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12 DE JANEIRODE 2012 VIII Diário do Minho Na sequência do tratamento dado à caridade e à esperança (Deus caritas est e Spe salvi), seria de esperar que Bento XVI dedicasse um escrito à fé, centran- do assim as suas encíclicas nas três virtudes teologais, como tinha anun- ciado no início do pontificado. Desta vez, dedica-se o ano de 2012 inteiro à reflexão e meditação sobre a fé. Desse modo, realiza-se o projeto de repensar os elementos essenciais do cristianismo e da vida da Igreja, evitando que, no interior da densa floresta dos assuntos e das propostas, se perca o horizonte fundamental do que nos constitui como cristãos. Interessantemente, este ano da fé coin- cide com a celebração do 50.º aniver- sário do início do Concílio do Vaticano II, precisamente em outubro de 1962. A junção dos dois «acontecimentos» eclesiais conduz-me a uma breve re- flexão sobre o que possa ser o ano que se inicia. A reflexão e a reafirmação daquilo em que verdadeiramente acreditamos, da- quilo que orienta fundamentalmente a nossa existência, acontece, normal- mente, em momentos críticos da exis- tência pessoal e também comunitária, ajudando a uma redescoberta da iden- tidade, como forma de dar sentido a tudo o que fazemos. Ora, é sabido que o Concílio do Vaticano II foi convocado, precisamente, com essa finalidade. Os séculos XVIII, XIX e XX tinham trazido grandes alterações à vida social e pes- soal dos europeus e, por extensão, de todo o mundo. Essas alterações tiveram enorme impacto sobre a vida da Igreja, sobretudo sobre a vida e as convicções de cada cristão. Era urgente, portanto, refletir sobre a nossa identidade. O Concílio fê-lo, precisamente através de uma refontalização do cristianismo, assumindo que não é possível a sua existência sem a «contaminação» da história em que se desenvolve, mas também que é necessário reconhecer a profundidade dessa história, libertan- do-o de muitos acessórios que poderão turvar a compreensão da sua identida- de fundamental. É claro que o mais recente Concílio Ecuménico aconteceu num contexto em que os movimentos político-sociais viviam do entusiasmo revolucionário da transformação das condições de vida dos contemporâneos. Desse modo, também as conclusões do Con- cílio foram acolhidas, por muitos, como contributos para uma forte revolução sociopolítica, capaz de transformar de vez a Igreja e o mundo. Os aspetos mais imediatos – e às vezes mais superficiais – das reformas assumiram o protago- nismo quase exclusivo, aliando-se-lhe uma expetativa forte, em relação aos efeitos de determinadas transforma- ções organizativas. Tudo isso foi, sem dúvida, importante para a vida da Igreja, resultando numa alteração notável das práticas quoti- dianas dos cristãos. Mas depressa se manifestou um problema inerente: que as expetativas estariam colocadas sobre bases pouco sólidas e que as verdadeiras transformações da vida eclesial pudessem ser puro resultado de reformas de organização. No primeiro caso, o que aconteceu foi que, muitas vezes, as modificações de superfície chegaram mesmo a atrai- çoar a redescoberta da identidade do cristianismo; ou então, a maioria dos fiéis, que apenas contemplou as trans- formações de superfície, não chegou a penetrar nos fundamentos da sua fé, através de aprofundado conhecimento bíblico e teológico. Que as mudanças não tivessem passado de alterações epidérmicas, em muitos casos de efeitos de moda passageira, não seria de estranhar, enquanto não fossem trabalhados os alicerces da reforma em curso. No segundo caso, até por natural efeito de quebra de entusiasmo, como acontece com todos os fenómenos de moda, foram surgindo as desilusões, fruto da ineficácia de muitas iniciativas e reorganizações reformadoras. Alguns chegaram mesmo, no auge da desilu- são, a considerar que tinha sido errado o Concílio e que seria conveniente anular os seus efeitos. Quando a espe- rança se coloca apenas em artifícios organizacionais, a desilusão e mesmo o desespero estão já por perto. Ora, penso que estes 50 anos de dis- tância nos permitirão uma reflexão que conduza o Concílio aos seus núcleos fundamentais e permita compreen- der quais os seus contributos para a profunda transformação da Igreja, no permanente caminho de aproxima- ção à sua identidade e aproximação ao mundo, para o qual existe. Nessa redescoberta, considero fundamental a orientação da fé, pois é nela que se encontra a base da correta ou incorreta realização do que pretendeu o Concílio. Em primeiro lugar, porque não se trata de mera mudança de estratégia, na gestão de um grupo que previa entrar em crise. Aliás, por esse caminho, a estratégia não resultou, parecendo até que a crise se agravou. Mas o que pre- tendeu o Concílio foi abrir possibilida- des de melhor realização daquilo que é a nossa própria fé, enquanto modo de vida pessoal e enquanto cerne do que constitui a comunidade eclesial. Trata- se, pois, de ser mais fiel à nossa identi- dade crente, essencialmente exposta na profissão de fé que denominamos «credo» ou «símbolo». Se redescobrir- mos os textos do Concílio na sua liga- ção com esse núcleo crente, o caminho da sua aplicação é ainda longo. Ao mesmo tempo, a atitude crente fundamental exige que não coloque- mos a confiança da realização desse caminho exclusivamente nas nossas forças organizativas. É certo que, sem o nosso trabalho, nada se fará. Mas o processo é mais complexo. No nosso trabalho, é o Espírito que age e nem sempre as coisas são como parecem ser. Por isso, com a confiança colocada em base mais sólida – precisamente porque acreditamos – os desânimos não nos levarão à desilusão ou mesmo ao desespero. Porque acreditamos que o contributo do Concílio é bom e im- portante para o presente e futuro da missão da Igreja, trabalharemos na sua realização, como quem trabalha num projeto muito complexo e abrangente, como humildes servos, confiantes nos efeitos de algo que é maior do que nós mesmos. João Duque, teólogo, Universidade Católica Portuguesa

Ano da Fé | Prof. João Duque

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'[…]a atitude crente fundamental exige que não coloquemos a confiança da realização desse caminho exclusivamente nas nossas forças organizativas. É certo que, sem o nosso trabalho, nada se fará. Mas o processo é mais complexo. No nosso trabalho, é o Espírito que age e nem sempre as coisas são como parecemser. Por isso, com a confiança colocada em base mais sólida – precisamente porque acreditamos – os desânimos não nos levarão à desilusão ou mesmo ao desespero. Porque acreditamos queo contributo do Concílio é bom e importante para o presente e futuro da missão da Igreja, trabalharemos na sua realização, como quem trabalha num projeto muito complexo e abrangente, como humildes servos, confiantes nos efeitos de algo que é maior do que nós mesmos.' Prof. João Duque, teólogo, in DIário do Minho, Suplemento 'Igreja Viva' [12/01/2012]

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Page 1: Ano da Fé | Prof. João Duque

12DEJANEIRODE2012VIII Diário do Minho

Na sequência do tratamento dado à caridade e à esperança (Deus caritas est e Spe salvi), seria de esperar que Bento XVI dedicasse um escrito à fé, centran-do assim as suas encíclicas nas três virtudes teologais, como tinha anun-ciado no início do pontifi cado. Desta vez, dedica-se o ano de 2012 inteiro à refl exão e meditação sobre a fé. Desse modo, realiza-se o projeto de repensar os elementos essenciais do cristianismo e da vida da Igreja, evitando que, no interior da densa fl oresta dos assuntos e das propostas, se perca o horizonte fundamental do que nos constitui como cristãos.

Interessantemente, este ano da fé coin-cide com a celebração do 50.º aniver-sário do início do Concílio do Vaticano II, precisamente em outubro de 1962. A junção dos dois «acontecimentos» eclesiais conduz-me a uma breve re-fl exão sobre o que possa ser o ano que se inicia.

A refl exão e a reafi rmação daquilo em que verdadeiramente acreditamos, da-quilo que orienta fundamentalmente a nossa existência, acontece, normal-mente, em momentos críticos da exis-tência pessoal e também comunitária, ajudando a uma redescoberta da iden-tidade, como forma de dar sentido a tudo o que fazemos. Ora, é sabido que

o Concílio do Vaticano II foi convocado, precisamente, com essa fi nalidade. Os séculos XVIII, XIX e XX tinham trazido grandes alterações à vida social e pes-soal dos europeus e, por extensão, de todo o mundo. Essas alterações tiveram enorme impacto sobre a vida da Igreja, sobretudo sobre a vida e as convicções de cada cristão. Era urgente, portanto, refl etir sobre a nossa identidade. O Concílio fê-lo, precisamente através de uma refontalização do cristianismo, assumindo que não é possível a sua existência sem a «contaminação» da história em que se desenvolve, mas também que é necessário reconhecer a profundidade dessa história, libertan-do-o de muitos acessórios que poderão turvar a compreensão da sua identida-de fundamental.

É claro que o mais recente Concílio Ecuménico aconteceu num contexto em que os movimentos político-sociais viviam do entusiasmo revolucionário da transformação das condições de vida dos contemporâneos. Desse modo, também as conclusões do Con-cílio foram acolhidas, por muitos, como contributos para uma forte revolução sociopolítica, capaz de transformar de vez a Igreja e o mundo. Os aspetos mais imediatos – e às vezes mais superfi ciais – das reformas assumiram o protago-nismo quase exclusivo, aliando-se-lhe

uma expetativa forte, em relação aos efeitos de determinadas transforma-ções organizativas.

Tudo isso foi, sem dúvida, importante para a vida da Igreja, resultando numa alteração notável das práticas quoti-dianas dos cristãos. Mas depressa se manifestou um problema inerente: que as expetativas estariam colocadas sobre bases pouco sólidas e que as verdadeiras transformações da vida eclesial pudessem ser puro resultado de reformas de organização.

No primeiro caso, o que aconteceu foi que, muitas vezes, as modifi cações de superfície chegaram mesmo a atrai-çoar a redescoberta da identidade do cristianismo; ou então, a maioria dos fi éis, que apenas contemplou as trans-formações de superfície, não chegou a penetrar nos fundamentos da sua fé, através de aprofundado conhecimento bíblico e teológico. Que as mudanças não tivessem passado de alterações epidérmicas, em muitos casos de efeitos de moda passageira, não seria de estranhar, enquanto não fossem trabalhados os alicerces da reforma em curso.

No segundo caso, até por natural efeito de quebra de entusiasmo, como acontece com todos os fenómenos de

moda, foram surgindo as desilusões, fruto da inefi cácia de muitas iniciativas e reorganizações reformadoras. Alguns chegaram mesmo, no auge da desilu-são, a considerar que tinha sido errado o Concílio e que seria conveniente anular os seus efeitos. Quando a espe-rança se coloca apenas em artifícios organizacionais, a desilusão e mesmo o desespero estão já por perto.

Ora, penso que estes 50 anos de dis-tância nos permitirão uma refl exão que conduza o Concílio aos seus núcleos fundamentais e permita compreen-der quais os seus contributos para a profunda transformação da Igreja, no permanente caminho de aproxima-ção à sua identidade e aproximação ao mundo, para o qual existe. Nessa redescoberta, considero fundamental a orientação da fé, pois é nela que se encontra a base da correta ou incorreta realização do que pretendeu o Concílio.

Em primeiro lugar, porque não se trata de mera mudança de estratégia, na gestão de um grupo que previa entrar em crise. Aliás, por esse caminho, a estratégia não resultou, parecendo até que a crise se agravou. Mas o que pre-tendeu o Concílio foi abrir possibilida-des de melhor realização daquilo que é a nossa própria fé, enquanto modo de vida pessoal e enquanto cerne do que

constitui a comunidade eclesial. Trata-se, pois, de ser mais fi el à nossa identi-dade crente, essencialmente exposta na profi ssão de fé que denominamos «credo» ou «símbolo». Se redescobrir-mos os textos do Concílio na sua liga-ção com esse núcleo crente, o caminho da sua aplicação é ainda longo.

Ao mesmo tempo, a atitude crente fundamental exige que não coloque-mos a confi ança da realização desse caminho exclusivamente nas nossas forças organizativas. É certo que, sem o nosso trabalho, nada se fará. Mas o processo é mais complexo. No nosso trabalho, é o Espírito que age e nem sempre as coisas são como parecem ser. Por isso, com a confi ança colocada em base mais sólida – precisamente porque acreditamos – os desânimos não nos levarão à desilusão ou mesmo ao desespero. Porque acreditamos que o contributo do Concílio é bom e im-portante para o presente e futuro da missão da Igreja, trabalharemos na sua realização, como quem trabalha num projeto muito complexo e abrangente, como humildes servos, confi antes nos efeitos de algo que é maior do que nós mesmos.

João Duque, teólogo,

Universidade Católica Portuguesa