrativo do peregrino da América (doravante denominado Compêndio) de Nuno Marques Pereira, não consta de não haver nela elementos éticos, porque tem, literalmente, centenas de páginas de diálogos de ordem filosófico-moral. Não se trata, pois, neste caso, de identificar as qualidades éticas duma obra literária. O problema será o de identificar e reconhecer as qualidades literárias duma obra filosófica-dou- trinal. Há na literatura portuguesa de Quinhentos e de Seiscentos uma forte tradição lírica, épica e pastoril. Mantem-se vigorosa a novela de cavalaria, encontram-se também exemplos da picaresca e da novela exemplar, de ins- piração cervantesca (cf. Sletsjøe 2000). Face à diversidade e à riqueza da literatura contemporânea espanhola, a prosa narrativa do Barroco portu- guês (ainda é difícil falar de uma literatura brasileira) caracteriza-se antes de tudo pela sua força artística limitada e pelo seu número limitado. O mate- rial a ser apresentado aqui faz parte de um estudo mais extenso intitulado ANNE SLETSJØE Universidad de Oslo

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Apresente aproximação à temática “ética e literatura” destina-se adeliberar sobre o impacto da ética, no seu sentido católico-doutri-nário, no momento crucial do desenvolvimento da prosa narrativa

lusófona, que representa o Barroco literário. O problema em relação à obraescolhida, o Compêndio narrativo do peregrino da América (doravantedenominado Compêndio) de Nuno Marques Pereira, não consta de nãohaver nela elementos éticos, porque tem, literalmente, centenas de páginasde diálogos de ordem filosófico-moral. Não se trata, pois, neste caso, deidentificar as qualidades éticas duma obra literária. O problema será o deidentificar e reconhecer as qualidades literárias duma obra filosófica-dou-trinal.

Há na literatura portuguesa de Quinhentos e de Seiscentos uma fortetradição lírica, épica e pastoril. Mantem-se vigorosa a novela de cavalaria,encontram-se também exemplos da picaresca e da novela exemplar, de ins-piração cervantesca (cf. Sletsjøe 2000). Face à diversidade e à riqueza daliteratura contemporânea espanhola, a prosa narrativa do Barroco portu-guês (ainda é difícil falar de uma literatura brasileira) caracteriza-se antes detudo pela sua força artística limitada e pelo seu número limitado. O mate-rial a ser apresentado aqui faz parte de um estudo mais extenso intitulado

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ANNE SLETSJØEUniversidad de Oslo

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Variantes do alegórico na literatura barroca lusófona, e que, por sua vez,entra num projecto sobre a chamada “prosa ética” do Barroco português.

Os outros textos a serem estudados nesse projecto são, entre os maispertinentes, o Predestinado Peregrino e seu Irmão Precito (1685) de PadreAlexandre de Gusmão, A Preciosa. Allegoria Moral (1731) de Sóror Mariado Céu1 e o anónimo Obras do Fradinho da Mão Furada, obra atribuída, aolongo da história literária dos últimos três séculos, a vários autores eclesiás-ticos seiscentistas mais a um dramaturgo judeu, que foi queimado publica-mente em 1739 (cf. Sletsjøe 1997). São todas obras hoje em dia poucoestudadas e quase ignoradas, de acordo, aliás, com a prosa de ficção daépoca na sua totalidade. A nossa intenção ao abordar a problemática indi-cada no título do estudo referido, é focar o elemento alegórico da prosanarrativa barroca de língua portuguesa, atribuindo, por agora, maiorimportância à obra de Nuno Marques Pereira. A apresentação actual nãopode entrar na descrição, e na discussão, da complexidade alegórica destaobra em si,2 embora represente ela, em nosso entender – e aí discordamosde muitos outros – um factor decisivo e subtil do texto de Marques Pereira:Na prosa moralista da época, de que é o Compêndio de Nuno MarquesPereira um representante de primeira ordem, a presença do alegórico temum papel fundamental, na medida em que representa um elo de ligaçãoentre doutrina e estética.3

A ambição literária

Sabemos muito pouco sobre a vida do autor Nuno Marques Pereira. A suaobra encontra-se, a saber, classificada entre os textos da chamada “litera-tura jesuítica” da história literária brasileira. As informações de que dispo-mos são tanto incertas como divergentes.4 O facto de todos os autores quefazem parte do nosso corpo de estudo da prosa ética lusa, serem religiosos(freiras, frades, padres ou antigos seminaristas) não é acidental; a culturaintelectual do fim do século XVII e, até, a do começo do século seguinte,continuava a ser exclusivamente eclesiástica. Era também uma cultura“atrasada”, em relação às correntes culturais de outros paises europeus,como a Itália, a Espanha e a França. Neste quadro, a cultura lusa ocidental,a da colônia americana, representou, devido sobretudo à distância geográ-fica, “um atraso de segundo grau”. É neste quadro que se coloca o nosso

202 ANNE SLETSJØE

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Compêndio, escrito no Brasil, editado em Lisboa, por um autor que, doponto de vista cultural e social, fez parte tanto do reino como da colónia.Escreve Wilson Martins sobre a situação cultural lusa da época: “Mas, épreciso aceitar a idéia de que o século XVII mental ainda não estava encer-rado nos meados do século XVIII para compreender que a terceira ediçãodo Peregrino da América, aparecido em 1725 e reimpresso três anos maistarde, pudesse surgir em 1752 [...].” (Martins 1978:361) E quanto à datade edição da obra, avisa que “é, apesar da data, um livro do século XVII”.(Op.cit.:209)

Dentro do grupo de textos mencionados, tanto a intenção autoral aorecorrer ao modo alegórico como o funcionamento alegórico em si podemvariar de obra para obra; umas são alegorias completas e outras, como é ocaso do Compêndio, introduzem a dimensão alegórica só de vez em quandono decorrer da história relatada. Têm, no entanto, características comunsno plano da acção. Entre elas, a mais importante é a de representaremtodas a luta entre o Bem e o Mal tanto no plano universal, no individual dodia a dia terrestre, como no plano íntimo, o da consciência. No Compêndiode Nuno Marques Pereira o protagonista, o Peregrino da América, entra,nas suas andanças brasileiras, de vez em quando numa paisagem alegóricapara depois sair dela, o que é também o caso do protagonista-soldado dasObras do Fradinho da Mão Furada. Estas paisagens alegóricas distinguem--se do mundo “real” – o que, no caso do Compêndio, é a descrição da vidabrasileira da época – por criarem uma realidade tanto física como mental àparte, o que acontece, sobretudo, na segunda parte da obra. Nesta últimaparte, impressa só em 1939,5 o impacto do alegórico é muito maior, o que,na nossa opinião, mostra a progressiva ambição artística de Nuno MarquesPereira em se tornando autor duma obra de ficção.

Ao começar o seu estudo sobre um outro autor dedicado ao pensa-mento ético, o inglês William Langland – um autor que, como NunoMarques Pereira, combinava o desejo de narrar com o de ensinar e desper-tar os seus leitores para estes, no fim, se salvarem – B. J. Harwood tem estasreflexões:

When William Langland begins to write the poem we know as PiersPlowman, does he think of himself as beginning a process of discovery?Or does he think of himself as acting primarily on a moral duty to saywhat he knows? Does he begin with what he considers an adequate ideaof contemporary corruption, notwithstanding a possible doubt about hisauthority to denounce it? Or does he represent in his poem the desire for

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a change in himself? (Britton J. Harwood: Piers Plowman and the Pro-blem of Belief, pg. 3)

As perguntas referidas podem ser válidas também no caso de Nuno Mar-ques Pereira no momento em que, pena na mão, aborda a sua longa pere-grinação literária e confissional por terras brasileiras e por escritos de ori-gem variada. Faz isso seguindo, de longe, a trilha literária do clérigo inglêstrecentista embora, provavelmente, o conhecesse só por via de sucessoresintermediários nacionais e estrangeiros. Como Piers Plowman e, maistarde, a obra seiscentista inglesa de John Bunyan, Pilgrim´s Progress, eainda a obra seiscentista portuguesa, o já mencionado Predestinado Pere-grino e seu Irmão Precito do Padre Alexandre de Gusmão, o Compêndio éuma obra didáctica. É-o sob todos os aspectos, não obstante os exercíciosde humilitas repetidos dos avisos aos leitores, das dedicatórias à Virgem, eproferidas até, como que compulsoriamente, pela maioria das figuras quenela vão falar. É uma obra didáctica cujo autor também se esforça, se bemque mal sucedido, segundo a opinião da maioria dos críticos literários, devários modos, como veremos adiante, por lhe conferir as qualidades artís-ticas duma obra de ficção.6 A crítica literária, e sobretudo a brasileira dasúltimas duas gerações, tem estimado pouco a obra de Nuno MarquesPereira; importa-lhe, ao que parece, negar à obra qualquer posição signifi-cativa no cânon nacional, focando tão-somente o seu carácter formal anti-quado.7 Enquanto obra didáctica recorre, claro está, à doutrinação católicatridentina; enquanto obra de ficsão recorre, como as outras obras mencio-nadas, sobretudo à alegoria medieval, adaptando esta ao seu projectonarrativo de Setecentos:

[...] por isso vos ofereço este meu Peregrino, para que [...] o ampareis comvossos patrocínio [sic.]: pois só em vós confio, como tão grande interces-sora e medianeira para com vosso filho, o meu Senhor Jesus Cristo, quesendo para seu santo serviço, e bem das almas, o deixe correr, e andarperegrinando na estampa como coisa vossa, que vos dedico, e ofereço. (Dadedicação à Senhora da Vitória, assinada pelo autor, I:22)8

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Uma psicomaquia ficcionalizada

As obras referidas representam variações literárias dum topos predilecto doBarroco, o da peregrinação da alma no mundo, tratado, com mais oumenos intensidade dramática, como psicomaquia. A tal luta da alma – epela alma – transformou-se, nas obras referidas, em narrativas alegóricas ousemi-alegóricas decorridas dentro de paisagens diferentes. Como tais, sãoexemplos da alegoria moral e didáctica, pois têm o intuito de ensinar edivertir, ou seja a dupla intenção didáctica e recreativa.9 A intencionali-dade recreativa do Compêndio de Marques Pereira não é percebido comfacilidade por um leitor moderno, pois é, na sua totalidade, uma obra lite-rária de carácter ficcional limitado. A intenção recreativa do autor é, noentanto, indiscutível, e vai de mãos dadas com o intento didáctico da com-posição alegórica. Explica-a o autor desta maneira ao “discreto e pio leitor”no prólogo à primeira parte:

E se repares no estilo, por ser em parte parabólico, tenho exemplo de mui-tos Autores espirituais, que usaram desta frase, e gênero de escrever: e omesmo. Cristo Senhor nosso tratando sólida doutrina com os homens,para melhor os persuadir, o praticou, e ainda hoje, com maior razão nostempos presentes, para convencer ao gosto dos tediosos de lerem, e ouviremler os livros espirituais, são necessários todos estes acepipes, e vindas. E senão, vede o que se estila, e pratica nos banquetes de agora, oferecendo-senas mesas aos convidados no primeiro prato várias saladas, para maisagrado e gosto do paladar. Isto, que sucede nos banquetes do corpo, vosquis praticar neste banquete da alma.(I:25-6)10

Dá-se mais ênfase ainda ao elemento recreativo no prólogo do segundotomo, onde se gaba Marques Pereira da excelente recepção que teve o pri-meiro tomo e diz: “Por supores, com razão, que foi todo o meu desígnioescrever matéria útil, estilo claro, idéia deleitável.” A seguir faz referência aoutros autores que influenciaram a obra, entre eles Alexandre de Gusmão eAntónio Vieira. Também menciona Cervantes, como exemplo de autoresprofanos “que usaram de muitas humanidades, e moralidades, debaixo dasquais mostraram doutrina muito importante ao bom regime, e governopolítico”. (II:34)

Enquanto estruturas narrativas as obras portuguesas já mencionadas sãomais ou menos complexas, embora a narrativa linear veiculada por um

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narrador heterodiegético seja a forma mais corrente – salvo na obra deNuno Marques Pereira. Vamos, portanto, primeiro focar a estrutura narra-tiva da obra, começando por examinar mais de perto o narrador Peregrino– as suas intenções, as suas qualidades e o seu projecto comunicador.

A estrutura narrativa

Já na introdução do Compêndio, o Peregrino é apresentado como narradorem primeira pessoa e a sua localização geográfica é descrita detalhada-mente. A narrativa começa retrospectivamente em frente da igreja Mãe deDeus em Salvador da Bahia, onde ele encontra pela primeira vez o Anciãoque se tornará o seu interlocutor e “guia espiritual”:

[...] avistei um venerável ancião, que dirigia seus passos para o mesmolugar, onde eu estava. Vinha ele vestido à cortesã, barba crescida, e muitobranca; cabelos próprios até os ombros; com um báculo na mão; e no altodele um relógio do Sol, e outro de horas, que em um cordel o prendia, elhe servia de prumo, quando dele usava. (I:35-6)

Apresenta-se então o narrador: “Eu, senhor, (lhe respondi) sou peregrino,e trato de minha salvação.” (I:36). “A utilização da palavra peregrinoparece assumir apenas o sentido prático de deslocação no espaço, indi-cando o acto de viajar de um lado para outro.” As palavras são as de SaraManuela Augusto, autora duma tese de mestrado de 1995, até agora oúnico estudo científico encontrado sobre a obra de Nuno Marques Pereira(Augusto 1995:14-15). A constatação faz parte da discussão em que entraa autora sobre a naturalidade muito discutida do autor Nuno MarquesPereira. Cita-se o seguinte trecho do texto, tirado da página 188 dosegundo tomo da edição de 1939: “Appellido-me por Peregrino da Amé-rica, porque tenho tomado por empresa andar nesta peregrinação para ver,e observar, e escrever o que tem succedido, e succede neste Estado do Bra-sil, para dar a saber aos mais, que de presente existem, e ficar por lem-brança para os que de futuro vierem.”

A obra tem, obviamente, uma perspectiva didáctica dupla – a de descre-ver o status quo do Brasil de então do ponto de vista geográfico-económico,social, cultural e moral, e a de descrever para ensinar o melhor caminho a

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andar para a salvação. A nosso ver, este último aspecto não só domina otexto do ponto de vista “quantitativo”, como é, sem a mínima dúvida, aperspectiva primária do narrador. Recorramos, por isso, à auto-introduçãoacima citada, que faz o Peregrino em frente do Ancião na segunda páginado tomo I. As palavras proferidas (“Eu, senhor, sou peregrino e trato daminha salvação”) resumem também a temática da obra, seja qual for asituação narrativa ou dramática. O Ancião responde-lhe: “Sabei que é estemundo estrada de peregrinos, e não lugar, nem habitação de moradores;porque a verdadeira pátria é o céu [...].” (I:37) Esta lição será constante-mente repetida e variada ao longo da obra, proferida não somente peloancião, mas também por numerosas outras figuras de carácter diferenteque também servem de guias espirituais e instrutores religiosos ao Pere-grino e aos seus companheiros ocasionais.

A conversa que se segue sobre assuntos teológicos e morais culmina comum convite da parte do Ancião para que o Peregrino lhe conte a sua histó-ria: “Resta agora que me deis notícia de vossa peregrinação.” Isso leva oPeregrino a abordar também a sua própria capacidade de jovem narrador:

Tão obrigado, e satisfeito (lhe disse) me considero, que por dívida tenhonão faltar ao que me pedis: e mais ainda, quando vos vejo tão douto,como ensinado do tempo, e com tão largas experiências, que estas se nãopodem adquirir, senão depois de muitos anos. Por cuja razão levo seguroabonador à minha narração, ainda que me reconheço pouco verboso; emenos elegante no estilo. (I:42)

A narração retrospectiva do Peregrino começa (embora isso de facto acon-teça só a partir do capítulo V) com o relato da sua ida às Minas do Ouro –o “centro do vício” da colónia – e continua, sempre na forma de diálogo,abrindo o Ancião frequentemente um capítulo novo com uma perguntaligada àquilo que foi narrado no capítulo anterior. Há capítulos, contudo,onde a presença do Ancião mal ou não se nota, e onde o diálogo se refere a,ou é travado com, outros agentes, como “o morador” e “o sacristão”,havendo assim histórias intercaladas onde entram outros personagens. Umbom exemplo disso são os episódios exemplificantes e até dramáticos dosdez mandamentos (que representam a crítica aos moradores e aos governa-dores da colónia). Esta é a situação narrativa corrente até ao capítuloXXVIII – o último do primeiro tomo. Termina o capítulo com o prolon-gado aviso espiritual da parte do Ancião, aviso que serve de recapitulaçãodas lições e dos capítulos prévios.

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Nos casos conhecidos e relatados em “segunda mão”, na forma de diá-logo dentro do diálogo, o Peregrino cede a palavra a narradores temporá-rios e torna-se, de passagem, um narrador homodiegético. A presença des-tas histórias intercaladas – estrutura narrativa aliás tão típica da ficção daépoca – tem, no entanto, uma explicação lógica, se bem que o sucessoartístico na maioria dos casos tenha sido disputado. Por outro lado, o Pere-grino, já ao iniciar a sua narração, preocupa-se com suas limitações artísti-cas, como acabamos de observar. A mesma modéstia dá a conhecer daparte da própria pátria ao terminar o primeiro capítulo:

Não me começarei a inculcar pelo solar de meu nascimento, ou alaban-ças da minha pátria [...]. Não me eximindo porém, quando no fio dahistória passar por ela, de publicar suas excelências, que algumasincluem em si, como notoriamente se sabe. E assim, só tratarei agora doque faz ao nosso intento,... (I:42)

O “fim” do Compêndio

Deter-nos-emos por um momento no capítulo final, por representar esteem toda a história receptiva “activa” da obra também o ponto final dotexto, e onde o interlocutor-mór, o Ancião, entrando em actividade outravez, na véspera da sua partida e, depois da prolongada escuta, dando quaseà maneira de sermão os seus últimos conselhos morais e espirituais (emonze páginas seguidas), termina proferindo estas palavras:

Também vos advirto, que se não tomardes os meus conselhos e avisos, per-dereis três coisas: tempo, saúde e salvação. Tempo, porque não achareismais; saúde, porque enfermareis no pecado; salvação, porque vos deixa-reis ir ao inferno [...]. E por última conclusão de tudo quanto vos tenhodito, vos peço pela sagrada Paixão e Morte de JESU Cristo, que cuideismuito de vagar nisto que vos aviso, enquanto de vós me despeço, por meser preciso ir assistir a outro lugar, prometendo-vos, que, se Deus vos dila-tar a vida, tornarei a buscar-vos, para continuarmos a segunda partedeste compêndio, quando tenhamos a dita de ser aprovado o que neletemos escrito. (I:444)

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Vários dias já passaram quando, afinal, o Ancião confessa ao Peregrino asua identidade verdadeira, a do tempo bem empregado: “E assim conheceiagora, que eu sou o tempo bem empregado. De mim têm falado váriosautores sagrados e humanos; e que existo no mundo, desde o primeiroséculo em que Deus me fez e toda esta máquina do Universo.” (I:433)

Ao concluir, conta o Peregrino:

E sem mais esperar resposta, da minha presença desapareceu o tempo. Eagora acabo eu de entender, (continuou o peregrino) que falta o tempo aquem o busca: o qual, como mensageiro de Deus e ministro da fortuna,decretou faltar-me quando eu mais o desejava. E por esta razão, ferrareiagora as velas do meu discurso e narração, suspendendo a pena destaescrita, e lançarei âncora no mar da esperança, até que torne a chegar otempo bem empregado, para continuarmos a segunda parte deste com-pêndio, que vos prometemos se Deus for servido. (I:444-5)

A declaração, e sobretudo a autoconsciência narrativa não só duma histó-ria contada, como também da autoria dum compêndio escrito, não harmo-nizam com a posição do Peregrino enquanto narrador estilisticamente pre-ocupado do primeiro capítulo. A informação dada entre parênteses “conti-nuou o peregrino” dá a entender uma mudança na qualidade do narrador– do narrador autodiegético do relato corrente até aí, a um narrador hete-rodiegético até a este momento despercebido: “Sujeitando-me em tudoquanto tenho escrito neste livro, com rendida vontade, à correção da SantaMadre Igreja de Roma. E hei por não dito, tudo aquilo que não for con-forme aos divinos preceitos e a nossa Santa Fé Católica. SÓ A DEUS SEDEVE A GLÓRIA.” (I:444-5). Este último parágrafo faz pensar em pala-vras finais duma voz autoral. Mesmo assim, estas palavras encontram-sedentro da narração e, consequentemente, dentro da ficção.

Não é somente a mudança na posição narrativa que merece a nossaatenção, pois tem precedentes na prosa narrativa barroca;11 mais impor-tante parece-nos a passagem do oral (e do visual, sobretudo nas partes ale-góricas) ao escrito. Até a este momento, o relato do Peregrino, seja ele con-tado por boca própria ou recontado por boca alheia, tem feito parte dumdiálogo travado com o dialogante/ouvinte/orientador-Ancião. As últimaspalavras deste diálogo (mais o diálogo que o encaixa) referem-se ao relatocomo “compêndio” (quem assim o caracteriza é o Ancião) e da necessidadede “suspender a pena desta escrita” (palavras do Peregrino). Se bem que apalavra “pena” possa ser interpretada também como “esforço” ou “fadiga”

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da missão cumprida, será lógico interpretá-la, neste contexto, como ins-trumento destinado a escrever. A advertência que fazem os dois duma pos-sível continuação da história – e dos problemas que encontrarão em cum-pri-lo – é, no entanto, prática corrente na literatura da época.

A estrutura narrativa no Compêndio de Marques Pereira pode não sersimples, mas é, mesmo assim, consistente até a este último parágrafo doprimeiro tomo. Será que o autor, depois de tantas páginas escritas, deu umpasso em falso? Outra opção pode ser que se valeu (como também o fez,dentro da literatura contemporânea lusa, Gaspar Pires de Rebelo, inspi-rado pelas novelas espanholas) de um novo ideal narrativo, duma novaprosa à procura da sua própria forma estilística e artística. – A revelação daidentidade do Ancião é por si só um sinal de familiaridade da parte deNuno Marques Pereira com as Novelas Exemplares do autor seiscentistaportuguês, embora nesse último caso “o tempo bem empregado” não seencontre alegorizado.12

Ao abrir o segundo tomo, o da continuação anunciada, mas durantedois séculos não publicada, o Ancião torna a buscar o Peregrino, um mêsdepois de o ter deixado para dar uma volta pelas cortes da Europa:

E como me lembrasse do que vos havia prometido, quando nos aparta-mos, [...] e como vos deixei em casa do Padre Capelão, no ponto em queíeis tratando da vossa peregrinação: tomara agora que fizeras o favor decontinuares o mais que vos aconteceu na vossa viagem até o presente [...].(II:49)

O leitor vai, portanto, ouvir o resto da história até ao momento do encon-tro inicial no primeiro capítulo. Com o capítulo III inicia-se a longasequência de cunho alegórico muito marcado, e que, como já apontámos,realça muito a ficcionalidade da narrativa. Esta sequência, que continuaaté ao capítulo XIII e que representa as experiências alegóricas do próprioprotagonista-Peregrino, é interrompido somente por uma digressão sobrenotícias internacionais ou, mais precisamente, pela informação dada aoPeregrino pelo Ancião, sobre o terremoto de Palermo em um de Setembrodo ano 1726 (cap. X) e, ultimamente, pela história de dois jovens queencontra o Peregrino no caminho, ao sair do terreno alegórico. Os jovensacompanham-no até ao Templo da Enfermidade e à casa da Santa Dou-trina (cap. XV), onde o Peregrino fica a filosofar sobre a condição humana(caps. XVII e XVIII) e sobre os quatro Novíssimos do homem: a Morte(cap. XIX), o Juízo (cap. XX), o Inferno (cap. XXI) e o Paraíso (cap. XXII).

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Termina o segundo tomo no capítulo XXII, e à mesma maneira do pri-meiro: com o Ancião querendo mais uma vez ausentar-se por algumtempo. Promete, no entanto, voltar a procurar o Peregrino para comporemjuntos mais um tomo do compêndio:

E logo da minha presença se ausentou, deixando-me na futura esperançade o tornar a ver; por conhecer, que para o Tempo não pode haver prerro-gativa que o detenha, nem persuadição que o dilate. E por agora dobra-rei aqui a folha desta escrita, até que suceda tornar outra vez o Tempobem empregado, para continuarmos na terceira parte deste livro, quandoassim o permita Deus. (II:317)

Uma obra orientada para o futuro?

Se é verdade que se cria com a narração encaixada dum diálogo, dedicadoaos assuntos da alma entre o Peregrino e o Ancião, um ambiente alegórico,podemos constatar que nem todos os acontecimentos ou encontros de quetem experiência primária e secundária o protagonista Peregrino cabemdentro desse decurso alegórico. O texto de Nuno Marques Pereira é, por-tanto, até neste aspecto um texto híbrido – como também o é o anónimoObras do Fradinho da Mão Furada, obra contemporânea ou, mais prova-velmente, seiscentista. (Esta última tem, não obstante o facto de combinaro diálogo doutrinal, o picaresco e o alegórico, uma forma mais acabada.Por ser também um texto altamente irónico, é uma obra muito divertida.)

Voltemos ao Compêndio e às palavras autorais13 do já citado proémio“Ao Leitor” do primeiro tomo:

A este propósito me lembra, que estando eu em casa de um amigo lendo oBáculo Pastoral, entrou um destes loucos Peripatéticos, desvanecido compresunções de discreto; e sabendo do título do livro, me disse, que nenhumhomem de juízo se ocupava em ler livro tão vulgar. E ouvindo eu, se nãoblasfêmia, proposição tão mal soante, lhe perguntei: pois que livro se háde ler? E logo me respondeu ufano: Góngora, Quevedo, Criticon: [...]Novelas, e Comédias, porque estes livros ensinam a falar. Pois euentendo, Senhor, (lhe disse) que esses livros, e outros semelhantes ensinam

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a falar, para pecar; e este, e outros espirituais ensinam a obrar, para sal-var.

Não é para este, a quem ofereço o meu Peregrino da América, senãopara vós, querido e amado leitor: e vos peço, quando nele acheis algumacoisa que vos agrade, louveis a Deus, que por mão de uma humilde cria-tura vos quis dar prato de que gostásseis; para que em recíproca uniãovamos a gozar da Bem-aventurança em presença de Deus. Vale. (I:26-7)

A preocupação com a parte artística e estética da composição literária nota-se, aliás, ainda mais na longa sequência alegórica do tomo II, nos encon-tros que tem o Peregrino com a Mestra da Poesia, entre outras, e vai, naobra inteira, de mãos dadas com a intenção, ou a obrigação, didáctica,como começámos por constatar. As reflexões apresentadas pelo narrador-protagonista ao terminar o primeiro e depois o segundo volume narrati-vos, fazem ver um narrador que tem mais confiança em si mesmo e na suacapacidade artística. Será que esta autoconfiança remete também para oautor inicialmente tão desconfiado a respeito da literatura? Será que amesma autoconfiança, para voltar à pergunta do estudioso inglês citadologo no início, produziu nele uma mudança, “a change in himself ” – artís-tica? E: se conseguiu transformar o seu projecto ético em literatura, fê-lonão obstante a diversidade genérica do seu Compêndio, ou devido à mesma?

Quem não tiver, em princípio, uma opinião muito negativa do texto eda diversidade formal por que é constituído, tem duas opções: Pode consi-derá-lo uma relíquia de géneros e épocas literários ultrapassados já hámuito, e como tal uma obra representativa sobretudo da cultura lusófonacolonial dum determinado momento histórico,14 como um exemplo da“deslocação” de que fala Jon Whitman (1987).15 Alternativamente podever, precisamente na hibridez genérica do Compêndio – cem anos depois desair, no país vizinho, o Quixote, obra evidentemente duma qualidade artís-tica muito superior – paradoxalmente um exemplo, ou um esboço, daprosa narrativa vindoura da literatura lusófona. Optaremos – depois demuito reflectir sobra as suas setecentas páginas prolongadas de diálogodoutrinal, de alegoria religiosa e profana, de manual de viagem e de histó-ria literária, de crítica social e de louvor da opulência da terra brasílica –por esta última alternativa. Reconhecemos neste esforço artístico autoral,baseado na justaposição estilisticamente pouco acabada dum diálogo decunho renascentista e a alegoria medieval, e que se adapta, explicitamente,à realidade setecentista, por mais paradoxal que pareça a conclusão, tam-bém um sinal de modernidade.

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Notas1 Referimo-nos à versão crítica publicada por Ana Hatherly (1990).2 Uma análise específica do elemento alegórico da obra será publicada em outro estudo

intitulado “A alegoria paralelística do Compêndio narrativo do peregrino da América deNuno Marques Pereira”.

3 Entre os exemplos de prosa doutrinal propriamente dita – textos que têm um nível deficcionalização limitado – que muito influenciaram o Compêndio, encontram-se váriasobras dialogadas, como os Diálogos das Grandezas do Brasil (escritos em 1618, provavel-mente por Ambrósio Fernandes Brandão, e publicados em 1930 pela Academia Brasi-leira de Letras), os Diálogos (1589) de Frei Amador Arrais e a Imagem da Vida Cristã(1566 e 1572) de Frei Heitor Pinto. A obra de Pinto foi um grande êxito; em 32 anospublicaram-se 10 edições. É constituída por 11 diálogos e caracterizada pelo Autor noseu Prólogo da primeira parte “como estátua e imagem da vida cristã, repartida em diá-logos como em membros duma figura”, (Pinto 1952:2-3). O primeiro diálogo, o “Diá-logo da Verdadeira Filosofia”, que tem como interlocutores “um filósofo, um seu com-panheiro e um ermitão” abre desta maneira, não muito diferente da abertura do Com-pêndio: “Indo praticando pelos sinceirais de Coimbra ao longo do Mondego dois ami-gos, que saíram da cidade, um deles dado muito ao estudo da humanidade [...] encon-traram com um ermitão, homem religioso e letrado [...]. “ (Ibid., pg. 7) Como no casoda obra de Nuno Marques Pereira, o tópico da obra de Frei Heitor Pinto, esta “obra-prima de ascética cristã”, como é caracterizada por António Cirurgião, é a vida comoviagem, a indicação do caminho que melhor poderá conduzir o homem ao paraíso, seuúltimo fim e “pátria natural”: “Há na Imagem da Vida Cristã dois tipos de viagem: a doautor, escondido por detrás dos vários alter-egos, em disputationes escolásticas com asdiversas personagens que vai encontrando pelo caminho, desde Portugal à Itália, compassagem por Espanha e por França; e a viagem do cristão, na sua qualidade de pere-grino da eternidade – uma viagem de carácter geográfico e outra de carácter escatoló-gico.” (Cirurgião 1997:136, nota 9)

4 Barbosa Machado descreve-o, em 1752 na sua Bibliotheca Lusitana, como “instruído nalição da História Sagrada, e profana” (Machado 1966:505). Raimundo de Menezes daAcademia Paulista de Letras, que parece ter informação mais detalhada, escreve: “N. NaVila de Cairu, distante 14 léguas da Baía de Todos os Santos (Barbosa Machado), igno-rando-se a data [...]. Rodolfo Garcia mostra-se incerto a respeito de todos esses vagosinformes, acreditando até que esse escritor não tenha nascido no Brasil. [...] Não chegoua bacharelar-se em Direito, embora haja cursado a Universidade de Coimbra. Não émuito certo que tenha seguido a carreira eclesiástica, sendo Garcia de acordo que residiuna Bahia, em 1691. Teria estado na Vila de Camamu, tendo fugido por causa de crimesque praticou. F., em Lisboa, a 9 de dezembro de 1728 (segundo Barbuda).” (Menezes1978: 527)

5 A segunda parte da obra foi editada postumamente, impressa pela primeira vez pelaAcademia Brasileira de Letras em 1939– duzentos anos depois de escrita. Não se podeter a certeza de o autor tê-la composta na altura de terminar e editar a primeira parte,nem se podem conhecer as razões (pessoais ou económicas) porque ficou inédita asegunda. Tampouco se conhece o ano da morte do autor; Augusto (1995) opta pela opi-nião de o autor ter morrido só depois de 1733, enquanto os editores da edição da Aca-demia Brasileira de 1988 dizem em nota à dedicação à Senhora da Vitória, assinada peloautor, que “Evidentemente já a tinha composta Nuno Marques Pereira em 1725. [...]Porque então não mandou à imprensa o resto da obra? Seguramente porque já não viviao autor [...].” (I:446, nota 3)

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6 Quanto ao referido crítico e historiador literário brasileiro Wilson Martins (1978),autor da volumosa História da Inteligência Brasileira, onde dedica várias páginas à des-crição do Compêndio, é interessante fazer duas observações: A orientação inclui errosfactuais com respeito à distribuição do texto entre a) protagonista/narrador e b) autor(pg. 314), e também com respeito à distinção entre protagonista e outra figura secun-dária (Peregrino/Pastrano, pg. 320). Cf. também nota 13. Falta, ainda, o que é maisgrave, a apreciação do impacto alegórico do segundo tomo.

7 Escreve Wilson Martins sobre a obra, referindo-a à obra de Alexandre de Gusmão:“Tudo isso é enquadrado pela penosa alegoria que, vinda do Predestinado Peregrino, pro-longa-se no Peregrino da América. [...] No cap. XXVIII, que é o último, o Ancião [...]promete uma segunda parte que só em 1929 foi publicada e já não pode esconder con-siderável dispnéia literária. Foi esse, também, como se sabe, o destino do Roman de laRose, ainda que se possa responsabilizar a dupla autoria pela maior parte da sua queda depressão. Mas, que o Peregrino da América estenda ao século XVIII um gênero e uma´forma mentis´ que encontraram no 13.o o seu clima próprio, é índice espantoso defalsa sobrevivência; é também verdade, entretanto, que a intrusão do fato brasileiro res-titui-lhe, pelo menos em parte, uma certa atualidade intelectual.” (Martins 1978: 320)A Raimundo de Menezes (1978:527) interessa sobretudo a questão genérica: ”[...] nãoé de modo algum um conto ou uma novela [...]. Não se pode dizer que o livro de Mar-ques Pereira haja iniciado o gênero romanesco ou novelístico no Brasil. É, porém, umaficção, como são também os Diálogos da Grandeza do Brasil.” Quem escreve mais favo-ravelmente sobre o Compêndio é Celso Pedro Luft (1987:275): “Narrativa alegórica deforma de uma viagem, com intuitos morais, estrutura-se em forma dialogada: conversaentre o peregrino e um ancião (símbolo da experiência e da sabedoria). [...] Esseromance alegórico tem aspectos literários positivos, como o movimento e o colorido, ea riqueza e dutilidade da prosa. Apesar da adesão ao barroco, a sua linguagem tende amaior comunicabilidade e simplicidade.”

8 As citações referem-se à edição de 1988 da Academia Brasileira, ortograficamentemodernizada. Os algarismos romanos I e II representam o primeiro e segundo tomosrespectivamente.

9 Dizem as palavras finais do proémio da obra de Alexandre de Gusmão: “O que nosimporta, he caminhar para a nossa patria, saber os caminhos, & procurar a entrada, parao que nos servirá de guia e exemplo da historia, ou parabola seguinte.” No prólogo daobra da religiosa portuguesa, que aliás já no título se descreve como “allegoria moral”,comenta o comentador anónimo tanto o estilo como a intenção autoral: “Das refferidaspallavras do Apostolo S. Paulo, escriptas a seu discípulo Timotheo parece fez funda-mento a insigne Authora desta maravilhoza obra, para moralizar com discreta allegoriataõ varonil empreza, pois vaticinando o Santo que veria tempo, em que se desse maiscredito ao fingimento das fabulas, que as doutrinas solidas [...] e para que a liçaõ dellefosse a todos de proveyto lhe traçou com sutil idéa o agradavel estillo desta moral alego-ria por que recreando aos que lecem, juntamente lhes fosse util, encubrindo com o dou-rado disfarce de sua varia erudiçõ este saudavel remedio às enfermidades do espirito,para que as almas, preciosas joyas da graça, livrandosse de todo o perigo, naõ chegassesa experimentar o eterno estrago.” (Hatherly 1990:LXXVIII)

10 Cf. as palavras finais anónimas do A quem ler do Fradinho: ”De cinco folhetos te douesta beberagem. Se te não souber bem, suspende no primeiro a tua direcção, que te nãovai nisso nada. Calunia e murmura quanto quiseres, pois és livre e senhor do teu alve-drio, e são baldadas as desculpas com tentações maliciosas.”

11 Até na distinção entre prólogos assinados pelo autor, e narrações encarregadas a umnarrador homo-, auto- ou heterodiegético, podemos observar casos, irregulares aos nos-sos olhos modernos, como por exemplo nas sátiras de Quevedo.

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12 Cf. a quinta das Novelas Exemplares (1650) de Gaspar Pires de Rebelo. A novela deRebelo tem, além do mais, uma estrutura narrativa paralela à do Compêndio, na medidaem que a história do pícaro-protagonista, Peralvilho de Córdova, se encontra encaixadano diálogo que este tem com o seu interlocutor, um velho nobre.

13 O comentário de Wilson Martins ao trecho citado é este: ”Entretanto, para compreen-der em suas exactas perspectivas esse aparente elogio, algo arcáico, da condição de poetae da virtuosidade literária, é preciso lembrar que Pastrano condenava a literatura cul-tista, não por ser cultista, mas por ser literatura. Depois de citar o Pe. Antônio Vieiralogo nas primeiras linhas, continua ele, no proêmio ´Ao leitor´ [...].” (Martins1978:314) Como já foi observado (cf. nota 6), Martins confunde a figura Pastrano, quenum episódio alegórico do tomo I tem uma conversa com Desengano sobre o quenecessita um homem para ser bom poeta. Desengano responde-lhe: “Primeiramente[...] é necessário ser muito lido em toda a lição das Letras Divinas e humanas; conhecertodos os signos e planetas celestes; saber as fábulas dos antigos e suas origens. E para seruniversal, deve entender todas as ciências, artes e ofícios: e depois disso, estar muito pre-sente nas regras e preceitos da arte poética [...].” (I:404) Não distinguir entre a voz auto-ral do proémio e as vozes dos agentes da história, só pode significar que Martins nãoconsidera o Compêndio de Nuno Marques Pereira, na sua totalidade textual, uma obrade ficção.

14 É a tomada de posição de Wilson Martins no capítulo intitulado “Uma cultura frus-trada”: “Nuno Marques Pereira [...] embora termine o Peregrino da América em 1725, é,na verdade, um autor do século XVII, e o seu livro a projeção paradigmática do pensa-mento nostálgico que, percorrendo-o de ponta a ponta, é ao mesmo tempo, a sua causae a conseqüência da sua frustração cultural.” (Martins 1978:167-8)

15 Whitman (1987:259) abre o seu artigo sobre a crise da alegoria das duas partes doRoman de la Rose afirmando: “In recent years it has become so customary to talk aboutcrises in the designs of language that to call attention to a crisis seems almost to reassureus with a norm. In one sense, the problem I would like to consider here is a familiar cri-sis of this kind. It concerns the development of pressure in a literary work when itseffort to coordinate one point of reference with another begins to break down. Expres-sed in such general terms, the problem of dislocations in the design of a text applies atleast potentially to nearly any work or genre that seeks to correlate disparate materialswhile recognizing their diversity. The problem has a particular force, though, when itaffects the technique of allegorical writing, which makes the interplay between one con-ceptual framework and another the very principle of its organization.”

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