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Anotações de viagem VOLUME II Ana, Chris, Rubão PROJETO_VIAGEM.qxd 16/02/03 21:09 Page 3

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Anotações de viagemVOLUME II

Ana, Chris, Rubão

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Ovôo Vasp foi ótimo. A Ana conseguiu darumas dormidinhas e o Chris então, nem se fala.

Esparramou-se na poltrona, nocolo da mãe. E descansou lin-damente. Mas antes do aviãolevantar vôo --e também nahora de descer -- ficamos todosde mãos dadas -- e a dele esta-va molhadinha de aflição abso-lutamente confessada.Eu, infelizmente --e como jáera esperado -- não preguei osolhos. Estava tenso, angustiadoe fragilizado. Algo à partemesmo fazendo parte. Umprocesso explosivo de desinte-gração psíquica. Uma sensaçãode estar à margem da margem,sem eixo, nem centro. Talvezsem gravidade e, certamente,sem nenhuma felicidade.Tudo isso pode parecer estran-ho. Mas as explicações vem àgalope. Na noite anterior aonosso embarque, tomei unsdrinques com o Mário, fui bus-car o Thi e, em casa, não resistia um vinhozinho amigo. Até aítudo bem. Mas como era de seesperar, surgiram umas con-versas estapafúrdias entre aAna e eu e nós acabamos nosdesentendendo. Não chegamosa brigar e nem mesmo a trocaras “gentilezas” de antigamente.Ainda assim saímos ambos

magoados, feridos e desapon-tados desse episódio. E euposso acrescentar a isso o fatode que, sendo mais impulsivo emenos responsável na utiliza-ção das palavras, acabeiampliando essa situação tãodesconfortável e tão desalenta-dora logo às vesperas de algoque tem tanto significado efeti-vo e afetivo para nós. Emresumo: fiz uma burrada eestava colhendo agora e recol-hendo suas consequências .E o pior é que tudo isso nãodeixa de ser reverberação deprocessos semelhantes já vivi-dos por nós em outros tempos.O único sinal positivo é a minhadificuldade cada vez maior emsuportar essas desavençascausadas por alguma palavraou atitude irrefletida e inconse-quente. O fato é que antes daviagem --no sábado --já estavame sentindo desestabilizado.Durante a viagem piorei. Nachegada a BBrruuxxeellaass a coisa

ficou ainda maisfeia, acinzentada. E na madrugada,no hotel, os confli-tos psíquicosarranjaram umforte aliado: aexaustão física. Aí,por volta das 2horas da manhã,

pensei que fosse ter um treco.“Será que nós vamos ter quevoltar para o Brasil?” Resolvoacordar a Ana e choro, infantil-mente, em seus braços.Confesso minhas culpas: “porque será que fui estragartudo?”. Meus receios: “seráque tenho condições de reen-contrar a sanidade e a energiavital que restaura tudo?” -- e jávou me sentindo menosdesconfortável.Esse era o teor das minhassensações menos escuras. Nomais, as tonalidades não con-seguiam ultrapassar aquelaspresentes nas asas dos urubus.Mas a gente é capaz de maiscoisas do que imagina. E poressa simples e misteriosarazão, consegui voltar a dormire penetrar no reino fundo doinominado. Isso desintoxica não só o corpo, mas a alma --que regressa lavada e limpa,renascida.Devo voltar, agora, aos

e os bruxuleB

ruxe

las

Palácio Real

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momentos que antecederamnossa chegada ao Hotel.Aconteceres bons e até sur-preendentes estavam à nossaespera. O carro, por exemplo,era um carrão. E a moça do serviço de Rental Car quase me provoca um dísparo cardíaco aopronunciar salvadoramenteaquele som tão conhecido:“Monsieur Jardan?”Após esse surpreendente episódio, foram as ruas deBBrruuxxeellaass que tiveram quesuportar a nossa alegria quase descontroladaE a nossa impressão, contrar-

iando a da maioria das pessoas, foi a melhor possível. Imagineiestar na IInnggllaatteerrrraa. O tipo dearquitetura e certos traços dodesenho urbano possuem umaharmonia tácita, explícita. Cadacasa e cada prédio tem umafisionomia própria, um detalhe,uma particularidade. AdoramosBBrruuxxeellaass, apesar da brevidadeda nossa estadia lá. E quanto àGGrraanndd PPllaaccee, fizemos uníssonocom todas as vozes conhecidase desconhecidas: ela é, no mín-imo, excessivamente impres-sionante. Sem dúvida, uma dasmais belas de todas aquelasque nós já conhecemos.

leios da bruxaA BBééllggiiccaa mantém umaincomparável variedadede cervejas. Desde aIdade Média os belgassão conhecedores dosdiversos tipos, sabores ecaráter das cervejas. Por isso, são bons degustadores, comparáveis aos inglesese aos alemães. Existequase um tipo de cervejapara cada cervejaria. E você tem que provar!As cervejas belgas são devárias cores e tipos, desde as claras até as pretas... BBllaanncchhee:: cerveja de trigo - leve e moderna, turva emacia, um pouco adocicada. Esta cerveja mata a sedecom uma combinação de baixo teor de álcool. GGuueeuuzzee:: uma mistura de cervejas novas e envelheci-das. Com uma fermentação que estimula a segundafermentação, na garrafa. TTrraappppiissttee:: cerveja produzida por monges, à modaantiga, em cinco monastérios: Chinay, Orval,Rochefort, Westmalle e Westvleteren. LLaammbbiicc:: cerveja naturalmente fermentada pela combinação de trigos transportados pelo ar. FFaarroo:: uma Lambic para os corações fracos - uma versão adocicada com concentração menor que a Lambic. KKrriieekk:: cerveja feita de cervejas! Refrescante para o verão. CCeerrvveejjaa MMaarrrroonn:: fermentadas em Flandres, sãocervejas com substância e muito sabor. CCeerrvveejjaa VVeerrmmeellhhaa:: produzida com cevada vermelhano oeste de Flandres, amadurecida no carvalho. Temgosto de fruta, doce e azedo que mata a sede.

A GGrraanndd PPllaaccee, no coração deBruxelas, é algo de magnífico.Seus prédios, construídos noséculo XV são de arrepiar.Embora destruídos no séculoXVII e reconstruídos depois, elesconservam o esplendor originaldo barroco. Merecem destaque oGGootthhiicc HHôôtteell ddee VViillllee e o MMuussééeeddee llaa VViillllee ddee BBrruuxxeelllleess. E é naGGrraanndd PPllaaccee que acontecem aosdomingos o mercado de flores.São arranjos inacreditáveis naforma de um imenso tapete. Masa“place plus belle du monde”segundo Victor Hugo não está aí para ser só contemplada e admirada. Na rruuaa ddooss rreessttaauurraanntteess,, por exemplo, a visão que setem é de encher os olhos... e esvaziar os bolsos... Se o seu lancefor economia, fique só olhando. Ou vá a um dos restaurantes gregos ali perto que servem PPiittaa -o nosso famoso churrascogrego. Nesses restaurantes há também boas porções de batatasfritas servidas com molhos a sua escolha.Nesses estabelecimentos não se gasta mais do que U$6.Estátua de anjo na fonte

Senhora e flores na Grand Place

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e a catedral A

mst

erdã

Ia me esquecendo de que,na saída de Cumbica,quase perdemos o avião. Aúltima chamada já haviasido feita e nós nem está-

vamos lá para ouvir. Ficamosentretidos e confusos na free-shop com a câmera de vídeo. Omodelo que o Cláudio sugeriunão existia e a que estava ali, ànossa frente, era umaPanasonic de 950 dólares, todaeletrônica e cheia de fru-fru.Resultado: tivemos queenfrentar aquele conhecido ereconhecido dilema: ou dá oudesce. Titubeamos, inquirimos ovendedor e trocamos figurinhasentre nós. Tudo simultânea econcomitantemente a avali-ações, estimativas, expectativas,tempo exíguo, etc. E resolvemospaulistanamente--dedo ágil no

gatilho, comrapidez.Mas como pre-cisávamos deexplicaçõessobre o fun-cionamento da câmera, e comoo vendedor era gentil e familiarizado com o seu metier,perdemos um tempo danadocom essa transação. Nossasorte foi reencontrar uma colega da Ana que nos deu adica que a última chamada do nosso vôo já havia sido feita.Aí desabamos em correrias e atropelos.Passamos por funcionários quechecam os bilhetes e voamos,literalmente, até o avião.Surpresa: a porta já estavafechada. A Ana ficou pasma,branca, confusa. O Chris

boquiaberto eeu perplexo,assustado. Masrapidamentepudemos perce-ber que não

haviamos perdido, ainda, nossovôo para Bruxelas. Batemos naporta, aguardamos, tornamos abater e ela se abriu para felici-dade e graça nossa.Enfim, estamos aqui. Não maisem BBrruuxxeellaass, nem em AAnnttuuéérrppiiaa--ainda na BBééllggiiccaa -- nem emBBrreeddaa, nem em DDaann HHaaaagg ouUUllttrreecchh. Já estamos na HHoollaannddaados moinhos e dos canais. E meesqueci de MMaadduurrooddaamm, acidade miniatura que é um ver-dadeiro deslumbramento.Fomos até lá pra fazer umagradinho ao Chris, mas não foisó ele que ficou encantado,aturdido, maravilhado. Todosnós tivemos a oportunidade decurtir, entre espantados e alum-brados, a harmonia, a graça, orequinte dos detalhes e a multi-plicidade de apelos daquelepequeno mundo mágico.Além de trens e vias férreascom estações fantásticas, havialá auto estradas com caminhõese carros em movimento; aero-porto com aviões também emmovimento; miniférico tambémem movimento; lanchas dediversos modelos com homenz-inhos esquiando; minicatedral

Estação de tremem Amsterdã

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l de água

com órgão tocando e pessoas epadres entrando e saindo e umainfinidade de outras coisasencantadoras.Lamentamos muito o fato denão conseguirmos colocar anossa câmera de vídeo pra fun-cionar. Seria um registroinesquecível. Até mesmo --ouprincipalmente-- pelo modoencantatóriocomo aquilo tudonos afetou. Despertando movi-mentos infantis, alegrias plenase corações pulsantes. Masassim foi e assim é. Portanto, é seguir em frente com os registros emocionais aindaabertos e ainda aptos à capturação de novos encanta-mentos. AAmmsstteerrddãã é bela, belís-sima cidade. Mas jamais será aVVeenneezzaa ddoo NNoorrttee (como queremalguns) ou a VVeenneezzaa de qual-quer coisa. Para se acreditarnisso seria necessário acreditartambém naquele verso do

BBaannddeeiirraa onde elefaz de RReecciiffee umaespécie de VVeenneezzaa.Claro que isso tudonão passa de umexagero expressivode quem estáenvolvido com olugar em que nasceu ou vive.Mas AAmmsstteerrddãã é uma cidadebela. E interessante por causados canais, das pontes, de algu-mas torres, de alguns prédiosfantásticos e de alguns becosestranhos. Mas tem muita gente-- e gente de aspecto esquisito.Tivemos algumas dificuldadesem conseguir Hotel (a preçosrazoáveis) , em estacionar ocarro (pagamos 45 florins poruma noite) e tudo isso acabamexendo não só com os nossosbolsos, mas com o fluxo naturaldas emoções e das descobertas.É assim como estar diante deuma porta com a chave quebra-da na mão e sem nenhum indí-cio de algum chaveiro por perto.Experiência similar tivemos emMMuunniiqquuee (na outra viagem) queé, também, uma cidade festeja-da, aplaudida e cortejada. Maspra nós ela nunca deixará deser desagradável e inóspita.E tanto foi assim que abandon-amos nossos sonhos girandolonge dos moinhos e não fize-mos sequer aquele celebrado ealmejado passeio de barco --à

luz de velas -- peloscanais onde a CCeeccíílliiaaimortalizou aquele afo-gado em versos definíssima feitura queressoam até hoje emmeus ouvidos: "Parasempre jazerá um afo-

gado nos canais de Amsterdã".Em nosso caso específico "Parasempre jazerá uma Amsterdãnos canais de Amsterdã". É ovelho e cruel princípio deatração e repulsão. E diantedele só nos resta sucumbir.Ousuperar. Afinal, o que somosnós? Crianças enlouquecidasdentro de um frasco de água decolonia? Indízivel emoção.Indescritível instante. De longe,muito longe, reconhecemos ovulto daquela imagem quehabitou a minha infância. Saídado rótulo daquele frasco, gan-hando tridimensionalidade,monumentalidade e projetando-se para fora de todo sonho, aliestava --à minha frente --aCCaatteeddrraall da Água de CCoolloonniiaa. Eela não era de água, nem propi-ciava cheiros. Mas me jogoudentro do frasco e na órbita doimaginário. Me colocou concretoe inteiro dentro de mim mesmoe dentro dos símbolos construí-dos na infância. E dentro daprópria infância que tem umsignificado para sempre maiordo que eu mesmo.

Não foi o nosso caso, mas se você desembarca naestação de trem já é logo abordado por algummaluco lhe oferecendo um hotel. Agradeça dizen-do que já tem lugar para ficar. Tente olhar para oslados para se situar. A visão é de deixar qualquerum maravilhado: uma multidão de bicicletas, bon-des, pessoas de todos os tipos, uma fumacinhaaqui e outra alí... Amsterdã é assim, cosmopolitapor natureza. A Holanda é conhecida como o país mais liberal domundo, seja com relação à tolerância para drogasleves, como maconha e haxixe, seja com relação asexo, que aliás é um dos grandes atrativos destacidade. Há um bairro conhecido como ""RReedd LLiigghhttDDiissttrriicctt"" onde prostitutas ficam em vitrines mon-tadas nas partes de baixo das casas oferecendoseus préstimos aos turistas. Neste mesmo bairrotambém é fácil encontrar as drogas que não sãovendidas nos estabelecimentos autorizados. Se você pertence a turma da fumaça, vai se esbal-dar. Mas não pense em sair fumando um "basead-ão" no meio da rua por que não pega bem... Nacidade há bares chamados ""CCooffffeeee SShhooppss"" que sãoespecializados na venda de tais artigos. É sóchegar, pedir o cardápio e escolher a erva. O "bar-man" lhe dará um saquinho e uma seda que já vemcom cola. Divirta-se. Alguns desses ccooffffeeee--sshhooppsstem até mesinhas nas calçadas. E sentado namesinha, tomando uma cervejinha ou um bomchocolate quente é permitido dar suas baforadas...Por serem os maiores e mais famosos, oGGrraasssshhooppeerr e o TThhee BBuullllddoogg, são interessantespara uma visita. Como é interessante também visi-tar a antiga fábrica da HHeeiinneekkeenn, situada bem nocentro. Alémde conhecercomo era todoo processo defabricação deuma das maisfamosas cerve-jas do mundo,há alguns min-utos de degus-tação no final,o suficientepara lhe daruma boa luz...

Madurodam

Banheiro público

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e os sinais dH

eide

lber

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e certa forma --einvariavelmente --fico cada vez maisconvencido de queas vivências infantis

são o substrato essencial, o eixobásico que nos impulsiona nadireção de tudo aquilo que nospertence com radicalidade. E é através dessa ótica que épossível perceber todas asnuances de qualquer cor, todosos timbres de qualquer som,todas as repercussões dequalquer palavra.É sempre através dela --dessacriança ainda tão viva e pulsanteem mim -- que eu consigo ver,viver e conviver com essas ale-grias e emoções situadas tãopróximas das fronteiras doingênuo e do retrógado.É o testemunho dessa criança--que eu sinto até corporalmente-- que tornou o viver possível pramim. Sem ela, acho que nãoseria tocado nem agraciado portantas bençãos já recebidas etantas ainda a receber.Mas voltando a nossa igrejinharecem saída da água, eu sóposso dizer que ela é, externa-mente, a mais bela de todas queeu já vi. E eu já vi NNoottrree DDaammee,CCaatteeddrraall ddee BBuurrggooss, CCaatteeddrraall ddeeGGeerroonnaa,, ddee RReeiimmss,, ddee ZZaarraaggoozzaa,,BBaassíílliiccaa ddee SSããoo PPeeddrroo e aSSaaggrraaddaa FFaammíílliia, entre outras. E, intuitivamente, me arrisco a

dizer que oGaudi buscouinspiração naCCaatteeddrraall ddeeCCoolloonniiaa paraprojetar aque-la maravilhaque está emBarcelona. Écurioso obser-var que a Anapercebeu emencionouessa mesmarelação semtermos trocado nenhumapalavra a respeito.ERLANGEN 24/11/94 - Em con-sequência de nossa curta estadaem AAmmsstteerrddãã, nossas bússolase nossos roteiros foram sofren-do as alterações mais aleatóriasdo real. CCoolloonniiaa foi um exemplodisso. KKlloobbeennzz - que não estavaem nosso planos -- também.Mas, o mais comovente dissotudo, foi ter voltado aHHeeiiddeellbbeerrgg. Sob qualquerprisma, HHeeiiddeellbbeerrgg significouo nosso primeiro reencontro

com a EEuurrooppaa e com as nossasprimeiras emoções de viajantes virginais.Não fomos para PPaarriiss -lugar jáconhecido e nem vimos a Vivi eo André. Também nãopousamos em MMaaddrrii, nem emBBaarrcceelloonnaa, nem em RRoommaa ouGGeerroonnaa. Fomos para BBrruuxxeellaass.

De lá paraAAnnttuuéérrppiiaa e DDaannHHaaaagg. E depoispara a HHoollaannddaacom suas terrasbaixas e tambémdesconhecidas.Mas HHeeiiddeellbbeerrggjá nos era famil-iar. Já tinhamosvivido concreta-mente lá as nos-sas pequenasdificuldades deturistas ousados

e algumas alegrias absoluta-mente intraduzíveis. E numaépoca em que todos os sereshumanos parecem curvar-seaos princípios mais elementaresda boa vontade e fraternidade.Foi em HHeeiiddeellbbeerrgg que nós pas-samos o Natal mágico de 92.Foi lá, no corpo vivo de suasmontanhas e junto dos deusesda mitologia nórdica, que nósnos embrenhamos em sua flo-resta --Odenwald -- para aspartilhas mais sagradas queunem os homens às mulheres,as mulheres aos filhos, assementes à terra e a Terra àDeus. Odenwald, que estranhapalavra para dar vazão aosmelodiosos sons das cantigasde Natal? Que estranha formade celebrar aquele célebrenascimento que não nos deixaestrangeiro em nenhum lugar e

Colônia: catedral de água?

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da montanhaem nenhuma situação?E voltamos lá, ao quiosquetosco, à rústica casa da mon-tanha. E que emoções profun-das foram vividas e revividasali! E quem poderá saber sobreos sinais que recebemos naque-le Natal? Nós mesmos aindaignoramos a dimensão dossinais recebidos naquela noitesagrada na montanha.Mas todos os sinais, todos ossignos, todas as orações e todosos presentes de reis e plebeus,todas as mulas, todas as vacase todos os lírios do campo,todos os sentimentos maternaise paternais, todas as parábolase todas as bençãos estiveram lá --naquela noite -- em que a verdadeira comunhãonos aconteceu.

E como é possível voltar? Ecomo é possível encontrar denovo as portas abertas? E ocoração ainda aberto? E o corpoainda aberto? E a alma aindaaberta? E ainda abertos oscaminhos desse amor aberto?Dessa trilha aberta na florestaaberta? E aberto também essechão aberto e molhado por tan-tas lágrimas abertas desseaberto nascer e desse abertocrescer?Que desígnios fatais e insubsti-tuíveis sinalizam para aquelacasa rústica no meio da flores-ta? E por que a nós foi dada e

outorgada a possibilidade depenetrar na simplicidade deum símbolo tão sagrado? Mais que isso: por que será queEle nos recebeu em Si, acalen-tando-nos numa dimensão tão infantil e tão mágica? Será que o menino Jesus não éa parte mais silenciosa e maisarrelienta de todas as pessoasque vivem nesta Terra? BAYEREUTH 26/11 - DeHHeeiiddeellbbeerrgg seguimos paraKKoobblleennzz, cruzamento dos riosMosella e Meno. Visitamos umafortaleza que é também umalbergue e lembramos do Tuca-- menino ainda e sozinho nes-tas margens sem margens domundo. Que sensações fortíssi-mas ele teve ter vivido por aqui! E por ali e por tantos lugaresque a gente passou!De KKoobblleennz fomos paraEErrllaannggeenn, cidade situada nasproximidades de NNuurreemmbbeerrgg. E,

por incrível que pareça, foi láque comemos a melhor lasanhade toda a nossa vida. O pessoaldo restaurante era "tutti oriun-di". Mas isso também não explica nada, pois comemosmacarrão na IIttáálliiaa e não nota-mos nenhum sabor extra-ordinário. Pelo contrário, eraaté bem comum e nem umpouco mais extraordinário doque os nossos mais triviais emais corriqueiros.

Heidelberg tem fama de ser uma das mais formosascidades da Alemanha. Situada às margens do rioNeckar, ela exibe ruinas imponentes e majestosas deum CCaasstteelloo que foi, durante 500 anos, residencia dosnobres da dinastia de WWiitttteellssbbaacchh. De espírito jovem,possui a Universidade mais antiga do país, fundadaem 1386. Em diversas ocasiões, cientistas daUniversidade de Heidelberg obtiveram o prêmioNobel. Caso de PPhhiilllliipp LLeennaarrdd (física,1905), AAllbbrreecchhttKKoosssseell (medicina,1910), OOttttoo FFrriittzz MMeeyyeerrhhooff (medici-na,1922),RRiicchhaarrdd KKuuhhnn (química,1938), WWaalltthheerrBBootthhee (física,1954), HHaannss DDaanniieell JJeennsseenn (física,1963)e GGeeoorrgg WWiittttiigg (química,1979). Mas HHeeiiddeellbbeerrgg não é só o lugar talhado para essesnotáveis desenvolvimentos de pesquisas científicas.É possível supor que nenhuma cidade alemã inspiroua tantos poetas românticos como HHeeiiddeellbbeerrgg..HHoollddeerrlliinn escreveu em 1799 uma OOddee aa HHeeiiddeellbbeerrgg.Aqui GGooeetthhee se enamorou de MMaarriiaannnnee vvoonn WWiilllleemmeerr,que escreveu um poema, cujas estrofes mais belasestão gravadas sobre uma pedra no parque doCastelo. O compositor WWeebbeerr viveu aqui(1810) e aquiencontrou inspiração para sua ópera DDeerr FFrreeiisscchhuuttzz.SScchhuummaannnn,, que era apenas um estudante de leis,aqui se transformou em músico. Outra informaçãointeressante é que pouco depois da proclamação desuas 9955 TTeessiis, em abril de 1518, MMaarrttiimm LLuutteerroo foirecebido em HHeeiiddeellbbeerrgg com grandes honras e aquidefendeu suas Tesis. Em 1685, LLuuiizz XXIIVV declaraguerra. Em 1689 as tropas francesas ocupam oCastelo e a cidade, que são completamente destruí-dos em 1693.

Heidelberg: dominadapelo majestoso Castelo

Heidelberg vista do Castelo

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e a volta à N

ure

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rgP

ortanto, nem sempreo acaso é apenas umlance de dados. Elepode mesmo abolir oazar e bulir com

esses apetites que, vez ououtra, nos estimulam a buscaralgo bem saboreável, deglutívele gratificante.Mas vamos sair da mesa e dosacepipes e voltar ao chão, esseterritório tão amplo e variado decostumes, paisagens, comporta-mentos. De fisionomias dís-pares, de acidentalidades múlti-plas, de histórias e estórias quevão das VVeerreeddaass ddoo GGrraannddeeSSeerrttããoo, passando pelos elemen-tos da mitologia nórdica queinspiraram WWaaggnneerr, até as for-mas e expressões mais sedi-mentadas e elaboradas dessasvocações que sereúnem dentro de umdeterminado espaçogeográfico, dentro deuma língua, dentro deum estoque disponívelde valores e compor-tamentos e sob ainspirtação de tantosmomentos históricos significativos, de tan-tos personagens etantas personalidades.De EErrllaannggeenn fomospara WWuurrzzbbuurrgg -- iní-cio ou fim da RRoottaaRRoommaannttiiccaa -- que tem

aldeias velhas conhecidas comoAAuuggssbbuurrgg,, NNoorrddlliinnggeenn,, HHaarrbbuurrgg,,RRootthheennbbuurrgg, etc. WWuurrzzbbuurrgg nosfascinou tanto que desistimosde imediato com o projeto devoltar até RRootthheennbbuurrgg. E pas-samos o dia inteiro lá: entresuas muralhas medievais, suaspontes, seu ventre movido pelaságuas de um rio. Foi comoventee gratificante. Wurzburg é umacidade bela e humana como amaioria das pequenas aldeiasalemãs. Mas quando chegamosa NNuurreemmbbeerrgg --no dia seguinte-- tudo ficou para trás. Tudovirou passado. NNuurreemmbbeerrgg é asoma e o sumo de todas asaldeias alemãs, ampliadas eamplificadas. É som puro detodo ouvir do tempo.Por suas ruas e becos e largos e

por sua muralha -- cinto ouespartilho de pedra? --pudemos adentrar no espíritodo tempo, adensar emoções,cauterizar feridas, e rompercom o círculo de gis que nossepara uns dos outros. Lá tudoé tão bonito e tão harmoniosoque, numa das primeiras lojasde bugigangas, paramos ecomeçamos a alucinar. A minia-turização requintada e de bomgosto deixou-nos boquiabertos.Mas isso e outras coisas o vídeomostra bem melhor. Aliás, nemsei porque estou teimando emescrever. É vício e confrontocom as emoções. Busca dearticulação dessas forças quenos impelem a seguir. A seguir e prosseguir. Vocação de claridade. Tentativade trazer à luz todas as sensações que estão lá dentro,misturadas às vísceras e àsvidências perdidas.Ainda em NNuurreemmbbeerrgg fomos aIgreja de SSaann SSeebbaalldd -- uma das principais da cidade. Ládentro, as surpresas do sagra-do: uma moça tocando órgão euma exposição de painéisfotográficos apoiados em suasaltivas e substantivas colunasque nos mostravam a destru-ição daquela mesma Igreja edaquela mesma cidade naSegunda Grande Guerra. Foi absolutamente

Frauenkirche e a Schoene Brunnen

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infância

impossível conter as lágrimas.E haja dignidade! E haja fé! Ehaja espírito construtivo!Que licão belíssima nos deu enos dá este povo alemão! E édentro desta Igreja -- ou seja, édentro de nossa casa natural-mente cultural e simbólica--que nós pudemos aprender,novamente, o pulsar instiganteda fé, da misericórdia e da ren-ovação da vida. Os símbolossagrados e todos os rituais queos envolvem serão sempresinais propiciatórios ao encon-tro com a nossa essênciahumana, divina e animal.Acho que são esses símbolosque nos oferecem a oportu-nidade das verdadeiras viagense dos verdadeiros movimentosde tudo aquilo que está lá, nofundo de nós, aguardando estí-mulo, consolo e amparo. Tenhoa nítida impressão, desde aoutra viagem, de que a emoçãoreligiosa é, não apenas o cen-

tro, mas a essênciamesma de todas asoutras emoções pos-síveis ao ser humano. Acho que é a maisalta. A maisabrangente. Aquela onde é possív-el integrar e con-sumar todas as per-spectivas, todas asretrospectivas, todasas nossas facetas--unas e plurais.E édentro das igrejasmedievais que eusinto sempre a pre-sença próxima e viva do CCrriissttoo.A própria comunhão dentrodessas igrejas assume umadimensão tão real que vocêparece estar cumprindo comalgum ritual antropofágico. E o MMuusseeuu ddoo BBrriinnqquueeddoo ddeeNNuurreemmbbeerrgg? Como falar delesem voltar à nossa infância?Quantos carrinhos, quantascasas de montar, quantos tren-zinhos não estavam lá, guarda-dos e intactos, como nosmomentos mágicos e iniciáticosem que nós recebíamos de nossos pais, em pacotesabsolutamente sagrados, a

senha de um sonho? Quantos encantamentos equantos emocões não estavamali, diante de nossos olhos,ainda cheios de resquícios

infantis, e ainda tão saudososdaqueles sinais que, por tantotempo, estabeleciam um elo mágico de união entre arealidade e o sonho? Tudo é possível sim --e sem-pre. E sempre haverá símbo-los, sinais que nos remetempara lugares que nuncadeixarão de existir. A infância éum desses lugares. E certa-mente um dos mais ricos efelizes. Até porque , para nóstodos que tivemos pais tãoexpressivos, dedicados eamorosos, a infância não acabanunca. Ele continua aqui emNNuurreemmbbeerrgg, no avião que nostrouxe, no carro que alugamos, e neste museu querestaura e recupera todas as dimensôes da meninice construída em comum.

Com modernas avenidas, animadas zonas reser-vadas para pedestres, pontes e poços, muralhas etorres, belos edifícios públicos, igrejas absoluta-mente sagradas (passamos o Natal em uma delas, naSan Sebald), a casa de Durer, o museu do brinquedo,o mercado central, a torre gótica da SScchhooeenneeBBrruunnnneenn,, o rio Pegnitz que divide ao meio a cidadeantiga e a imponente fortaleza, NNuurreemmbbeerrgg é, depois de MMuunniiqquuee, a segunda maior cidade daBBaavviieerraa. Com mais de meio milhão de habitantes,NNuurreemmbbeerrgg não esconde seu passado de 900 anos.Também não esconde uma estranha tradição: em1349 o imperador CCaarrllooss IIVV ordena a destruição dobairro judeu para a construção de uma grande praça,a MMaarrkkttppllaattzz. Um cronista da época, descreve assimesse acontecimento: ooss jjuuddeeuuss ffoorraamm qquueeiimmaaddoossvviivvooss nnaa nnooiittee ddee SSããoo NNiiccoollaauu,, eemm 55 ddee ddeezzeemmbbrroo ddee 11334499.. Muitos séculos depois--e seguindo o exemplo deseus ancestrais imperadores--os governantes nazis-tas elegeram NNuurreemmbbeerrgg como ponto chave. Tanto éassim que, em 1927, realiza-se lá o PPrriimmeeiirrooCCoonnggrreessssoo ddoo PPaarrttiiddoo NNaazziissttaa.. E as LLeeiiss ddeeNNuurreemmbbeerrgg, que são editadas no congresso do par-tido, tornam um milhão de judeus pessoas de segun-da classe. Mas não é só isso. Em 38, no último con-gresso do partido, os governantes nazistas con-seguem reunir mais de um milhão e meio de pes-soas. E nessa ocasião, novamente são expostas emNNuurreemmbbeerrgg os tesouros imperiais dos velhos imper-adores. Uma tradição iniciada pelo imperadorSSiiggmmuunndd tornando NNuurreemmbbeerrgg o lugar de custódiadas jóias imperiais que foram depositadas na IIggrreejjaaddaa VViirrggeemm, MMaarrkkttppllaattzz..(Praça do Mercado). As fotos deste box mostram a dimensão dos estragosprovocados pelos bombardeios dos aliados durante aSegunda Guerra Mundial. Compare a foto colorida aolado onde se vê a Sebaldkirche e a foto acima ondeela aparece absolutamente destruída.

Apaixonante caminho

Sebaldkirche

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Sentimos uma gratidãoinfinita por tudo aqui-lo que foi propiciado eproporcionado pornossos pais. E cá

estamos nós, revendo e revisi-tando, não só esses brinquedosque nos remetem a nossos pais,mas nossos pais mesmos--gravados e encravados em nós-- e nós mesmos, ainda pequeninhos( dentro deles ou fora deles?). É muito gratifi-cante perceber, atravésdesses elementos simbólicos, a nossa já antiga e permanente proximidade, o nosso laçoindissolúvel, a nossa colizão e coalizão existencial.Não será isso, afinal, que nosconfere fibra, fé e espíritofraterno para estarmos aqui, emplena AAlleemmaannhha,-- mais pre-cisamente, em NNuurreemmbbeerrgg,--lembrando, revendo e sentindoa amada presença de vocêsdentro de nós? E lá, mais dentroainda, a presença de nós mes-mos --pequeninhos -- nestemundão tão variado ou sortido--como dizia meu Vô Bento ?KARLOV VARY 27/11 - DeNNuurreemmbbeerrgg seguimos para awagneriana BBaayyrreeuutthh, ondeessa chateação de procurarhotéis foi resolvida com eficiên-cia e rapidez --graças a umagraciosa moça do posto deinformações turísticas. E, parasurpresa nossa, quando estáva-

mos caminhando pelas ruas emdireção ao ZZeennttrruumm, nosdefrontamos com uma pequenamultidão e um bando de cri-anças que, lanternas de velasna mão, colocavam-se bemdefronte a uma igreja.A sorte da gente foi tamanhaque, parados no meio daquelepovo, pudemos assistir --a nadamais, nada menos -- do que auma comovente e exemplarapresentação de um grupo demeninos cantores de Bayreuth.Logo em seguida percorremos afeira de Natal --bem rápida esuperficialmente -- e fomos atéo hotel deixar as malas e asnossas tranqueiras.Era nossa intenção voltar bemrápido para curtir um poucomais daquela festividade. Só que ao retornarmos já estavatudo fechado e aquela gentetoda enrustida em cafés erestaurantes. Foi decepcio-

nante. Aindaassimpasseamosbastante apé e, navolta aohotel, que éacopladotambém aum bar erestaurante,pensamosem jantar.Sentamos à

mesa dispostos a gastar e pedirum ssttrrooggoonnooffff e um ppáápprriikkaasscchhiinniittzzeell --mas o gerente veionos informar que a cozinha tam-bém já estava fechada. Eram 10horas da noite e nós com fome.Desistimos de tudo e fomospara o nosso quarto dormir.Manhã seguinte novas incursõese novas buscas pela cidade.Cismei em comprar uma fitacassete com músicas de WWaaggnneerre, por incrível que pareça, nãoconsegui. Resolvemos então vis-itar o FFeessttppiillhhaauuss, conglomera-do arquitetônico que reúne oTeatro (onde se realiza o céle-bre FFeessttiivvaall ddee BBaayyrreeuutthh) a casade Wagner e otras cositas masem um parque imenso. Pra variar estava tudo fechado,exceto um restaurante.Resultado: saímos de BBaayyrreeuutthhdesalentados e pegamos adireção da RReeppúúbblliiccaa TTcchheecca. Aí,já próximos à fronteira somos

a mais difícR

ep.T

chec

a

Lá no fundo o Grande Hotel Pupp

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surpreendidos por um conges-tionamento interminável.Alguns carros e ônibus faziammeia volta e retornavam sinal-izando que esperar seria inútil.Seguimos à risca essas dicas efizemos meia volta. Mas que direção tomar?Retornamos um pouco pelomesmo caminho, paramos àbeira da estrada, pegamos omapa e começamos a arriscarpalpites aleatoriamente. Nãoficamos convencidos de nada eresolvemos voltar ao conges-tionamento para perguntar aalguém sobre as alternativas

possíveis.É claroque asorte jáhavia dadosinaisclaros denão estardo nossolado. E pravariar jánão haviamaisninguém

fora dos veículos. Aí surgiu umaoportunidade --sempre repenti-na e complicada -- de perguntarpara alguém que, pelo jeito, estava buscando uma outraalternativa.--Speak spanish? , disse eu.--Yes. Von der mit haus gast.Desnecessário dizer que nãoentendi patavina do que osujeito disse tão rápidamente.Ele deve ter percebido isso e fezum sinal que nós entendemoscomo uma espécie de "sigam-me". Foi o que fizemos e noscolocamos em seu encalço.Parecia perseguição. Onde essecarro ia, nós íamos atrás. Se ele desistisse de atravessar a fronteira, por exemplo, e fosse a um bar para dar um tempo --lá estaríamos nós com aquela cara de quem não haviaentendido nada.Mas parece que esse lance dedados estava abolindo nosso

azar. Pelo menos era assim quepensávamos, cheios de fé eesperanças novas. E um sinalimportante disso era o fato deque a chapa do nosso carromadrinha era da RReepp.. TTcchheeccaa..Passamos dentro de uma aldeiae, logo depois, em outra --comnovo congestionamento que,desta vez, nos dava direito aguarda alemão e até carro docorpo de bombeiros. O carromadrinha parou à beira daestrada, nós paramos atrás, orapaz desceu pra examinar asbagagens de sua carreta e nemolhou pra gente. Ignoramos issoe de novo seguimos suasdireções. Pelo jeito nossaperseguição iria dar certo.E deu, pois depois de todas asdúvidas, tentativas e suspens-es, chegamos à fronteira. Umambiente tipicamente brasileiroe terceiro mundista se descorti-nou à nossafrente.Imensas filas,estreitamen-to da pista,asfalto empéssimascondições,ausência desinalização,falta de orga-nização earrogância noexercício dafunção.

cil travessia

Balneário em Karlov Vary

A bela Karlov Vary

Chris, curtindo um descanso, diante do Balneário

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a via sacra Po

nte

Car

los

Entreguei os pass-aportes ao guarda eele começou a colocardificuldades.Pediumais pápeis e man-

dou que nós os preenchesse-mos. E eu não entendia nada doque a "autoridade" falava e nemsabia como preencher aquelasbaboseiras. Aliás, tenho dificul-dades em preencher qualquerdesses papéis burocratizados. Ecomo se não bastasse isso,nosso carro estava parado bemno meio da pista, junto aoguichê, o que impedia a pas-sagem de um bando de genteque estava atrás de nós.Sugeri para aquela"autoridade"que ela permitissea nossa saída dali e a nossaparada em um lugar próximoque não provocasse tantotranstorno a tantas pessoas. Eleconcordou brasileiramente--quer dizer de uma formaambígua e duvidosa. Aindaassim o sufoco continuou, pois aAna preenchia o diacho dopapel e o guarda devolvia,querendo mais dados e infor-mações. Esse vai-e-vemrepetiu-se no mínimo por umascinco vezes, até que tudoestivesse solucionado.Aí a Ana foi trocar nossoscheques de viagem e eles nãoaceitaram. Nossa sorte foramas sobras de uns cem marcosalemães que puderam ser tro-

cados por umastrezentas e poucascoroas checas. Jádava para colocardiesel e, se deuscontinuasse nosajudando, seguirviagem até KKaarrlloovvVVaarryy. Mesmo assimparamos naprimeira cidadecheca --uma coisatipicamente terceiromundista -- para tro-car os travellers. Claro que foi mais uma tentativainútil.Aí desistimos de tudo e bus-camos a direção de KKaarrlloovv VVaarryy.Não foi fácil sair desse buracoabrasileirado. Mas na base detentativa e erro acabamos con-seguindo pegar a estrada e logode cara outra imagem familiar:as prostitutas. Pouco antes dacidade de KKaarrlloovv VVaarryy resolve-mos parar num hotel fantástico.Vimos o preço --1380 Kc --cercade 60 dólares e decidimos ficarpor ali mesmo. Mas quem disseque o nosso cheque de viagemseria aceito?Tivemos que ir até KKaarrlloovv VVaarryy --uma maravilha de cidade quetem o jeitão de MMôônnaaccoo e foifrequentada por BBeeeetthhoovveenn,,SScchhiilllleerr,, GGooeetthhee,, SSmmeettaannaa e out-ros -- e encontrar o GrandeHotel e o Cassino Pupp paraefetuar a troca. Feito isso, senti-

mo-nos vitoriosos e fomoscomemorar no podium sofistica-do e suntuoso do Café Pupp.Em seguida, tentamos ir até oCassino. Mas o Chris foi barra-do. Voltamos até o nosso magní-fico hotel e nos divertimosmuito com o conforto, com asofisticação e até com um filme-- gargalhante -- que o Chrisresolveu assistir na TV. (Dá praimaginar uma criança brasileiraasistindo a um filme tcheco emorrendo de rir?) Mais tardedescemos para jantar, voltamosao apto, ligamos a TV, vimos onoticiário e até um programaque me pareceu ser do FFeessttiivvaallddee BBaayyrreeuutthh. Mais tarde ainda --e já com o Chris e a Ana ronro-nando -- assisti a um programacom as coelhinhas da Play-Boy.PRAHA--Eu esperava que aRReeppúúbblliiccaa TTcchheeccaa fosse sóbriacomo a revolução vermelha,fria, de chapéu de pele e sobretudos de lã. Ou quente

As inesquecíveis torres de Praga

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sobre o rio

de solenidade e paixão pelaseriedade. Não, ela éeuropéia como os outros país-

es, continuação das aauuttoobbaahhnnss eaauuttoorroouutteess. Tem os postos deserviços competentes, as sinal-izações e as aldeias. Mas asaldeias checas são checas.Conservam um tempo maisremoto que as aldeias alemãsou austríacas. Acho que elassão, ainda hoje, como eram asaldeias alemãs e austríacasantes deste século XX consum-ista e tecnológico.Seguimos as sinalizações paraPPrraahhaa curiosos dos resíduoscomunistas, trabalhistas,obreiros e cooperativos. Nãovíamos diferenças explícitas.Víamos um povo mais aberto,mais igual a nós. Nas roupas,nos semblantes, na simpatia.Principalmente muito maisexpressivos que os alemães eos austríacos.E PPrraahhaa quando chega, chega

mesmo. Entramos por avenidascom prédios novos e velhos,ruas desarrumadas e fomosdireto em direção ao ZZeennttrruumm.Vimos as Torres. As torreschecas, as torres de PPrraahhaa. Nãoé uma cidade de chorar. Masqueríamos os sinais da rev-olução que tinha existido ali.Chegamos a praça andando,depois de estacionar o carrobem ao lado da Catedral. Elafica escondida, revelada apenaspelas torres inconfundíveis.Havia feira de Natal, bonecasmatriochas. Filmamos a torredo relógio às 12 horas.Na Oficina de Turismo pegamos

o mapa de PPrraahhaa. Quemapa! O mapa dotesouro, do mistério,da dificuldade.Tentamos aprendê-lo.Mas quando eu lia onome de alguma ruana rua, com milhõesde consoantes e duasvogais solitárias -- e iaprocurar no mapa paranos localizarmos, ocarro já se distanciavapelo menos três ruasadiante. Procuravaoutra vez e assimfomos nos perdendono mapa e encontrando PPrraahhaa.Queríamos chegar aoHHootteell SSooll que haviasido indicado no con-sulado

pelo consulcheco naAmazonia. Masnão tinha jeito deacertar. O relevoda cidade estavaausente do mapae nãoconseguiamosatravessar a áreaverde sem ruasque era umamontanha.Voltamos ao cen-tro e a Oficinapara maioresesclarecimentos.

Nós, disfarçados de estátuasO relógio na Praça.

A Ana na ponte.

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um esboço dVi

ena

Em inglês e alemãoobtivemos o endereçode uma pensão. Masa dificuldade eraexatamente a mesma.

Tentamos, outra vez, outroscaminhos, agora já conduzidospor Deus...Porque é sempreassim: quando ele quer brincarcom a gente...temos que esper-ar Ele resolver nosso destino. E assim, magicamente, depoisde muito rodar, nos encon-tramos numa região que tinha onome igual a alguma referência.Parar e perguntar. Mas como?Em tcheco? Em inglês? Emalemão?HHootteell SSool era a única comuni-cação possível. Perguntamos auma moça num lugar alto ondese avistava PPrraahhaa inteira. E prapiorar já era de noite. Mas entretatibitates linguísticos e gestosdeu prá perceber que a moçaindicava que nós já estavamosna região correta. Seguimosmais um pouco e no caminho vialgo como uma clínica. Procureino mapa e achei que estávamoscertos. Perguntamos a umrapaz. Estávamos tão cansados,tão confusos, com tantos nomese nomenclaturas novas, --e orapaz nos disse, apontando -- éali, aquele prédio mais alto.Nem sei em que língua ele disseaquilo, mas que nós chegamos,nós chegamos. Ufa!Deus é bom e não abusa da

gente. O HHootteell SSooll era um pré-dio imenso num bairro de pré-dios residenciais estandardiza-dos, --comunistas achamos. Oquarto era comunista, o saguãoera comunista, o papel higiênicoera comunista. Aí começamos abrincar..que falta faz o capitalis-mo! Dois quartos enormes.Primeira vez que o Chris nãodormiu no mesmo quarto quenós. Pudemos trocar dinheirono Hotel e fomos a um restau-rante próximo que havíamosnotado no caminho. Incrível,pedimos a comida seguindoaquilo que uns tchecos haviampedido na mesa ao lado e acer-tamos em cheio. Era ótima.Voltamos a esse restaurantemais duas vezes e no último diasentamos em uma mesa já ocu-pada por um senhor. Lá, naRReeppúúbblliiccaa TTcchheeccaa, podiamosfalar com liberdade pois nãoéramos compreendidos. Puroengano. Este senhor sentado ao nosso ladohavia morado no

Brasil (Recife eSão Paulo). Conversamos muito.Foi tão bom se comunicar comum tcheco. Perguntamos tudo.Sobre a revolução, a abertura, aPPrriimmaavveerraa ddee PPrraaggaa, e ficamostristes em saber que osalemães agora dominam com o dinheiro tudo aquilo que emoutros tempos eles dominaramcom os panzers.A PPoonnttee CCaarrllooss. A ponte maislinda do mundo. É a via sacramajestosa sobre o rio ligando osdois lados da cidade. A ponte é acidade. A ponte é o ponto alto.As torres da entrada, as está-tuas...diante de cada uma é pre-ciso ajoelhar e rezar. É umsonho a ponte de Praga.Atravessamos a ponte. Um café.Um pequeno café tãoeuropeu...efomos ao castelo de PrahaVIENA - Não é nada daquilo queeu esperava: é grande e sofisti-cada demais para os meusquereres. É uma espécie dePPaarriiss encolhida e pretensiosa. E

Com o dourado Mozart,no parque, em Viena. Escultura em gelo

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de Paris?

não é nada musical comoSSaallzzbbuurrgg, nem é presepinho,maquete --coisa encantada. E écidade cara, infelizmente, semcara. Sua face é faceta. Seujeito, caricatural. Tudo lá é difí-cil. Ou foi difícil pra gente.Trocar dinheiro, encontrarHotel, visitar o SSttaaddttooppeerr. ACCaatteeddrraall ddee SSaann SStteepphhaann é mar-cante e domina a cidade inteira.Por dentro, porém, ela é desin-teressante,vazia deDeus e deBeleza. Maisou menoscomo VViieennaa.Uma ver-dadeiradecepção,mas sem dor e semespanto.A verdade éque WWiieennnunca esteveno rol dos

meus lugares mais desejados einstigantes. Ela foi incluida noroteiro de nossa viagem muitomais como curiosidade do quecomo interesse pessoal. Aindaassim é preciso reconhecer queela é uma cidade muito bonita.Mas não é nem um pouco poéti-ca. É pouco expressiva e nãoteve o dom de nos sequestrar,impulsionando nossas emoçõesem torno de sua Ring, cinturaviária que envolve seu corpo eseus meandros sofisticados.O mesmo já não aconteceu comKKllaaggeennffuurrtt,, cidadezinha situadana região de um lago enormepontilhado por pequenas vilasturísticas do verão austríaco. Alipudemos sentir os espaçossolitários, as veredas e asalamedas debaixo de nossospés. Ainda assim os hotéisestavam fechados, os clubes

estavam fecha dos e em quasetodas as casasda cidade nãohavia viva alma.E apesar disso --ou precisa-mente por isso -- sentimos asemoções dadescoberta, doestímulo, daalegria. Foigratificante eenriquecedoranossa passagem

por ali. E depois de KKllaaggeennffuurrttseguimos a direção de VViillllaacchhem busca da fronteira com aIIttáálliiaa. Nosso destino agora eraCCoorrttiinnaa DD''AAmmppeezzzzoo, estaçãoturística de inverno dos ital-ianos e das pessoas sofisticadasde todas as partes do mundo.Por caminhos cada vez maisbonitos fomos adentrando nocorpo das montanhas que con-stituem os Alpes. E aí foi aquelebanho de natureza e de natural-idade. A cada curva e a cadareta os panoramas se modifi-cavam. Aldeias e casassolitárias pontilhavam as mon-tanhas. Nos vales, pequenosrios acompanhavam as estradasem curvas contínuas e, àsvezes, em pequenas retas pro-tegidas por altos paredõesrochosos.

o No parque.

San Stephan.

A roda-giganteé gigante mesmo.Em cada cabinecabem umas 10 pessoas

Rua badalada

Diante do Palácio

Vista geral

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um hiato deD

obia

coE

foi assim, seguindovales, montanhas erios que nos aproxi-mamos de CCoorrttiinnaaDD""AAmmppeezzzzoo. E aí,

seguindo placas, tomamos con-hecimento de que ela já estava apouco mais de 30 km de nós. Oscaminhos foram se tornandocada vez mais estreitos e sinu-osos e as montanhas cadavez mais próximas, mais altas

e mais geladas.Em nós três uma sensaçãoinfantil de estar ganhando umpresente, desvendando um mistério, revelando umafotografia e invadindo umespaço que certamente jamaisesteve esperando por nós. E em pouco tempo, depois de passar por algumasincompreensíveis CCaassaass ddiiAAlleemmaaggnnaa ou GGeerrmmaanniiaa, atingimos o nosso alvo: estáva-mos emCCoorrttiinnaaDD''AAmmppeezzzzoo.Montanhasrochosas,altas eíngremes,misturavam-seà formaçõesmenos agres-sivas, maisarredondadase bem maisfemininas.

Parquegiamo lamáquina e tuttinoi sentieri anco-ra la voce piuintime del animodella naturapiena di mistero revelato.Per la primavolta una sen-sazione di allegerimento.Nel giro di pochitempo sulla natu-ra imersa in questa aria freddae grandiosamenti selvaggia, noiviviamo la stenza del amore.

Mas como l'amore é piu caro --eCortina D'Ampezzo também,fomos buscar abrigo nacidadezinha mais próxima --DDoobbiiaaccoo -- que está a poucomenos de 40 km de Cortina. E látivemos o sortilégio total deencontrar uma zziimmmmeerr exce-

lente com direitoa quarto comcama de casal ecama de solteiro,banheiro privado,tv, varanda, salinha de almoçoe até cozinhacompleta comgeladeira,liquidificador,talheres, louça,

fogão.E tudo isso por um preço

que só nos deixaria ainda maisfelizes e contentes: 40 dólares--e com as chaves na mão.E foi aí, em DDoobbiiaaccoo, que fize-mos uma bela macarronadacaseira com todos os ingredi-entes e rituais domésticos. Aúnica diferença é que o macar-rão era italiano, o molho detomate era italiano, o queijo ral-ado parmesão era italiano, e ovinho também era italiano. Nãome recordo se era Chianti ouValpolicella. Mas isso não faz amenor diferença.Afinal de contas, o que valeu evale é a retomada dos ritmoscotidianos e domésticos, feitosde prosa e poesia, de revelaçãoe repetição. As infindáveis sub-stituições e buscas turísticas --mesmo que situadas à margemdo processo -- são cansativas,exaustivas e, às vezes, compro-metem lugares belos e dadi-

Cortina D`Ampezzo

Cortina D`Ampezzo e as Dolomitas.

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de pulsaçãovosos. E algumasvezes --raras, maspresentes-- pare-cem comprometera própria viagem eo humor dos via-jantes.Também por essemotivo DDoobbiiaaccoofica como momento altodesta viagem.Hiato de pulsação. Pausasemântica. Silêncio sonoro.Foi daquela varanda situada no

sótão daquela casa que eu pude presenciar, numa noite escura,o bimbalhar dos sinos de umaigreja vizinha. E na manhãseguinte, dessa mesma varan-da, eu pude perceber que aigreja vizinha era a CCaatteeddrraall ddeeDDoobbiiaaccoo e que nós estavamosgrudados em montanhas altas,rochosas e cheias de neve. E láembaixo nosso carro estavacoberto de gelo. Que fazer paradeixá-lo em condições de trafegar? A inexistência dessetipo de circunstância em nossavida, criava empecilhos sérios.Mas a inventividade brasileiraajudou a resolver a questão.Pegamos uma caixinha de fitacassete e com ela limpamostodos os vidros e pudemosseguir de volta até Cortina. Imaginávamos passear decadeirinhas em direção às

estações de esqui.Fomos verificar seisso seria possívele constatamos quea temporada deinverno ainda nãohavia começado: ascadeirinhas e osbondinhos não fun-cionavam-- e aspistas de esquiestavam chiusas.Ficamos chateados

e momentanea-mente vacilamos com lamentose reprovações. Pouco depois,superadas as dores do desapon-tamento e das decepções, está-vamos no carro subindo aquelasmontanhas geladas. Paisagensde postal e paisagens de solidãose alternavam em nosso camin-ho íngreme, curvo e ascendente.Mas a neve mesmo não vinha,não aparecia e a Ana e o Chrisregressavam às decepções eaos desapontamentos.De repente --não mais que derepente -- o Chris viu um veadinho. Voltamos, vagarosa-mente de ré ,e vimos não um,nem dois -- mas três veadinhosrecortados na contraluz de umbosque de pinheiros. Seus movi-mentos rápidos e sua graçafrágil e quase volátil restituiramânimos e esperanças. E continuamos a subir. E adescobrir. Quando a neveavolumou-se mais, resolvemos

parar e brincar no meio dela. O Chris escorregava, caia e riasem parar. Coloquei uma fita(presente do Saulo) com a Galcantando aquela delícia rítmicae fui filmar os meus pares balançantes na montanha. O sol estava a todo vapor eo céu azul conferia uma auramágica a este toque do Olodum nos corpos amados eem seus pés, absolutamentebrasileiros gingando sobre a neve.Depois subimos no carro e continuamos a subir as montanhas --infatigavelmente.Até que surge diante de nósuma estação de esqui, comcadeirinhas, pista nevada e atéum rústico bar-restaurante comuma varanda imensa. Não épreciso dizer que tudo estavachiuso. Mas desta vez o estarchiuso significou, a sotto voce, anossa verdadeira abertura paraa amplidão, para o silêncio, epara a troca monumental com a natureza.

Assim como CCaammppooss ddoo JJoorrddããoo deixou de ser, priori-tariamente, uma estância climática-- indicada para arecuperação de problemas pulmonares-- e tornou-se refúgio de artistas, escritores e magnatas, CCoorrttiinnaaDD’’AAmmppeezzzzoo transformou o CCooddiivviillllaa -seu célebresanatório onde nos anos 20, o escritor AAllbbeerrttooMMoorraavviiaa, padecendo de tuberculose, escreveu OsIndiferentes--em um bem aparelhado instituto trau-matológico para os esquiadores sem sorte.E hoje, quem chega ao belo vale onde está CCoorrttrriinnaaDD’’AAmmppeezzzzoo, fica fascinado por uma das mais comple-tas e exclusivas estações de inverno do mundo.Instituída como padrão de sofisticação e beleza oci-dental, essa pequena aldeia, de pouco mais de oitomil habitantes, se transforma, nas temporadas deinverno, numa badalada cidade de mais de quarentamil pessoas. Pólo turístico elegante, CCoorrttiinnaa DD’’AAmmppeezzzzoo possuilojas das principais grifes, vida noturna bem movi-mentada com várias boates funcionando, uma peque-na rede de hotéis bem caros e sofisticados que con-segue dar conta do recado, cem quilometros de pis-tas para a prática de esqui, várias opções de cafés erestaurantes, muitas pasticcerias com nomes aus-tríacos, campos de golfo e de tenis,e três escolasprofissionais para esquiadores.E para defender Cortina da especulação imobiliária,foi criado um consórcio agropastoril--a RRaa RReeggoolleess--que regula a ocupação do solo. Esse consórcioadministra os bens coletivos, disciplina o desmatamento e, sobretudo, tem o poder de intervircontra qualquer atentado ao equilíbrio ecológico,hoje mais do que nunca ameaçado pela “descoberta”do vilarejo.Mas CCoorrttiinnaa DD””AAmmppeezzzzoo já está protegida natural-mente pelos picos azuis e rosados dos AAllppeessDDoolloommííttiiccooss, pelo difícil acesso, por ser relativa-mente distante das principais cidades italianas--MMiillãão está a 411 quilometros, TTuurriimm a 550 e Roma a672--e, sobretudo, em razão dos preços elevados de sua vida turística.O acesso mais utilizado é a auto-estrada dosDolomíticos, que liga BBoollzzaannoo a CCoorrttiinnaa. Mas o camin-ho mais fantástico e mais integrado a natureza é pas-sar por DDoobbiiaaccoo e seguir por uma pequena estradaque oferece ao viajante paisagens majestosas e vari-adas. E,certamente, o melhor chocolate quente doplaneta Terra.

Dobbiaco

Cortina D`Ampezzo

As Dolomitas

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o portal do Su

iça

Éreconfortante eestimulante estaraqui desfrutando daneve, do calor e dapaz das alturas.

Pouquíssimas pessoas --nãomais que seis -- sequer atrapal-haram nossa conquista dessesespaços brilhantes e serenos.Ficamos algumas horas lá emcima brincando na neve,esquiando com o corpo, toman-do sol e redescobrindo nossoparentesco com ZZaarraattuussttrraa quefoi concebido a seis mil pés dealtura do mar e muito acima detodas as coisas humanas.Por volta das duas ou trêshoras da tarde, descemos amontanha do júbilo para o valeonde está CCoorrttiinnaa dd''AAmmppeezzzzoo. Ede lá resolvemos regressar paraDDoobbiiaaccoo com o intuito dealmoçar em algum restaurante.Infelizmente, não conseguimosrealizar nosso intento. Mas nempor isso abandonamos a idéianascida de nossas vísceras.Comer, naquela altura do dia edo campeonato, era importantepara renovar energias e equili-brar corpo e mente. Fomos até um mercado e depoispreparamos coisinhas em nossaprópria casa provisória.À noite repetimos a dose e, namanhá seguinte, pegamos aestrada em direção a VVaarrnnaa,,BBrreessssaannoonnee,, BBoollzzaannoo ee SSuuiiççaa..Em VVaarrnnaa visitamos a zziimmmmeerr

de 2 anos atrás, o posto de tur-ismo, o povoado de NNoovvaacceellllaa, earriscamos até uma subida nosentido de SSppeelloonnkkaa. Mas desis-timos pronta e rapidamente. Evoltamos a abrir nossas bússo-las ao destino flutuante. Desta vez, após bruscos cortesem nosso roteiro--havíamosabandonado a idéia de voltar aIIttáálliiaa e, em seu lugar, incluimosa SSuuiiççaa--resolvemos seguir àrisca nossas novas definições.Elá fomos nós em direção aquelaSSuuiiççaa que não tem nada a vercom aquela idéia convencional eesreotipada da Suiça.Destituída ou desprovida desseimaginário encantatório-- tipomaquete,-- a Suiça foi pouco apouco mostrando as cicatrizesde seu corpo e de seu espírito.E nós também fomos, pouco a

pouco,mostrando erevelandonossastendênciasmais fundase nosso parentescoinfantil comaquele rele-vo rico emescarpas,vales esolidão altiva.De certaforma, o que

emerge e saí desses caminhosde chegança é mais ou menosaquilo que já habitava a cabeçagrega do HHeerráácclliittoo. Quer dizer:tudo tem, em todo o tempo, ooposto de si. Ou seja: o múltiploé um e o um é múltiplo. E prareforçar ainda mais essa idéiaaparentemente louca, é precisonão esquecer que não se entrana mesma água duas vezes.Portanto, o movimento e a pul-sação do universo, assim comonosso próprio movimento enossa própria pulsação, conver-giam em um espaço absoluta-mente contraditório ao qualNNiieettzzsscchhee chamou de Instante.E como viver o Instante e oInesperado?De que servem as preparaçõesidílicas, os propósitos firmes denão vacilar, as libações etílicas,

Parada estratégica, depois de Varna.

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reencontro

os aprendizados em grupo ouem solidão? Será que alguémainda acredita que existe ensaio pra viver? Claro que a vida é uma fatali-dade. O amor é uma fatalidade.A morte é uma fatalidade. Etudo isso é tão selvagem quantoDeus é selvagem. E a vida é sel-vagem. Pois bem: a SSuuiiççaa é umpouco assim. Ela pode ser civi-lizadíssima nesse conceito deconquistas de equilíbrio e bem-estar, mas ela é absurdamenteselvagem, expressiva, propici-atória, anti-burguesa. Acho que a Suiça é um paíssolitário. Um país sózinho .E talvez esteja aí a razão desuas posturas independentes.E não adianta me lembrar deum amigo suiço, o Pitt (quemorava no Brasil) e dizia que

sua mãe, ao ficar por aqui unsdias, teve problemas ao voltar.Segundo ele, os vizinhos recla-maram que as plantas nãoforam cuidadas, etc, etc. E isso caracterizaria uma certainvasão de privacidade. Umavigilância estúpida e aborrecida.Mas, pra mim, a SSuuiiççaa não éisso. Evidentemente que paramuitos suiços isso pode pareceruma visão extemporânea e equivocada. Mas todos nóstemos o direito e o dever defugir às réguas e às regras que engaiolam a vida empequenos compartimentos fixos, estanques.Todos nós deveríamos ter ocompromisso de assumir osriscos da liberdade. Não daliberdade que procura, enfastia-da e saturada de si mesma,

novos brinquedos e novas dis-trações numa sucessão inter-minável de fins e propósitosmutáveis. A liberdade a que merefiro é aquela que possibilita abusca e o conhecimento de simesmo. Algo parecido comaquele retirar a trava dos olhose a mordaça da boca.Desconectar-se das visõesestereotipadas. Libertar-se dagregariedade medíocre.Assumir os próprios desígnios.Os próprios riscos. O próprio einconfundível corpo. E a alma infungível, mas sempre disposta a entregar-seem prece, em júbilo e alegria.

Precisa, perfeita e bem-acabada, a SSuuiiççaa é um dospoucos lugares do mundo que reúne tantas atraçõesnum território tão pequeno. (O país todo ocupa umaárea equivalemte a um sexto do Estado de SãoPaulo). Além das fantásticas estâncias climáticas deZZeerrmmaatttt,, KKlloosstteerrss,, DDaavvooss,, SStt..MMoorriittzz,, SSiillss MMaarriiaa eBBíívviioo, ela possui belas cidades históricas comoBBaasseell,, BBeerrnnaa,, FFrriibboouurrgg,, MMoonnttrreeuuxx,, LLuucceerrnnaa eGGeenneevvee.. E vilas pitorescas como RRaarroonn --onde estáenterrado o nosso amado poeta RRiillkkee-- GGrruuyyèèrreess eSSiillss MMaarriiaa, onde NNiieettzzsscchhee se sentia em sua ver-dadeira pátria. E isso sem falar de ZZuurriiqquuee que é, sem dúvida, a mais cosmopolita das cidades suiças, mas ainda temuma paz de província, apesar dos seus quase 1 milhão de habitantes.Alías, é bom registrar que a SSuuiiççaa inteira tem umapopulação menor do que a da cidade de São Paulo.Vivem lá, hoje, pouco mais de 7 milhões de pessoas.Talvez por isso elas possam se dedicar quase queexclusivamente aos problemas existenciais--já queos materiais estão quase todos solucionados. Outroaspecto que merece destaque é a solidez de certosvalores como a confiabilidade, a neutralidade e a dis-crição. Se você esquecer um RRoolleexx,por exemplo, naplataforma de uma estação, pode voltar lá que équase certo que ninguém deve ter dado sumiço nele. Curioso é que a SSuuiiççaa, muito conhecida por suaproverbial neutralidade nas guerras que devastarama Europa e seus poderosos vizinhos como AAlleemmaannhhaa,,FFrraannççaa,, IIttáálliiaa e ÁÁuussttrriiaa,, é um dos países mais bemarmados em todo o mundo. NNóóss nnããoo tteemmooss uummEExxéérrcciittoo:: ssoommooss uumm EExxéérrcciittoo, costumam dizer oslíderes militares. Na verdade, todo cidadão suiço éum soldado bem treinado. Eles são obrigados acumprir dezessete semanas de preparação aos 18anos. E existem reciclagens anuais obrigatórias detrês semanas- até os 36 anos- e de duas semanaspor ano até a aposentadoria. E qual o maior recurso natural desse país tãopequeno que se orgulha tanto de ser a sede mundialdos alpinistas, dos trilheiros, dos queijeiros, choco-lateiros e relojoeiros? Os AAllppeess que ocupam mais dametade do território suiço e atraem a maior partedos 20 milhões de turistas que visitam o país a cadaano. Além disso, viajar pela SSuuiiççaa é como dar a voltana EEuurrooppaa.. São quatro idiomas e vários hábitos diferentes que convivem em harmonia desde 1291. Ao todo são 26 cantões --equivalentes aos nossosEstados--onde todo mundo fala pelo menos trêsidiomas: o alemão e o francês, oficiais, e o inglês,obrigatório. Isso sem contar com o italiano e oromanche que são línguas nacionais suiças. E embora sejam orgulhosos, soberbos, cultural-mente e politicamente independentes, desdenhososdo mau gosto e do desleixo, dolorosamente assead-os, rigorosamente pontuais --o suiço tem um pontofraco pela beleza e timidamente se regozijam comdiminutivos: um bbiieerrssttuubbee alemão torna-se umssttuubbllii,, kkuurrcchheenn(bolo) torna-se kkuucchhllii, wwuurrsstt torna-sewwuurrssttllii,, ppaasstteettee(pastelaria) torna-se ppaasstteellii e umaccoouuppee(taça) de champanhe torna-se uma ccuuppllii.. E nãoesqueça que aqui a bebida alcoólica é medida comprecisão científica-- através de taças marcadas porum centilitro ou dois. E os vinhos locais vêm em gar-rafas, que lembram o bequer, de laboratório.

Em Novacella

Em Varna,defronte a nossa zimmer.

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a explosão dSp

lung

aN

ão sei bem direitopor que, mas nóschegamos até afronteira da SSuuiiççaavia IIttáálliiaa. Mas não

passando por MMiillããoo ou LLuuggaannoo,caminho mais ou menos oficial,com autovia, múltiplos recursose é claro, com pedágio. Ao invésdesses confortos e facilidades,resolvemos buscar atalhos everedas regionais com a intençãonítida de um conhecimento maisdetalhado e mais apropriado aosnossos gostares. E aí, foi aquele idílio heróico elimítrofe com as "serpentinas"íngremes e estreitas situadasnas escarpas das montanhas de Splunga.Nunca vimos nada igual. Sequerparecido. As mais desmilin-guidas ruelas de qualquer aldeiamedieval -- tipo GGiirroonnaa,,CCaarrccaassssoonnee,, LLeerrmmaa oouu TToolleeddoo --pareciam transformar-se,repentinamente, em verdadeiras"free-ways", seguras, protegi-das, sinalizadas. Em diferentes eassustadoresmomentos nãohavia espaço paramais de um carro. Etudo isso sempre nosentido ascendente,beirando precipí-cios, com curvas emais curvas emcotovelo (semel-hante ao velho cam-

inho do marentre SP eSantos),pequenostunéis comsemáforo epassagempara um sóveículo eoutras aber-raçõesrodoviárias.Não fosse ofato de tercruzado com dois ou trêsautomóveis durante todo essetrajeto e eu teria certeza deestar invadindo, mais uma vez eequivocadamente, uma ciclovia,uma pista para motocross ou ahistórica vviiaa aauugguussttaa rroommaannaafeita para velocidades e veículostotalmente diferentes deste queeu estava pilotando. Mas não restava dúvida: "aquilo" não eramesmo caminho de cavalo, detropas guerreiras e aguerridas,de burricos perdidos no tempo.Muito menos de bicicletas ou

motos. "Aquilo"era mesmo paraautomóvel. E era pra valer.É claro que não foi sópor essa razão quenós prosseguimosnessa trilha incógnita.Como já se disse poraí, o coração temrazões que a própria

razão desconhece. E a gente temque acreditar em alguma coisaque está sempre situada dentroda gente e está fora do alcancelógico ou de qualquer outrarelação de domínio. Até a Ana(que devia estar inconfessada-mente apavorada até alquelaaltura) também mostrava, vez ououtra, sinais indeléveis defascínio e medo, encantamento epânico. É a velha, caquética ebela oscilação romântica que vaiimpulsionando cada um de nóspelos inconfessáveis caminhosextremos da paixão.Em vários instantes, sem con-seguir conter sua emoção inde-cifrável, ela afirmava com osolhos, com o corpo e com a almainteira, a eternidade daquelatravessia-- feita entre osextremos do tempo e os descon-hecidos limites daquele espaço.Mas essa mesma emoção nãoera privilégio dela, nem meu. OChris (mesmo ignorando

Curvas violentíssimas,pequenos tunéis e abismos. Naquela época,tudo estava branco.

Estreitamentovisual. Sufocante.

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do instante

racionalmente a existênciadesse touro bifronte) vivia e sen-tia tudo-- exatamente como nós.E basta falar pra ele a palavramágica, SSpplluunnggaa, que qualquerpessoa poderá certificar-secomo isso é verdadeiro. É que aspalavras - vivas e vivenciadas--abrem portas, revelam tesourose distinguem, enfim, um serhumano ou uma criança de umaameba.Esta é, pra mim, a chave de todoe qualquer possível crescimentolegítimo, natural e humano.Afinal de contas, sem o compro-misso e o comprometimento coma verdade, com a beleza e a aut-enticidade, o homem não passade um arremedo ou de umremendo do homem. É precisoenfrentar os fantasmas parasaber que os fantasmas talveznão existam. Mas a posturahumana não deve fechar as por-tas ao mágico, nem abandonaras perplexidades infantis que

retornam comosementessagradas parafertilizar nossavida e nosso des-tino.Não gosto enunca gostei dascoisinhas queconstituem osvalores supre-mos da pequenaburguesia e da

classe média. Eu troco a segu-rança e o conforto pela surpresae pelo risco do imprevisível. Eutroco --e trocarei sempre-- aalegria das pizzas aos domingos,pelo espanto encantado, pornossa ignorância e nossa inocên-cia compartilhada nas trilhasinclinadas de SSpplluunnggaa. É lá -- ésempre lá --onde inexistem mul-tidões e onde os povoadospodem ter até 260 habitantes( caso de BBíívviiooss, situado nasproximidades de SSiillss MMaarriiaa) queos valores antiburgueses encontram eco, ressonância.Acho que sou, sempre fui, umaristocrata no espírito. Ou umtroglodita. E a Ana também éassim. Verdadeiramente assim,graças a Deus. E o Chris é o queé, na intimidade, recatada eapaziguante, por ser e ter achave desse mistério. Por terescolhido a gente como seuspais. Por ter criado tantas opor-tunidades, únicas e irrepetíveis,

de cooperação infantil, de apro-fundamento filosófico, de soli-dariedade cristã --e percepçãoprofundamente estética.No meu modo simples e integralde perceber a vida, fico cada vezmais convencido de que o Chris éuma espécie de meu Pai. Algoligado a genealogia do espírito enão a essas questiúnculas deramificações familiares. A minhaidéia de pai é uma idéia cristã decompanheirismo. É a idéia deJesus clamando e reclamandona cruz: -Pai, por que me aban-donaste? É também a idéia deJesus, o Cristinho menino, car-regando durante a sua vidainteira --e com leveza de bailari-no -- essa cruz invisível esolitária onde são crucificadostodos aqueles que, por um senti-mento inexplicável, foram toca-dos por seu exemplo singular.Por sua humildade e por suaaltivez. E a sua impenetrávelsolidão.

Os sinuosos e assustadores caminhos de Splunga. Aqui empleno verão

Aqui já é possíveldimensionar as dificudadesque viriam a seguir.

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do entrave A

tra

vess

iaM

as voltando aoconcreto, subindoa fronteira emdireção a Splungafomos perceben-

do, progressivamente, a pre-sença da neve cada vez maisintensa ao nosso redor e atémesmo sobre o asfalto. E embo-ra tudo isso fosse aumentando,rápida e insidiosamente, nossoestranhamento não conseguiaimobilizar o Renault. Nósqueríamos mesmo é prosseguir,aventurar com cuidado, contin-uar ousando e abusando. Aípassamos por um vilarejo mon-tanhês. É claro que uma aldeiadaquela situada numa regiãotão inóspita desperta curiosi-dades triviais e espantos pro-fundos. Afinal, como é que vivi-am os moradores daquelacomunidade perdida em mon-tanhas tão íngremes esolitárias?Nem bemacudidos esacudidos poresses pensa-mentos e nósjá tínhamosque respondera situaçõescada vez maisdifíceis e com-plicadas. Oasfalto iadesaparecen-do debaixo de

nossos olhos e em seu lugarsurgia a neve, o gelo e aquelabrancura infinita que faz comque percamos todos os pos-síveis referenciais. Já não sabi-amos direito o que era montan-ha, o que era caminho de carro.Para complicar ainda mais, umanévoa úmida e branca e umachuva intermitente e tambémbranca intensificava-se aonosso redor.Ainda assim, despojados de ref-erenciais e no meio de todaaquela brancura oommooggêênneeaa,conseguimos prosseguir poruns dois quilômetros. Aí fomostocados pela dúvida e pelo medoforte: quantos kms faltariam atéaquela fronteira inacessível ?Uns 5, 10 ou 20? Paramos o Renault no meiodaquela montanha branca, nomeio daquelas nuvens brancas,daqueles ventos também bran-cos e daquela estrada absoluta-

mente branca. Só faltavamesmo aparecer São Pedro comsuas barbas também brancas,dando-nos a chave branca deuma nova vida também branca.O Chris ficou um pouco ate-morizado. Mas só um pouquin-ho. Até receber a explicação deque não havia perigo nenhum, ocarro estava bem e que a genteresolveu parar ali para aguardaralgum outro carro e obter infor-mações relativas à distância quenos separava da fronteira. E haja espera. Ninguém passa-va. Fizemos uma manobra deretorno para buscar aquelaaldeia próxima, mas nissodeparamos com um carrosubindo. Dei sinal de farol, pareie perguntei se aquilo era daque-le jeito mesmo. O rapaz queestava dirigindo e sua acompan-hante sequer entenderam anossa dúvida e a nossa dificul-dade--e o meu macarrônico ebexiguento italiano.Disseram que era assimmesmo com aquela familiari-dade tranquilizadora de filhoreencontrando o caminho ouninho da casa dos pais. Pelojeito, a fronteira estava bempróxima e não haveria maiorescomplicações. Expliquei que nósiríamos seguí-los-- e foi o quefizemos. Acontece que exata-mente no lugar onde havíamosparado (por dúvidas e descon-hecimento) eles também

Thiago: nos caminhos brancos, na direçãode Bivio, saindo de St Moritz.

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e do através

pararam. Só que eles nãoestavam conseguindo subirmais por outros motivos: faltade equipamento, falta de com-petência e falta das experiên-cias absurdas a que todos nós,brasileiros e terceiro-mundistasestamos habituados a viver e aenfrentar --e não só emestradas. Resolveram colocarcorrentes nos pneus. Paramosatrás e ficamos assistindo aque-la cena de comédia italiana,verdadeira ópera bufa.Pra começar, a mulher abriu oporta-malas, pegou as cor-rentes -- pelo jeito nunca uti-lizadas --e, em seguida, agarrouos pneus. Tentou, tentou e nãoconseguiu nada. Aí o latin lover,impecável professor (pelo jeitovisual de estar ali como seestivesse numa sala de aula)deu seus palpites sábios. Claroque deveriam ser interpre-tações perfeitas, em linguagemcorreta e absolutamentedesconectada daquela reali-dade. Em suma, uma postura nomínimo alienada. Mas comosabemos, a gravata e a boa

aparência só assegu-ram aplausos eaprovação no meiodessa gelatina pasmae desse purê debatatas morais que éo homem pequenoburgues e a mulherpequeno burguesa. Diante da imensidão

inaudita da natureza, de seusfenômenos surpreendentes eabsolutamente incapturáveis,resta ao homem buscar na suaancestralidade animal ehumana, divina e satânica, oapoio lendário e concreto, anôn-imo e heróico de seus velhos eantigos companheiros.Não é possível fazer coisadiferente diante do amor---essemistério religioso que nos ligaao pórtico do instante e do adi-ante. Mas o caso aqui referidonão tinha essas implicações,nem deveriam impulsionaressas reflexões.Era apenas uma questão de

seguir ou voltar. De assimilaraquele real, de se envolver comele e sentir todos os seuschamados e todos os seus silên-cios. Mas eu sou assim mesmo:voltado para os abismos, repletode veredas e absolutamentepleno de ausências e presenças.Graças a isso, tive e ainda tenhomistérios a compartilhar, vidasa viver, sonhos a sonhar, lutas alutar. Não engoli e ainda não

engulo essa coisa superficial donão envolvimento. Afinal, ascoisas acontecem é com a genteou é com o vizinho da gente? Eu acredito, como qualquermortal médio e não totalmenteimbecilizado, que a vida é,essencialmente, feita dessaspequeninas coisas que nossocorrem e nos irritam. Quemostram seus dentes e suasgengivas. E nossos limites. E apossibilidade de superá-los --mas só com humildade. E umi-dade. Com visceralidade-- ínte-gra e integral. Não é possívelser homem e ter um comporta-mento que diminui o homem.Até porque nós já somos tãoridículos e tão pequenos que é,absolutamente desnecessário,reiterar essa condição de formaarrogante.Ou prepotente. Oualienada e alienante.

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o verso do uB

ívio

Eu, é claro, tenho as minhasinterpretações e os meus val-ores. E os afirmo e mostro aquem quiser ouvir e ver semnenhuma intenção de aplausoou reprovação.E só prá repetir um mote doNovo Testamento, que é, na suaespecificidade o estabelecimen-to de uma ruptura com aquelelivrão chamado Bíblia, devo reit-erar essa frase : quem tiverouvidos para ouvir, ouça. E aquiquero lembrar também o dizerde um dos apóstolos (não lem-bro se Marcos, Thiago ou Lucas)que, ao relembrar atitudes efalas do Mestre diz, textual-mente -- "Eu não vim trazer apaz, mas a espada". Eu não tenho mais nenhumadúvida disso. Sou contra a pazburguesa. A paz amordaçada. Apaz engaiolada e vendida nasfeiras. A paz comprada não épaz. A paz não é um produto,não é uma mercadoria e, porisso, ela nunca será trocadasenão por ela mesma. E nuncavai estar sentada na sala deespera de um dentista. Ou deum médico. A paz não é feita depropósitos ou de propostas. Apaz não é ficar de joelhos dianteda casa cristã, ou comunal.Todas as casas cristãs deveriamestar abertas para albergar,para abrigar, para proteger edistribuir o amor cristão, arevolta cristã, a piedade cristã e

a revolução cristã-- que é feitade trocas legítimas no maisfundo de cada homem, de cadamulher, de cada menino, decada menina. Não é só frequen-tando igrejas, templos, ter-ritórios sagrados dos índios edos negros, que nós vamos cel-ebrar e admitir nossa pequeneze nossa responsabilidade. Averdadeira ecologia deveriaestar muito mais preocupadaem salvar crianças do que emsalvar baleias.Eu quero crer que uma árvore,abatida e derrubada, é apenasuma árvore abatida e derruba-da. Mas se ela não serve paraproteger o menino desnutrido

debaixo dela --pra que aárvore? pra que o homem quecuida da árvore?A consciência de um cristão éuma consciência estrelada ecósmica. E não pode estar atre-lada e reduzida ao pó do nossopróprio umbigo. A paz é umestado de espírito. A paz podeestar no Pico de Itabira, naSena Madureira, na AndréCasado, na Fernando Nobre, naVila Iambé ou na CristianoViana. Mas pode estar tambémna Lopes Chaves, no Castelo deDuino, na Lagoa Mundaú ou aténa Ode Marítima do FernandoPessoa.Saint Moritz é uma cidade com-

Eis aí a imbatível Bívio. Parece maquete de tão perfeita.

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universopletamente atípica.E tanto éassim que a idéia que se fazdela corresponde efetivamentea ela. Coisa rara--e rasa. É umaespécie de cartão postal: nãosurpreende, não fascina, nãoenvolve. Se ela possui algumespírito ele é completamentedestituído de mistério. É umespírito turístico. E esse aspectodominante sufoca qualqueroutra possibilidade. SaintMoritz, embora situada numaregião linda, a Alta Engandina,deixa muito a desejar.Mas muito próxima dela--e apósmuito fuçar e mexer--descobri-mos aquelas coisas que nosagradam e apaixonam: as mon-tanhas, geladas e solitárias,eencravada nelas, a encantadoraaldeia de Bívio. Com uma popu-lação de 260 habitantes, elapoderia ser, aos moldes nossos,uma espécie de Canguera--masela é o oposto disso. A estruturabásica é até semelhante: umapequena rua principal com duasou três travessas. Só que aoinvés daquelas edificaçõesprecárias e pobres, Bívio reúnecasas alpinas, alguns hotéis ealgumas pensões. Mas as difer-enças são chocantes.Bívio é de uma beleza repou-sante e de uma paz instigante.Situada num vale, ela se retrai ese esconde de tudo, exceto dainterferência mágica doentorno: um pequeno recorte do

céu, profundo epróximo. E, susten-tanto esse céu, asmontanhas bran-cas, as montanhasmágicas quedenunciam sempreacontecimentossingulares da vidahumana. Pois foibem ali, ancoradosnessa travessia decenas e acenos atávicos, querecebemos também so sinais damontanha. Sabíamos que oMonte Sinai pertence a outrageografia distante. Mas comosímbolo de outorga--ou comotábua de novos valores-- eleultrapassa essas fronteirascomezinhas e se inscreve nolugar mais íntimo e abissal docoração humano que é seupróprio e secreto pulsar. E nãofoi diferente disso o que estavanos acontecendo ali.Excitados e maravilhados portudo aquilo que constituia e con-figurava aquela circunstânciainteiramente nova em nossasvidas, arranjamos hospedagemem um ótimo hotel (mais oumenos caro para as nossasintenções de gasto mínimo) efomos caminhar debaixo dasestrelas próximas e juntodaquelas montanhas brancas esilenciosas. Uma sensação degraça e gratidão infinita invadianossas vidas. E a gente se

deixava invadir, tocar eemocionar, apazigua-dos. E nada sabíamosainda do que iria acon-tecer na manhãseguinte. Ou mesmonaquela noite dedezembro repleta desinais. Voltamos aohotel, subimos até onosso confortávelquarto, abrimos um

livro que tinha um mapa daregião e assim, sem mais nemmenos, lembrei-me deNietzsche e de Sils Maria. Poucodepois desci para abrir umvinho. Em algumas mesas, pes-soas conversavam. Fiz meupedido e perguntei alguma coisasobre Nietzsche e Sils Maria jácom o mapa na mão. Pois é:meus interlocutores mostraramque Sils Maria era por alimesmo, bem pertinho.Resultado: na manhã seguintedesabamos lá com nossos sinaise nossas sinas. Passamos poruma planícieampla, avistamosum grande lago ejá fomos diretobuscar infor-mações em umposto dos correios.Mas junto dessasatitudes concretas,nosso imaginárioritualizava aqueleinstante solene.

A aproximação deSSaaiinntt MMoorriittzz parecesurpreendergrande parte dosturistas que, tendoouvido o brilhantee musical nome serpronunciado,espera uma capitaldo mundo antigo muito cosmopolita ou uma estânciacuja localização espetacular acaba envergonhandotodas as outras. Mas SStt.. MMoorriittzz não é nada disso. Oque faz a reputação dessa cidade são as pessoas quevão até lá, geração após geração,desde 1864, quandoo hoteleiro JJoohhaannnneess BBaaddrruutttt desafiou um grupo deingleses frequentadores de rreessoorrttss--em verões reg-ulares--a enfrentar o inverno alpino como seus hós-pedes. Não é preciso dizer que eles amaram, delicia-dos pela novidade da beleza da montanha coberta deneve, até então considerada algo a ser evitado. Econtaram a seus amigos. Desde então, na virada doséculo, SStt.. MMoorriittzz,, SSuuiiççaa e nneevvee entraram na moda.Não que SStt.. MMoorriittzz tenha sido estranha ao turismoantes disso. Desde 1500 a.C, quando celtas druidaspassaram pela primeira vez, as pessoas fizeramromarias para obter as águas curadoras de suasnascentes minerais. Os romanos também tiveram um acampamento aqui e, mais tarde, uma igreja dedicada a Mauritius foi fundada neste local.A primeira referência histórica à cidade data de1139, e em 1537 PPaarraacceellssuuss, o grande físico daRenascença, descreveu as propriedades curadorasdas nascentes de SStt.. MMoorriittzz.. Conta-se também que,no final do século 17, o dduuqquuee ddee PPaarrmmaa trouxe umacomitiva de 25 seguidores para testar as águas. E, noséculo 18, um visitante da AAlleemmaannhhaa descreveu aexperiência: “Ela franze os lábios e a língua como ovinagre mais azedo, sobe até a cabeça e é comochampanhe no nariz”.As principais montanhas da

região são o PPiizzLLaanngguuaarrdd(3.262metros) eo PPiizz GGuu gglliiaa(2.284metros).,

Chegando a Bívio

Diante da Nietzsche Haus

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a enxurradaN

ietz

sche

Estávamos enfim--epara surpresa de nósmesmos-- nosespaços amados pornosso homem amado.

Sils é algo de primeira qualidadee nossa península é sem igual naSuiça e em toda a Europa. Hátoda uma série de novos camin-hos, e o lugar onde pensei oZaratustra é onde gostaria umdia de ser enterrado.Então era aqui que essa criaturaadoravelmente exorbitante esituada tão fora da órbitacomum aos homens, havia senti-do os apelos nascentes esolitários do seu ZZaarraattuussttrraa? Éisso mesmo e o caso Nietzsche

não passa de um mal-entendido.Pois no fundo só existiu umúnico NNiieettzzsscchhee e ele moirreulouco num hospício.Mas antes disso ele esteve aqui,fundando (ou afundando?) empalavras nem um pouco ôcas, assetas que apontam na direção doalém do homem. Nenhumacovardia, nenhuma domesti-cação, nenhuma fraqueza, nen-huma deformação poderia serdiagnosticada aqui. Aqui é olugar do além do homem. AquiZZaarraattuussttrraa alimentou as aves doporvir com a afirmação da vidaplena. Aqui não cabem os dis-cursos medíocres, nem a moralda negação da vida. As divin-

dades do mundo estão aqui eelas devem ser compreendidas àmaneira dos gregos. Quer dizer:elas existem simplesmente eestão muito além do bem e domal. Elas não são dotadas deperfeição, nem de outros atribu-tos inexequíveis que insistimosem projetar. Elas são contra-ditórias, vítimas de paixões eoutras fúrias. Mas ainda assimsão divindades, povoam espaçosinteriores e exteriores, são obje-tos de rituais e celebrações erespondem a nós, sereshumanos.São estes vínculos com o sagra-do --e não com o consagrado--que nós descobrimos no mais

Quando estivemos aqui, em Sils Maria,tudo isso que se vê estava lindamente branco.Não havia n

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da do júbilo

fundo e no mais raso de nósmesmos. E NNiieettzzsscchhee sempreteve muito a ver com isso.Afinal, foi através dele e de suasgrandes palavras misteriosasque nós pudemos celebrar avida em suas mais diferentesmanifestações. NNiieettzzsscchhee é aafirmação mais contundente davida.Talvez a mais poética e maisprofética de todas aquelas que jáaconteceram na história.É por isso que estamos assim,co-movidos e espraiados para oalém de nós mesmos. Estamosem SSiillss MMaarriiaa, e só isto já sig-nifica a realização máxima deum sonho. Estamos pisando namesma terra, olhando talvez

para a mesma árvore, contemp-lando as mesmas montanhas,enfim, vendo a mesma paisageme respirando o mesmo ar queaquela figura amada e trágica.Mais ainda: estivemos diante dacasa onde NNiieettzzsscchheealugava um quarto, extrema-mente simples (em razão de suafranciscana pobreza) e ondevivia em imensa solidão (já nãosuporto mais as pessoas, excetoaquelas absolutamente estra-nhas ou aquelas que me sãopróximas desde a infância). E ao lado dessa casa havia --eainda há--um bosque onde elecaminhava, solitário, altivo,trágico, magnífico. Estivemos lá

também e subimos uma peque-na trilha, acidentada e íngreme,por onde ele andava com seufuror de meio-dia. Tambémfomos até as proximidades dogrande lago de SSiillvvaappllaannaa ondeele concebeu a idéia do eetteerrnnoorreettoorrnnoo e inventou ZZaarraattuussttrraa,esse livro que, segundo elemesmo, é a obra mais profundaque existe em alemão e tambéma mais perfeita. Enfim, para con-cluir, é preciso buscar em RRiillkkee--outro gigante--as palavras queexpressam essa avalanche deemoções não sinalizadas: estaraqui é esplendor. Ou como jádisse GGuuiimmaarrããeess RRoossaa, contar émuito, muito dificultoso.

ia nenhum sinal de outra cor. Pura maravilha.

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Anotações de viagemVOLUME III

Ana, Chris,ThiagoRubão

Visão que tínhamos (da zimmer), Maloja

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