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Centro de e Polis Instituto de Estudos, e Assessoria em Politicas Sociais A994 Quilici, Cassiano Sydow Anronin Artaud: teatro e ritual. I Cassiano Sydow Quilici -- Sao Paulo : Annablume; Fapesp, 2004. 212 p.; 14 x 21cm. ISBN-85-7419-462-X 1. Litetatura Francesa. 2. Teatro. 3. Artaud, Antonio (1896-1948). 1. Titulo. CDU 840 CDD 840 ANTONIN ARTAUD: TEATRO E RITUAL Coordena,iio editorial Joaquim Anronio Pereira Pagina,iio Ray Lopes Pereira llustra,iio de capa Auro-retrato - A. Artaud Capa Livia C. L. Pereira CONSELHO EDITORIAL Eduardo Pefiuela Cafiizal Norval Baitello Junior Maria Odila Leite da Silva Dias Celia Maria Marinho de Azevedo Gustavo Bernardo Krause Maria de Lourdes Sekeff Cecilia de Almeida Salles Pedro Jacobi 1a novembro de 2004 © Cassiano SydowQuilici ANNABLUME editora . Rua Padre Carvalho, 275 . Pinheiros 05427-100 . Sao Paulo. SP . Brasil Tel. e Fax. (011) 3812-6764 - Televendas 3031-9727 http://www.annablume.com.br Para Lucia, Gabriel e Francisco queridfssimos Para Bruno Quilici, com gratidao

Anronin Artaud Teatro e Ritual

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Page 1: Anronin Artaud Teatro e Ritual

Centro de Documenta~o e Informa~ao Polis Instituto deEstudos, Forma~o e Assessoria em Politicas Sociais

A994 Quilici, Cassiano Sydow

Anronin Artaud: teatro e ritual. I Cassiano Sydow Quilici -- SaoPaulo : Annablume; Fapesp, 2004.

212 p.; 14 x 21cm.

ISBN-85-7419-462-X

1. Litetatura Francesa. 2. Teatro. 3. Artaud, Antonio (1896-1948).1. Titulo.

CDU 840CDD 840

ANTONIN ARTAUD: TEATRO E RITUAL

Coordena,iio editorialJoaquim Anronio Pereira

Pagina,iioRay Lopes Pereira

llustra,iio de capaAuro-retrato - A. Artaud

CapaLivia C. L. Pereira

CONSELHO EDITORIALEduardo Pefiuela Cafiizal

Norval Baitello JuniorMaria Odila Leite da Silva Dias

Celia Maria Marinho de AzevedoGustavo Bernardo KrauseMaria de Lourdes SekeffCecilia de Almeida Salles

Pedro Jacobi

1a edi~ao: novembro de 2004

© Cassiano SydowQuilici

ANNABLUME editora . comunica~aoRua Padre Carvalho, 275 . Pinheiros05427-100 . Sao Paulo. SP . Brasil

Tel. e Fax. (011) 3812-6764 - Televendas 3031-9727http://www.annablume.com.br

Para Lucia,Gabriel e Francisco

queridfssimos

Para Bruno Quilici,com gratidao

Page 2: Anronin Artaud Teatro e Ritual

SUMARIO

Apresenta<;ao, 17

Introdu<;ao, 21

Capitulo 1 - TEATRO E AC;AO RITUAL 35A "MetaHsica em Atividade" 36Arte e Poder de Contagio 40o Drama da Carne e a Genese do Corpo 46Rito e Representa<;ao 64

Capitulo 2 - SILENCIO, GRITO E PALAVRA 79A "Palavra-Sintoma" 80MicroHsica do Sofrimento 85Cartas aos Poderes 92Da Palavra a Poesia no Espa<;o 98

Capitulo 3 - DA VANGUARDA AO TEATRO DE BALL 105o Teatro ''Alfred Jarry" 105o Hier6glifo Balines 115A Efidcia Fisica e Intelectual do Teatro 127A Fisica dos Afetos 137

Capitulo 4 - A CULTURA SOLAR 145"Les Cenci" e 0 "Pai Destruidor" 145A Arte e a Reinven<;a:o da Polftica 152A Cultura Solar 160Os Ritos Tarahumaras 172

CONSIDERAC;6ES FINAlS 185

APENDICE: 0 Corpo sem 6rgaos ou a Dan<;a as Avessas 197

BIBLIOGRAFIA 205

Page 3: Anronin Artaud Teatro e Ritual

II

Capitulo 1o Teatro e a Ac;ao Ritual

Em Artaud, a recria<;iio de urn teatro "antes de tudo, ritual e111 Ii 0"20 pretende abrir uma nova via de renova<;iio para a~~p~i~:'

'nmlituindo-se tambem como uma a<;iio cultural de largo alcance. E cerro'I" podemos situar suas propostas junto as diversas correntes queIIl1ldificaram as artes cenicas europeias na primeira metade do seculo

.. Ele mesmo reconheceu suas afinidades com artistas mais ou menosI IIiHemporaneos seus. Batizou sua companhia teatral de "Teatro Alfred,.lI'ry" em homenagem ao criador de Ubu Roi. Escreveu projetos de

11 na<;iio para pe<;as de August Strindberg, um texto sobre 0 simbolistaM.lurice Maeterlinck, alem de inumeros artigos sobre as artes plasticas,II inema e 0 teatro de sua epoca. Nos anos 20, trabalhou como ator e111.lnteve contato com importantes diretores do teatro frances, como LugneI'n , Charles Dullin e George Ptoeff, Jacques Copeau, Louis Jouvet,;.Iston Baty, alem de participar, durante 2 anos, das atividades do grupoIIrrealista (1924-26). No cinema, atuou em filmes de Abel GanceNapoleon - 1926), Carl Dreyer (La Passion de Jeanne D'Arc - 1927) e G.

w. Pabst (L'Opera de quat'sous - 1930), entre muitos outros. Publicou

rfcicas em conhecidas revistas literarias e escreveu um roteiro

\

in matografico (A Concha eo Clerigo), filmado pela diretora GerJIlaineI ulac. Sua participa<;iio ~o~~'u~rio artistico e cultural f~Cp~rtan>to,11.1 tante intensa.

11 Mas, seu interesse pelas tradi<;6es que a roximaf!!.. 0 teatro doI illlal, tais como a do teatro balin~a busca de urn contato direto~

\0. "0 teatro e, antes de tudo, ritual e magico, istD e, ligado a forc;as, baseado em uma religiao,cre~ferivas, e cuja efidci;~ traduz em gestDs:e;;i ligada diretame~te ;ws....ci.t.as

o tea;';-que sao 0 pr6prio exercfcio e a-expressao de uma ~cessidade m:igica e espirirual"(OeV, 16). As citac;;6es das Ouvres Completes de Artaud seriio feiras com a sigla DC,eguida do volume e da pagina. As rraduc;;6es sao de minha responsabilidade.

Page 4: Anronin Artaud Teatro e Ritual

36 Antonin Artaud - Teatro e Ritual 1111111 i 11 Artaud - Teatro e Ritual 37

A "Metafisica em Atividade"

o conceito de~l" ganhou grande amplitude de significa<;:aonos estudos culturais, podendo ser utilizado para descrever os fenomenosmais variados, seja das culturas tradi:ionais, seja_ das culturas modernas.Tal expansao semantica encontra urn paralelo nas utiliza<;:6es que 0 sensocomum faz hoje dessa palavra. Na linguagem coloquia!, podemos chamarde "ritual" os mais variados tipos de festas e cerimonias, ou ainda qualquera<;:ao cotidiana e rotineira que possua urn certo grau de formaliza<;:ao.Assim, podem ser encarados como urn "ritual" tanto uma parada militarcomo uma Festa de casamento, ou mesmo 0 modo como uma pessoa seapronta para sair de casa. A palavra "rito" nao se encontra maisnecessariamente vinculada a uma conota<;:ao "mftica" ou "metaffsica",

podendo tambem nomear atitudes automaticas, nas quais esta ausente a

com a ..sW-tw::a.....ta.Fa.au·ma.ra, permitiram-no incorporar perspectivasinovadoras en:;-rda<;:ao~orizonte artfstico de sua epoca. Para de aaproxima<;:1io entre teatro e ritual passa a ser urn modo de colocar emcheque certos fund~entos p6:"renascentistas do palco europeu: a ideiade esperaculo como1cr;1>meno "estetico" e atividade sociallimitada a umcampo- a cuiWr<l,21; a no<;:1io da arte~ca~al privilegiado de expressaodo~~ psicol6gico e social; 0 conceito de teatro como "representa<;:1io",seja de urn texto dramaturgico, seja de opini6es pre-concebidas de urn

criador. Aproximar-s~AQ_univ~s2..40s_~tosseria ~m_exercicio dede~~ila ao de con~eitos-e-referencias,para s~ ~x~rair daf urn impulsocriador e revitalizante. E necessario, no entanto, aproximarmo-nos decomo Artaud entende a a<;:ao ritual, distinguindo-se de compreens6escorrentes em sua epoca.

..

C~~.tJ::atr.o-como uma opera<fto ou urna cerimonia magica, econcemrei todos os meus esfon;:os para !he devolver, por meios

atuais e modernos, e tambem compreensiveis a todos, seu carater de

ritual rimitivo (OC:Y, 31).

.111 ntra<;:ao que normalmente caracteriza as atitudes diante do sagrado."f'it ", no seu sentido arcaico, designava sempre urn modo distinto de

1~lr, que se comrapunha ao comportamento distrafdo e rotineiro,

lilt 11. ificando a experiencia do momento presente e possibilitando 0"loramento de outros estados de ser. Desse modo, a ritualiza<;:1io opunha­I I) agir profano, difuso e dispersivo.

As ciencias sociais contribuiram, em parte, para 0 uso generalizadoII. onceito, utilizando-o, as vezes, para nomear as mais variadas formasII l'imonias sociais. A ideia de "rito" foi progressivamente deslizando

till ampo especifico do sagrado para um campo mais amplo da vida(I in I, passando a ser utilizado como categoria capaz de descrever e

pli ar tambern a cultura secular. 0 arrtrop610go Marc Auge considera

III smo que olhar ~<4quer~s:.~o soci~tp;-~~ '~itual" tOE~~~se uma,II m~ntivas ~a persp.,Sctiva amrol2016gi<:a de pens~~i~ade22.( ) I'ito deixou de se constituir como urn fenomeno exclusivamente arcaico,11111 diferencial que permitiria pensar os contrastes entre as culturasII dJicionais e modernas. Dispositivos de "ritualiza<;:1io" encontrar-se-iam

III qualquer cultura, constituindo-se como mecanismos pelos quais certas

I presenta<;:6es, valores, significados, traduzem-se nas a<;:6es corporais•los indivfduos.

Em Artaud, observamos urn movimento de afirma<;:1io do sentido.1 rado do ritual, que devera, por sua vez, contaminar 0 fazer teatral. EleI' referira diversas vezes a necessidade ~e reaproxima<;:ao entre 0 teatro

I ) ~pr~~, enfatizando 0 Slrater ma~~~e religios~que dev~iaI' recriado pelas artes cenicas: .

"Signi6cativamente, a quescio do riro e levantada por muitos daqueles que querem lan~al'

(

urn O~~EoI6gico-a seu mew ambiente pr6ximo. Vamos sugerir aqui que aantropologia dos~os contempor~~.2~ passa pela analise~os.que estes tenl:alll .estabelecer, e que estes riros sao. essencialmente, de natureza politica." (Auge, 1997:95).c Io autor ainda lembra-;em--;;;;:;a nota, que na visao de Erwin Goffman e dos inreracion iSlrlS,roda a pratica~~. e urn riro. ~._--

"0 conceito de cultura e rofundamente~o. E urna maneira de separar atividades)semi6ticas (atividades de orienta.;ao no mundo social e c6smico) em esferas, as quais oshomens sao remetidos. Tais atividades, assim isoladas, sao padronizadas, instituidaspotencial ou realmente e capitalizadas para 0 modo de semiotiza<;iio dominante - ou seja,simplcsmente cortadas de suas realidades politicas" (Guattari; Rolnik, 1986: 1~a \al1rma<;ao e Guattan expressa em como certos questio~;;;;;ntos arraudianos anteciparam,S problematiza.;6es politicas feitas por fil6sofos como Foucault, Deleuze e 0 pr6prio~lIatt3ri. ._- '-

21.

i(/ )

f/o "',

I I

Page 5: Anronin Artaud Teatro e Ritual

23. 0 livro Le Thedtre et son Double, publicado pela primeira vez em 1938, condensa grandeparce das propostas de Artaud para 0 tearro.

24. Artistas que se dizem influenciados por Artaud e que tambem trabalham com""ritualizac;:ao", como Jean Genet ou Jose Celso Martinez Correa, buscarn 0 sagrado, muirasvezes, atravesde~a tern defelIgiosas otiSfo expli~ame;;-;pr~fanas.

25. Referimo-nos especialm.;:;re-a: toda sorre de modismos-"esorericos", que se rransformaramnuma grande fonce de lucro na arualidadc. Arraud e suficienremenre "indigesro" para serassimibdo facilmence por essas corrences.

Nesses dois trechos de cartas escritas no ana de 1932, epoca daelabora<;:ao dos ensaios de Le Thedtre et son Doubl?3, e possivel reconheceralguns elementos que nos ajudarao a especificar 0 sentido "sagrado" doteatro pretendido por Artaud. Nao se trata de levar ao palco temdticas

religiosas, que seriam representadas de forma mais ou menos convencional.

~0 teatro sagrado nao e aquele que necessariamente trabalha com "temasreligiosos"24. Mais do que urn Jalar sabre, 0 que se pretende e propiciarurna experiencia'do sagrado. a fItO, portanto, nao deve ser compreendidocomo expressao formal de urn conteudo religioso. Ele deve possuir urn

(poder operatorio, desencadeando uma vivencia de natureza singular,"mitica", mas num sentido arcaico e primitivo. Dai a associa<;:ao freqiienteem Artaud entre rito e "magia"." Seria demasiadamente vago nos contentarmos em designar essemodo de a<;:ao ritual que 0 teatro deve recuperar de "magico". Esta e umapalavra que se presta a inumeros mal-entendidos, principalmente numaepoca como a nossa, em que passou a fazer parte da "cultura de massas"25.E necessario caminhar com cuidado para que possamos entender bern 0

que Artaud chama de a<;:ao ritual, e como a evoca<;:ao da "magia" torna-seuma estrategia de questionamento artistico, cultural e politico. Dasafirma<;:6es citadas, podemos ja destacar que tal a<;:ao deve se dirigirsimultaneamente adimensao organica, psicologica e espiritual do homem.A natureza da sua opera<;:ao parece comportar processos de dissolu<;:ao

"No rearro oriental de rendencias metafisicas, oposro ao rcarro

ocidental de tendencias psicologicas, rado esse amontoado compacro

de gesras, signos, arirudes, sons, que constirui a linguagem da

realizac;:ao e da cena, essa linguagem que desenvolve radas as suas

conseqiiencias fisicas e poericas em rodos os pIanos da consciencia

e em rodos os senridos, leva necessariamenre 0 pensamento a assumir

arirudes profundas, que sao 0 que poderiamos chamar de metaftsicaem atividtule (OC:lY, 43; grifo do aurar)."

39Ill1ll1in Artaud - Teatro e Ritual

I ,II ociac;:ao psicologica" e "dilacerac;:ao organica") que se desdobram1111111.1 cxperiencia mais suti! e profunda ("sublima<;:ao espiritual"). Mais

.I" Ill! ' isso, 0 que parece estar em jogo nao e simplesmente uma "tecnica"

I"' vi a atingir certos efeitos, mas urn processo que inclui multiplas.11111 n 6es de experiencia, e que nao pode ser dirigido por urn saberIII lililnental. A magia nao e entendida aqui como urna "ciencia ingenua"

'1"1 vi a provocar alterac;:6es concretas no real. Ela estaria mais proximaI Ill11a ac;:ao poetica, que lida basicamente com a linguagem, abrindo

"" '11~ modos de percepc;:ao e outras dimens6es da realidade. Artaud, porI , chamara esse processo de "metaHsica em atividade":

Apalavra "metafisica", utilizada aqui numa acep<;:ao muito particular,I 11.1, a dissipar essa conotac;:ao meramente utiliraria associada a magia.

I I III mo tempo, a expressao "em atividade" e colocada para burlar nossaI, IIlillcac;:ao imediata entre metaHsica e abstrac;:ao. Artaud esta tentandoI IlIIir uma forma singular de experiencia "inteleetual", que se enraiza no

'''1'0, irradiando-se e repercutindo por multiplos pIanos: afetivos,II ol,jais, imaginarios, racionais, intuitivos etc. Uma intelecc;:ao intensa,I'll de cavar novas profundidades de percepc;:ao, devolvendo-nos ao

111,,11.1110 modificados. Ela sera incompativel, por sua vez, com certas formasI 1111 uagem e semiotiza<;:ao. Urn teatro que opere como tradu<;:ao cenicaI 11111 texto escrito, tomando-o como urn conteudo que sera fielmente

III ntado em cena, tenderia a rechac;:ar zonas de indeterminac;:ao,1"'11 1lI';lndo adequar 0 que e visto com 0 que e ouvido, atenuando assim

II I "instabilidade" que faria parte da experiencia do sagrado.

esse modo, e necessario uma oetica que invista nos ~spac;:os eII '"ll.l~ l1t~e os codigos, q~ se'a arejada eta "nao forma" e pelo "nao

1111 IC)·'. 0 t~ra 0 lugar privilegiado para essa constru0io; desdeI" ,I lique da fun<;:ao' de funciona/como uma especie de il;-mra<;:ao de

Antonin Artaud - Teatro e Ritual

o teatro so podera voltar a ser ele proprio no dia em que river

achado a sua razao de ser, no dia em que river encontrado, de forma

material, imediatamente eficaz, 0 sentido de uma cerra a<;io rirual e

religiosa, a<;io de dissocia<;io psicologica, de dilacera<;io organica,

de sublima<;io espiritual decisiva it qual ele estava prirnirivamente

destinado (OC:Y, 85).~\

38

Page 6: Anronin Artaud Teatro e Ritual

Arte e Poder de Contagio

26. Sobre 0 conceito de "sobrecodificac;:ao", ver 0 plato "587 AC-70 DC - Sabre AlgunsRegimes de Signas" em Deleuze e Guanari (l997:II). Os antores referem-se a umasemi6tica "pre-significante";tfpiC:laassoCledades primitivas, car~cterizada po.::...multiplas

~ "su st:1ncias de expressao so reco mca as de 010(10 dllUSO elaJjg~gem verbal. AidCia se adequa bern a proposta teanal anaudiana, que pretende deslocar a palavra do"centro" da cena. Nesse sentido, Artaud pretenderia transform¥-o'-:'regil!:.e de signos"

dOll1inante no palco ocidencal a artir a mlstuta com outros "regimes". -

o estudo dos rituais come~ou a ganhar relevancia na anrropologiaclassica a partir da presun~ao de que os povos ditos primitivos eramincapazes de produzir sistemas racionais de explica~ao do mundo, nosmoldes teol6gicos e filos6ficos que a civiliza9io ocidenral criou. A religiaoprimitiva expressaria uma atitude fundamenralmenre pratica, naoespeculativa, diante do mundo. A rigor, em se tratando de povos arcaicos,

41III min Artaud-Teatro e Ritual

"0 desabrigar imperante na tecnica moderna eum desafiar que estabelece, para a natureza,,I 'xigencia de fornecer energia suscetlvel de ser extrafda e armazenada enquanto tal"(lleidegger,1997:57).

11111 P derfamos falat ainda em '\'eligiao", mas apenas em "magia". AIIII/',ia nao pretenderia explicar 0 mundo mas, antes de tudo, agir sobreI , Nas teorias evolucionistas do final do seculo XIX, a magia era

'I" s ntada como a etapa menos desenvolvida da vida espiritual do1111111 'm, constituindo-se como uma especie de ciencia rudimentar, urn1111111 ingenue e ineficaz de inrervir na realidade. Para urn antrop610goI ,",1 James Frazer, 0 pensamento magico teria precedido os estagiosII • I!t') ri 0, filos6fico e cientffico do conhecimento humano, constituindo-

Orno uma forma inferior de apreensao e a~ao sobre 0 mundo. OsI 111.li. magicos possuiriam sempre uma finalidade utilitaria, semelhanteI ol'lnas modernas de manipula~ao tecnica da natureza, mas

iii 'ntemente inferior em termos de obten~ao de resultados. AtravesII, I ..~, 0 homem primitivo teria pretendido manipular, de um modo tosco

IIItlimentar, as for~s cosmicas a seu favor. A ideia de uma racionalidade111111 '0 desenvolvida junra-se aqui ao pressuposto de que as motiva~6es

d I ulturas primitivas diante da natureza eram fundamentalmente asIII mas da ciencia modema.

Os trabalhos de Mircea Eliade, entre outros, se encarregaram de1'111 nstrar algumas diferen~as fundamenrais entre a magia primitiva e a

1'1 IIl::tlidade cientffica modema, desautorizando a inrerpreta~ao que ve aIIhtgi. como uma "pre-ciencia". 0 homem arcaico possufa urn senrimentoII, .1 ralidade da natureza que fundamentava atitudes totalmenre distintasdll (mpeto de domina~ao que preside grande parte das inrerven~6es

II II 16gicas modemas. Se podemos falar em tecnicas arcaicas, associando­I ,10 pensamento magico, devemos sublinhar que 0 termo "tecnica",III S' caso, deve ser considerado com cuidado. Nao se trata da "tecnicaIIlIlt! rna" que, como nos diz Heidegger, "desafia" (herausfordern) a1I,llllreza, extraindo e armazenando sua energia27. Nas tecnicas arcaicas,

II qu esta em jogo e uma outra forma de interven~ao na natureza, aI' 111 ir de uma perspectiva que nao ve desconrinuidade radical entre 011111 lido humano e 0 cosmos. 0 homem primitivo ainda se ve comoI I iatura" que deve zelar pelas potencias que constituem sua origem. Sua

Antonin Artaud - Teatro e Ritualo

um texto dramatico. A exemplo dos ri~is, ele ~At:eapIeI}ill:.r...a.:abdicar

do texto e diL~avra co-mo referencias cenrrais, armando urn complexotecido de signos, expressos numa multi~de de c6digos: ~is,

ge~~ai~:'-pTisticos etc. E essa malha que se desdobra no espa~o·, essa"floresta d~mbolos" que devera cercar-os espectadores, exercendo umaespecie de "violencia" sobre sensibilidades e inrelectos adormecidos, alinguagem buscada por Attaua:-

A "metaffsica em atividade" artaudiana traduz, portanro, umaideia de a9io que nao se confunde com a manipula~ao "magica" pura esimples de efeitos cenicos, capaz de despertar impress6es mais ou menosfortes. Ela visa provocar descolamentos e fissuras naquilo que ja estaestratificado e sedimentado, conduzindo-nos a uma regiao de incertezasque nos acordarn enos desafiam. Para tanto, ap6ia-se na multiplicidade

das JormaL<k.-exlR~Ssao na !4ilill_nao J~-!1l1l.il .."sobJ~~odjfic.a~ao" dada. pela linguagem verbal. Nesse sentido, ela nos remete ao que Deleuze e

f\!G~attari chamam de "semi6ticas E~~~cantes"26, caracterlsucas das\ cufWfaS primitivas e dos ritups.

Mas a insistencia de Attaud sobre a no9io de "magia" parece-nosainda ter outras motiva~6es.~os incita a rever 0 lugar atribufdo ao

r::j> chamado perlsilmento primitivo na ciencia e no_lmagin:liiP.....ar.tfstico docome<;:o do seculo xx.-------

Page 7: Anronin Artaud Teatro e Ritual

._---_.__._---~~~ ..

28. A este respeito, ver especialmente a obra Forgerons et Alchimistes (Eliade, 1977), em queo autor investiga as raizes dos procedimentos alquimicos em varias culturas, ressaltandocomo 0 homem arcaico pretendia colaborar e complementar 0 trabalho da natureza.

29. A ideia de que "ac;:6es rituais" sao a base de criac;:6es culturais postetiores, mais elaboradas,inspirou toda uma corrente de estudos que pretende encontrat na produc;:ao folcl6rica eem certos generos litecirios trac;:os de antigos rituais. Poderfamos destacar, nesse sentido,os trabalhos de Propp sobte os contos de fadas russos e as propostas de Frye para umacritica liteciria baseada no mito e no ritual. A esse respeito, ver Mieletinsky, (1987).

431111111 1l1\1'l, ud - Teatra e Ritual

"Se 0 signa cia epoca e a confusao, vejo na base dessa confusao umarupt~tre ~palavras, as ideias, os signos que sao a_. ---represemac;:ao dessas coisas.Nao ~alte~mas de pensamemo; a quantidade deles e suascontradic;:6es caraeterizam nossa vida cultutal europeia e francesa;mas desde quando a vida, a nossa vida foi afetada por esses sistemas?Nao diria que os sistemas ftlos6ftcos sejam coisas para se aplicardirera e imediatamenre; mas de duas uma: ou ~ses sistemas estaoem nos enos impregnamos deles a ponro de viver deles, e entao queimportam os livros? Ou nao estamos impregnados por eles e nessecaso nao merecem nos fazer viver; e, de todo modo, que importa sedesaparecerem?" (OC:IV, 9-10).

Ill, A respeito da constituic;:ao da estetica como um campo da filosofia no seculo das luzesV r assirer (1994), especialmente 0 capitulo "as Problemas Fundamentais da Estetica".

I 11 \Ill on co antropo16gico, que procurara resgatar a dignidade doIII II .1I1l 11 to selvagem" e a as;ao rituaL

No entanto, seu interesse pela "magia primitiva" tern tambem uma

I I II Ii HI especifica. Nao se trata apenas de reconhecer uma outraIllp 1.1", ou forma de se "pensar" 0 mundo, mas de "usar" a magia como

IIIiI Ii in prqyocativa dentra da propria cultura ~~~~r~~que~"I II I' u j , po~plo, a pensar a arts-fora de s<::_ueJlqJ-ladramento

I. ill 0", ou seja, dentro de J!lll-CafftpO ~er-especifico, que foi se

I 1l1111ltl no Ocidente a partir do seculo XV1II30. A estetica como ramo I'!! ,II, I ION fia nasce justamente do ~ddiml!a<;:ao~ areas

1'1 11I1I1~nto humano, e da definis;ao de suas r~gr~{;S"pedflcas. E-.....---. '-----.----1111 'lue ja no desenvolvimento da estetica romantica as regras dos

II I ()~ se enfraquecem, e 0 artista visto como "genio" adquire uma

11111 .Il) quase prafetica e religiosa, extrapolando as funs;6es que the eram

,I I"'":ldaso Mas em Artaud essas tendencias se radicalizam. Sua evocas:ao "III "111:1 ia" pode ser entendida como estrategia que pretende~arte /

II 111 I ordar para a vi£ A angustia artaudiana 0 move em dires;ao a uma 1/III "operativa", que rompa com a impermeabilidade dos sistemas de

~1Iq' que se desconectaram da experiencia "crua", e por isso se tornaram

III ,I!'ozes de agir sobre a vida:

Antonin Artaud - Teatro e Ritual42

as;ao tecnica teria a ambis;ao de "complementar" ou de levar a cabo

pracessos ja intrinsecos a natureza 28. Aponta-se para uma forma de as;ao

que nao pressup6e urn sujeito "destacado" do mundo e que se imp6e

sobre ele.

Por outro lado, a hip6tese de que a mentalidade primitiva seria

fundamentalmente desprovida de racionalidade, defendida pelas primeiras

teorias evolucionistas, foi posteriormente refutada pelos trabalhos de Levi­

Strauss, voltados a demonstras;ao da l6gica que preside 0 chamado

"pensamento selvagem" (Levi-Strauss, 1976), gerador de complexos

sistemas de classificas;ao da natureza e de formas de atuas;ao sobre ela,

pautados numa apreensao ana16gica do mundo.A questio da efidcia

simb6lica dos ritos primitivos tambem foi abordada pelo antrop6logo

que, num ensaio classico, chega a comparar a cura xamanica com os

metodos da psicanalise (Levi-Strauss, 1996:215-236). Tais intervens;6es

contribuiram decisivamente para denunciar 0 etnocentrismo que marcava

as primeiras teorias evolucionistas, abrindo os olhos da cultura ocidental

para a complexidade dos fenomenos religiosos primitivos, superando

tambern 0 ponto de vista romantico que tendia a projetar no mundoarcaico seus pr6prios ideais.

Mas a fragilidade cientifica das ideias de Frazer nao impediu que

seus trabalhos exercessem uma forte influencia nas artes e no campo de

estudos da literatura29• 0 modernismo e as vanguardas que buscaram

Fontes de inspiras;ao "etnolo lcas" tlveram em Frazer uma de suas

referencias. E~l~Et~1!_<b_.~ perspectiva evolucionista do antrop6logobriclnico encontra-se curiosamente.mvertlCl.a.A ci~ncia OC1 ental'moderna

deixa de ser vista como ultima etapa do desenvolvimento espiritual

humano, como no modelo positivista. Ao mesmo tempo, a "magia

primitiva" e retomada como uma pista que permitira repensar a arte sob

outra perspectiva. Nesse sentido, Artaud se afina com 0 moderno

Page 8: Anronin Artaud Teatro e Ritual

31. Sobre a import&ncia do sistema de festas publicas e da visao carnavelesca do mundo, vero trabalho classico de Bakthin (1993) a respeito de Rabelais.

Os exemplos das festas publicas e das cerimonias dedicadas aodeus Dioniso na Grecia Arcaica, as Saturnalias em Roma e mesmo 0

carnaval medievaPI seriam suficientes para evocar a impord.ncia dosrituais na vida tradicional. No entanto, Artaud opta, muitas vezes, porimagens mais eloquentes e "crueis" para referir-se ao poder do teatro,das festas, dos rituais. A compara<;:ao entre 0 teatro e a peste colocara atonica no poder desestruturador da arte, no seu aspecto grave e implacave!,capaz de colocar 0 homem diante de situa<;:6es extremas, exigindo deleuma atitude her6ica diante da vida. Como a peste, 0 teatro pode ter uma

o teatro ritual artaudiano nao pretende efetuar apenas umarevolu<;:ao no campo estetico, mas confrontar-se com uma crise queextrapolaria as artes, atingindo 0 pensamento e a cultura ocidental comourn todo. Nao havia, evidentemente, nenhuma novidade na defesa purae simples de urn conhecimento e de uma arte "engajados" na vida. Asvanguardas, de maneira gera!' contestaram a concep<;:ao dos simbolistasdo artista habitando na "torre de marfim". Brecht ve na aproxima<;::io da

[1arte em rela<;:ao aos proc~ politicos uma safda par; esse isolamento.o que ressalta "em Artaud e 0 modo singular de se pensar esse--.. ----"engajamento".

Ele se deixara fascina; pela onipresens:a dos ritua~s em muitasculturas p'rimitivas e orientais, inspirando-se nestas para afirmar 0 poder

--..., -de "contagio" que 0 teatro pode e deve ter. A arte ritual arcaica nao seencontra a risionada num "cam 0" da cultura.~ e contamina 0

cotidiano, pro uzindo novas perspectivas e modos de se experimentar aexistencia e de se lidar com situa<;:6es de crise. Nesse sentido, os ritos

{

primitivos nao construiriam simplesmente urn "mundo parale1d' quepossibilite' 0 escoamento de tens6es e conflitos, como no caso de grande

"parte da arte de entretenimento em nossa cultura. Os~aispotencializariam a vida invadindo todas as esferas do social, desde aquelasque costum~chamar de "atividades economicas", ate a polftica, amedicina, os artesanatos etc. Mais do que urn camRo especffico de--- ~atividade, a ritualiza<;:ao e urn pro:edimento que im£regnaria qualquera<;:ao.

451II111lin Artaud- Teatro e Ritual

(

"0 verdadeiro tearro sempre me pareceu 0 exerdcio de urn ato

p~ri~oso e rerrive!, em. q~e alias a id~~ ~e ~p~taculo seeh~, bern como a Idela de toda a ClenCla,to~ toda

a a~:::C.(apud Virmaux, 1978:321)32.

" A conferencia "0 Teatro e a Ciencia" foi publicada otiginalmeme em L'Arbalete n.13,I 48: 15-24, constando tambem do livro de Alan Vitmaux. Trata-se do texto preparadofl. ra a famosa conferencia dada por Anaud no Vieux Colombier, ap6s sua saida do sanat6riode Rodez.

II 10 pidemica, que dissolve os quadros regulares da vida social, e faz., Indil' for<;:as sombrias e disruptivas, 0 "tempo negro de certas tragediasIIl1il\:\' que todo teatro verdadeiro deveria reencomrar"(OC: IV, 29). E

,I nfronta<;:ao que pode produzir uma "formidavel convoca<;:ao del"I~,1 , que conduz 0 espirito aorigem de seus conflitos" (OC: IV, 29).

Artaud sonha com urn teatro que seja esse momento de confronto,Jill 'lual toda a existencia e colocada em cheque. Urn teatro que revele1'".1 :l comunidade suas "for<;:as obscuras", desencadeando uma crise queII • resolve pela "purifica<;:ao radical".

As~_a<;:6es que ordenam a sociedade em diferentes "camposI. prodwrao simb6lica" (cie~cia, art~, religiao), para usarmo~~a

pi" ao de Bourdieu Q..289),~:ncapazesde apreender a a<;:ao artfsticaI I 1.11Idiana. 0 "verdadeiro teatro" deve extr~polar essasformas de

11111 matiza<;:ao, negando olugar que the e destinado pela ordem cultural: 0

,II "I r~o de espetaculos", que deverao ser consumid~nsII III licos%tro do ~rcadode lazer e emretenimento. Evidememente,

It I rai;;;Ihos profissionais e~ teatro, p;'a serem apreciados publicameme,.I. v m passar hoje pelas regras do mercado. 0 proprio Artaud seIIhmeteu a essas regras na epoca em que atuava como ator e diretor

pIOn sional. Mas deve-se atentar para essa transforma<;:ao da a<;::io teatralIII "produto", como urn mecanismo que retira da arte parte de sua eficacia,

II I rnedida em que torna essa a<;:ao urn "objeto" a ser admirado eIlIllsumido por urn publico mais ou menos passivo.

Reconstituir urn teatro ritual significaria, entre outras coisas,II h ·Iar-se contra 0 espa<;:o formatado que 0 mercado e a cultura destinamI 11'( , afirmando a necessidade de se embaralhar tais classifica<;:6es. 0

Antonin Artaud - Teatro e Ritual44

Page 9: Anronin Artaud Teatro e Ritual

46 Antonin Artaud - Teatro e Ritual 1110111 i II Artaud - Teatro e Ritual 47

rito permite recupera,r a ideia da..s<;io teatral como urn "acontecimento"~ envol~e e inclui artistas e publico, instaurando- uma nova reaLdade,que deve desestabilizar os padr6es de percep<;:ao e as representac;:6es jacristalizados. E uma das representa<;:6es tranqiiilizadoras que atenuariamo poder de impacto da arte seria justamente a do teatro como "mercadoria­espetaculo", produto oferecido ao consumo dos olhos. 0 teatro ritual seop'6e w teatro como esperaculo, rompendo a "distancia"33 que institui 0

espectador '\,oyeur". Seu~ "pe:-igoso" e "terrivel" advem do..fu9 decolocar 0 homem como urn todo "em jogo". E essa experiencia de riscodeve ~ar-os multiplos estratos ~e constituem 0 sujeito, inclusiveo organ~ =-- --- '

o Drama da Carne e a Genese do Corpo.

Mas 0 que se operaria efetivamente no espa<;:o aberto pelo teatroritual? 0 fasdnio por uma arte "magica" nao expressaria apenas urnimpulso vago de rebeliao, que se perderia numa especie de nebulosidaderomantica? Se Artaud nao conseguiu ou pretendeu transformar suas ideiasem metodo (como 0 fez Stanislawsky), e recorrente sua defesa de umaarte "rigorosa", voltada para objetivos precisos. A exemplo da antropologiamodema, Artaud tambem procura na ~a prT~itNa'os indicios· de

uma.ourra racionalidade e de uma ou~ia, e nao apeuas....uma vagainspi~arja. Do mundo primitivo Artaud recu era, em primeirolugar, a ideia do artista como "medico da cultura", que atua a partir do- .....proprio organismo do homem:

o ato de que eu falo visa a total transformac;:ao organica e fisica

verdadeira do corpo hurnano. Por que? Porque 0 teatro nao e essa

parada cemca em que se desenvolve virtual e sirnbolicamente urn

mito, mas esse cadinho de fogo e de verdadeira carne em que,

anatornicameme, pela triturac;:ao de ossos, de membros e de silabas

33. Romper a disclncia aqui nao significa investir na rela~o de "empatia", criticada par Brecht.Ao mesmo tempo, Artaud nao prop6e urn tearro que pretenda criar urn "distanciamentocrltico e reflexivo". 0 problema do poder revolucionario da arte em Arraud passanecessariamente por formas de provocas:ao que atinjam os automatismos corporais cmenrais, scm passar necessariamente pqr uma interpreta<;3.o racional.

corpos se refundem, e se apresenta fisicamente e ao natural 0 atomftico de se fazer urn corpo. Se bern me compreendem, ver-se-a

nisso urn verdadeiro ato de genese que a todo mundo pareced

rid£Culo e humoristico invocar sobre 0 plano da vida real. Pois

ninguem, no momenta que passa, pode acreditar que urn corpo

possa mudar a nao ser atraves do tempo e da motte (apudVirmaux,

1978:321).

"Les corps de terre" - A. Artaud (1946)(Catalogo Museu Cantini -1995)

Page 10: Anronin Artaud Teatro e Ritual

34. Sobre as rela<;6es entre 0 tema da sexualidade e da morte em Artaud, ver 0 artigo de Jaco!>Rogozinsky, "fai toujours su que {,itais Artud Ie mort", revista Europe, 2002:92-103.

A efidcia da as:ao teatral se expressa, em primeiro lugar, na suaincidencia sobre a ordem organica. Nao se trata apenas da preocupas:aocom as formas de preparas:ao corporal do ator para torna-Io urn "vekulo"adequado de comunicas:ao. E 0 proprio teatro que deve tornar-se 0 lugarem que se da uma transformas:ao organica do homem. A cena deixa deser, como proposto na tradi<;:ao aristotelica, apenas uma ;~ii-~-;;imetica,

que representa uma narrativa mitica au ficcional, e passa a reivindicarurn poder de atuas:ao sobre 0 "corpo" como forma de acesso a novasmodalid~des de__ser. .---- ---:> ------.....

o processo sera concebido de forma singular, distinto do das"culturas do corpo" hegemonicas na sociedade contemporanea. Nao seconfunde, em primeiro lugar, com nenhuma utopia nardsica de aquisis:aode urn corpo invulneravel e preparado para desfrutar os "multiplosprazeres" oferecidos pelo consumo. No texto citado, e possivel notal' aenfase artaudiana na decomposi<;:ao das formas e modelos como etapafundamental da genese de urn outro corpo. Afasta-se assim qualquerperspectiva de formatas:ao de uma imagem do .corpo ideal, que presidegrande parte das tecnologias atuais nessa area.

Ao mesmo tempo, nao e tao faeil enquadrar Artaud no irhaginariocontra-cultural que operava, muitas vezes, com a oposi<;:ao entre "corporeprimido" e "corpo liberado". Em seus escritos encontramos desde a

investiga<;:io de urn erotismo desenfreado, que ultrapassa todas as leis dacultura e tende ao absoluto (como na obra Heliogabale, ou L'Anarchiste

Couronee') , ate a condena<;:ao da sexualidade e a defesa da castidade,presentes nos escritos de Rodez, que correspondem ao "ideal gnostico"da pureza corporaP4. A questao do desejo em Artaud foge aosenquadramentos e dualidades habituais, e exigiria, por si so, urn trabalho

aprofundado de investigas:ao.Mesmo nao havendo uma identificas:ao pura e simples entre as

ideias de Artaud e as ideologias contraculturais dos anos 60, pode-se,ainda assim, reconhecer urn sentido politico na "transforma<;:ao organica"preconizada pelo teatro da crueldade. A ideia de "revolus:ao", comumaos surrealistas, acompanhara Artaud ate 0 final de sua vida. Mas e sua

(...)0 sentido de modificac;:ao integral, e pode-se ate dizer magica,

nao do homem, mas daquilo que no homem e ser, porque 0 homem

verdadeiramente cultivado traz 0 esplrito no seu corpo; .~..o .~u

cor£2,que ~ culttu:.a trabalha, 0 que equivale a dizer que trabalha aomesmo tempo 0 esplrito (DC: VIII-:I895~--" .

49'II 1)1l inArtaud - Teatro e Ritual

11111l1:\. peculiar de articular "corpo" e "revolus:ao" que nos interessa

, II v ndar. Antecipando-se em parte as teses de Foucault, Deleuze e\"

f IlIlil~ A~taud Ja ap~ntava,p~ra as bases or~,~~ic~s-d;-ord~1!LS_Ocial,1111 ,1 as ramlfica<,;:oes mlcroscoplcas do poder: e nao havera revolus:aoIIlllfl i a e moral possivel enquanto 0 home~ permanecer magneticamente1III ~() nas suas rnais elementares e mais simples reas:6es nervosas e, 1/", nicas... " (apud Virmaux, 1978:322).

A perceps:ao de uma "microfisica do poder" (Foucault, 1979),1'1 l'<lda em procedimenj:~<;'osque exercem~um controle minucioso,.III'~o, encontra-se aqui antecipada, na afirma~io-d-;-que1.1I,lamos "enredados" em condicionamentos que operam em niveis

1"11 undos do organismo. A libera<;:ao das rea<;:6es automaticas e dos"".Ii ionamentos organicos fabricados pelo poder seria condis:ao

IlIlubmental para qualquer "revolus:ao". Essas palavras, escritas em 1947,I III surpreendente atualidade, se considerarmos a prolifera<;:ao deI I 1101 gias voltadas as disciplinas corporais no mundo contemporineo.

I I I "'!IQ..p~~ud pode ser 0 lugar de descongrll(,:ao do o..cg-a-flismo1IIIIIIIzido pOl' essas dlSUplinas. A ideia de transformas:ao do homem eI VII la, desse modo, a condi<;:ao de uma verdadeira "genese". 0 "ato

111111 () de se fazer urn corpo" modificaria a propria condi<;:ao ontol6gica,I" hOtnem. Sao outros "estados de ser" que deverao constituir uma nova

lilt IlI'a e sociedade. A verdadeira cultura deve possuir

A compreensao dessa "modifica<;:ao integral" exige urn novo tipoluacionamento dos termos "espirito" e "corpo". Em Artaud, a

I' Ii IVI'll "espirito" adquire diversos significauos, conforme 0 contexto emjill utilizado. No trecho citado, ela nao se confunde com a ideia deI " 10", a qual pretende apreender as regularidades dos fenomenos,I Ii I I, endo conceitos e representas:6es esraveis sobre os mesmos. Trata­

III inves disso, de saber permanecer junto do corpo enquanto realidadeII I V l, lugar de experiencias multiplas e fugidias, difkeis de se enquadrar

Antonin Artaud - Teatro e Ritual48

Page 11: Anronin Artaud Teatro e Ritual

Ha para mim uma evidencia no campo da carne pura que nao tern

nada a ver com a evidencia da razao. No campo do imponderavel

afetivo, a imagem transporrada por meus nervos rama a forma da

intelectualidade mais alta, a qual me nego a arrancar-lhe 0 carater

de intelectualidade (OC:I**, 52).

Nao se trata de urn realismo ing~nuo, baseado na crenc;:a de umacesso direto e imediato a uma "realidade" corporal, externa a consci~ncia.

Sabe-se que ali, no_ brotar originario de uma sensac;:ao, ja e~ um"signo", mesmo que num esragio embrionario, u~no", uma

I quili&de de sentimento (e n~2.. urn conceito), se quisermos utilizar aD --=.'V terminol~rce35. Artaud se mantem nessa ~ao intersticial, nessc

limbo, para apreender uma ~peri~ncia primeira, nao ref~nenhutllobj~ e anterior a qualquer inteq;;etante, pr6xima da p~a iconiddaae3('.~1Desse modo de confronta a i'deia de-uma "intdectualidade mais alta",que inclui e integra esses niveis de experi~ncia, a uma racionaiidade qUl'

opera s6 a partir de conceitos e generalizac;:oes.

em representac;:oes totalizantes e unificadoras. E justamente essainstabilidade que confere a experi~ncia artaudiana uma tonalidade tr<igicae, ao mesmo tempo, abre possibilidades inauditas de compreensao dohumano. Por mais que tentemos nos agarrar ao corpo, atribuindo-Iheuma suposta "solidez", de sempre nos trai, nos tira 0 chao de sob os pes.

Nao e apenas nas grandes crises, na doenc;:a e na morte, que isso pode serevelar. 0 aguc;:amento da percepc;:ao, a apreensao dos movimentosmicrosc6picos e das mutac;:oes dos estados flsicos e psiquicos pode nosguiar por novos modos de apreensao do corpo. Em Artaud existe umaespecie de super-intensificac;:ao dessa percepc;:ao, que penetra de modo

agudo nos afetos corpori6cados:

51111011 in Artaud-Teatro e Ritual

\ 0 termo "gnose" pode inspirar confus6es. No seu sentido restrito, ele designa urn

)onjunto de seitas que floresceu no seculo II d.c., constitu/das por sincretismos de

doutl'inas orientais, gregas e cristas. Tais seitas forarn consideradas hereticas pela Igeja.(a"NlC respeito ver Gilson, 1995:25-39) Num sentido mais amplo, "gnosis" designa urnI ullhecimento que e tambem uma experiencia de uniao do homem e 0 divino. ElaI presenta uma via existente dentro de diversas religi6es e tradi,,6es espirituais, que naoli~ as waticas devocionais, m~indica uma sabedoria. ---

"Nict7-sche tranqiiilamente assumiu uma teologia ate/sta do esp/rito, uma teolog~tiva,11111 mlst~~.~.!!LDeus. A!taud peramb~labirinto-de urn tipo especlfico 'de('l1sibilidade religiosa, a gn6stica" (Sontag, 1986:44).

'I ) tcrmo~smo" tambern da margem a inumeras confus6es e dilui,,6es. A rigor, a1),11. vra designa 0 aspecto "interior" ou a "m/stica" de uma determinada tradi"ao espiritual,'111 oposi~ao aos aspectos "exotericos" referentes as quest6es morais e sociais. Assim, 0

."oterismo da religiao islamica e 0 "sufismo", 0 esoterismo na tradi"ao chinesa e 0

"", (Stno", em contraposic;ao ao "confucionismo". Sobre 0 esoterismo na obra de Artaud

V f' especialmente 0 capitulo "L'unite des esoterismes", em Borie (1989:128-139).

Nascem dai descric;:oes de estados mentais que se desdobram,II oqO ntemente, em imagens cosmol6gicas e geol6gicas. A angustia aparece

III relfunpagos, com pontuac;:ao de abismos", a alma brota em "florac;:oes,Ill in is", 0 pensamento vive "uma especie de erosao", 0 desejo desfiguraI rill'lna humana para alcanc;:ar uma dimensao telurica: "eu a queria

I. I I ndente de flores, com pequenos vulcoes enganchados nas axilas, eII 0 ialmente essa lava em am~ndoa amarga e que estava no centro do

III 'orpo erguido" (OC:I*,151).o corpo humano mistura-se e metamorfoseia-se no corpo da terra

110 orpo do cosmos. Atraves dos fragmentos de uma geologia simb6lica,II.IUd nos lanc;:a num espac;:o ca6tico e originario, prenhe de virtualidades,

III que a 6gura do sujeito se dissolve. Nesse trabalho de des6gurac;:ao,III ~scnte-se 0 anseio de urn novo corpo, permeavel as forc;:as naturais,til po perdido pela radical separac;:ao entre 0 sujeito que passa a ver a

1I1111l'eza como objeto.Muitas das expressoes artaudianas aproximam-se das cosmologias..... ~ -----..

III liE. e das correntes hermi!icas que viam 0 homem como urnIlli rocosmos", contendO em si os processos de criac;:ao e de destruic;:ao

.III 1I11iverso. Susan Sontag (1986) destacou 0 parentesco de Artaud comI isffo de mu;;ao "gn6st~7, presente no mitraismo, maniqueismo,,"oa trismo e budismo rantrico38 . Monique Borie (1989) mapeou de

IlIlId ainda mais detalhado as influ~nci~ do "e~9 ocidental etil I Ilral no seu pensamento. Dispersas nos textos artaudianos, encontram-

AntoninArtaud- Teatro e Ritual

Como nos mostra Santaella (2000), a no"ao de signa em Peirce e suficientemente ampl.,

para lncluir estados afetivos e ~ais, aind;qllesem conexao clara~bj~-W:, ('interpretantes. A denominac;:ao "quali-signo" refere-se a uma das tdades classificatt>,.i."

peirrceanas (quali, sin, legi-signos), que define 0 signo~o as~pr~turC'l"- ----~ -"0 leone pur~diz respeito ao leo~6nada indiviz/vel e sem partes e, como 1.,1,

trata-se de algo mental. 0 leone pUE? e uma (psa mentale, merame;;re poss/vel, imagin" 1111 ,

indiscern/~ento da forma ou forma do sentiment;), ainda_ nao-!elat~enh\II"obi£!.Q e, conseqiientemente, anteri?~.':!~s:aode ualquer int~~.:.etante" (Sa~cll.l.

2000:110-111). .

36.

50

) 1 35.

Page 12: Anronin Artaud Teatro e Ritual

52 Antonin Artaud - Teatro e Ritual IlllInin Artaud - Teatro e Ritual 53

I[I

se inumeras referencias as doutrinas pitag6ricas, ao orfismo, a Heraclito,ao hermetismo alexandrino dos seculos I e II, ao neoplatonismo (Plotino,Porfirio, ]imblico, Apollonius de Tyane) e ao Corpus Hermeticum.

As referencias a alquimia e ao pensamento hermetico saoespecialmente importantes para compreendermos certos aspectos datransforma<;:ao organica proposta pOI' Artaud. Na perspectiva de certosinterpretes, a fun<;:ao principal da alquimia nao era a de transformarmetais em our040 • As complexas alegorias e sfmbolos referentes a este

processo designariam, fundamentalmente, 0 percurso iniciatico do pr6prioalquimista. Trabalhar sobre substancias da natureza, como os metais,significava tambem trabalhar sobre os pr6prios estados ffsicos e mentais.Este paralelismo se baseava na ideia de que a materia encontrada nanatureza e 0 corpo psico-somatico do homem eram modifica<;:6es deuma mesma "substancia primordial", ou materia prima. POI' isso, nodiscurso alqufmico, as opera<;:6es realizadas sobre os metais podem serlidas tambem como "sfmbolos" de opera<;:6es realizadas sobre 0 corpo­

mente.A natureza iniciatica desse trabalho pode ser compreendida tendo­

se em vista 0 seu objetivo ultimo: a constru<;:ao de um "corpo glorioso",liberto dos condicionamentos e automatismos ffsicos e mentais, referentesaos diversos "estados" que ele assume. A libera<;:ao das condi<;:6es inerentesa qualquer "estado", significaria realizar, "em vida", 0 conhecimen toexperienciado da pr6pria "subsrancia primordial". Para tanto, tais tradi<;:6esindicam metodos de concentra<;:ao, observa<;:ao e desprendimento dosfenomenos psico-ffsicos. Um processo que, no limite, assemelha-se auma "morte" ou dissolu<;:ao das representa<;:6es cristalizadas da nossaexperiencia. Por isso mesmo, muitos sfmbolos alqufmicos sao "crueis".Como os metais, 0 corpo e a mente "corrompidos" devem ser "triturados"e levados a um "cadinho de fogo".

Artaud aproxima-se dessa via desde seus primeiros escritospublicados, que investigam e descrevem estados de angustia que Sl'

intensificam e se transformam, revelando-se como passagem para lllll

outro plano de percep<;:ao, em que "nada em ti esti pronto, nem meSD10este corpo, e sobretudo este corpo":

40. Este tipo de leitura podemos encontrar e Guenon (1957), Evola (1975), A11eau (198(,),Eliade (1977). Jung (1994) tambem prop6e uma interpreta<;:ao "interior" dos sfmbol..,alquimicos, mas que acentua mais os aspectos psicol6gicos do que metaffsicos.

Quem, no seio de certas angustias, no fundo de alguns sorrhos, nao

conheceu a morte como uma sensa<;:ao destro<;:ante e maravilhosa,

com a qual nada pode confundir-se no reino do espfrito? (00') E 0

pr6prio carpo que chegou ao limite de sua disrensao e de suas foro;:as

e que precisa, apesar de tudo, ir mais lange (OC:I*,123).

o abandono das claras percep<;:6es, a dissolu<;:ao das imagenslilli', ladas de si mesmo e do mundo, a erosao do pr6prio pensamento, a

'111oxima<;:ao de uma especie de verdade da carne, tudo isso "nos p6e em1.1,11•.1 com estados mais afinados do espfrito, nos quais a morte se

I" im ". (OC:I*,127) A reconstru<;:ao artaudiana do corpo passa portantoI" I, lluebra dos mecanismos de "tranquiliza<;:ao" e esquecimento da mone,I h' ..~timulados pela cultura contemporanea41 • A penetra<;:iio nos estados,I. III rustia torna a vida permeivel a morte, nascendo daf uma formaIII Ii vigorosa de lucidez.

D~ e ~ari elegeram e reinventaram a expressao "corpoI III rglios" para condens~r as ideias artaudianas de transfor~

1111'0 ~mem. "~do tivere-;}; conseguido ~m corpo sem 6rgaos,lit III terao liberado dos automatismos e the devolvido sua verdadeira

I,I •• I \ lade", diz Artaud na emissao radiofonica Pour en finir avec Ie jugement

I" '/;/lU, em 1947. 0 termo nao sera tomado pelos fi16sofos como um11111 ieo, mas como um "conjunto de praticas" destinadas, num primeiro

11111111 'I1to, a desfazer 0 "organismo", entendido como uma determinadaI' I'i~ncia do corpo, construfda e mediada por uma serie de

I I" "nta<;:6es42• A cultura ocidental ter~nstitufdouma serie de campos l i

I .iI r "especialidades" e praticas qu~atuam nocorRo, aefinindo os '-0'1IIt.I,~ "legfti~" de feitura eAse:nl<:>tiza<;:ao. A ordem_social e cult~ral e r

iii p.lr:1vel dessa ordem orga.fllca, que-rnodela .Q.-£QIpo eJahJ:.K~ asII! It ividades. Experiencias diffceiLde serem nomeadas, singularidades \

"' 'I' ·~s que eXEF~~odelose '!§. ma~es de sentido, que"'I 11\ da~orializa<;:6es preestabeJecidas seriam, com frequencia,

, 'It I!ogizadas, reprim1das ou reabsorvidas, de modo a torna-Ias in6cuas.-- ~. -- ---

" II ~ respeito, ver 0 ensaio "0 ser-para~morteeosin) ulacro da morte") em Perniolar tOIlO:164-190).

C ""I'Jltare~s principalmence 0 capfrulo "28 de Novembro de 1947- Como Criar paraI 11111 ~aos'" (Deleuze; Guaccj'ri, 1996:1II).

Page 13: Anronin Artaud Teatro e Ritual

55IIlonin Artaud- Teatro e Ritual

\. "E no entanto 0 que ha a dizer e que todas as ideias que permitiram aos mundos romanoe grego nao soc;:obrarem imediaramente, nao cafrem a pique numa cega bestialidade, vieramcxatamente dessa ftanja barbara: 0 0Eiente, longe de transmitir suas doenc;:as c seu malest~rmitiu que nao se perdessc a Tradic;:ao" (OC:VI1, 16).

Ao contrario do teatro ritual oriental, que soube preservar osIIlinuciosos processos de trabalflo corporal d;; ator, 0 Ocidenre idolatrouI Iramaturgia ~o texto escrito, apagando da memoria os proce ii'nentosd cncena<;:ao que '"'estavam nas bases da tragedia grega, do teatrolizabetano, e de outras manifesta<;:6es vigorosas de sua_tradi<;:~o.

E ja faz seculos, foi abandonada uma certa operac;ao de transmutac;ao

fisio16gica e orgamca verdadeira do corpo humano, a qual1anera na

sombra de uma morna noire psfquica, todos os dramas psfquicos,

rodos os dramas psico16gicos, 16gicos e dialeticos do corac;:ao humano.

(apudVirmaux, 1978:324).

1I11Juzidas com sucesso, podem nos levar a experiencia de urn desejo ')II HI ~o a..-9-ualquer obJ.e.to-QU instin"ci; exterior. Aq~i ~esejo eII 1I.ldo como intensidade .~E!1tfnua, que nao busca urna "descarga" ou se A.lid!' . a uma "finalidade": basta-se a si mesmo, f;erando uma "alegria que \II, pnipLia", . . ..

Deleuze e Guattari enfatizaram 0 aspecto de "inven<;:aoI 'rimenral" na cria¢o do "corpo sem orgaos". Mas deve-se ressaltar _

111111 em a enfase que Artaud da, em al~ns escritos.0!:. urn c~nhec~enroIII ,Idicional",p;;rdido pelo"-;-cide~te moder~o. POl' isso, a inven<;:ao de

11111 le;;:tro futuro dependera do ag~ciamento de referencias arcaicas, 111,1 Ii~is, orientais43 , N as culturas indfgenas, pOl' exemp10 (uma das W-I. I r ncias importantes para Artaud, principalmente apos sua viagem ao Q

~1 xis-o}, a fun<;:ao de integral' a motte e 0 nao-representavel no seio daId.l e exercida pdos ritos de inicia<;:ao. No espa<;:o confinado e liminal'

,II I'cclusao, zela-se pekflorecimento de uma intdec<;:ao rnais profunda.II r alidade, traduzida depois em signos, rastros do caminho percorrido.N ~s s casos, a "experiencia" ~...dirigida_por uma tradi¢o, lapidada au'aves.I, .eculos e transm~uma cadeia ininterrupta. ~udiano,.I, "erto modo, as~dignida4e dessa fun<;:ao: urn t~l, .quel.IV 0 homem recriar-se no transito entr~ 0 ser e 0~ vazlO eI," rna. Mas, entre nos, essa cadeia teria se rompido:

Antonin Artaud - Teatro e Ritual4

o "corpo sem orgaos" nasceria, justamente, de uma necessidadeprofunda de liberdade, implicando urn duplo trabalho: dissolu<;:ao do"organismo" e suas "estratifica<;:6es"; cria<;:ao de urn novo corpo. ParaDeleuze e Guattari, trata-se de pensar e criar praticas "experimenrais"bern dosadas, que permitam desfazer automatismos e produzir urn corpopovoado pela "circula¢o de fluxos e intensidades". Na primeira fase doprocesso, deve-se chegar a uma especie de "grau zero" do corpo, no qualos "estratos" dariam lugar as "intensidades puras": "de (0 corpo semorgaos) e a materia inrensa e nao formada, nao estratificada, a matrizintensiva, a intensidade = 0..." (1996:13). A imagem alqufmica do "ovo",ao mesmo tempo vazio e pleno de possibilidades, tambern e utilizadapara designar esse estado.

Mas haveria uma serie de perigos implicados nesse caminho. Nasombra de urn mundo planificado e hiper-adrninistrado, que investe emtecnologias que pretendem criar um corpo modelado e impermeavel asincertezas da existencia, desencadeiam-se tambem puls6es destrutivas,expressas nos corpos "lugubres e esvaziados" dos junkies, dos pacienrespsiquiatricos, dos jovens herois suicidas. Muitos dos estados consideradospatologicos pela sociedade poderiam ser tomados como experim'enros nadire<;:ao de um "corpo sem orgaos" que por vezes fracassam,desencadeando processos de auro-aniquila<;:ao. Da hipocondria a paranoia,do vieio ao masoquismo, ha sempre uma especie de rebeliao contra 0

"organismo", urn impulso de evasao dos codigos normatizadores, emdire¢o a urn "grau zero", a urn plano de recria¢o e renascimento. Essas"linhas de fuga", no entanto, podem sempre sucumbir num "buraconegro", numa pura negatividade que se confunde com uma pulsao demorte. A unica garantia contra 0 fracasso da experiencia seria 0

desenvolvimento de uma sabedoria pratica, ou melhor, de uma"prudencia", que deve dirigir e dosar os experimenros: "nao se faz a coisacom pancadas de mando, mas com uma lima muito fina. Inventam-seauto-destrui<;:6es que nao se confundem com a pulsao de morte"(op.cit.:22).

A desarticula<;:ao do "organismo" nao se faria, portanto, de umahora para ourra, exigindo 0 transito entre os territorios conhecidos e asdesterritorializa<;:6es. Tudo isso visando atingir a constru¢o de urn "planode consistencia propria do desejo". Para ~e e Guattari, adesarticula¢o do "organismo", dos processos de significa<;:ao e do sujeito,

Page 14: Anronin Artaud Teatro e Ritual

56 Antonin Artaud - Teatro e Ritual , II \( ninArtaud - Teatro e Ritual 57

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Em Artaud, a investiga<;:ao do drama da carne e proposta comouma especie de tratamento de choque para uma epoc~...lllt()~c~da porsi~temas, t~o!Las, discursos, que se desc.QIlectara~ de experienciasprimeiras44 . Nao se trata de urn empirismo ingenuo, mas de urnagu<;:amento da percep<;:ao, que nos traria mais pr6ximos do que a vidatem..de...ir.repre-s€nt<lvel. E nessa proximidade'e ness-;- tensao que 0 teatro

poderia come<;:ar a repensar sua linguagem. E pelo contato com essadimensao do real que 0 homem sera conclamado a assumlC uma novaatitude diante da existencia.

Psicologia e Cosmologia.

Ecurioso constatar que uma das primeiras formas de a antropologiacIassica ter reconhecido certa eficacia nos ritos primitivos foi atribuindo­lhes fun<;:6es psicol6gicas. Essa nova perspectiva, que rompia em partecom 0 etnocentrismo das primeiras teorias evolucionistas, foi possibilitadapelo crescimento do numero de "trabalhos de campo" e de informa<;:6esetnograficas, no come<;:o do seculo xx. 0 contato direto dos antrop610goscom os povos nao ocidentais trouxe urn novo grau de complexidade paraas teorias que buscavam explicar as "cren<;:as primitivas". Etn6logos comoMalinowsky esquivaram-se de discutir a "verdade" dessas cren<;:as,preferindo concentrar-se na compreensao de suas "fun<;:6es" sociais. Asreligi6es arcaicas se justificariam por aliviarem certas tens6es psicol6gicase morais, contando, para isso, com a for<;:a que a coletividade exerccsobre 0 indivfduo. Urn dos exemplos utilizados por Malinowsky e 0 dos

rituais ligados amorte:

N unea urn individuo sente tanto a necessidade do confono da crenc;:a

e do ritual como no sacramento da extrema-un<;:ao, nas Ultimas

vontades que Ihe sao feitas nas fases derradeiras da viagem de sua

vida - atos que sao quase universais em rodas as religi6es primitivas.

Estes aros sao dirigidos ao esmagador receio, aduvida corrosiva, de

que 0 selvagem nao se encontra mais liberro do que 0 homem

civilizado (Malinowsky, 1984:64).

4. Abre-se aqui todo urn campo de investiga~ao ligado as categorias da "primeiridade" c d""secun~de", da fenomenologia peirceana, incluindo tambem a teoria~p~ao c.

teoria dos signos, do mesmo autor:-- I

Diante de urn sentimento considerado universal de "esmagador'" i)" e de "duvida" diante da morte, que seria comum tanto ao homemJlIllllitivo quanto ao civilizado, 0 ritual agiria como urn apaziguadorI' II oJ gico, como "cren<;:a" que conforta 0 indivfduo num momentotill il. 0 pressuposto aqui e que a rea<;:ao emocional diante da morte'11.1 universal. 0 medo diante da morte e tratado quase como urn dado

.11 Ihltllreza humana, uma caracterfstica psicol6gica basica, a partir da'1 lldl ' construirao as institui<;:6es sociais. 0 "funcionalismo", corrente a'Ill.d Malinowsky se filia, entendia a cultura como resposta as necessidadesI, it ,I . de ordem biol6gica e psicol6gica. 0 rito como "institui<;:ao social"45I' ponderia a uma necessidade psfquica, assim como as institui<;:6es

'1111 micas estariam ligadas a certas necessidades biol6gicas, como a/111111, por exemplo. A natureza "social" do rito expressa-se no seu carater'"l" 'itivo, na for<;:a de imposi<;:ao de uma cren<;:a coletiva sobre a

1111 iencia individual, mesmo que essa coer<;:ao tenha urn aspectoII' lIiguador e benefico, como no exemplo da morte. A eficacia da cren<;:a,1,1' IIde portanto de seu carater "coletivo". Pelo fato de ser compartilhada1'111 Itlda uma comunidade, torna-se "poderosa" e capaz de amparar 01"llvlduo na solidao de sua dor. Por outro lado, 0 rito traduziria emItld 01 s concretos (a<;:6es ffsicas, objetos, adere<;:os etc.) 0 mundo mfticoIII I mpos "imemoriais". A interpreta<;:ao psicol6gica do tempo mftico

II .llllado nos ritos enfatiza a fun<;:ao apaziguadora dessas "cren<;:as". Ao'III um "tempo das origens", dando-lhe expressao concreta atraves da

11111\11,1 em ritual, 0 homem primitivo estabeleceria imaginariamente umaII I I ncia "estavel", aplacando assim suas angustias diante doI lonhecido.

Enllma_?1r?o conrr~quese move 0 pe~~Arta!!d. 0'1111 lIa sociedades primitivas se disunguiria do teatro ocidental, entre'1III.I~,l'az6es,por~se~orar~a~ "psicoI6gica" do homem. Em

I til I It'll' lugar, 0 homem primitivo "artaudiano" nao e definido a partir deI" III il'as rfgiqas, que 0 encerrariam num mundo a~nomo,'"ll1loricame~distintoda natureza. As culturas ~ci~ sao refcr~nciasI'll !\,·taud usa para pensar a supera<;:ao da cis'io radic;J' ente natureza eIdlill',l, entre 0 simb6lico ~ as for<;:as vitais.~a em q~qui e

onceito de "institui~ao" em Malinowsky e bastante amplo, nao implicandoIII ~,~. riamente nwna formaliza~o racional como nas institui~6es burocraticas modernas.

Page 15: Anronin Artaud Teatro e Ritual

C...) 0 homem, considerado como urn pequeno universo, nao podia

desesperar. Desse modo, 0 desespero - que foi chamado de doens:a do

que a passagem para 0 universo "simbolico" da cultura naQ implicarianecessariamente nu~ ~or~e que institui urn sujeito "separado", que se op6eao objeto "mundo". 0 primitivo seria urn homem ermeavel, nao cind.ido,

- -""-~-;;.-

atravessado aramaticamente por for<;:as c6smicas que 0 constituem:

Na epoca em que Artaud escreve essas palavras, 0 totemismoera encarado por autores da tradi<;:5.o durkheimiana como uma especiede fenomeno religioso element-ar, dpico ~undo primitivo46 • Artaudrecusa essa oposi<;:ao entre religi6es mais simples e mais complexas,atribuindo ao totemismo 0 estatuto de uma "verdadeira ciencia". Numape~spectlva proxima it de Bataille e dos surrealistas~0 -t~emismo e vistocomo urn modo d; se relacionar-com a n~tur;z; em que os animais, pOl'exemplo, sinalizam as fronteiras do mundo humano e, ao mesmo tempo,sao "portas" para outros modos de ser, de alguma forma acesslveis aohomem. Se 0 ser humano tern geralmente urn lugar central nas cosmologia~

primitivas, isto nao quer dizer que ele nao seja aberto e atravessado pOl'outros reinos, comportando zonas de contagio, vizinhan<;:as e rela<;:6es deanalogia que alargam as fronteiras do seu ser.

De qualquer forma, 0 essencial e que as rel~~vaspartiriam de uma outra "antropologia", na qual a vida interior do-homemnaQ'e compreendida psicolog.icamente, mas cosmol~amente. 0 universoaparece simultaneamente fora e dentro do homern, e 0 homem (­considerado como urn universo em miniatura, contendo em si elemento,\analogos it natureza. Desse ponto de vista, as dinamicas afetivas ganhall1novas dimens6es:

59

seculo Cle mal du siecle), e que fez na Frans:a sua temivel apari<;iio,

marcada por varios swddios retumbantes, na epoca do surrealismo

- esse desespero era automaticamente reabsorvido, pois todas as

for<;:as do mundo contribuiam para a sua reabsot<;:ao.

Nesse tempo, 0 homem estava equilibrado com 0 mundo, respirava

com a vida do mundo e dispunha de meios conhecidos para, grafa5

an mundo, curar sua vida psiquica COC:VIII, 228).

IIlllllin Artaud - Teatro e Ritual

Nao se trata portanto de consolar atraves de uma cren<;:a, mas de iIII, I • r os meios para que 0 homem possa respirar com "a vida do111111111 ", conectando-se com 0 ritmo que impregna todos os fenomenos.

11.11 II reza dessa conexao parece extrapolar as possibilidades dadas pela11111'11,1 em conceitual com;-n;-odo ~ioti~<;:ao.Ar;;;:ud <IenunciaI I' Iidame~'conscie~ada" que esta na base dos sistemas deI" II ,1I'1ento e linguagens hegemonicos ~Ocidente, expressando 0

1111111 m;;- de impotencia e rev~nte da nossa incapacidade de111111 juntos it "vida". Os estados de desespero que ganham dimens6es

,d, I ivas em certos momentos da his toria europeia poderiam serlilt II lidos a partir desse afastamento.

teatro ritual, nesse sentido, surge como possibilidade deI '"11 'xao com as £otencias vitais, aproxi~o-nos, ao mesmo tempo,II III tahili.dade ame<!¥ldora e do caos. Ele nao imp6e umaIt I" senta<;:ao" que transforma 0 mundo e a natureza em "objetos"

1'1 IV'i de controle e manipula<;:ao. A multiplicidade de linguagens e •

lib I. I' ias de expressao agenciadas nao sao controladas "de fora", por i111'1 digo que se sobrep6e a elas e as ordena (como no caso da ""

III 'nta<;:ao de urn "texto"). Elas se comp6em como urn ritmo, descrito1"" naud em seu ensaio sobre 0 teatro de Bali como uma "trama cerrada

lit il dos gestos" composta de "modula<;:6es infinitamente variadas"I II : IV, 55). Uma "respira<;:ao", que acolhe e conjuga movimentos

""C I1temente inversos e contraditorios, de cria<;:ao e destrui<;:ao, deI IIr imento e significa<;:5.o, que nunea estanca num sentido lutimo, e

'I" "n s mergulha nesse estado de incerteza e angustia inefavel que e1'10 'I'lio da poesia" (OC:IV; 60)47.

Antonin Artaud - Teatro e Ritual

o totemismo,alias, nao era urna magia grosseira, uma supersti<;:ao

proveniente do'SPrimordios da humanidade, era a evidente~lica<;iio

~e um~ ciencia. De que e que nos de futo soni~o homem

julga-se porventura sozinho, sem correspondencia com a vida das

especies - das flores, plantas, frutos - au de uma cidade, de um rio,

de uma paisagem, de uma floresta? COC:VIII, 228).

)(

58

{

46. Para uma abordagem panoramica das ceorias classicas sobre as religi6es primirivas. V("I

Prirchard (1%5).

I'"drdnmos aqui evocar cambem a ideia heideggeriana da obra de arCe que exisre no embare1111 "terra" e "mundo". A esse respeiro, ver "A Origem da Obra de Acre", em Heidegger

(I')') ).

Page 16: Anronin Artaud Teatro e Ritual

A psieologia que insiste em reduzir 0 desconheeido ao eonheeido,quer dizer, ao cotidiano e ao comum, e a causa dessa diminuic;:ao edesse assustador despetdicio de energias, que me pareee ter ehegado

Artaud ainda colher;!. outras pistas nas culturas tradicionais para

pensar urn teatro que ultrapasse a psico ogJa. ana ogJa ermetica entre

o microcosmos e 0 macrocosmos tam em colocava 0 homeril "no ponto

de convergencia de todas as for<;:as cosmicas" (OC:VIl!, 227). A andtese

entre sujeito e mundo era negada, na medida em que reconhecia-se na

natureza, atraves da doutrina das semelhan<;:as, fenomenos analogos a

processos que poderiam ser experimentados pdo homem. Assim, na

cosmovisao que apoiava a alquimia, as diferentes qualidades dos metais,

que vao da opacidade e densidade do chumbo a luminosidade e pureza

do ouro, "correspondiam" aos sete planetas, que por sua vez traduziam­

se tambem em diferentes estados internos pelos quais passava 0 adepto.

Uma vasta rede de analogias e correspondencias pretendia fazer ressoar

no homem os diversos reinos da natureza,

Mas, mais do que fornecer uma estrutura analogica e coerente,

na qual se articulem diversos nfveis de realidade, 0 conhecimento

hermetico pretendia penetrar no segredo da propria genese do universo,

refazer a passagem do caos ao cosmos, processo no qual 0 proprio homem

se recriaria, tornando-se efetivamente um "microcosmos", Nesse sentido,

a rela<;:ao do homem com os animais, vegetais e com 0 mundo mineral

era apenas etapa de um percurso, que visava, como vimos, a experiencia

da "materia-prima" do mundo, sua substancia primeira, obscura e amorfa,

impenetravel aluz da razao. A "noite escura da alma" evocada pela mfstica

crista, que nao se manteve impermeavel a essas correntes, traduz bern

esse estado receptivo, fruto de um despojamento radical, que prepararia

o adepto para reviver interiormente 0 processo cosmogonico.

Para Artaud, a "psicologiza<;:ao" do teatro expressaria no terreno

da arte urn processo de restri<;:ao de perspectivas, de enclausuramento do

mundo "humano", de atrofia da sensibilidade analogica. E certo que a

expressao "teatro psicologico" nos remete mais imediatamente a cena

naturalista, alvo dos ataques de diversos artistas de sua gera<;:ao. 0 proprio

Artaud, quando desfere suas farpas contra a "psicologia" em geral, parece

ter em mente urn modelo estereotipado que ele encontrava nos palcos

europeus:

ao fundo do poc;:o (...). Hist6rias de dinheiro, de allgilsti;:u; pOl' causade dinheiro, de arrivismo social, de agonias amorosas em que 0

a1truismo nunea intervem, de sexualidades polvilhadas por urnerotismo sem misrerios nao sao do dominio do rearro quando saopsicologia (OC:IY,75).

1I1011in Artaud- Teatro e Ritual

() direror Jose Celso Maninez Correa, freqiienremente idenrificado pela crftica comArcaud, declarou que descobriu 0 tcatro sagrado com a monragern de "As Tres Irmas",d' Tchecov. Ver a entrevista "Tchecov e um cogumelo", em Correa (1998).

I I "Sc em Shakespeare 0 homem as vezes se preocupa com aquilo que 0 ultrapassa, trara-se'mpre, definirivamente, das conseqiiencias dessa preocupas:ao no homem, isro C, a

p~i ologia" (OC:IV, 75).

II li~la esrrutura foi chamada por Szondi (2001) de "drama absoluto". Trata-se do dratnaIIluderno, que nasee no final do Renaseimemo e rem 0 seu apiee no seculo XIX. Corn 0

,I ifnio da visao medieval do mundo 0 homem europeu passa a considerar a suaIHlI·ticipas:ao na comunidade dos homens como 0 elemenro essencial de Sua vida. Dal aIII1porrancia das relas:6es "inrer-subjetivas".

.. Pois 0 afero nao e urn senrimenro pessoal, tarnpouco uma caracterlsriea, ele e a efetua<;:iio de\11110 potencia de matilha, que subleva e £u. vacilar 0 eu" (Deleuze; Gllattari • 1997:IV, 21).

Tais provoca<;:6es sao, aprimeira vista, urn tant:o exageradas. Na

1111 .1 de Artaud, a obra de Freud ja era conhecida na Fran<;:a elida pelos

1lll'talistas. Uma ideia generica de "psicologia" e assim bastante

IIIJl >brecedora. E mesmo no campo do teatro naturalista, seria diffeil

"dll~ir a obra de um Tchecov ao quadro pintado por Artaud48• Mas, de

11111 (:)utro ponto de vista, suas observa<;:6es apontam para quest6es mais

1111 , Assim como Craig, ele localiza 0 inicio da "psicologiza<;:ao" da arte

III Itl -ncal no humanismo renascentista. Nas suas polemicas observa<;:6es

I dII' a "psicologia" em Shakespeare49, ha a percep<;:ao de um processo

11'1 comera a se delinear e se afirmar como modelo: a circunscri<;:ao de

11111 'ampo de tematicas e referencias que exclui um certo modo de

1IIIII'a ao das for<;:as externas ao homem. Shakespeare ainda e urn caso

11111.( uo: seu teatro e permeado de entidades espirituais, fantasmas,

11111 a , seres safdos do imaginario medieval. Mas a tendencia posterior

III drama burgues foi a de concentrar a estrutura dramatica em torno

III 'onflitos intersubjetivos, construfdos atraves da caracteriza<;:ao de

III I\()nagens, de sirua<;:6es cotidianas e de uma estrutura dialogica50•

Nesse enclausuramento perder-se-ia justamente a experiencia das1111111 ·iras, que tornam 0 homem permeavel a afecos que fazem "vacilar 0

II' I, Mesmo dilacerado por conflitos internos, os personagens mantem

Antonin Artaud - Teatro e Ritual60

Page 17: Anronin Artaud Teatro e Ritual

62 Antonin Artaud - Teatro e Ritual III< ninArtaud-TeatroeRitual 63

seus contornos definidos e sua coerencia de sUJeltos. A experienciapropriamente dionisiaca da dissolu~ao das individualidades nao tern lugaraqui. A ausencia da grandeza tragica no teatro moderno poderia ser

atribuida a essa restri~ao de perspectivas52. ~o te~~o, pdomenos nas suas vertentes realistas e naturalistas, 0 homem tende a naocontracenar com 0 "nao-humano", que era figurado no teatro amIgo'peiosdeuses.-demonios, espectros, ~cesl:£ais etc. Tais figura~oes funcionavamm;;-~que octJtavam uma realidade obscura, incontornavel.o teatro antigo, mais roximo do ritual, evocava motivos e paixoes supra­humanas, que arrastavam os personagens e caracteres para situa~oes limite,avassaladoras, capazes de suscitar 0 sentimento do sagrado.

E, assim, de uma particular categoria de afeto que 0 teatro ritualpretende tratar. Rudolf Otto (1992) tenta nos mostrar como 0 "sentimentodo sagrado" nao pode ser reduzTdoa dimensao dos afetos intersubjetivose intramundanos, que nascem das rela oes entre "indivfduos"53. 0 que

de chamara de experiencia dot'" uminoso", nao se referira a nenhumobjeto mundano. 0 numinoso nos abriria para fora do "mundo" entendidocomo referencia, significancia, territorio. Designa 0 lan<;:ar-se no nao­nomeado, no incerto e no insdvel, de onde brota 0 sentimento do"totalmente outro", do estranho que irrompe no familiar e 0 desestabiliza.

/. Isso significa dizer tambem que 0 sentimento do sagrado eXiSlC!

/

' "anteriormente" a qualquer tipo de codifica<;:ao religiosa, sejam ela~mitologicas, teol6gicas ou mesmo magicas. Tensiona e transborda O~

limites da linguagem, exigindo novos modos de semiotiza¢o, podendo

tambem identificar-se com 0 silencio da mistica.'-Por nao poder ser apreendido atraves de conceitos, 0 numinoso M'

deixaria captar primeiramente pe as c asses especiais de sentlmentos qut'pr~voca. Otto ressalta que estes-poaem ser oe na urezas aparentemelll .comrndit6rias, formando "uma estranha harmOnIa e contrastes". Suscil.lo tremor, na me ida em que e revela<;:ao a precariedade da existelll i.1

52. Le-se numa crftica de Artaud a uma montagem da tragedia Medeia, de Seneca: .. Aparticularidade do teatm moderno esra. em que nele se perde sistematicamente a oc:"i.,,,de representar urna tragedia, ou seja, de dilacerar a aten~ao atraves do crime. Eurn 1,'.11 '"

que (...) tern medo de se relacionar com os poderes que existem e dos quais e imp""rv, Iesquivarmo-nos" (OC:VII, 197).

53. Hi aqui uma clara discordiincia da interpreta~ao freudiana, que ve as cren~as religi"'''como projec;5es de situa~6es infantis, desenvolvida no ensaio 0 Futuro de uma I!usii".

11I11I1:l na, arrancando 0 homem dos frageis refugios da cotidiatleidade,I IllS ndo-o diante do mystnium tremendum'H. Como a "al)gustia"III j I ggeriana, 0 tremor difere do simples temor ou medo, pr~\>ocado

1"11 "um ente que vern ao encontro de dentro do mundo"55.0 tretrlorII 10 pode ser objetificado, provindo da incerteza e da instabilidade da

I l ncia. Nesse sentido, e1e pode ser identificado com 0 terrClr que aII.I/'. dia antiga deveria provocar, atraves do embate entre 0 her6i e 0

.I I ino.

Pode-se adiantar que em Artaud esse aspecto do numinQso seraI'lili ularmente relevante. As imagens da peste e da "crueldade", a procuraI 11m teatro capaz de abalar violentamente os nervos eo intelecro, a tonica

II, I',i • da sua pr6pria trajet6ria existencial, falam do sagrado tenebroso e11111111')10, que deve atuar como urn choque, numa cultura que de C01l.siderct:va1111 I ·siada. 0 teatro da crueldade deveria saber solicitar, novame1l.te, uma1IIIId her6ica e diffcil ao homem contemporaneo. Mas 0 numin<:ls() p<>de

I II II hem provocar a fascina¢o e 0 maravilhamento presentes no entusiasrn.o1111 ~xtase mistico. Essa dualidade ja expressa uma primeira divisao

I'll II1:itica a partir de uma experiencia originaria de puro espanto e esrupo!',IllIll' do que Otto chama do "totalmente outro".

Mesmo as cosmologias arcaicas e primitivas, quando COllStr6em11111 vasto tecido de sfmbolos e analogias para dar coma de mlilriplo5III I i~ de realidade, movem-se em torno desse abismo e desse V~i(), que

I .lpa a qualquer defini¢o, mas que se desdobra numa multiplicidadeI for as e formas. "E os Deuses do Mexico que giram ao redor cla vaz.io

111111 • 'em uma especie de meio cifrado para reaver as for<;:aS de tim vazioIII ( qual nao ha realidade", diz Artaud numa conferencia no Me'Xl'

co~

III 19 .~, r~afi.rmando.essa ideia. O.~itual artaudiano parecealmejarI p 'l'lenCla do nummoso. A questao que, merece ser retomad~tao e

I .1.1 lin~uagem. Se a experiencia do sagrado transborda todas as~as l'Illdi os, sendo, no limite, incomunicavel, como a linguagem ecapaz

vo a-la?-.

I) I I'lUO mysterium tremendum, retirado do Antigo Testamento, e definido por Otto como" "nlisrerio que causa arrepios". Nao se trata do medo sentido em relac;:ao a um objeto ou.Iln.'c;:50 mundana, mas de urn tremor diante do que transborda nossa capacid.de deII" 'llsao tacional.

, . peito do temor como modo de disposic;:ao em Heidegger, ver paragrafo 30 de Sel"' e'

Ifll/po, Heidegger (1989).

Page 18: Anronin Artaud Teatro e Ritual

64 Antonin Artaud - Teatro e Ritual IItonin Artaud - Teatro e Ritual 65

Rito-e representafiio

Antes de abordar especificamente a questao do rito, do teatro e darepresentas;ao em Artaud, convem apresentar e comentar sinteticamentealgumas perspectivas de compreensao do ritual para diferencia-Ias emseguida da proposta artaudiana. A ideia de que 0 rito e uma "representas;ao"dos valores, ideais e da visao de mundo de urn determinado grupo ousegmento social esta fortemente enraizada em diversas teorias. Asmitologias, seculares ou sagradas tornam-se ritos encarnando-se num tipode representas;ao que se utiliza de uma linguagem concreta, feita de codigosgestuais, movimentos, ritmos, cores etc. Essa perspectiva utiliza-se deurn modelo predominante ainda hoje no teatro ocidental - 0 darepresentas;ao de urn texto - para se explicar 0 rito. Mesmo quando esse"texto" nao existe como linguagem escrita, caso das tradis;6es orais,entendem-se as narrativas miticas como uma especie de substituto. Elasexpressariam as conceps;6es que seriam traduzidas "cenicamente" pelorito. 0 rito passaria para urn plano mais concreto, ideias que preexistiriamnum plano mais abstrato.

A escola durkheimeana deu grande enfase a categoria de"representas;ao", util'izando-a na interpretas;ao de diversos fenomenosligados a religiao, aos ritos e as cerimonias de diversas especies. As"re~entas;6es" sao entendidas como categorias que estruturam nossofuncionamento mental. ~eim dizia que elas sao a "ossatura dainteligencia", responsaveis pela estruturas;ao das significas;6es que damosas nossas experiencias. A experiencia enquanto fato bruw so adquirirasentido para os individuos e pa;;-;'- coletividade na medida em que scarticula como represe!lta<;:ao mental.

Durkheim entendia as representas;6es como construs;6es sociais.A rmo que as produz nao e individual, mas social: trata-se do trabalhoacumulado de muitas geras;6es, que cria uma especie de capital intelectual,transmitido pela tradis;a056• Ademais, as categorias mais gerais nas quai~

se assentam nossas conceps;6es de mundo, tais como nossas nos;6es dt'tempo e espas;o, e que compartilhamos com a coletividade, serialll

?Nesse se~tido: a ideia du~~eimea~a de re.l!resent,,:c;:ao coletiva te~ cerra proximidade d.•concep~cean~ de slmbolo, como slgno Ilgado~~s, habit"',costumes e convenc;:oes.

II Ns:irias para que haja entendimento e cooperas;ao entre os individuos,," Illcindo urn patamar minimo de consenso e previsibilidade que

I'" ailitaria a comunicas;ao. Sem representas;6es basicas compartilhadas,"II I ivamente 0 jogo social nao pode se dar.

A religiao seria urn dos campos privilegiados de condensas;ao deI, pi S ntas;6es coletivas fundamentais, que dizem respeito a situas;ao geral.III h mem no universo. 0 sentido da existencia, a explicas;ao dosI 11 menos e suas causas primeiras (metaffsica), os parametros eticos'III I,evem reger a vida humana sao formulados, nas sociedadesIII Ii 'ionais, principalmente pela religiao. A religiao estabeleceria na•'llliunidade urn horizonte comum de compreensao dos fatos e da vida.I 1111,1 de suas funs;6es seria justamente a de garantir assim a unidade do

11'1 ,base da sobrevivencia humana como especie.~, desse ponto de vista, serao entendidos principalmente

11.111 ~s de fortalec_i.!!lent~da kkntidade. Criam representas;6esIlilage~as quais a coletividade pode se reconhecer Zomo grupo. Essa

101. Illiflca~ fortaleceria os vinculos de solidaried~ficando0 social.

I 111 Outras palavras, 0 h~cultuarianareligiao--; fors;a~ropriaIII I~e. A fors;a do fenomeno religioso seria resultado do proprio

I'" I '1' da coletividade, projetado nas imagens e crens;as religiosas. Do1111 ~1I10 modo como Freud interpretou 0 fenomeno religioso a partir de11111 processo de "deslocamento" e "projes;ao" (das figuras parentais paraI divindades), Durkheim entende a religiao como expressao da"" ' sidade humana de fortalecimento dos las;os sociais. Chega a wrmar'III., quando negamos as representas;6es coletivas mais fundamentais,

1'111 S a impressao de que nao podemos abandonar-nos a isto sem queII" NO pensamento cesse de ser urn pensamento verdadeiramente humano"II hll" heim, 1973:519). 0 social definira os !imites do humano e d~II It I hum;m.o. 0 sentido da' transcendencia religi~o sentimen to'deI. p ·ito e veneras;ao que 0 acompanha seria proveniente do poder que a, ," (i vidade exerce sobre os individuos. Dai 0 fato de se cercar 0 sagrado,Ii 1,lbus, solenidades e proibiS;6es. Dessa forma, Durkheim tenta decifrar

" Ill1iverso religioso, reduzindo-o a perspectiva sociologica.o ritual tambem sera explicado a partir desse "fundamento" social.

lid a religiao nao so urn sistema de representas;6es, mas uma instituis;ao'111 possui uma funs;ao essencial para a coletividade, deve possuir111 ,nismos para que seus valores se instaurem profundamente na

Page 19: Anronin Artaud Teatro e Ritual

67"" Illi n Artaud - Teatro e Ritual

" Vcr especialmence From l}i,tuaLto Theatre,~2; TheAn~ ofPerfOrmance, 1986;"Are There Universals of Perfomance in Mych, Ritual and Drama?", em 73y Meam of

/Informance (1995).'I Robel'ro da Matta, na apresenta<,:ao do livl'O de Van Gennepp, Os Ritos de Passagem, afirma:

"c bisico salientar que Van Gennepp foi pl'Ovavelmence 0 pl'imeil'o a ComaI' 0 riro comourn fen6meno a sel' estudado como possuindo urn espa<,:o independence, isro e, como urnobjero docado de uma auronomia relaciva em cel'mos de oUCI'OS domfnios do mundo social,

nao mais como urn dado secundario, uma especie de apendice ou agence espedfico eIlobre dos acos classificados como magicos pelos escudiosos" (Van Gennepp, 1977: 12).

til 'ridade: a~ define a pertinencia do indivfduo a certas{'II as;oes, situando-o no social; a segunda buscaria a verdade dos

ra das classificas;oes, incorp;;rando-0 singular e 0 diferencial. f)

entido, 0 rito~ de ser ~penas a representas;ao encarnada dos11I1's oletivos, mas constitu!~esomo um acontecimento ~gular, em

iii' 'xi te certo espas;o para a emergencia do estranho, do -;;ao-identico,I" IIU nao se conforma--a norma. - --

Esse novo modo de ver a questao ja e tributario dos trabalhos1'1, lit iros de Victor Turner, que passaram a valorizar os aspectoslllliinares" da$~erienci;·ritual. Repensando 0 modelo classico deIII I preras;ao dos "ritos de passagem", elaborado por Van<Genneep (1977)

1111 (omes;o do seculo XX, Turner abordara as relas;oes entre teatro eIltll.d~8. Van Gennepp ja havi~tribufdo decisivamente ~;or~~r 0

tll,l lim objero autonomo de investigas;ao59 • Chamando de "ritos de

I I ,I 'em" as mais variadas formas de cerimonias primitivas (ligadas aI lVidez, parro, puberdade, casamento, funeral, receps;ao de estrangeiros,

11111 1.1 oes xamanicas etc.), Gennepp as interpreta como mecanismos queIlia lam e promovem as transis;oes significativas da vida individual e

.11 I.d. A propria vida social sera concebida como uma especie de sucessaoI tI· locamentos, no tempo e no espas;o, em que indivfduos e grupos

II .\ sumindo diferentes "papeis" e funs;oes. A construs;ao dos novosI'lp is" dependeria dos mecanismos que estruturam os ritos, numa'I ncia invariavel: a fase de "separas;ao", na qual os participantes sao

I 1I1.ldos da vida cotidiana, passando a viver "fora" da sociedade; a faseoil "margem" ou "liminaridade", marcada pelas experiencias que

1'III1l10Vem a dissolus;ao dos antigos papeis e crias;ao dos novos; e a fase.I, "reagregas;ao", na qual os "iniciados" sao recebidos pela sociedade,

IImindo um novo status social.

Antonin Artaud - Teatro e Ritual

expenencia dos indivfduos. Assim, 0 culto e 0 rito serao entendidoscomo ocasioes nas quais as "representas;oes coletivas" serao incorporadase vivenciadas intensamente. No rito, ha a passagem das formulas;oesexclusivamente verbais para a linguagem corporal dos atos. ParaDurkheim, essa linguagem e 0 vefculo privilegiado dos afetos e dos estadosemotivos de grande intensidade e efervescencia, provocando a dissolus;aodas individualidades no grupo. Trata-se de uma interpretas;ao que valorizaprincipalmente 0 aspecto emocional da religiao, que serve de "liga" social(0 "re-ligar" tern aqui somente 0 sentido da comunhao entre os homens).A repetis;ao ritual e entendida como necessidade periodica de fortaleceros vfnculos grupais, garantindo certo nfvel de solidariedade dentro dogrupo e prevenindo conflitos. Essa perspectiva permite, evidentementc,ampliar 0 conceito de rito para muitas formas de cerimonia social,secularizando seu significado. 0 proprio Durkheim apontou para essas

possibilidades:

57. Os crabalhos da chamada Escola de Mancheter insiscirao nesse ponto, sobtetudo auton',como Max Gluckman eVicto~ue serao comentados adiance.

-=== '"

Que diferen<;a essencial existe entre uma assembleia de cristaos

celebrando as principais datas da vida de Crisro, ou urna de judeus

festejando seja a saida do Egiro, seja a promulga<;ao do decilogo, e

urna reuniao de cidadaos comemorando a institui<;:io de urna nova

constitui<;:io moral au algum grande acontecimento da vida nacional?

(Durkheim,1973: 532).

66

Essa explicas;ao sociologica do rito, apesar de chamar a atens;ao

para aspectos importantes, nao apreende 0 que e espedfico do fenomeno,tratando de forma indiferenciada cerimonias de carater dvico e rituaisreligiosos. A sociologia classica enfatizou sobretudo 0 poder restauradordo rito, sua capacidade de forralecer os las;os de idenridade, pressupondoassim uma linguagem estruturada em representas;oes estaveis que saoperi6dicamente reiteradas. Progressivamente, os estudos !1l!~ropologicos

foram reconhecendo a imporrancia da expressao dramatica dos conflitose das rupturas em determinados momentos dos rituais57• Formulas;ocscontemporaneas como as de Marc Au~e definem 0 dispositivo ritu;11

/-~ como aquele capaz de conjugar a linguagem da identidade com a linguagenl""

Page 20: Anronin Artaud Teatro e Ritual

68 Antonin Artaud - Teatro e Ritual I1conin Artaud - Teatro e Ritual 69

Turnet aprofundou-se no estudo da fase "liminar" dos rituais,~.~.__ .~ -=-_.. .

privilegiando nao s6 a fun<;:ao de construfiio de papeis e identidades dos

ritos de passagem, mas in~do o~ocessos de dissolufiio ereela~ das representa<;:oes coletivas que 0 ,rito tam~ comporta.Assim, se os ritos ainda tem, para 0 antrop610go britanico, 0 objetivo derestaurar a ordem abalada pOl' urna crise, de modo analogo aos sistemaspolfticos e judiciarios, a restaura<;:ao ritual se dara de forma singular. 0rito deixa de ser visto como mero mecanismo de reprodu<;:ao e imposi<;:iode representa<;:oes que se mantem mais ou menos identicos, subjugandoas singularidades a generalidade da lei. A fase limin~ o~ria umcontinente para a experiencia da desordem, do desmanche das referenciase contill~da iliertura para a dimensaodo "sagraM, ex~-numa-_.. -linguagem de "simbolos"60, marcada pela polissemia e concretude. Se os-- "--- .

sistemas juridicos e politicos, desenvolvidos em maior grau nas sociedadesmodernas, apostam sobretudo na resolu<;:ao racional dos conflitos, osritos primitivos parecem querer se aproximar da violencia dos embates,para poder redirecionar as "for<;:as" envolvidas61 .

A fase liminal' dos rituais se da sempre num espa<;:o separado davida cotidiana, de modo analogo ao "palco" teatral ou ao local de 'ensaios62.Ela pode compreender uma serie de procedimentos, que vao dos jogos,lutas, aprendizado de dan<;:as, dramatiza<;:oes, musicas, instru<;:oes sobremitos e simbolos sagrados, prescri<;:io especial de alimenta<;:ao, provas decoragem, humilha<;:oes etc. As experiencias dos participantes sao traduzidasmuitas vezes em imagens miticas, que dissolvem as fronteiras entre 0

60. 0 conceiro de "simbolo" e aqui utilizado numa acepc;:ao evidentemente distinta dapeitceana. A linguagem dos tiros, marcada pela gesrualidade, oralidade, musicalidade,plasticidade etc., utiliza-se sobretudo dos signos iconicos e indiciais, e nao da abstrac;:aodo "simbolo" peirceano.

61. Rene Girard (1972) desenvolveu roda uma interpretac;:ao dos ritos a partir dessa

Cperspectiva. 0 sacrificio, por exempJo, e entendido como experiencia da violenciacircunscrita, que drena e cura a violencia difusa e latente no convivio social, que semprcameac;:a explodir e proliferar.

62. Do ponro de vista do publico, 0 edificio teatral eum "espac;:o limin6ide", ja que se localizafora do espac;:o cotidiano do trabalho e da familia. Para Turner, 0 lazer e uma zonaintersticial na vida contempoclnea. ]a do ponto de vista dos attistas, a fase "liminar" doprocesso de criac;:ao se da no per/odo fechado de ensaios. Quando 0 artista entra no palcoesra tornando publico seu trabalho, rompendo com a fase uterina da criac;:ao.

Illundo humano e 0 mundo natural e imaginal. Proliferam as mascaras ep 'rsonifica<;:oes de monstros, figuras teriom6rficas, seres celestes,,'l1dr6ginos, "loucos", demonios, e simbolos que reunem as polaridades11.15 imento-morre, ventre-tumba etc. Os c6digos de expressao utilizados,10 os mais variados - ruidos, musica, silencios prolongados, dan<;:a, pinturaorporal, incensos e fumega<;:oes, oferendas alimentares, c6digos gestuais,

v 'rbais etc. -, mobilizados para circunscrever e aludir a experienciaslil1l(trofes, dificeis de serem nomeadas pe1a linguagem cotidiana. E alin uagem da "alteridade", que emerge desestabilizando as identidades eI)~ istemas de classifica<;:io, promovendo 0 processo de "motte simb6lica"I a transforma<;:ao dos indivfduos.

Para Turner, 0 teatro e um dos herdeiros dos vastos sistemas deIiluais das sociedades pre-indust!i:is. A subdivisao dos generos culturaisIllodernos (teatro, dan<;:a, musica, poesia etc.) desmembrou a linguagemdO' rituais primitivos, criando campos especificos de expressao. As attes11.1 ociedade moderna tambem nao estao tao imbricadas com a vida,IOITIO os rituais primitivos. Elas incorporaram 0 sentido do

IIlretenimento, do jogo e do lazeI', perdendo algo da "seriedade" e daIII istura com a vida, observada nos rituais. Mesmo assim, Turner--II nhecera uma serie de analogias que ligariam a fas~ limipar dos rituaisI os processos artisticos (aquila que e1e chama de fenomeno "limin6ide")._ -----==. _k 7:!::=-

\

1\11l ambos os casos esta em jogo a manuten<;:ao de espa<;:os parale10s a'Ida cotidiana, nos quais sao ree1aboradas as formas de sentiI', pensar e

II presentar 0 mundo. Os generos artfsticos modernos, pelas pr6priasI rIl':1cterfsticas seculares da sociedade em que estao inseridos, tenderiamI I rabalhar ludica e/ou criticamente com os padroes culturais, construindo /

III t~come.~ios sobre a vida coletiva. A perspectbT~Jacionalista, que I 1/I In na origem do Ocidente moderno, teria gerado uma arte marcada "1 "I' In "autoreflexividade", que constr6i "espelhos':J!nimesis) do mundo 0'

I) lal, diferentemente dos "rituais prim~ menos centrados na, p riencia racional. Turner, porem, reconhece que ha pro5'ostas no teatro_ ~ .b

Illoderno e contemporaneo, como as de Artaud, GrotowsJ!:y, Peter Brook,""--- -

lid ian Beck, Tad~_hi Suz~ki, entre outros, que pretendem justamenteII uper; a experiencia do numinoso e do sagraslo, ins irando-se nos

. .. . -.. ===-;;:..III "als ptlml~vos.

Turner preocupou-se ainda em estabelecer rela<;:oes entre asI riencias "liminares" e a neurobiologia. Baseando-se nos estudos de

Page 21: Anronin Artaud Teatro e Ritual

Representas;ao, Vida, Crue1dadc

~A enfase na experiencia liminar dos rituais fez com que Turnel

ltrapassasse, em cerro sentido, a perspectiva sociologica de inter~'an

desses fenomenos, abrindo-se para a quesrao da genese dos "simbolos"n experiencia iniciatica. Em Artaud, essas quest6es serao tratadas deforma quase obsessiva, criando caminhos inusitados de desenvolvimellindo problema. Em primeiro lugar, Artaud prefere antes acentuar ,I'

diferen<;:as que separam 0 teatro ocident~uais primitivos, do gill'

frisar as analogias entre os dois fenomenos. 0~o ocidental teria nascid41

da negac;:ao do rito e~ que ele im li~a, Essa.~i~pode $('1

~1) entendid:j.~artirdo eroblema da "re resenta<;:ao". Derrida nos chama ,I--=-aten<;:ao justamente para esse ponto: "0 teatr~da c£.ueldad.::. nao I

I I representa<;:ao. E a propria vida no que e!a tern de irrepresentavel. A vid,l~

D'Aquili, Lex e Laughlin (D'Aquili, 1979), afirma que a linguagem e osdispositivos rituais sao capazes de estimular determinadas zonas cerebrais(0 hemisferio direito), responsaveis pela percep<;:ao gestaltica,desencadeando tambem uma vitalidade incomum, permitindo, porexemplo, que pessoas mais velhas dancern durante muitas horas seguidassem demonstrar cansa<;:o. A linguagem ritual, agenciando mUltiplos codigosde expressao, atuaria sobre 0 nosso sistema nervoso, desencadeando 0

funcionamento de zonas cerebrais nao urilizadas na vida cotidiana. Arela<;:;io entre linguagem eo funcionamento corporal abre urn imporrantecampo de quest6es que aproximam, em cerro sentido, a abordagem deTurner das reocu ~<;:6es de Artaud. 0 elo reside justamente naimportancia conferida as modifica<;:6es or micas romovi as e os Ttuais.o n;;; f,ossibilitaria 0 transiro do ser do homem por outros estados,fisicos e mentais, deslocando-o da perspectiva e do horizonte cotidiano,e promovendo uma desestabiliza<;:ao radical de sua identidade "social". Alinguagem dos ritos nasce dessa "crise", e porranto so pode ser entendid;la partir dai. 0 mesmo aconteceria com a compreensao da "fun<;:ao social"dos ritos. As culturas que preservam seus dispositivos rituais sabempromover 0 movimento que liga 0 mundo social estruturado a urn "caosfrutifero" nos dizeres de Turner ou, na linguagem de Arraud, "os e!osentre 0 que e 0 que nao e, entre a virrualidade do possive! e aquilo qutexiste na natureza materializada" (OC:IV, 27).

71

;omo veremos adiance, em determinado momento de sua trajet6ria Anaud passa aIi signar sua proposta cenica de "teatro da crueldade"..omo assinala Santaella (2000), na teoria_.~signos de Peirce, os conceitos de{r­

"objeto" e "incerpretante" nao sao rao simples como podem~ dando lugar a urn",'unde numero de mal-encendidos. 0 "objeto" nem sempre e uma "coisa", podendo ser 0

'lin simples estado mencal. 0 "incerpretance" nao e necessariamence "alguem", mas urnI mento de uma cadeia 16gica. A esse respeito, ver especialmence capitulos 1 e 2 da obra

.II,lda.

I1C nin Artaud - Teatro e Ritual

,\ origem nao-representav~lda representa£ao"63 (Derrida, 1971:52).-.~ ...-~- - ~

I'" a afirma<;:ao sera depois matizada ao longo de seu ensaio, considerando-. '\ impossibilidade da transposi<;:;io da "vida" para 0 palco. Mas e!a nos

I rvira aqui como provoca<;:;io inicial. 0 teatro ocidental e basicamente

pt 11 ad~omo "r~esen~a<;:ao" (do~exto;-;r~ conce~6es de umdiretorI I .) e a re~mada cLo riro implica justamente colocar esse ter~o em," que. _...

-Artaud gastou grande parte de seus esfor<;:os para atacar apresenta<;:;io teatral" entendida como processo que submete a cena a

11111 ideia que the e exterior. No teatro de seu tempo e hegemonica a1.1 ia de que a encena<;:ao se reduz a representa<;:ao de urn textod,,"naturgico, constituindo-se quase como uma ilustra<;:ao de urn produtoIII ·rario. No entanto, antes de nos aprofundarmos na discussaoI p cificamente teatral, e necessario lan<;:ar uma luz inieial sobre a1I111'litude do problema da representa<;:ao na sua obra. Para Artaud, criticarII t 'atro predominante sera urn caminho para atacar procedimentos que

1.1 difusos em toda uma cultura. Como nos diz Derrida, Artaud ataca------ ~ =-;::.....

I'" presentac;:ao" com~_procedimento gem!' presente em varias esferas.1,1 'ultura (politica, juridica, ~a....e_tc.).) 0 termo "representa<;:ao" sempre alude a um processo de

"h0.itui<;:~o de urn"""Objero" por urn signo. Utilizando-nos de uma /'/ (pI' ssao de Peirce, representar e~re "estar no lugar de", e uma

1111 dia<;:ao entre urn "objero" e urn "interpretante"64. Peirce esmiu<;:ara as ~ '­1l1\llliplas possibilidades de "representa<;:;io" na sua teoria dos signos, mas ..II que imporra reter nesse momento e que a representa<;:ao nunca se 4:­1.1, ua completamente ao "objero". 0 ~~objeto" s~~aI p'" enta<;:ao, mesmo quandoesta pretende se manter mais proxima doI II ~que the deu origem (caso dos signos indiciais e lconicos).

hi

Antonin Artaud - Teatro e Ritual70

Page 22: Anronin Artaud Teatro e Ritual

72 Antonin Anaud - Teatro e Ritual 1111 " Ii n Artaud - Teatro e Ritual 73

Peirce faz uma distin<;:ao entre 0 "obJ'eto dinamico", enquanto natureza--.:J-que nao e acessivel diretamente a consciencia, mas exerce uma especiede pressao sobre ela, exigindo a representa<;:ao, e 0 "objeto imediato",que e 0 modo como 0 objeto aparece a consciencia, ja como signo.

-1- 1Nesse sentido, 0 .,.2bjeto nao seria diretamente acessivel, se~o se.illpre'l mediado por al.guma...furma, mesmo que .iDcipienre, de representa<;:ao.

_ ~caso dos "simbolos", signos em que 0 processo de representa<;:ao, operaria de forma mais plena e completa, 0 "objeto" e apreendido na sua

Ii \ regularidade e constancia, dentro de um fluxo temporal. Sao descartadosQ.) os elementos contingentes, as singularidades, os acasos, as exce<;:6es, para

que permane<;:a 0 conceito geral e absrrato. Dai a rela<;:io dos "simbolos"--com 0 que se manifesta como lei, habito, ~ur:e. As representa<;:6es

"simb6Iicas" se relacionaria~porranto, com as necessidades de

normatiza<;:ao, esta~a<;:ao, pr~ao e c~le.Artaud insists iustam~tesO~'e os perigos 1esse processo. A...9!k.ura

ocidental terialnvestido em formas de conhecimento que privilegiamso~o 0 ~olo" (no sentidoyeirceano) e 0 .,£2nceffij, tendo c~mo

..:l) objetivo a constru<;:io de urn pensame~ro" e "discriminativo". Porem,o "tiro sai pela culatra", quando os esfor<;:os nessa dire<;:ao acabam sc

tomando uma especie <k nega~ ou de im£..ermeabilidade a~a", noque esta te~de irre~lar, obscurg ~rme. A representa<;:ao simb6licl

~nao estabeleceria apenas uma "media<;:ao" mas, as vezes, poderia significal'tambem um afastamento e uma negas:ao do contato com dimens6es nasquais a realidade se expressa, por exempl~omoembate de for<;:as brutas.

10 excesso~es e de .fonceitos torna-se assim a expressao d '

-..:;, u~~cidade e Artaud atribuira a cu tura ocidental-:----• A palavra "vida" dquire assim no vocabuffiio do artista UI11

significado especia. la evoca em primeiro IJ!gar urn e::::sso .9.u .trans~qualguer formall.zas:ao conceitual. Urn pouco diferentementcdo termo "objeto", que evoca mais a dureza do "real" que colide comnossos desejos, 0 termo "vida" nos remete, de forma mais generica, a umuniverso de fors:as em copflito. Urn sentido agonico sobressai emafirma<;:6es artaudianas como "a vida e sempre a morte de alguem" (OC:IV,98), ou "no fogo da vida, no apetite da vida, no imp~lso irracional paraa vida existe uma especie de maldade inicial" (OCry, 99). 0 processo ciaexistencia implicaria necessariamente a diferencia<;:io e 0 entrechoque, :I

quebra do repouso, 0 "sofrimento": "saindo do seu repouso e s('

II I. lid ndo ate 0 ser, Brahma sofre, talvez um sofrimento que produz\I il.II'monicos de alegria mas que, na ultima extremidade da curva, s6

pI' a por uma terrivel tritura<;:io" (OC:IV, 99),ome<;:amos a entrever 0 significado do termo "crueldade", tao

IIII'0I'I:1nte no vocabulario artaudiano. Algumas vezes "crueIdade" e "vida"111111111- e termos intercambiaveis: "eu disse crueldade como poderia ter1111 vida" (OC:IV, 110), ou "uso a palavra crueldade no sentido de apetiteI. 11:1 ... " (OCIY; 98). "Crueldade" portanto nao se refere a urn aspecto

" IIII ular da vida, marcado peIo sangue e pelo horror. 0 pr6prio ArtaudI II lIrregou de dissipar essa compreensao enganosa, explicitando mais

I 11111, vez 0 sentido do termo:

Eu deveria ter especificado 0 uso muito patticular que fayo dessa

palavra e dizer que a utilizo nao num sentido episodico, acessorio,

por gosto sadico e perversao do espirito, por arnor dos sentimentos

estranhos e das atitudes malsas, portamo nao num sentido

circunstancial, nao se trata de modo algum da crueidade-vicio, da

crueIdade efervescencia de apetites perversos e que se expressarn

atraves de gestos sangrentos, como excrescencias doentias numa

carne ja contaminada; mas, peIo contrario, de um semimento

distanciado e puro, um verdadeiro movimento do espirito, calcado

sobre 0 gesto da propria vida e na ideia de que a vida, metafisicamente

falando e pelo fato de admitir a extensao, a espessura, a condensayao

e a materia, admite, por conseqiiencia, 0 mal e tudo que e inerente

ao mal, ao espayo, 11 extensao e 11 materia (Oc:rv; 110).

"Crueldade", logo, traduz uma apreensao da experiencia vital, de[1111 p Ilto de vista "metafisico". Trata-se, evidentemente, de umaI" I p' tiva tragica: a existencia vista como um "espessamento", que traz

111 i, necessariamente, 0 mal. 0 adensamento da materia, a realidadeI I lIa concretude, e sempre imposi<;:ao de limites e condi<;:6es,1111 ll'angimento e restri<;:ao da liberdade. 0 "mal" nao diz respeito a

I ()u aquele aspecto da existencia, sendo inerente ao pr6prio processoI, 1I1anifesta<;:ao. Tal ideia convive ainda com imagens recorrentes nos

" lOS de Artaud da vida como combate, devora<;:ao, turbilhao. AIII Idade" alude a essa condi<;:ao inexoravel da existencia que deve ser

III .Ir', da de frente, sem subterfUgios, para que 0 homem possa alcan<;:arIIlIhl nova condi<;:ao.

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75III ninArtaud - Teatro e Ritual

EstoLl pronto (...) a abdicar de tudo: orgulho, vontade, inteligencia.

Essa inteligencia que etodo meu orgulho. Eu nao falo, por cerro, de

uma cerra agilidade 16gica do esp{rito, do poder de pensar depressa

e eriar rapidos esquemas sobre as margens da memoria. Falo de uma

penetrac;:ao profunda no mundo e nas coisas... (apud Guinsburg,1995:221).

11.I~lante ampla, incorporando urn sem-numero de experiencias, desde os

I lados ~s mais fugidios ate as represen~onceituais maisI II oradas, incluindo tambern p~~-t:rinicQ;-de decodifica<;:ao

II informa<;:6es. A propria no<;:ao de "representa<;:ao" se ;Iarga, nao seI. orindo apenas a objetos extemos.

Pe.lgi.c:: enfatizara., no entanto, a direc;:ao que encaminha 0 processo1'.11.1 a constitui<;:ao dos "sfmbolos", que chamara de "signos genufnos".( ) P nsamento deve chegar no nivel da generaliza<;:ao, a partir cla percepc;:aod.l~ regularidad~s que se dao num determlii'atio pedodo de tempo. 01'1 Il. ~nto carregaria esse poder~ sintese, capaz de aglutinarI 11.1 tedsticas essenciais dos fenomenos, descartando 0 que e contingente

, idental. Essa seria a base para a constru<;:ao de conceitos eI I"' senta<;:6es que dariam urn certo poder "preditivo" ao homem, dianteILl incertezas do futuro. 0 pensi..,mento generalizador, criador de1011 itos, e capaz de apreender 0 real no que de tern de universal,

-lhd ' ~'I'.lr an o-nos para agir diante do mundo. Admite, porem, que esse1".Il:..E0, chamado de "se~ose'~nuncatern urn fim. Ha apenas umaI Ild 'ncia privilegiada~volu<;:ao das rep;esenta<;:6es, que seI"l)ximariam tangencialmente do reaL

Em Artaud, a "crueldade" como atributo fundamental da vidaI lub m se imp6e sobre nos. No entanto, as respostas possiveis aosIIoques do real sao apresentadas a partir de uma outra perspectiva. "Do

1""110 de vista do espirito, a crueldade significa rigor, aplicac;:ao e decisao11'll'ladveis, determina<;:ao irreversivel, absoluta" (OC:IV, 97-98) AIII Idade manifesta-se intemamente, "no espirito", em primeiro lugar

""\() exigencia de uma atitude. Trata-se de urn movimento que nao1I11inha ainda para a elaborac;:ao do pensamento. E mais urn es ert-;:r,

11111 tad~ensificadode aten<;:ao, uma disponibi Idade total de11/' ntamento. Artaud enfatiza processos de conhecimento que nao se

""(1I1~Om a e;,trutura<;:ao lo,gica do pensamento: --

Antonin Artaud - Teatro e Ritual

"Ao deslocar a noc;:ao de signa para aquem do signo genuino, P~e reabsorve, d"111 "'da semiotica, parametros fenomenologicos que dila~pliam a concepc;:ao de .,iJ','"'invadindo territorios ue subvertem as trad' c· onais camisas-de-f0!5a logocent'l i, ... I

racional~~. A integrac;:ao da feno~nologia e da s~otica, por ourt:; lado, rompe t'"11hlll'com as costumeiras se arac;:6es dicotomicas entre pensar e sentir, inteligir eagir, "'p(III"e mate.!ia, alma~c. ~ese: as demar~rfgidas entreosdois Olund,,·, "mundo dito magico da imediaticidade qualitativa versus 0 mundo dlro amortecilio .I"conceitos intelectuais - sao dialeticamente 'nter enetrados, revelando 0 1I111V' ""

fenomenico e sfgnico como urn tecido-entJ:e.(;Luzado de acasos, ocorrenci;;;;;-;:;-ecessid.,,1tpossibilidades, fa;;eJeis, qualidades, existencias e te~ades, sentIment"', .11,'"

--. -- ---e pensamenr,os" (Santaella, 2000:91),

74

Tomando-se varias precaw;:oes, podedamos fazer ainda algumasaproxima<;:oes entre a no<;:ao de <~r.~eldade" e a categoria da "secundidade",

na fenomenologia de Peirce. Essa compara<;:ao nos sera Util mais tarde,quando disc~tirmo~iflcamentea questao da linguagem teatral

, proposta pOl' Artaud. A fenomenologia peirceana trata do modo como os

\1 It fenomenos de qualqu;~ tipo (exteriores o~ int~riores) aparece:n a.W consciencia. A secundidade refere-se ao lmedlatamente senslvel,

" designa~periencia de resi~tencia que 0 ~undo opoe anossa vo~tad~.E a partir do confronto com a dureza dos fatos que a proprIaindividualidade se constituira. A existencia imp6e escolhas quedesencadeiam urn processo de diferencia<;:ao. Safmos da indetermina<;:aodo mundo das possibilidades para 0 mundo da a<;:ao que implica semprcem op<;:ao. Na a<;:ao, "destagmo-nos" do mundo, diferenciam~..s., e ()

mundo por s~z reage sobre nos. A s~~duz 0 momento.... lem qu~~a a _di:rinc;:ao en-Ue "eu~' e 'nao-eu". -

o sentido agonico da no<;:ao de "crueldade", de combate (.

devora<;:ao, permite, de certa forma, uma aproxima<;:ao da categoria d:\secundidade. Mas nao podemos ainda levar essa comparac;:ao muito mai~

lon~quenos interessa agora e estabelecer urn desdobramento de LIlli

ponto de vista espedfico. Para Peirce, a experiencia brma do mu ndoimp6suxige urn trabalho d~ia'iao. 0 pensamento nasce d.1necessidade de responder aos impactos do real. A represent~c;:a;-permjti, i.1a elabora<;:ao da "brutalidade" dos fatos. Mas uma das marcas d.1contribuic;:ao d~e foi justamente n~o ter se restrin ido a questao do

pensame~onceitual, incorporando di§rentes ~od~s d·experi~ia, a partir de urn referenciaJ fenomenologico, que embas:\I.sua teoria dos signos65 • Como resultado, a no<;:ao de signa em PErce

~

Page 24: Anronin Artaud Teatro e Ritual

7 AntoninArtaud-Teatro e Ritual IiltlninArtaud- Teatro e Ritual 77

)

Se~rio reconhecer que a cal?a.c:idade de pensar e apreender

/ 0 real at;a~emas logicos ;!;;;cia::s.e muitas ..ve~~fi.sas:ao de

/\ ter as coisas s~E.-.':.ontrol~L~soc:.iapdo-se~e._o poder. A penetras:ao

lprofunda no mundo de que fala Artaud exigiria, pelo contrario, outromodo de se estar junto avida, deixando-s~ac.abjlidade,

sem subterfUgios e ilus6es.o teatro dese}~do por Artaud carrega essas caractedsticas vitais,

devendo exercer urn impacto de natureza semelhante. "No ponto deruptura a que chegou nossa sensibilidade, esta fora de duvida queprecisamos antes de mais nada de urn teatro que nos desperte: nervos ecoras:ao" (OC:IV, 108). Recorrer a uma linguagem que se dirija, emprimeiro lugar, a sensi~ilidad~ de mo~ e~to, sem muitasmedias:6es, e tambern uma estrategia necessaria em funs:ao de umdeterminado estado de coisas, ou seja, de u!l}~cultura que se perdellnuma multiplicidade de "sistemas de signos" que nao adere;;;-~ais 11

vida."No estado de degenerescencia em que nos encontramos, e atraves

-:;:~ da pele_que faremos a metaffsica penetr~os" (OC:~.Nao se trata, portanto, apenas de expor 0 publico a situas:6es de choqll .

que ahalarao seus nervos. 0 im.£-acto sensorial esta de algum :nodoconect~.umap~rspectiva"metaffsica" que se resentifica na e~ceEJ.~s:ao.

Voltamos aquestao da "metaffsica em atividade" mencionada no iniciodeste trabalho. 0 teatro da crueldade nao se confunde de modo algllmcom qualquer especie de "hiper-realismo", que se limitaria a expor avida na sua brutalidade e incoerencia. Ele pretende, a partir daconfrontas:ao com situas:6es de choque, provocar umaJieterminada fOl:-m:1de exper~Jntelectua~"~'ital, q~e nao"p'ode ser tradu~a ~atament('por "reflexao racional".

Essa experi{ncia esta relacionada ao que Artaud chama, em diversa,~

ocasi6es, de perceps:ao de "prindpios", que conteriam em si uma serit·de virtualidades. Assim, "...esse incitamento a crueldade e ao terror.num vasto plano porem, e cuja amplidao sonda nossa vitalidade integr:d.nos coloca diante de todas as nossas possibilidades" (OC:IV, 84). 0universo dos prindpios e 0 das possibilidades virtuais, das potencialidadc"latentes. A exposis:ao a "crueldade" pode provocar urn movimento 11:1

dires:ao de urn "drama essencial, que conteria de urn modosimultaneamente multiplo e unico os prindpios essenciais de todo 0

.ll.lrna, ja orientados e divididos, nao tanto a ponto de perderem suaII i1ureza de prindpios, mas 0 suficieme para conter de modo substancial

llivo, isto e, cheio de descargas, infinitas perspectivas de conflito"(() ,':IV, 48).

o teatro deve nos conduzir a urn determinado ponto onde se /\II s'n rola urn "drama essencial", de natureza cosmica, em que uma I'Vol1tade una e sem conflitos" (OC:IV, 48) ja se precipitou e se dividiu, j

.. I

I Il.lndo a possibilidade da multipla manifestas:ao. E desse drama ainda(I'III'() e abstrato, apos 0 qual "nada mais existe e que podedamos conceber1111110 uma especie de nota limite" (OC:IV, 49), que 0 teatro deve nos

'1lIllecer, pelo menos, algum visl~mbre. Do terreno ~a existencia e da I1.1.1 como crueldade passamos ass1m para urn plano virtual, que nao e 0 \

IIIl ondicionado, mas 0 "segundo tempo da crias:ao", 0 desdobramento.ll.tmatico das fors:as de origem.

o teatro torna-s: 0 "dueI~D nao da realidade cotidiana e sensfvel,IIhls de uma ~nvisfvel,"perigosa e.J!Rica". 0 teatro da crueldadeI'Il'rende assim ampli~r' nossa e;periencia~real. Agindo sobre a

I IIsibilidade e imelecto, ele almeja urn salto, que nos levaria a apreensao

,I 1I ma realidade que se confunde com 0 drama da propria crias:ao. Essalpreensao" so poderia se dar de forma indireta, tratando de urn nfvel da

Il.llidade que se empobrece quando represemada conceitualmente. PorI 0, esse teatro de pretens6es "metaffsicas" traz uma serie de quest6es.1 .. ponto de vista da sua linguagem e de seus meios de encenas:ao.Ilfl)blemas que ocuparao boa parte dos escritos de Artaud e que vao

"rl' ndo sucessivas elaboras:6es. E desse processo de elaboras:6esIII • sivas, que comes:a nos textos da decada de 20 e vai ate 0 relato deIIIIS experiencias com os fndios mexicanos, que trataremos a seguir.

Page 25: Anronin Artaud Teatro e Ritual

Capitulo 4A Cultura Solar

Les Cenci e 0 uPai Destruidor"

A encenac;:ao de Les Cenci, em maio de 1935, marca a despedidad ' Artaud dos palcos e precede sua partida para 0 Mexico, Sinaliza 0

~ otamento de sua ac;:ao dentro de urn determinado campo da cultura eloloca-o na premencia de uma nova transic;:ao, M~xico e Tibet sao as,.il rnativas que visualiza para romper com 0 ambienre'~~turar~ropeu,

scolh,.g_do"Jy1e~ico confirma mais uma vez 0 f~!? g~e esse pais'rcia sobre a imaginac;:ao surrealista. Novo movimento de

II ' ·terri;orializ;c;:ao, a via~m m(tica""para 0 alem-mar opera uma especie,I, inversao' do caminho do col~~i~dor: nao mais a missa~ civilizatoria

'atequftica, ;;~ a busca-dap~opriafura pela i~ersi;-;~ cUlturas pre-___ _ ~W._ ______,

olomblanas. Sera. necessario;no entanto, ainda nos determos sobre aI 'rimoni~--de adeus que representou a encenac;:ao de Les Cenci, nao paraI.Iz-cr a dissecac;:ao de urn suposto "fracasso", mas para acompanhar deII 'I'to 0 desenrolar de uma crise que desencadeia, mais uma vez, urn111 vimento nomade.

Na encenac;:ao de Les Cenci desaguam seis anos de intensa reflexao,II 'I'(odo que separa a Ultima direc;:ao de Artaud no '~fred Jarry" da estreia.I ,. e espeticulo. Nesse entremeio e escrita a maior parte dos textos que

lomporao Le Thedtre et son Double, alem de trabalhos paralelos1111portantes, como 0 romance historico Heliogabale ou l'AnarchisteI 'ouronne. Tudo isso ja dava a teoria teatral artaudiana urn lugar proprio,Ii i. tinguindo-a das influencias de Alfred Jarry, surrealistas e August

ll'indberg, entre outros. Tratava-se agora da prova pratica pela qual'1l1alquer teoria deve passaro

Artaud definia 0 drama da familia Cenci como urn verdadeiroIllito, que, ao ser traduzido para a linguagem teatral, deve torna-se uma11"1 edia. Sua adaptac;:ao da historia, baseada nos textos de Shelley e Stendhal,

Page 26: Anronin Artaud Teatro e Ritual

147Antonin Artaud - Teatro e Ritual

Em Les Cenci, 0 pai e destruidor. E e por isso que esse assumoencontra-se nos Grandes Mitos.

Les Cenci, a tragedia, e urn Mito, que diz c1aramente algumasverdades.

E porque Les Cenci e urn Mito que seu assunto, transponado aoteatro, torna-se uma tragedia.

Eu disse bern uma tragedia e nao urn drama. Pois aqui os homens

sao mais do que homens, mesmo que nao sejam ainda deuses.

Nem inocentes nem culpados, eles sao submissos 11. mesma

amoralidade essencial desses deuses dos Misterios Antigos, de ondesaiu toda a tragedia (DC:Y, 40).

respeiro da cosmogonia grega, ver 0 escudo introdut6rio de Torrano (J <)111) ~ sualr"du~o da Teogollia de Hesiodo, em especial 0 capitulo "Tres Fascs c '1', s I i"h.lflcns".

medieval, isso se deve a sua constante preocupac;:ao em Fazel" com que 0

I 'atro atinja 0 publico moderno, falando-Ihe uma linguagem apropriada.I)e certa forma, a tragedia da familia Cenci estaria mais proxima de nosClue os enredos c1assicos gregos. 0 desafio da encenac;:ao torna-se entaoIIltrapassar a tonica do melodrama familiar, tornando-o uma mascaraque revela um drama mais profundo:

A amoralidade encontrada nos mitos desloca-nos para uma regiaoIII I a ordem social nao governa e os conflitos nao sao mediados pOl' leis

""manas e convenc;:6es culturais sedimentadas. Ao trabalhar a partir dessaIII.ll ria, a tragedia nos confrontaria com uma dimensao mais originaria

III onflitos, com 0 "segundo tempo cia criac;:ao", em que os principiosdividem e se tensionam, gerando 0 drama e 0 movimento. A tragedia

I v nos acordar para essa dimensao, operando como urn choque naIIIl~ iencia, colocando a nu a "crueldade" subjacente a toda manifestac;:ao.

I 8sa experiencia que retira 0 her6i da condi<;:ao de homem comum,IIlll'rontando-o ao mesmo tempo com seu limite superior, 0 mundoIt ill.

Les Cenci trata do mito do "pai destruidor". Uma aproximac;:ao11111 Cronos-Saturno, da mitologia greco-romana, nos sera uti!,

I' l'riormente, na analise da pec;:a126. Cronos, filho do par originarioI, lllUS (ceu)/Geia (terra), castra 0 proprio pai a pedido da mae, regrando

lin a vitalidade sem freios da potencia celeste e instaurando uma

Antonin Artaud - Teatro e Ri tlI.i1146

123. Essa preocupa~ao faz eco com algumas observa~6es do pr6prio Stendhal sol,,, I III 1

dos Cenci narrada nas suas Crollicas Italiallas. Para 0 romancista, a c"l,," I II II

costuma tratar 0 mito de Don Juan de um modo sempre "civilizado", flt;lll.lIl1l" IIurn homem galante e impetuoso mas sempre de "agradavel companhi.," (viol, ,

Juan de Moliere). Ja 0 Don Juan de Mozart estaria "mais pr6ximo do 11.'11111 ,

no caso de Francesco Cenci, aflrma: "Nenhuma lembran~ amavel nos ,e'l , .I,Juan. Seu cadter nao foi adocicado e amesquinhado pela ideia de scr ..11,1, "

homem de companhia agradavel, como 0 Don Juan de Moliere" (Stelldl,.oI. 1'111

124. Seria talvez interessante comparar a trajet6ria arraudiana para a tragedi:t lOlIlI , I'" Ide urn encenador como Ancunes Filho, que partiu de exercicios COli' " 1111111 ,I(montagens de Pret aPorter) para desembocar em Mediia.

125. Os trabalhos de Jean Pierre Vernant esclarecem de modo minucioso :I 110, I" .I. I,subjacente as tragedias gregas. Ver especialmente Mito e Tragedin "" (;,,, 1.1 INe 2, Naquet;Vernant (1991).

nao pretendia ser uma simples transposic;:ao. 0 interesse artaudiano (. II

de apropriar-se do tema e imprimir-lhe uma dinamica mitica, na gual ,I

situac;:6es humanas expressam tambem 0 jogo das potencias da natllrl·/.I"(...) impus a minha tragedia 0 movimento da natureza, essa especi . dlgravitac;:ao que move as plantas, e os seres que como as planta~ ',I

encontram flXados nas perturbac;:6es vulcanicas do sol. Toda a encen:ll,.11Idos Cenci esta baseada no movimento de gravitac;:ao" (OeV, 37). ResslIlf I

a ideia de uma linguagem que deve estar "colada" a dinamica da naWn'hI,a fim de nos reconectar com a "vida" no seu sentido impessoal, a viti I

123 S d' A' Ique nos atravessa mas que nao nos pertence . e essa mamlCa n:1 .1 I

surrealista foi procurada principalmente nas mutac;:6es dos CSI.ldll

interiores, agora e identificada com os movimentos macrocosmiclIcolocando, como veremos, uma serie de quest6es praticas p.I I II I

encenac;:ao.o empenho de Artaud volta-se portanto para a constrw;:ao d . 11111 I

encenac;:ao que se assemelhe aos "misterios antigos" e as "gr.1I111tragedias". 0 trabalho com estados oniricos, distorc;:6es das per ('p "cotidianas, humor iconoclasta, aparecem, dessa nova perspectiva, ,11'1111como uma etapa preparatorial24

• As grandes tragedias nao se oporlll It

dramas do cotidiano apenas por escavarem profundezas psicol("f',1i I

Elas trabalham com uma certa noc;:ao de homem125. Seus perSOllll1 II

estao a meio caminho entre a humanidade e os deuses, e os herois II. ,," ,

estabelecem justamente essa ponte entre 0 "mundo" humano l' (I 'III

humano". Se Artaud escolhe uma trama ambientada na soc I tI "I

Page 27: Anronin Artaud Teatro e Ritual

148Antonin Artaud - Teatro e Ritual Antonin Artaud - Teatro e Ritual I (

segunda soberania, depois do reinado de Uranus. Ao mesmo tempo.governa sob 0 medo de ser dominado par urn filho. Esconder-se e devor:l I'

os pr6prios mhos recem-nascidos e 0 modo q~e encont~a de se ~a.ntt·1no poder. Dentro das ambivalencias que caractenzam os slmbolos m1:lco",Cronos e tambem 0 rei da "Idade de auro", ou seja, de uma temporahdadl'ffiitica na qual os homens viviam sem conhecer a fadiga, a miseria c ,I

velhice. Ele evoca urn campo semantico aparentemente contradit6rio,em que se tensionam significados e valores ligados a fecundidade criadol,1e a destrui«ao, ao amor-6dio entre 0 pai e os filhos, a violencia c ,10

erotismo127.Como personagem tragico, 0 conde Cenci nao encarna exatamcnl

uma divindade, mas e urn ser humano atravessado par poten ·ill

desmesuradas que 0 lan«am para fora da ordem social. Artaud nao pretelldcaracterizi-Io como uma individualidade com perturba«6es psicol6 it II ,

mas como uma "mascara", uma figura«ao possivel do "pai destru idol"

Sob a aparencia da "tragedia familiar" envolvendo uma fam.lli~ a~isto r.\ ~ II 1e suas rela«6es com a Igreja e a Estado, deve pulsar a dmamlCa mllil I

capaz de dar a trama uma dimensao cosmol6gica. Mas essa din:11l111 1

imprimiria tal violencia aos acontecimentos que Artaud, preocupado (0111a rea«ao do publico frances, pediu a Andre Gide para escrever :11/'.1111

artigos, esclarecendo os intuitos do espetaculo. Artaud nao qu 'ri,1 I

confundido com alguem preocupado em simplesmente "chocar" a Ii II II Ii

burguesa.De maneira geral, a hist6ria de Les Cenci gira em torllO I

personagem do conde Francisco Cenci. As fontes hist6ricas trab.dllllil

por Stendhal nos falam de urn homem muito rico nascido .e~ 1~ (I, I \Ido tesoureiro do Papa Pio V. Tornou-se celebre por sua vlOlenCl:l ' I' Itinumeros casos extraconjugais que the valeram diversos procc~so . tilquais se livrava atraves de subornos. Ahrmava seu atelsmo DUIll.1 11 111

caracterizada pela persegui«ao as heresias e pelo trabalho da 11ll)1I1 I

Tinha sete mhos, entre os quais a jovem Beatriz, celebre por SIl.1 III I,retratada em diversos quadros da epoca. Gostava de expressar ,('11 1111

127. Na simbologia alquimica "cronos-saturno" representa 0 chumbo de olld,' " I -Ii t

ouro. E a partir do trabalho com a realidade mais densa e obscura '1'''' " IIlIIII

puro podeci ser fabricado.

aos filhos, tendo mandado construir uma igreja na qual dizia gu 11'1:1nterra-Ios. Seduzira a pr6pria filha na frente de sua segunda mulh '1',

Lucrecia. Nao suportando mais a terrfvel opressao, Beatriz planeja 0

,I sassinato do pai, juntamente com Lucrecia e dois criados. Depois dorime, os autores sao presos e condenadas a guilhotina pela Igreja e pelo

E tado. Beatriz tinha entao dezesseis anos. a caso mobilizou imensamenteI) povo da cidade de Roma.

Na primeira cena da pe<;a de Artaud, Francisco Cenci recusa-se at' arrepender de suas faltas diame de urn representante do Papa (Camilo).

Promete, ao inves disso, uma sucessao de crimes, atingindo sua pr6priaI.lmilia, reservando os requimes de crueldade para sua filha. Na cena 3do primeiro ato, promove urn banquete orgiastico com membros daIr,reja e do Estado, bebendo simbolicamente 0 sangue dos pr6prios filhos.Na seqUencia da trama, violenta Beatriz, que nao confia mais napo sibilidade de seu pai ser julgado e condenado pelas institui«6es. AIdha resolve entao fazer justi«a por conta pr6pria: contrata dois criadosp,lr:1 assassinar 0 pai. a crime e descoberto e Beatriz acaba sendo presapl·I:1 Igreja e obrigada a assinar sua confissao. Na versao de Artaud, aoIIIV S da guilhotina, Beatriz e condenada a morrer torturada numa roda,III I rumento dpico da Inquisi«ao.

A versao de Artaud avizinha-se em muitos momentos dos11111 dramas romanticos, pelos quais ele tinha consideravel apre«o128. A, 11It'ldade "absoluta" do Conde Cenci as vezes beira a caricatura, apesarII fomes hist6ricas autorizarem tal caracteriza«ao. As poucas fotos que

IMam da montagem sugerem posruras exaltadas, que nos lembram, to dpicos do cinema expressionista. Mas, a partir do caderno de1I01us:6es de Roger Blin sobre a montagem, pode-se inferir uma sh'ie de

1'111 ·dimemos do trabalho da dire«ao. Como observa Innes (1992), esse11111 ,'ial ajuda a dissipar certas confus6es sobre 0 suposto carater anarquicoItl I ':ttro artau_diano. a que se expressa nesses apontame;;;~s, ao inves

0, e a preocupa«ao obsessiva com as minucias e marca<;:6es, com a

N"ma conferencia dada no Mexico em 18/3/1936, inrirulada Le theatre d'0l'res gill""'"

, Paris, Arraud fala de sua admjra~ao por arores mais velhos como Sylvain, Dc M:l. 'I',lUI Mounet, de quem os vanguardistas costumavam zombar. Para Arr:l"d, ('" 'S

htH'I'lenS, considerados canastr6es pela nova gera<yao, a despeito de sells titlllcS t' I1Hllli,I\.

I iam os ultimos a conservar algo da tradi~ao rd.gica na Fran~a.

Page 28: Anronin Artaud Teatro e Ritual

150 Antonin Artaucl - Teatro e Ritu:d Antonin Artaud - Teatro e Ritual

estrutura<;ao quase matematica cia encena<;ao129 (qualidade que Artalld

admirava nos balineses).

A cena do banquete orgiastico e emblematica a esse respeilt>,

esclarecendo-nos tambem como Artaud pensava os tais "movimen I ()

gravitacionais" presentes em toda a montagem. A movimenta<;iio (I

estruturada como uma maquinaria de relogio, composta de pequen,lN

engrenagens:

(...) os convidados dan<;:am em circulos de dimens6es e velocidades

cuidadosamenre graduadas; quanro menor e urn circulo, mais

lenramente se move, com os dan<;:arinos nos circulos maiores

curvando-se em tomo dos outros e atraves deles. Hi uma repetida

pauta vocal superposta: urn grito, seguido de uma risada, logo urn

solu<;:o... e 0 efeito formalizado se intensifica ao contrastar-se comos erriticos caprichos de urn anao. Tambem hi urn manifesto

elemenro de despersonaliza<;:ao, ji que alguns dos convidados estao

dan<;:ando com manequins (Innes, 1992:80).

o espa<;o e geometrizado e as a<;6es cronometradas segundo

diferentes ritmos. Os motivos circulares e a interpenetra<;ao das 01'111 I I

nos fazem lembrar os diagramas da antiguidade que representav;l111 I'

movimentos planetarios. Artaud parece inspirar-se numa espe'i ' Ii,"mecanica celeste" para projetar a movimenta<;ao dos personagens, Mill

esquecer de inserir um elemento erratico, trazido pelas interven<;ol'" dll

anao. A impressao de automatismo e inorganicidade e ressaltada :1 ilid I

pela presen<;a dos manequins. Tudo isso contribuia para afirmar 1I1111

ideia de determinismo, de destino e fatalidade a que os persoll:!I',1 II

estariam submetidos. Os desenhos e movimenta<;6es circulares acclHllll1I

a ideia de urn mundo fechado, que mantem os personagem soh III

"gravita<;ao" .

A pe<;a termina com urn simbolo que sintetiza essas idei.I" "

modo eloqiiente: a roda de tortura em que morre Beatriz. Aroda 1,.1111'

nao so aludir ao instrumento da Inquisi<;ao mas tambem ao s(ndlldll

antigo da roda da existencia, que prende 0 homem no drculo do 1\'1''1''1

129. Nesse sentido, poderlamos aproximal' Artaud e Samuel Beckett, que atrav(', .I, >IIrubricas exerce urn rigoroso controle sabre os procedimentos de encen:I\.IU 1\

l'espeito, vel' Ramos (1999).

conde Cenci, como Cronos que devora os filhos, condensaria :!ssinl

lima terrfvel verdade. Como pai e "criador", engendrando e traz Ildo i!O

Inundo as criaturas. Mas a tragedia nos traz a confrontas;ao com sua (;1 .•

d 'strutiva, a face mais ternerosa e evitada. 0 mundo e dilacera<;ao, divisiio(. conflito, choque de for<;as, queda na temporalidade, sujeis;ao a morte.

Cronos e um "deus ardiloso" que nos engana, que se mantem de rocaia,

. espreita dos mhos que devora assim como a morte e a dor que no','ssaltam sem aviso.

Ese, de urn outro ponto de vista, 0 conde Cenci pode ser visto

como expressao bruta e amoral de for<;as vitais, como um rebelde

t riminoso que desafia a ordem social, suas rela<;6es com 0 poder

Introduzem uma outra ambivalencia na trama. Estado e Igreja nao se

opoem frontalmente as atitudes do conde. Nao protegem seus filhos da

violencia, nem garantem os procedimentos justos de distribui<;ao da

It ran<;a. Pelo conwirio, aposram na auto-destruis;ao da familia, visando

. aproprias;ao de seu patrimonio. 0 discurso moral das institui<;6es aparece

( mo atitude dnica, que se beneficia da violencia que diz condenar.

Nao seria difieil identificar nessa pes;a 0 mais obscuro e

Ii esperado niilismo. Somos meros "manequins" submissos a uma cega

I.ltalidade, a um universo regido por determinismos? De fato, as tintas

Illelodranlaticas da trama nao dao espas;o para muitas nuan<;as. No

I IHanto, a aposta de Artaud parece ser outra. 0 "teatro da crueldade"

lIao tem co~pro2-1issos com a apresenta<;ao de uma' r;;lidade""complexa,I . ida de filigran~~-~utilezas.Ele;k~e antes de tudoexpor 0 que a

I ( nsciencia racional r~c~, agindo com-;;-~rri pesadelo~ Ele pretende

.IlLlar sobretudo sobre os "afetos", a~;neira de urn choque que estimula

o intelecto, mas nao ~a:riamente fornece ele~s(.jue permiram

.1 p['ofundar u~~-'~isao anaHrica da realidade. Pode-se considera l'

I riticamente esse ponto di-vista, apontando inclusive seus perigos. Mas

Illicialmente e preciso compreender bem 0 que ele representa.

Recorrer a tragedia e transportar-se para urn mundo que nao s'

Ip6ia ainda ~;~anismos racionais de resolus;ao de conflitos qu .

fllildaram as est~f~~idi~s e pollticas no Ocidente. Como nol'1110 tra Vernant130

, a tragedia classica se -;itua no perfodo de transi~';I()

110. Vel' especialmente 0 capitulo "0 momento hist6l'ico da tragedia na Creei", :.11\\1111,1,condi<;:6es sociais e psico!6gicas", em Vernant;Vidal-Naquet (1977).

Page 29: Anronin Artaud Teatro e Ritual

A Arte e a Reinvenrao da Polit;tll

"Ninguem duvida q.ue..,-d.o_p_Qn.to_de..vista.sru;i.al,~~_<J,£.~i..stas S:I (1escravos" (OC:VIII, 209; grifo do autor), afirma Artaud no artigo "Ce ,/'Ir'

i;;;;;;venus faire au Mexique", publicado no Mexico, em julho de 193(1., A viagem ara.-a-Am.hica Central marca uma nova etapa de SI'11

)\ posicionamento com artista. Se 0 artista ja nao e mais 0 sabio gill

<lreune em si todas as ciencias", 0 homem que ocupava uma posi(;.1l1social privilegiada nas civiliza<;:6es antigas, e preciso romper com a to 1'1 c'

de marfim em que se confinou e foi confinado pelo mundo moderno. I,pr i 0 aproximar-se dos centros de dec~ao dessa sociedade, para lilllS' possarn desencadear a<;:6es mais efetivas: "vim a~xlco a procura dl-----.. .

I II, 0 termo "elite" e usado aqui num sentido bastante 'f' N-0' d I' 1 espec1ueo, ao se trata da eleite social

ou eeonomlca. mas a e Ite eu tural que se dedica ao trabalh ' 1, Add . . 0 mte eetual, ao pensamenroa arte, rtau enten e que a elVIliza~ao ocident I . d •

"I ' f: 0 a rno erna, ao mesmo tempo qucpnvi egla as tare as que tcm urn sentido pratico e utilinit' , 1 ', 10, ISO a suas elites num mundoa parte,

2, Essa proposi~ao se aproxima do intuito dos Surrealist d" b'l' ,o I -" A as e mo 1 lzar as cnergl"s doextase para a revo uc;:ao, esse respeito ver 0 ensa' "0 al' 'da inreligencia europeia". em Benjami~ (1985). 10 surre Ismo: 0 ultimo inst"nl.c

n onin Artaud - Teatro e Ritual153

II< m~.!' ,politicos" (idem:209). 0 artista cleve . _ _, -;-..._......., apr, mas essa a<;:ao nao sell1fundlra com 0 senudo convencional da ar - l' ' D· '-"" " -. ...... ,..ao po IUca. eve-se mesmo

I 'liwentar esse senudo. .. '-.

e no campoespecffico do teatro A t d"· "" _ " r au Ja negava a a<;:ao

1I11rnetlCa, a mera representa<;:ao da reaJidade b d" ' uscan 0 Uma cena capaz

d. cnar UIU aconteClmento, de fazer ernergir u d .. m mun 0, contammando

IItl tas e espectadores, agora essa eficacia deve ' 1 d, '. . rIa ser eva a para fora do

p,tlco. Aglr sIglllficana sobretudo captar 0 dra d .., . rna 0 tempo, poslclonar-

• afetar a sua epoca. 0 artlsta como tnembr d 1", . . 0 e uma e Ite mtelectual,

IllargmalIzado numa socledade voltada as ativid d ,. . .a es teClllcas e matenaiS

Ii 've esfor<;:ar-se para romper Com a im;:,aem qed . , . " '. • <:> ue Iaz e Sl propno: que

.l~ elites pOlS cessem de crer na sua superiorid d d .I

. A , • a e, a qUIram uma salutaI'IlImIidade, que deem ao espmto sua antiga fun - d ' _

, • A ' <;:ao e orgao, que tragamI), trabalhos da lllteltgencia a uma luz vanta'

Josamente m t . 1 ( )"OC:VIII, 221)131. a ena ...

A quebra do isolamento a que a arte foi b 'd _.. _. su metl a nao se resolve

p ·Ia sua polmza<;:ao, no sentIdo da tematizarao '1 '.,. SOCIa pura e Simples. AIrte pode propor uma outra forma de arao intel 1 U _

, .. , ' ,.. ectua . ma a<;:ao que se(Onecte as atlvldades pratlCas do mundo nao n 'd d fc

. _' , . ' 0 sentl 0 e ornecer-lhesIlina due<;:ao Ideologlca, mas para restituir-lh A • •, es sua potenCla vltaP32,p'rdlda numa cultura fragmentada, que divide ' .

, ' 0 eSplflto e 0 corpo. 0(~PlfltO deve operaI' como urn 6rgao, que per . , . d' . ,

, mela e e In tssoclavd dolorpo e da matena. Esse "6rgao-espfrito" exerce' d d _

" na, esse mo 0, a fun<;:aofundamental de ser 0 contrapeso soberano que " 'd

. , " . , , ,permlta a VI a se manterc1I1'elta (ldem:222). As atlvldades praticas na d "

_ d " , 0 po em prescllldlt dap rcep<;:ao e a for<;:a que 0 orgao-espirito" Ihe fc

, s con ere, conectando-as.1 mOVImento profundo e abrangente cla vida A "d d d ' .

" ., . atlvi a e 0 esplntod ve tocar nos rltmos da VIda doente" e os a t' A cl" ~'. > I' Istas tern e tornar-seI rapeutas das fun<;:oes supenores da Vida hum "ana.

AntoninArtaud- Teatro e Rituol152

entre uma civiliza<;:ao agraria regida pelo pensamento mitico e pelo rito {'a forma<;:ao da polis grega, fundada em prindpios racionais, Nos textmtragicos encontram-se problematizadas as perplexidades do homem gr 'godaquda epoca diante de problemas como 0 livre-arbftrio, as justi~""

humana e divina, a existencia do destino e da fatalidade, a a<;:ao her6i .1etc. Acreditava-se, no entanto, que a exposi<;:ao dessas qu~st6es pud 'SM'

tel' urn efeito "purificador" sobre 0 publico, ao qual Arist6tck,~

posteriormente chamad. de katdrsis. Nao se trata portanto de pura (.simplesmente endossar uma visao determinista do universo, mas de opcr,llcom 0 impacto que a exposi<;:ao crua do entrechoque de for<;:as amorai ..exerce sobre a consciencia, "Todo teauo antigo era uma guerra contra \I

destino", afirma Artaud na conFe;"encia L'Hom~e Contre L;D~tin, proferic\'1n~Mex;CO:-Mas a lib~ra<;:ao da fatalidade do destino parece exigir .1confronta<;:ao com nossa submissao a determinismos que nem semI 1'('

estamos dispostos a admitir. 0 espanto e 0 terror sagrado despertaclopda tragedia nascem dessa confronta<;:ao, Experiencia distinta do

processos reflexivos, dt::.r.t: t~r .tambem urn lugar p~eminente na CUIWI'.I,para' que'a-;;-nsciencia humana se amplie.

Artimd acredita mais na efidcia desse processo do que n.1possibilidades do teatro logocentrico. POI' isso seu encontro com a tragcdi'lo conduz para urn momenta ainda "anterior", nao no sentido propriamclll 'hist6rico, mas genea.lggico. Esse momenta, essa fon~e. originaria do tealI'llseria 0 rito~ 0 rito nao pode mais ser enco~trado no h~~izonte qut' ,I

cui;ura eu~opeia del~itou para si.

Page 30: Anronin Artaud Teatro e Ritual

133. Poderfamos estabelecer algumas rela<;6es interessantes entre essas concep<;:oes e as ".1,111

propostas pelo artista plistico e performer alemao Joseph Beuys. Beuys criou ll1l1.' " I IIde ((alToes» cOlnbinando performances individuais com 0 sentido de interven'rao ,',,111 I,dAproximou-se do "movimenroverde", fundando a Universidade Internacion:d I IVII

Segundo ele, suas propostas parcem de "uma nO<;:ao antropol6gica da arte como fenAl111 1101com a finalidade de preencher abrecha entre duas formas de solidao: ada pr61" i.• ,11 I.

que habita em nichos e esca isolada da sociedade, e a do indivfduo, que esca enc""", 11101em seu pr6prio trabalho e em suas ocupayoes" (apud Glusberg, 1987:131).

Assim, a ayao intelectual que a arte pode propor nao e aquela qu('apreende a realidad~ apenas de forma analftica, seja para estabele ('I

uma relac;:ao Cfftica (razao crftica), seja para administra-Ia segundo objetivmpre-concebidos (razao instrumental). A arte estaria ligada a um pensamenlflsintetico, que opera por analogias e semelhanc;:as, podeJ:?do contrabalan<,,11a tendencia a fragmentac;:ao e a estratificac;:ao de uma cultura que M'

desvitalizou. Essa perspectiva sera desenvolvida principalmente atr;lV«"das conferencias e artigos dedicados a antiga cultura mexicana..~as l:liafirmac;:6es ja deixam entrever uma ac;:ao na qual a polftica 'toma M

indissociave a cu tura e de uma Cfftica antropol6gica a todo um mode I

de vida.Vma ac;:ao que parte da intensi,dadesubjetiva da arte, 111,1

'-p~de irradiar-~~.ara ,.as dimens6es olfticas e soclais, abrangendlli tambem 0 que hoje chamarfarnos de perspectiva eco ogka"133.

Mas e tarnbem significativo que Artaud tenha chamado seu livIIIde conferencias e artigos escritos no Mexico de Messages Rivolutionrlflil'l'l,

Ha aqui a apropriac;:ao de um dos conceitos centrais da formac;:ao dllsociedades modernas: a ideia de "revoluc;:ao". Se Artaud tende muildvezes a rechac;:ar quase que completamente 0 "Ocidente", nota-se, pelloutro lado, sua filiac;:ao a uma vasta galeria de artistas mOdC1'1I11interessados em pensar as relac;:6es entre arte e revoluyao. Por mais till

insista em demarcar suas diferenc;:as dos paradigmas da cultura ocidcI111i1modema, esse termo denuncia sua evidente adesao a crenc;:a de qut' IIhomens podem mudar 0 curso da hist6ria atraves da vomade e da :1<,,111polftica. Nesse sentido, Artaud e um dos representantes mais expressivlIde um "modernismo" que se constr6i como vertente crftica, a pani I' iiireferencias negadas pelo processo de secularizac;:ao da cultura ocidcllhd

Sua reinvenc;:ao do conceito de "revoluc;:ao" incidira sobre POIIIII

nao considerados pela verteme marxista. Primeiro, havera uma insistnlll II

na crftica a ideia de "progresso", quando este se restringe a asp '(, III

155Antonin Artaud - Teatro e Ritual

l34. Nesse sencido, Artaud concordaria com Borges quando este afirma que 0 "progresso euma supersti<;:ao do Ocidente". 0 progresso nao e urn valor absoluto, mas a OpyaOcoletiva pelo investimento em determinadas dire<;:oes, 0 que as vezes significa a "atrofia"de outras possibilidades humanas.

l 5. Foram elas SU"realisme et Revolution e L 'Homme contre Ie Destin, ambas proferidas naUniversidade do Mexico, nos dias 26 e 27 de fevereiro de 1936.

~ ciais e tecnol6gicos. As referencias principais da revol~<;:5.o artaudianabrotarn de uma leitlua das culturas ~rimitivas. Ele admite ~ absorr50 de__ -' _1= .,--

I' cursos e conquistas das sociedades modernas, mas a orientac;:ao da'x1stencia das coletividades humanas deveria provir de uma visao "sagrada"la vida, pr6xima aque encontramos nas culturas primitivas. "Revoluyao"

portamo recuperac;:ao nao das formas amigas de vida, 0 que poderiadesembocar numa especie de "fundamemalismo", mas dos "prindpios"lue fundarn a visao "arcaica" do homem e do universo l34.

Isso implicaria num novo modo de se considerar as mudanc;:asmacrosociais. Tais estruturas seriam indissociaveis das dimens6essubjetivas que, ao mesmo tempo, lhes dao suporte e sao por elas produzidas.A revoluc;:ao implicaria portamo na dissoluc;:ao da ordem social inscritano organismo enos afetos, na construc;:ao de urn "corpo sem 6rgaos" (verap. 1), que por sua vez realimentara urn novo modo de agir em sociedade.eria a restituiyao desse "ritmo" que pulsa entre a destruic;:ao das estruturasronificadas, intemas e externas, e a expansao e canalizac;:ao das forc;:as

"apazes de liberar 0 homem dos condicionamemos mais profundos, queonstituiria urn processo verdadeiramente transformador.

Para compreender melhor essa reinvenyao do conceito de revoluc;:ao,!,odemos reromar a avaliayao artaudiana de duas matrizes do pensamemorevolucionario: surrealismo e marxismo. Suas duas primeiras conferenciasno Mexico 135 versaram sobre esse tema. Existem ainda inumerasreferencias dispersas sobre 0 assumo em varios artigos escritos parajornais mexicanos. A inseryao de Artaud nos meios culturais mexicanospropiciou uma visao distanciada de sua experiencia europeia, processofundamental para a formulayao de suas novas tarefas como artista.

De maneira geral, a revoluyao surrealista e avaliada como umarevolta contra as diversas formas do "pai". 0 terna mftico do "paidestruidor", que aparece em Les Cenci retoma aqui numa tonica maisocial. Artaud refere-se as multiplas formas do "pai" que marcam a

Antonin Artaud - Teatro e Ritll~d154

Page 31: Anronin Artaud Teatro e Ritual

sociedade capitalista. Os surrealistas se referiam a trilogia "pai, patria,patrao". Dirfamos, recorrendo a Toni Negri '36 (e sua leitura ~e Fo~ca~It),que tais figuras expressam uma forma de exerdcio da soberallla capitalIst;!,tfpica da epoca de Artaud. As socieda!es disciplinares, que antecedem .;!~

sociedades do controle, apoiam-se sobretudo em instituic;:6es (como a famfll:l,a fabrica, 0 preSidio, 0 manicomio) para realizar a mediac;:ao entre 0

poder do Estado e os indivlduos. Artaud e os surrealistas ~~nviveramcom essas formas de poder, vislumbrando, por vezes, a translc;:ao para 0.'novoS modelos. As instituic;:6es disciplinares apoiam-se em figuras vislvci~

de autoridade, rostos que expressam e compoem os significado"dominantes: 0 pai, 0 patrao, 0 professor, 0 policial, 0 psiquiatra. Par.1

falar como Deleuze e Guattari, tais formas de agenciamento de podl'lnecessitam da produc;:ao de "rostos"137, emblemas vislveis da autorid"dc'

que se imp6em sobre 0 "corpo" social. . .Ao atacar essas figurac;:6es do poder, 0 surrea!lsmo pretendla n:ill

so dirigir-se contra as estruturas sociais objetivas, mas principalmen I

destruir 0 "capitalismo da consciencia", ou seja, explodir os modos dformatac;:ao das subjetividades, de colonizac;:ao das almas. "Pois 0 segr ·dodo Surrealismo e que ele ataca as coisas no que elas tem de mais secrt:to"(OC:VIII, 143). A revolta moral, 0 desespero da alma, a recusa violcilillde um modo de vida, a energia do extase sao visloS como elemenloindispensaveis da "revoluc;:ao". Mas e fato tambem que 0 surrealis~o 11:111

conseguiu abalar as "macroestruturas" da sociedade. No entendlmt:llIlIde Benjamin (1985), faltou ao movimento a necessaria dialetica emiT .1

busca da embriagues do misterio e 0 retorno ao cotidiano ("so devassanwo misterio na medida em que 0 encontramos no cotidiano, grac;:as a 111111

otica dialetica que ve 0 cotidiano como impenetravel e 0 impenetr:\vt Icomo cotidiano", op. cit.:33). Ja para Artaud, "aquela violencia que n.111

levava a nada", que nao se traduzia em mudanc;:as macrossociais, ao m 'IHI

"subterraneamente manifestava alguma coisa". 0 surrealismo, com ~111

I 18. Em urn artigo de 1936, L 'Eternelle Trahison des Blanchs, Artaud diz que nao se podeconfundir a alta metafisica presente no pensamento monista oriental com "as falsifica~6es

que nos sao oferecidas pelo teosofismo ingles de H. P. Blawatsky e Annie Besanl"(OC:VllI, 136). A teosofia de Blawarsky e uma das principais representantes do <i" .

foi chamado de "ocultismo" no Ocidente.I \~. 0 que nao quer dizer que em certos momentos Artaud nao tenha sido enfarico '01

diferenciar 0 que considerava 0 pensamento serio nessa area, das falsifica~6es. L.~-se linartigo "Bases Universelles de fa Culture": "Nao ha filosofia sagrada nem cultura gl':llldi",.1que Keyserling nao renha tocado, vulgarizando odiosamente certas doutrinas. '1IIall<!oe certo que, para a manifesrarem, os bcimanes da India tiveram muitas vezcs de S.I ,·ill'.11a pr6pria vida" (OC:VlII, 191).

I II). Publicado em 17/6/1936, no jornal El Nacional.I II. Balthus fez a cenograRa da pe~ Les Cenci.

"obsessao de nobreza", sua "preocupac;:ao com a pureza", bus ad:1 'Ill

todos os pianos posslveis, no amor, no esplrito, na sexual idad', t 'l,j:1

nberto um espac;:o ainda nao contaminado pela subjetividade capil:t1isl.l,No entanto, Artaud considera tambem que a revolta SUIT alisl<l

reria "soc;:obrado no inconsciente". "Ocultismo de um novo genero","magia bizarra", "intoxicac;:ao do esplrito", sao alguns dos termos usadopor de para caracterizar certas pretensoes do movimento. Mas nao'ncontraremos nenhuma considerac;:ao ou crltica mais espedfica as'xperiencias surrealistas com hipnose, mediunidade, "segundo estado" eutras formas especificamente modernas de "ocultismo"138. Artaud ainda

nao vivia na era da massificac;:ao e da diluic;:ao comercial dos "esoterismos",hoje plenamente integrados no mercado religioso, por isso nem sempre

ra interessado em estabelecer discriminac;:oes nessa area139. Para ele, asvezes, 0 mais importante era se colocar contra a mentalidade predominan tena Europa, lanc;:ando mao do que pudesse representar uma oposic;:ao aol·acionalismo. Dal exaltar sobretudo 0 "trabalho negativo" realizado pelossurrealistas, de ataque as instituic;:6es e a cultura, mesmo reconhecendo,,)ue 0 movimento tenha sido superado pelos fatos.

No artigo "La ]eune Peinture Franraise et la Tradition"140 (DC:VIII,01-205), Artaud aborda a reac;:[o dos jovens pintores franceses contra 0

urrealismo, em especial a do artista Balthus141• Atraves dos comentario

• obra de Balthus, Artaud parece falar tambem do proprio momenta queI vive no Mexico. Balthus estaria "farro de uma pintura de larvas,

Jll'ocurando organizar seu proprio mundo" (idem:201). 0 mundolIrrealista surgiria da desorganizac;:ao das aparencias e das relac;:6es entre

1)$ objetos:

I 7Antonin Artaud - Teatro e RitualAntoninArtaud-Teatro e Ritual

Ver especialmente 0 capirulo "produ<;ao Biopolftica", em Imperio, de Hardt c N"I',II

200l."(...) determinados agenciamentos de poder tem necessidade da produfiio de rostos, 0111111

nao. Se considerarmos as sociedades primitivas, poucas coisas passam pelo ro>lO IIIsemi6tica e nao-significante, nao-subjetiva, essencialmente coletiva, polfvoca e co'!"" Iiapresentando formas e substancias de expressao bastante diversas" (Deleuze:C 11:01 Iii

1996:42: grifos dos autares).

137.

136.

156

Page 32: Anronin Artaud Teatro e Ritual

o jogo entre misterio e cotidiano reclamado por W Benjamillafirmado aqui. Ja nao basta 0 trabalho "negativo", de desorganizas;ao d.1percep<;1io cristalizada do cotidiano. Depois da dissolu<;:ao alquimica d.1formas e necessario "refundi-Ias". 0 que nao significaria recair na al'll'academica e estetizante. Ao inves disso, haveria em Balthus a retomad.lde uma "tradis;ao" negada pela Renascen<;:a. Trata-se de urn primitivislllllhieratico e sagrado, expresso nas pinturas de Giotto, Fra Angelico, Piel'Odella Francesca, Cimabue, Simone Martini, entre outros. Para Arralld,essa pintura era ainda urn "meio de revela<;:ao", no qual a realidatl!sensorial e urn simbolo, uma porra que deixa entrever os prindpios C .1rela<;:6es energeticas que governariam 0 universo: "e dessa tradi~"HI

esoterica e magica que urn pintor como Balthus se aproxima" (idem:20.1)E e, sem duvida, essa tradis;ao que Artaud tentara reencontrar na cuhul.1mexicana arcaica. A superas;ao do surrealismo implicaria, porranto, 1111trinsito entre a sondagem das profundidades e 0 reconhecimento d.lsuperficies, gerando urn novo modo de "ler" as aparencias e de se relaciOIl.1Icom as for<;:as que the seriam subjacentes. 0 resgate dessa outra '''cienei.I·',desse pensamento baseado em analogias, exigiria a reaproxima<;:ao tI.1culturas primitivas ainda existentes na nrra. Nos povos indigcl1.1mexicanos Artaud acredita ser possi;el encontrar uma visaOCle mUlldo

semdh~a Europa pre-moderna.S~ momento(;;;'o de 1936) as criticas ao surrealismo 11.10

tern 0 mesmo impeto da epoca de sua ruptura com 0 movimento (19J.(.).

deixando entrever cerra simpatia por aquela atitude de rebeliao l' IiiangUstia vital, 0 mesmo nao acontecera com sua avalia<;:ao do marxiSIiH t

Afirma<;:6es enfaticas das diferen<;:as que separam sua concep<;:3o iii"revolu<;:ao" da visao marxista se sucedem em artigos e conferencias. I )\1posicionamento comunista, Artaud parece aceitar apenas 0 sentinH'1I111

anti-burgues e anti-capitalista. 0 pon~I1.<:>~al da~en<;as residiria 11,1base antropologica da qual cada urn partira. A visao de ho~ell1 1111- ~--"

I 2. Estamos nos urilizando do conceiro de "molecular" no senrido q"e the c arribufdo porDeleuze e Guattari. 0 "molecular" se op6em 11 "ordem molar" que delimita objetos,sujeitos, sistemas de referencia e tepresenra<;:6es. 0 "molecular" carra transversalmenreo "molar". existindo como fluxDs. devires, intensidades, transi<;6es. A esse respeito, vero capitulo "Micropolitica: molar e molecular", em Guattari; Rolnik (1996).

159Antonin Artaud - Teatro e Ritual

l11arxlsmo estaria por demais comprometida com a historia recente daI nsciencia europeia, e com tudo aquilo que ela excluiu. 0 homem que,) marxismo consegue apreender seria 0 homem ja "fragmentado",""eduzido as suas necessidades mais grosseiras". Uma afirma<;:ao num. rto sentido discutivel, tendo em vista as criticas que Marx desenvolveuobre os processos de aliena<;:ao do homem no capitalismo. Mas e inegavel

'Iue as "quest6es metafisicas", que tanto interessavam a Artaud, sao vistasp 10 marxismo como ilus6es ideologicas, express6es da superestruturatla sociedade, determinada pelas rela<;:6es de produ<;:ao. Por outro lado,Artaud acusa 0 marxismo de ser uma "falsa metafisica", ou seja, de propor11m fundamento economico, a partir do qual se derivaria a explica<;:ao deuma serie de fenomenos.

Se 0 marxismo conseguiu captar uma "dinamica de for<;:as", ubjacente aos fatos sociais, ele teria se detido num aspecto espedficod s fenomenos. "Desse fato verdadeiro em si resultou para a historialima ideologia mentirosa" (OC:VIII, 152). Nao se trata portanto de negarque 0 marxismo tenha conseguido penetrar numa certa dimensao da,. alidade, extraindo dai certas verdades. 0 problema residiria na suap rspectiva unilateral, considerando 0 homem de urn ponto de vista muitolimitado. 0 marxismo sofreria da incapacidade de transitar por dimens6estla realidade exploradas, por exemplo, pelo surrealismo. Alguem comoArtaud, que se dedicou a investigar em si mesmo as oscila<;:6es mais sutistlas sensa<;:6es e dos afetos, habitando regi6es do espirito em que as formasll1entais mal se delinearam, so poderia conduir que "a revolu<;:1io comunistaI nora 0 mundo interior do pensamento" (idem: 156). A apreensao desses1l10vimentos "moleculares"'42 e a percep<;:ao de sua importancia politicaesravam fora do horizonte mental do marxismo de sua epoca.

o mesmo pode-se dizer das possibilidades de uma leitura poeticaimbolica da natureza. Para Artaud, 0 marxismo nao desenvolveu uma

dtica radical da visao mecanicista e racionalista da natureza que originou,I tecnologias modernas. De maneira geral, a natureza continua sendovista como uma Fonte de materias-primas a ser explorada pela industria,

AntoninArtaud- Teatro e Ritu:d

.As, formas da cultura surrealisra vivem numa luz de alucina<;:ao.

Lutando contra esse div6rcio e essa desrruic;:ao, Balthus reroma 0

mundo a partir das aparencias: aceita os dados dos sentidos, aceira

os da razao; aceira-os, mas reforma-os; eu cliria ainda melhor que os

refunde. Numa palavra, Balthus parte do conhecido C.. ')" Cidem:201;

grifo do auror).

158

I

/,'

Page 33: Anronin Artaud Teatro e Ritual

A Cultura SO/III'

No perfodo compreendido enrre 1933 e 1938, Artaud realiza lII1I,Iserie de estudos, reunidos na Oeuvres Completes sob 0 nome de "Not(',1' 1111

It!11 t nin Artaud - Teatro e Ritual

I \ ultures Orientales, Grecques, lndienne" suives de "Le Mf'x;qllr rl lit

( i'llilization" et de "L'Eternelle Trahison des Blanchs". A leitura d S'S I 'Xtll~

videncia que a op¢o pela viagem ao~ faz parte de lim proj'lo1I1t1ior, de reflexao sobre 0 pape! das cu tWaS tradicionais no mUll 10

..,---- ---- ,-

III demo, dominado pda mentalidade ocicknxal. 0 Mexico aparece como11m dos lugares da terra em que aind~·estariam presentes, mesmo qu '

II ultos pe!a ayao colonizadora europeia, tra<;:os de antigas civiliza<;:6esqu , no atual estado do mundo, deveriam ser recuperados; nas ten'as111 'xicanas pulsaria um conhecimenro outrora existente em diversos lugar

do mundo. Artaud~~lha com a i~ia de que, subjacente as diferen<;:as ~I' temas que separam certas civiliza<;:6es (China, india, Mexico, Grecia.II' aica), existiria uma unida~rofu.n.daque as reune, expressa emI ( ncep<;:6es "metaffsi-c-<lS'" e "cosm.o16gicaS:' muito semelhantes.

Trata-sedaquil~ que a pesquisadora Monique Borie chamou de"unidade dos esoterismos" 143, ideia que Artaud colheu das leituras de,llItores como Rene Guenon e Fabre d'Olivet. Nessa perspectiva, seriap sfvel aproximar tradi<;:6es como 0 taofsmo eo hinduismo das correntes11 'o-pitagoricas, hermericas e neo-platonicas, que chegaram a Europap r inrermedio dos gregos e dos arabes. Mais do que isso, 0 estudo

mparativo dessas diversas correnres propiciaria uma compreensao cadav z mais profunda de uma sabedoria comum existente em diferentesulturas144• Ao mesmo tempo, esse pensamento tenderia a acentuar 0

nflito entre os caminhos adotados pelo Ocidente a partir da Renascen<;:a, as "civiliza<;:6es tradicionais" do Oriente e Ocidente. Haveria mais~cmelhan<;:as entre 0 mundo medieval europeu e as civiliza<;:6es chinesa eindiana, do que com 0 mundo ocidental modemo.

Artaud parte de uma ideia semelhanre para afirmar nao so a unidadeNLlbjacente as diversas culturas indfgenas mexicanas (Maia, Tolteca,

tomis, Nahualt etc.) como para estabe!ecer re!a<;:6es entre 0 Mexicoutras tradi<;:6es (em especial, com 0 taofsmo e correntes do pensamento

medieval europeu):

143. Ver, a esse respeilO, 0 capilUlo "I'tinite des esotlrismes", em Monique Boric (I '!Il'),

Antonin Artaud: Ie theatre et Le retour aux sources.144, 0 escriror Adous Huxley (1945) trabalha com essa mesma ideia, em SCII liv,'o n,r

PerenniaL Philosophy. 0 termo "filosofia perene" foi cunhado por Leibni'f., "~ ,rI"I(aos principios metafisicos comuns enconrrados em diversas trad ic;6es cspi ri Ill,' i"

Amonin Artaud - Teatro . I~ 11111160

mesmo que se reclame por uma divisao mais justa das riquezas prodll'lId I

e pelo acesso das massas ao conhecimento ciendfico. Em contrap(),\i~IIII

a essa perspectiva, Artaud reivindica a recnpera<;:ao da visao "dita p.I",1da natureza: "aquilo que 0 paganismo divinizou, a Europa mecalli~III'

(idem: 155). A sacralidade que as culturas arcaicas atribufam a nallll'{'/lvista como manifesta¢o fenomenica que brota de um prindpio ol.~ 11111inapreensfvel racionalmente, seria acessfve! apenas a uma menta lid ,Illnao dominada pelo anseio de controle e explora<;:ao ilimitados.

A cultura "esquartejada" em ciencias separadas, cad;] 11111 I

estabe!ecendo um campo proprio para que se amplie 0 domfnio do h01l1 III

sobre a Terra, pode gerar desenvolvimentos tecnologicos ineditos, 1111tambem teria perdido a capacidade de se conectar com a pulsa<;:ao qll

liga as formas ao vazio e 0 vazio as formas. Daf a necessidade de reWll1 II

o conhecimento analogico e simetico, desenvolvido pelas culturas ar ail I

Nao seria diffeil acusar Artaud de ausencia de rigor no exanll' dlassuntos tao vastos e complexos. Ao mesmo tempo, e impossfvel ne ',II I

incrfvel atualidade de algumas de suas intui<;:6es. E frequenre que sc VI

certa oposi<;:ao entre 0 "teatro polftico" de Brecht e 0 "teatro sagrado" dlArtaud. No enranto, enconrraremos neste ultimo uma serie de eleml'lltllque podem inspirar formas de atua<;:ao polftica pertinentes ao cont ' III

contemporaneo. Se, como nos dizem Hardt e Negri, hoje 0 podcr "

expresso como um controle que se estende pelas profundezas da conscil'11I II

e dos carpos da popula¢o - e ao mesmo tempo atraves da totalidadl' d I

rela<;:6es sociais" (2001:43-44), quest6es como a da reinven<;:ao dos afl'1IIe da rela<;:ao com 0 corpo e os desejos tomam-se urgentes. Uma poliJiI Ique desc~nsidere hoje os mec~mos de produ<;:ao das subjetividadcno capitalismo~;;memporaneoesta fadada a it:~acia. Mils do 11111isso, ArtaudapO'nta ainda'para a necessidaae de se e~tabelecer urn 110 II

tipo de rela<;:ao com as chamadas..plltur~vas" e com 0 saber <illlelas produzem, baseado num modo de ver e se relacionar com a naturt"/,IAssunro fundamental numa discussao ampliada sobre uest§es pol II i ,Ie ~gicas que se faz cada vez mais necessaria.

Page 34: Anronin Artaud Teatro e Ritual

o atual Tibet e 0 MOOco sao os nudeos da cultura mundial. Mas a

cultura do Tibet e toda feita para os mottos; e Ia podem portantoaprender-se os modos de bern morrer, se quisermos libertarmo-nos

da vida.A cultura eterna do Mexico porem foi feita para os vivos. Noshier6glifos maias, nos vestigios da cultura tolteca, podem ainda

Uma afirma"ao que pode soar superficial para aqueles que sao

treinados nos complexos processos de investiga"ao etnologica. A proposi,,1inde um modelo abrangente, que abarque um grande numero dc'manifesta"oes culturais, exigiria um vasto trabalho previo de analise e ddiscrimina"ao das diferen~. Artaud, no entanto, redama que 0 trabalhocientffico tende a enfatizar em demasia 0 exerdcio analitico e a percepC;;lo

das diferen"as, atrofiando a sensibilidade para as analogias e semelhall~';I~,

impedindo assim 0 exerdcio de um pensamento sintetico. Se SILl

observa"oes sobre as antigas culturas mexicanas carecem de rigor analfriw,

e inegavel que estao impregnadas de intui,,6es visionarias e aspira<;fH'

utopicas.E essa dimensao politica que importa tambem ressaltar. St'll

pronunciamentos no Mexico sao permeados de exorta<;:6es a uni1io do

povos indigenas e culturas tradicionais contra a a"ao colonialista dll. paises ocidentais. Artaud e 0 europeu que se auto-exila para reali'I,,1I .1

(

catarse de sua identida~e ~e colonizador. ~sper~ tambem, atraves .de ~111atua<;:ao, poder contnbulr para a orgamza"ao de um novo tlPO cIrevolu<;:1io, levando para 0 Mexico a atitude insurtecional que faz p.11 \I

da historia e da cultura francesas.. Sua op"ao pelo Mexico emerge, por outro lado, de «'1111

desencantamento em rela<;:ao ao Oriente:

lid

descobrir-se as maneiras de bem-viver, de afugentar dos erg: o~ II

sono, de manter os nervos nurn estado de perpetua exalta<;:ao, tIllseja, completamente abertos it luz imediata, it agua, it terra <.: ;10

vento.. Sim, creio numa for<;:a adormecida na terra do Mexico. (...) Crcio

tambem que O~_~i£L§j~' as manifesta<;:6~di;etas dessas for<;:as(OC:III, 187).

Antonin Artaud - Teatro e Ritual

5. A ideia de que 0 pensamento oriental, em especial 0 da tradic;ao budista, centra-s .lU

problema da morce, negligenciando, por assim dizer, as quest6es do viver, parol" ." ..superficial. Hoje, no Ocidente, ja existe uma vasta bibliografia a respeito qlle I'od<'esclarecer 0 leitor sobre isso.

I 6. Dai Arcaud rejeitar 0 que entendemos normalmenre como "nacionalislllo": "(. .. ) 1..1 0

nacionalismo que pode chamar-se civico e que, na sua forma ego(st:l, ,e IT"'''' ,10

chauvinismo e se traduz por lutas a1fandegarias e guerras economic:ls, qll:l"c111 ",III I' IIIguerra total" (OC:VIII, 217).

Deixando de lado os discutiveis comentanos sobre a cultura

ribetana, podemos constatar que a atra"ao pela America pre-colombiana

raduz uma perspectiva "vitalista", que insiste na exalta"ao das fo1'"asreluricas dos tropicos, tonica proeminente nos seus escritos dessa epoca.

Daf sua preferencia por uma cultura que the pare<;:a mais conectada com

as "for<;:as naturais" e com 0 corpo vivo, possuidora de um complexo

sistema cosmologico, que se reflete em diversas praticas do cotidiano.

ultura essa que contrastaria com um vies propriamente "metaffsico",

'entrado no problema da motte e da libera<;:ao do cido da existencia,

a1'acteristico do oriente l45•

o Mexico, por sua vez, nao sera encarado por Artaud exatamente

omo urn pafs, no sentido dos "estados" modernos, mas como uma "regiao

da Terra" que devera desempenhar um papel fundamental no destino

,ltual do mundo. A ideia de "estado-na<;:ao" e recusada por ser uma categoria

que se sobreporia a rela"ao mais imediata do homem com a terra,instituindo territorios, codigos, leis reguladoras146, Voltar-se as antigas

na<;:6es indfgenas significaria adquirir uma dis rancia em rela"ao a

I' presenta<;:ao da Terra como um "territ6rio", Mais do que isso, Artaud

(\'abalha com a hipotese de que as culturas indfgenas possuiriam meios

de conexao com as for~ teluricas ignorados pelos brancos. 0 homem

v rmelho nao ocupa a terra como alguem que se sente destacado dela. As

v lhas culturas mexicanas nao foram construidas em oposi<;:ao a natureza,

Antonin Artaud - Teatro e Ritual

Quem hoje pretenda que existam no MOOco varias culruras - a culrurados Mayas, ados Toltecas, ados Astecas, ados Chichimecas, dosZapotecas, Totanacas, Tarascas, Otomis etc. - ignora 0 que e a cultura,confunde a multiplicidade das formas com a sintese de uma ideia.Existe 0 esoterismo mUl;:ulmano e existe 0 esoterismo bramanico;existe a Genesis oculta, 0 esoterismo judeu da Zohar e do Sephet­Ietzirah, existe aqui no MOOco 0 Chilam Balarn e 0 Popol Yuh.Quem nao ve que todos esses esoterismos sao urn s6, e querem emesptrito dizer a mesma coisa? (DC:VIlI, 159).

162

Page 35: Anronin Artaud Teatro e Ritual

147. A esse respeito, ver 0 capirulo "Da Sociogenese dos Conceitos de Culrura e Civili'/,II""no estudo c1assico de Norbert Elias (1994).

mas teriam nascido de uma profunda imbrica<;:ao com a terra, consritu ilid, I

se como seu prolongamento harmonico. Daf a disd.ncia entre a vitll'

indfgena e a "cultura" celebrada pelos europeus:

Antonin Artaud - Teatro e Ritual

148. Ver Deleuze (1987) sobre Foucault, em especial 0 capitulo "Os EsrrJl'os 011 l:ol'"u,\ilrs

Hist6ricas: 0 Visivel e 0 Enunciavel (Saber)".

"ntral no seu discurso. A cultura que se confunde com inSITU(j:lO ,~'I'I,I

tquela que se divorcia do universo das "for<;:as", tornando-se in a1':1'/, d,

I' 'conhece-Ias, capta-Ias, dirigi-Ias. Poder-se-ia aproximar, com . 'I'W

'uidado, essa ideia de "cultura como instru<;:ao" do conceito de "arquivo"

'm Michel Foucault148• 0 "arquivo" traduz a dimensao do "saber" qu s

r rmaliza em enunciados e modos de percep<;:ao, em "regi6e d'

visibilidade e campos de legibilidade". Por sua vez, esse saber, que se

divide sempre em formas estratificadas de ver e falar, dependeria sempre

le uma dimensao de "poder", ou seja, de uma dinamica de for<;:as ainda

nao formalizada, que the e subjacente. Nesse sentido, 0 saber dos arquivos

sempre "formatado", sedimentado em codigos, criando muitas vezes

uma barreira para a percep<;:ao e para 0 acesso ao universo das for.;:as, OLl

'ampo do poder. Para Artaud, a verdadeira cultura seria, sinteticamente

ralando, aquela que consrroi conscientemente as conex6es entre 0 plano

las formas e 0 das potencias e virtualidades, aquela que sabe "respirar"ntre esses dois espa<;:os..

Mas, ao acusar a cultura europeia de estagnar-se numa cultura

formal e cristalizada, Artaud nao estaria desconsiderando toda uma

lradi<;:ao do pensamento ocidental, que desde 0 seculo XIX coloca sob

, Llspeita os discursos e institui<;:6es morais, religiosas, cientfficos eideologicos, explicitando dinamicas subjacentes aos fenomenos? Marx,

Nietzsche e Freud, para citarmos apenas algumas das grandes referencias,

l1ao desvendaram campos de atua<;:ao de for<;:as (produtivas, vitais,

pulsionais) imanentes as forma<;:6es historicas, as formaliza<;:6es culturais,

,I s codigos morais, as institui<;:6es jurfdicas e polfticas? Desse modo,

Anaud nao recusa uma tradi<;:ao da qual de certa forma e tributario?

Nao encontraremos em seus textos 0 aprofundamento de uma

discussao desse tipo. Ele parece mais interessado em lan<;:ar luz numa

, ncep<;:ao de mundo que a Europa outrora teria recha<;:ado, e que derta forma se encontraria ainda viva no Mexico. 0 mundo pre­

l'olombiano acena para aquilo que 0 humanismo europeu deixou de ('01':1,

.1 desligar-se nao so da concep<;:ao "teocentrica" crista, mas de qualqu 'I'

vi 'ao sagrada da existencia. 0 Mexico deveria ajudar 0 Ocident·· a

,"memorar urn conhecimento que ele ja possuiu, e que sobrC'viv'U

AntoninArtaud- Teatroe Rill"ll164

Poder-se-ia ver aqui uma reedi<;:ao da velha questao em Torno tillconceitos de "cultura" e "civiliza<;:io" que mobilizou iluministas e romanri '0

As palavras civilite e civilization, preferidas dos iluministas franc '," ,

designavam as conquistas do homem europeu sobre os instintos, expr"~'11

seja na vida cotidiana, atraves das regras de etiqueta e comportam 1110,

seja na condu<;:ao racional da vida publica. 0 conceito de civiljz:l~ll\I

comportaria ainda 0 sentido de progresso e de universalidade, ja qU(' II

Iluminismo previa que 0 processo civilizatorio, desencadeado inicialm<:1111

na Europa, se expandiria pelo resto do mundo. Artaud se avizinh:l dll

pensamento romantico, que realizou a crftica do conceito iluminisl:l iii"civiliza<;:ao", denunciando sua artificialidade e sua presun<;:io universali~1;1

o conceito romantico de Kultur, surgido na Alemanha, afirmari:l 1

existencia de uma "alma coletiva" da na<;:ao, ligada a ideia de profundid,ttll

e espontaneidade naturais, expressa nas artes e na cultura popular'"? N I

exalta<;:ao artaudiana de uma cultura que remexe 0 "humus profundo" do

homem, ressoa 0 ideal romantico da identidade entre 0 homem e a natur('hl

Mas as considera<;:6es posteriores de Artaud sobre a culltll I

mexicana tambem nos permitem aproxima<;:6es com uma discussao 111.11

contemporilnea. Na defesa da "verdadeira cultura" conrr,1

degenerescencia da civiliza<;:ao, a palavra "for<;:a" adquire uma imporrrlt II I I

Falamos do homem cultivado, falamos tambem da terra cultivada, e

com isso estaremos exprimindo uma ac;:ao; uma transformac;:ao quase

material tanto do homem como da terra. Pode-se ser instruido sem

se ser cultivado. A instruc;:ao e uma indumenraria. A palavra instruc;:ao

significa que uma pessoa se revestiu de conhecimentos. Eurn verniz

cuja presenc;:a nao implica forc;:osamente que se tenha assimilado tais

conhecimentos. A palavra cultura, por sua vez, significa que a terra,

o humus profundo do homem, /oi arroteado. Insttuc;:ao e cultura

confundem-se na Europa, onde as palavras ja nao querem dizer

nada (oo.) (OC:VIII, 189; grifo do autar).

Page 36: Anronin Artaud Teatro e Ritual

149. obre a "antropologia" presenre no pensamento de Paracelso, ver 0 capitulo "l':II.II ,I II

da obra de Groethuysen (1953).

subterraneamente nas correntes hermeticas, neo-pitagoncas, ncoplatonicas, que fizeram parte do mundo medieval e da Renascen<;:a. ()humanismo europeu nao teria inventado "0 homem" ao desligar-se do

teocentrismo, mas apenas uma perspectiva secular de encani-Io. Artaudespera reencontrar ~~cultura ainda viva, capaz de reconciliar 0 hom '111

com os deuses, atraves de urn ~~nhecimento que se encama no corpo ('

nas-a~6es-in~ cotidianas.- A- b-Usc~ess;4~mem divinizado" e insepad.vel da necessidad,'

prem.e~te de ~a cura. ,9homem que ultrapassa sua propria co~di¢i()se aVlzmha dos deilse e urn homem que se deu ao trabalho de refaz'lsel:. doenc;:a ni~qui apenas 0 signa negativo que nomeia uma condi~.1C1espedfica do corpo ou da mente de urn individuo, num determinadomomento da existencia. Ela e a propria marca da existencia, vista d I

perspectiva wigica. Quando encarada do ponto de vista da "crueldad ",a existeneia e entendida como uma terrfvel exigencia, exigencia de "rigol",em primeiro lugar para consigo mesmo: "...ha no ser uma mentira, e IIC

nascemos para protestar contra ela" (DC:VIII, 146).Como pensava Paracelso l49

, autor frequentemente citado piliArtaud, a doen<;:a nao e urn simples fenomeno da natureza, mas a condi~,lll

a qual 0 homem devera necessariamente se sujeitar e assimilar, se qlli\ I

ultrapassar a condi<;:ao humana. Ao nascer 0 homem ja ',\I

irremediavelmente sujeito a "doen<;:a", e esse reconhecimento e tamh III

urn impulso que 0 levaria a investigar 0 universo exterior, a conhect'l ,I

rela<;:6es entre plantas e doen<;:as, entre os diversos reinos nao-humal\O\ I

o reino humano, tomando consciencia da totalidade de que faz pallEsse tipo de investiga<;:ao nao se confundiria com os prop6~illl

estabeleeidos pelas modernas ciencias. As crfticas ao carater fragment. 110 I

desse saber, que instituiu campos especializados para a investig:l~,ll'

analitica, mas que seria incapaz de apreender sinteticamente 0 hOI1l III

abundam nos escritos artaudianos desse perfodo. Essa "ciencia em JIllteria recalcado 0 pensamento analogico, capaz de apreender as reSSOIl~11I ill

e semelhan<;:as de fenomenos que ocorrem em diferentes niveis de real id'lll(fenomenos da natureza e fenomenos humanos, fenomenos psfquilll

corporais etc.)

-

"

)I

167Antonin Artaud - Teatro e Ritual

150. Utilizamo-nos da tradw;:ao espanhola desse arrigo, "Ciertcia y Meditacion", em Heidegger(1994:39-61 ).

151. Heidegger insiste para que a palavra "calculavel" nao seja entendida apenas no sentidonumerico, mas no seu significado mais geral de "conral' com": "(... ) con tar com algo,quer dizer, tomar algo em considerac;:ao. confiar (em nossos dlculos) em algo, coloca­10 sob nossa expectativa" (1994:50).

Nao e possivel extrair dos escritos de Artaud uma cntlcasuficientemente desenvolvida das ciencias modernas. Como sempre,tratam-se de afirmac;:6es provocativas e poeticas as que encontramos emseus textos, os quais se assemelham a manifestos. Mas suas intuic;:6esmuitas vezes se avizinham de tematicas tratadas por eminentes pensadores,seus contemporaneos. Num ensaio de Heidegger, intitulado Ciencia eMedita~iio150, efetua-se, do mesmo modo, uma distinc;:ao radical entre a"ciencia ocidental europeia", que hoje "exerce seu poder por todo 0 globo",e 0 modo de se entender a palavra "ciencia" na Antiguidade e na IdadeMedia. Para 0 filosofo, a ciencia moderna se constitui, basicamente,como uma "teoriiCfo' ~e~l", fund'i'da num olhar "incisivo e separador",que ambiciona intervir no real "de urn modo inquietante". E essa ambi~decorre de urn modo de observar (teoria) e apreender~ como "objeto",ou seja, como aquilo que "obsta", oferece resistencia' a urn sujeito, queja se sente, dessa maneira, "destacado". A propria divisao da realidadeem areas de investigac;:ao, em "regi6es de objetos" que permitem uma"explora<;:ao especializada", responderia a essa necessidade de controle,de tomar 0 real "calculavel" 151 , no sentido do previsivel e do confiavel.

Toda essa atividade, entretanto, ja pressuporia urn "senl;ir-se separado",que para Artaud e uma das caracteristicas centrais as for~as daconsciencia desenvolvidas na Europa e que e necessario superar.

No texto Le Theatre et les Dieux, Artaud insistira na existencia deoutros modos de se ver a "ciencia", ligados a ideia de "cura", Mais doque 0 sentido de uma intervenc;:ao incisiva e de urn controle sobre 0 reale a natureza, a palavra "cura" evoca a ideia da restituic;:ao de urn estado(de saude e integridade) ja existente como uma possibilidade virtual, queprecisa ser despertado. Alguns prindpios de uma "ciencia" distinta daocidental poderiam ser encontrados em diversas fontes, algumas delascitadas no proprio texto. Do taoismo, por exemplo, Artaud retirara aimagem da pulsac;:ao entre 0 vazio e as formas presente no Tao-te-King,de Lao-Tseu:

AmoninArtaud- Teatro e Ritu:ll166

Page 37: Anronin Artaud Teatro e Ritual

'""' "Trinta raios convergem para 0 meio", diz 0 Tao-te-King de Lao­Tseu, "mas e 0 vazio entre eles que faz aroda andar".(...)A cultura e urn movimento do espirito que vai do vazio as farmas, e"~dc ., Sque as rormas regressa ao vazlO, ao vazlO como para a mone. erculto e queimar formas, queima-las a flffi de se atingir a vida. E

'\ aprender a manter-se reto denno do incessante movimento dasfotmas que vao sendo sucessivamente desnuidas. (OC:VIII, 165).

""cuta" p~a pela remo<;:ao das ansiedades em rela<;:1io amorte (.

ao desapare imento das formas. A imagem da roda e seu centro evoca .1

imporrancia do transito entre 0 vir a luz, 0 tomar forma, e a dissoluS-:HIna obscuridade. A "morte" e aproximada da experiencia do vazio, tit'

uma especie de retraimento em rela<;:ao a exterioriza<;:ao das formas, qUI'

permitinl a rela<;:ao com os processos de queima e destrui<;:ao. A morlt

aqui nao se reduz a morte fisica, mas se traduz no desprendimento ell!

rela<;:ao as formas, na familiaridade com a "nao-forma". A cultura qu

cultiva a vida nao e portanto aquela que torna a "vida" um valor absoluln,

que investe na vida como permanencia, engessando-se num dualisllHI

cujo outro polo e representado por uma motte amea<;:adora, que deve S('I

esconjurada. A morte aqui e inclusa nao so como momenta necess;ll·jll

de dissolu<;:ao do corpo, mas como experiencia da transi<;:ao entre esradll

e formas, rela<;:ao com 0 nao-manifesto, 0 ponto zero que contem em ~I

todas as vittualidades, 0 "entre" que possibilita todos os movimentos.

E, para Artaud, essa seria a atitude de todas as culturas quc' '"

sentiam ao mesmo tempo na morte e na vida: "as antigos mexicanos n.1I1

conheciam outra atitude senao esse vaivem da motte para a vida" (OC:VIII,

165). George Bataille, seu contemporaneo, tambem havia observado ('~ ..,I

familiaridade dos maias e astecas com a morte, num breve ensaiu,

L'Amerique disparue (1970:1, 152-158). Povos tao religiosos quanro \I

proprios espanhois, os antigos mexicanos chocaram os colonizadort'~ I

missionarios com suas representa<;:6es grotescas das divindades, nas qll.11

se misturam sentimentos de horror e de um certo humor negro, q III

tambem permeiam historias macabras e sangrentas. Distantes d I

concep<;:ao moral do "sagrado" na qual a divindade concentra os atrihul'l

da bondade e da perfei<;:ao, as divindades pre-colombianas se exprimiri,111I

de modo muitas vezes aterrorizador, revelando-se como for<;:as qU(' '''1

podem ser aplacadas atraves de sacrificios e rituais. Tais religi6es ailHl,1

I 9Antonin Artaud - Teatro e Ritual

Para fazer a cruz 0 antigo mexicano coloca-se no centro de urnespa~o vazio e a cruz emerge ao seu redor.

Nao e urna cruz para medir 0 espac;:o como pensanl os sabios dehoje, e uma cruz para revelar como a vida entra no espa~o, e comodesde 0 fora do espa~o podemos reencontrar 0 fundo da vida.Sempre 0 vazio, sempre 0 ponto, em tomo do qual se congrega amateria.

A cruz do Mexico indica 0 renascimento da vida (OC;VIII, 166).

nao teriam interiorizado a no<;:ao de "sacriffcio", transformal1d -0 el1)

praticas asceticas. Por isso mesmo, na epoca da conquista espan hola,prescreviam a realiza<;:ao periodica de sacrificios humanos, realizados

com requintes de crueldade, que para Bataille nos fazem recordar s

escritos do Marques de Sade. No entanto, esse exerdcio circuns riro e

regrado da violencia Faria parte dos mecanismos culturais destinados a

drenar puls6es destrutivas, afirmando ao mesmo tempo 0 desprendimenroe a coragem heroica que nao se detem diante da morte.

Curiosamente, nao serao os aspectos exteriores desse "teatro da

crueldade" que mobilizarao os comentarios de Attaud sobre 0 antigo

Mexico. Sera a dimensao espacial das representa<;:6es religiosas que Ihe

chamara a aten<;:ao em primeiro lugar. Numa especie de leitura "taoista"

das religi6es pre-colombianas, ele insistira na ideia de que as divindades

mexicanas circunscrevem um vazio central, a partir do qual se desdobram,

povoando as varias dire<;:6es do espa<;:o: "e os Deuses do Mexico girando

ao redor do vazio dao-nos um modo cifrado de reencontrar as for<;:as de

um vazio sem 0 qual nao existe realidade" (OC:VIII, 167). Os deuses ao

mesmo tempo recobrem enos remetem a esse vazio central. Comodesdobramentos espaciais desse vazio, manifestam-se como "for<;:as"

primordiais, cujos jogos e entrechoques gerariam todas as coisas do

mundo. Artaud se detem sobre 0 hier6glifo da cruz de seis bra<;:os, a cruz

dos palacios geometricos de Uxmal, Mitla, Palenque e Copan, paradesenvolver essa ideia:

152. Sobre 0 arcafsmo e os multiplos significados simb6Iicos da cruz, vcr C"e'")1\ (I ')HI),

Essa cruz de seis bra<;:os, mais arcaica do que a cruz crjsl:i11J.

I' meteria-nos tanto a um movimento de expansao, manifesta<;:ao d' Ilin

Antonin Artaud - Teatro e Ritual168

Page 38: Anronin Artaud Teatro e Ritual

153. Num texto publicado no jornal El Nacional, em 9/11/36, intitulado "El Rito rlr I", 10'.,de la Atlftntida" (OC:IX, 72-76), Artaud descreve urn ritual indigena de ill1oJ.,\.'li d.urn hoi, seguido da ingestao do sangue do animal, presenciado pOI' ele. E urn d", 1''''''''exemplos desse tipo de relato nos seus arrigos mexicanos,

mundo que e tambem dilaceramento de uma realidade originaria, como

a urn caminho de retorno ao nao-manifesto, onde a vida ressuscita eSt'

refaz, Do ponto de convergencia que evoca 0 nao-ser que contem em "j

todas as possibilidades de manifestas:ao, saem as linhas que estabelecclll

as dires:6es do espas:o, que cobrem 0 vazio, fazendo "amadurecer a vida".

mas nao perdendo a conexao central, ja que "povoar 0 espas:o, cobrindo

o vazio, e encontrar 0 caminho do vazio" (OC:VIII, 167), 0 homcill

refeito e divinizado em Artaud e aquele que assimilou e aprendeu .1

reconhecer em si e no mundo essa pulsas;ao que reune 0 nao-maniFcslo

as formas, presente nao s6 na sua "vida interior", mas em toda a naturC1.1.

Se Artaud nao se concentra sobre os aspectos explicitamcilil

espetaculares e sangrentos das religi6es mexicanas153, nao deixa, por OUIIII

lado, de reconhecer nessas representas:6es geometricas uma dimens.IO

teatral: "digamos, sem literatura, que esses Deuses nao nasceram ao aca,\o,

antes se encontram na vida como em urn teatro, ocupam os quatro cantil

da consciencia do Homem onde se abrigam 0 som, 0 gesto, a palavra . \I

folego que cospe a vida" (OC:VIII, 166). A teatralidade dessa cultura estal'i.l,

entre outras coisas, na relas:ao que ela estabelece com 0 espa\1l

Lembremos das criticas de Artaud a cultura que se pretende encerr.ld.1

nos livros e sua visao do teatro como "poesia no espas:o", local onde podl

ser exercido urn outro modo do pensar, uma outra forma de conheccr. ( )

espas:o em que figuram os deuses mexicanos nao seria somente 11111.1

extensao, mas uma realidade "qualitativa". A geografia mitica desses pOVII

designa regioes onto16gicas que descrevem a constituis;ao do mundo l' d.l

pr6pria consciencia humana. 0 "fora" dos quatto pontos cardt'.11

corresponde tambem a urn "dentro", constituindo os "quatro cantos" d.l

consciencia do homem. Gesto, som, palavra, folego, elemclllII

fundamentais da linguagem, transbordam de uma obscuridade silen 'i41'.,I.

encarnando 0 poder criador da palavra primeira. Os Deuses seriaill ..111

mesmo tempo, os guardi6es e as figuras:6es dessas fors:as, n01l1l

possuidores de poder.

171

(Poderiamos associar esse "vazio" a nO<;ao chinesa do "Tao sem nome". Le-se no Tao-te- ~

King de Lao-Tseu: "0 Tao que ptocurarnos alcanc;ar nao Ii 0 proprio Tao. 0 nome quelhe queremos dar nao Ii seu nome adequado." As formulac;:6es paradoxais seriam~unicas adequadas para designar a experiencia do nao-manifesto. I

Antonin Artaud - Teatro e Ritual

a sol, para aplicarmos a antiga linguagem dos simbolos, aparececomo 0 mantenedor da vida. Ele nao e somente 0 elementofecundante, 0 provocador soberano da germinac;:ao; e tudo isso, fazamadurecer wdo que existe, mas esta, pode-se dizer, e a menosimportante de suas faculdades. Ele queima, ca1cina, elimina, masnao destr6i tudo 0 que suprime. Sobre 0 amontoado das coisasdestrufdas e mesmo grac;:as a essa destruic;:ao, eIe mantem a eternidadedas forc;:as peIas quais a vida se conserva.

N urna palavra - e af esta 0 verdadeiro segredo - 0 sol e urn principiade motte e naa urn principia de vida. a fundamento mesma daanriga cultura salar e 0 de ter mostrada a supremacia da mone(OC:VIII, 219).

Mas nessa topologia h<i tambern uma dinamica. E e aqui que se

elucida 0 principio solar que estaria na base dessa conceps:ao de mundo:

No principio solar figura-se 0 "centro" no seu aspecto dinamico.

A ideia de "vazio" acentua a negatividade desse centro, sendo uma especie

de "palavra-limite" que tenta designar aquilo que esta para alem de qualquer

Forma ou representas;aol54. Ja 0 sfmbolo solar tenta dar coma da atividade

irradiada desse nueleo. 0 sol aparece como 0 principio igneo, que traz aluz toda manifestas:ao, que efetua a passagem do "nao-ser" ao "ser". Mas

tudo aquilo que pertence ao reino do ser ja e marcado pela dualidade

vida e morte. 0 principio solar como raiz de toda manifestas:ao

ongregaria, de modo sintetico e paradoxal, esses dois p61os: 0 fogo

xprime a intensidade vital e, ao mesmo tempo, a destruis;ao das formas.

Mais do que isso, nao haveria uma simetria perfeita entre essas

polaridades. Nao ha 0 esplendor e 0 brilho do fogo sem a queima das

Formas. A vida, nesse semido, esta subordinada a morte. 0 que nao

significa nenhum tipo de desvalorizas:ao da vida, mas encara-Ia de umnovo ponto de vista:

15

AntoninArtaud - Teatro e Ritual170

Page 39: Anronin Artaud Teatro e Ritual

Ritos TarahumaJ'l/\

o principio solar explicaria, de certo modo, a importancia atribufd:1por essas culturas aos ritos envolvendo a morte e a dissolu00 das fOt'mase estados, inclusive atraves de sacrificios. A "queima" peri6dica daqu iloque representa ou encarna efetivamente 0 apego as formas, 0 desejo (Ir.a todo custo, cristalizar a vida e negar a morte, e encarada como um.1a<;:ao profilitica e terapeutica, que reconduz a percep<;:ao da transitoriedadt·do existente e do que Artaud chama de "superioridade" da motte sobr ' ,I

vida. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, tais ritos reintegrariam ,I

morte na vida, operando desse modo urn forte impacto que se faz senl ilpor toda a existencia. Ele se traduz, por exemplo, na atitude desprendid'le corajosa, na generosidade e na alegria, presentes no comportamento tilmuitos indfgenas, e que tanto chamou a aten00 do colonizador europ 'II

173Antonin Artaud - Teatro e Ritual

Mexicol55

• Esse povo nomade, provindo da America do Norte, vive daca<;:a e da coleta, e possui rituais re!igiosos nos quais sao ingeridas porc:;:6es

da planta~!l, rambern chamada por e!es de 9wi. Artaud re!atoualgumas cfificuldades vividas pela tribo em fun00 de sua re!igiao, ja queo governo mexicano nao via com bons olhos as festas sagradas em que 0Peyotl era _lngerido. Por isso, era comum que tropas do exercitodestrufssem periodicamente os campos de planta0o. Quando chegou aaldeia, Artaud presenciou a revolta dos indios contra uma recente a<;:aodesse tipo. Estando hospedado na Escola Indigena instalada pe!o Estado,tentou intervir junto ao direto~ (que contava com uma milfeia sob seucomando) no sentido de facilitar a ce!ebra00 das festas dos Tarahumaras.56 assim seria possive! "apaziguar os animos", argumentava e!e. A posi<;:aoambigua do diretor mesti<;:o, uma "autoridade" que tinha certa simpatiape!os indios, acabou possibilitando 0 contato de Artaud com os sacerdotesdo Qgyri, --".

Mesmo antes desse encontro capital, Artaud fez uma serie deobserva<;:6es sobre 0 comportamento e as atitudes indigenas, de grandeimportarrcia para compreendermos a natureza de sua busca no Mexico eos valores nela implicados. Apesar de reconhecer que muitos hibitosnativos tinham se transformado em repeti<;:6es mecanicas de uma tradic:;:aosquecida, Artaud mostra-se preocupado em reconhecer as marCas

profundas de uma cultura ue servisse de contraponto. a mentalidade'uro12eia. Ressalta, por exemplo, 0 desdem dos indios em' rela<;:ao asomodidades e confortos que os europeus associam ao "progresso". A

"admirivel resistencia a fadiga", 0 "desprezo pela dor fisica, pelosl rmentos e pelas doen<;:as" reve!ariam a proximidade que esses homens.Iinda mantem "das for<;:as da natureza" e como podem participar dos~ 'us segredos (OC:XIX, 69).

Interessa-lhe 0 distanciamento que os nativos cultivariam em/' 'Jac:;:ao as pr6prias sensa<;:6es, sejam elas agradiveis ou desagradaveis,.I1itude que se choca frontalmente com a ideia de conforto materialI ultivada no ocidente. A indiferen<;:a quase est6ica diante das maze!as epr<lzeres ffsicos traduziria uma peculiar visao do corpo humano: "(oo.) 0

Indio Tarahumara nao atribui ao corpo 0 valor que n6s europeus Ihe

5. Algumas informa<;:6es sobre os Tarahumaras podem ser encontradas em Krickberg(1985:37,173,203).

Realizar a supremacia da mane nao e 0 mesmo que nao exercer a

vida presenre. E colocar a vida presenre no seu lugar; faze-Ia

ultrapassar diversas planas simulraneamente; experimentar a

estabilidade dos planas que fazem de urn modo vivo uma grande

forc:;a em equilibria; e, enfun, restabelecer uma grande harmonia

(OC:VIII, 219).

Antonin Artaud - Teatro e Ritual172

Artaud nao viajou ao Mexico apenas para proferir conferen i:l.\ I

escrever artigos.' Seu l~rincipal sempre foi 0 de entrar em COnl.lllIcom as popula<;:6e~genas: "(oo.) desejo escrever urn livro solH' II

assunto~-;nasrenho fiIta(J:e elementos que s6 nos locais posso obrer: 'Iritos, as cren<;:as, as festas, os costumes as tribos aut6~~lil .1

(OC:IX, 232). Seria mesmo estranho para alguem que dizia querer "(111',11

da civiliza<;:ao euro,peia", manter-se no ambito ~ univ-e-rsidade (' tilljornalisJl}o. 0 livro Les Tarahumaras foi publicado apenas em I ') I

reu~ textos produzidos ao lange de doze anos, desde artigos eSti illl

na ocasiao de sua estada ate urn poema produzido em 1948 (Tutll,!!,111/1meses antes de sua morte, e que acabou fazendo parte da enli.\,,11Iradiofonica Pour en finir avec Ie jugement de dieu.

Artaud conseguiu permissao ofi£ial para uma estada junlo ,III

fndiosT~, grupo do tronco lingufstico "nahuas" (cuja Ildlll

prin ipal era ados Astecas), habitante das montanhas do noro(',\\I' .I ..

Page 40: Anronin Artaud Teatro e Ritual

174 Antonin Artaud - Teatro <: I iIII " Antonin Artaud - Teatro e Ritual 175

o sacrificio_dessa "consci~ncia" traz, portanto, 0 mesmo semido

da impessoalLdade e da"n[o-identidade" que pautaria a rela<;:ao dos

'I'arahumaras com 0 corpo. Urn sacrifkio que apagaria as marcas

distintivas pel~ quai~ 6guramos urn "rosto", regiao corporal que tende a-'oncentrar os caracteres que atribuimos a individualidade. Nao .If. urn

rosto fixado 0 que Artaud v~ no semblante indigena: "os sentimentos que

irradiava passavam-lhe urn ap6s 0 outro p~o~~, e os que se liam niioeram manifistamente os seus; nao se apropriava deles, ja nao se identificava

com aquilo que e para n6s emo<;:ao pessoal (... )" (idem:15; grifos do

autor). Os sentimentos e estados mentais fluiriam pelo'rost como sobre

as aguas de urn rio, sem se sedimentarem. Ja no rosto du-tiomem branco,

que s~ constr6i como i~idualidade,haveria uma "incuba<;:ao fulgurante

imediata", processo veloz e quase imperceptive!, que faz nascer a cada

instante 0 sentido e a imagem de urn "eu" que se assegura de si. Entre os

Tarahumaras nao haveria 0 culta de uma subjetividade que se ancora e se

constr6i pela circunsc~T~ao de estado~ 2si~9-fis.icos geradores deidentifica<;:ao. Principalmente no caso dos sacerdotes e nativos mais~ !

comprometidos com a a tra~i ao e~piritual, observa-se uma busca continua Ipela libe~9 do drculo fechado da: individualidade, atraves dos ritos e

praticas que propotcionariam a ime'rsa~- num estado nao maie

condicionado pelos Iimites 4<:> "~u".

Attaud se debate, ao longo dos textos que comp6em LesTarahumaras, com os termos que usa para designar essa experiencia("infinito", "ilimitado", "incriado"), assumindo por vezes 0 vocabulario

da mistica c~-que s~ra depois renegado, ap6s sua saida de Rodez.

Tais dilemas ~xpressam a violenta crise espirirual que ele enfrenrara, a~ .----.

partir de sua prisao na Irlanda, em 1937, inaugurando urn longo periodo

de interna 6es psiguiatricas. De qualquer modo, suas descri<;:6es tornam

claras as diferen<;:as da experi~nciaque tern em mente em relas;ao amaneira

de se pensar_Q, Jlimitad~', tipica do pensamento classico europeu,

descrito R'or~caultI57,_pmque diferentes ordens de realidade podem

sempre ser e-evad-as-e-~dobradas ate 0 "infinito". 0 "infinito" analisado

por ~!!l.t e feito da composi<;:ao das fo,.£<;:as do hom:,m e ga,_natureza,que sao desdobrados a partir de urn nucleo central, de uma "forma-

, "Sobre a Morte do~

.----:'"

157. Ver 0 ensaio de Delellze -987:167-179), a respeir--Hornern e 0 Super-Hornem".

atribulmos, e tern dele uma nos;ao totalmeme ourra" (OC:XIX, 15). N ,It I

se ttata de uma visao "pecaminosa" do corpo, que justificatia pr:ll i\ ,I

asceticas, ja que "para eles, 0 mal nao e 0 pecado. Para os Tarahulll,II,1 ,

nao ha pecado: 0 mal e a perda da consci~ncia" (idem:70). Ao illVI

disso, haveria 0 cultivo de uma impessoalidade na rela<;:ao COlli II

organismo: a realidade cor oral nao e j2.IT.cebida como 0 fundament() d

uma id~e. 0 corpo existe co~ uma extenon ade descolad:l d.1no<;:ao de "eu". Essa desTdentifica<;:ao permitina, ao mesmo tempo, It

aprofundar;;mo da capacidade de'perscrutar 0 organismo e de conht'l

seus misterios, sem a compulsao de fixa-Io em imagens e representa~'i,---"= -;<-.::.... - ---r

Ao mesmo tempo, tal "distanciamemo" dos tenomenos rfsi 'O!,

sensoriais nao desemboca numa dualidade do tipo "corpo-alma". ()

Tarahumaras nao deslocam seu sen~nto de identidade para tllliol~ ------~

dimensao "psiquic " da individualidade, representada pelas experien ·i I

--------- '-emocionais o~nais, que se oporiam ao corpo. Para Artaud, os indio

sabem tambem fazer "0 sacriflcio da sua consciencia", sendo nesse trab:dlw.~ "orientados pelo Peyotl" 156. MaS-que consclencia" e essa que os ritos dll

ICiguri destronarao para instaurar urn novo tipo de experiencia? Nil

explicita<;:ao de Artaud, e uma consciencia que opera de modo seletivo (',

/ muitas vezes, de forma automatica, circunscrevendo 0 campo dl'

'\ fenomenos e excluindo ourros:

Entre todas as ideias que passam na nossa cabec;:a, h<l aquelas queaceitamos e ourras que nao aceitamos. No dia em que nossaconsciencia e nosso eu se formaram, urn ritmo distintivo e umaescolha natural se estabeleceram nesse movimento incessante deincubac;:ao, obrigando nossas ideias pr6prias e s6 elas asobrenadaremno campo da consciencia, sendo 0 resto automaticamente apagado.Talvez precisemos de urn tempo para ralharmos nossos sentimentose isolarmos nossa pr6pria figura (...) (OC:IX, 17).

156. No rexto "Le Rite du Peyotl chez les Tarahumaras", escriro em 1943 no hospitalpsiquiatrico de Rodez, le·se: "(... ) a segunda coisa que me irnpressionou foi 0 indi ..(...) parecer rer feito a Deus 0 sacriHcio de sua consciencia e 0 h:ibito de ser nesse trabalhoonduzido pelo Peyotl" (OCIX, 15). Nos escriros de Rodez, a linguagem de Artalld C

cspecialrnenre rnarcada pelos termos da rnistica crista.

Page 41: Anronin Artaud Teatro e Ritual

1 8. Encontramos exemplos eloqiientes dessa mistica do "Deus seml~)fma".emSao J",I\' d I

Cruz e Mestre Eckhart, -----119. 0-;;:;;; 'ja dissemos, os-;xtos de Artaud escritos em Rodez sao forremenre marcados 11\ I"

vo 'ablilario cristao.

Deus". Para essa ideia central convergiriam todas as series de criaturas emodos de existencia. Ja em Artaud, se ha, em alguns momentos, a utilizac;:aode termos crisraos que nos aproximariam dessa perspectiva, suasreferencias, na verdade, sao ourras. Seu interesse e pela mistica cristaque desenvolve uma teologia-=gA.tQa--r;~1a fo-;'ma-Ileus cconstantem;;;:te "atacada", tendo em vista constituir a~b;;;;'ra que

permitiria uma experienCla 00 Deus-abismo 158• Sao essas formulac;:6es

\ .\ que poderiam ter alguma proximiaadecoin os "ritos de aniquilamento"

\ \ ~.dos Tarahumaras. Se Ciguri e uma "divindade", ela nao possui forma Oll

l' "rosto". Gi-gur' e ape~m n~~~~i~~I: que mascara e revela uma

~~~a, ~ e pela sua pr6pria natureza transborda ,c>S limites d:1~,i,nguagem, 'colocando-a sob extrema tensa<?

---r>articipar do ri~a~ahumaras torna-se assim 0 modo de s'

aproximar d~ ~n .su~~ady'O. O~~os indig:~ s encarnamI -D plenamente a IdeJ<I artalldl~ urn~ que -se-CUU"SfltUl co~evel~t(

fundame~de uma cultul'<!~Lemque 0 pr6prio orga~~odo homel11e reconstruido. Mas penetrar no mundo dos ritos implicaria-na passagcnlpor uma ~e de etapas preparat6rias. Artaud logo percebeu que 0 contalocom os sacerdotes do Ciguri nao seria tao facil e imediato: "C ) qUClllme abriu caminho ao Ciguri foram os sacerdotes do Turuguri.C ) QUC"1l1

preside as relac;:6es exteriores entre os homens e 0 Senhor de Todas III

CoisaJ Co Tutuguri): amizade, compaixao, esmola, fidelidade, piedalk.generosidade, trabalho" COC:IX, 11).

Desconsiderando a possivel hibridizac;:ao de "valores cristaos" ,','I

no modo de se descrever as qualidades do Senhor de TOdas as COiSIII,

r, observa-se que Artaud faz referencia a uma etapa preliminar e preparat6J'itlI do rito, nas quais sao desenvolvidas qualidades relacionadas ao control

dos impulsos egocentricos. Gener~sle, c~em, det~I).ac;:ao, n:ltlsao nesse sentido apenas qualidades "m2Iill.s", mas requisitos "tecnico~"

que preparam 0 candidato para a experienc'j; de dissoluc;:ao d,1---- ~ ~ ...----:..indivi~eque esta no c~d.o rito. Sem essa "purificac;:ao" ini 'i,d,que afrouxa os rigidos limites da individualidade, a ac;:ao do Ciguri podcl'i,1

-~""'" ::..-_.---.

160. Esse tema fascinou diversos autores pr6ximos dos slirrealiscas e cOllcemporaneos deArtalld, como George Bataille e Roger Caillois.--. ----

177Antonin Artaud - Teatro e Ritual

ser por demais devastadora. Nao se deve encarar tal processo prepal'at rioInum sentido puritano. A experiencia do sagrado nas sociedades primitivasnao pode ser enquadrada nos parametros do que entendemos pOI'

moralidade religiosa. Como demonstraram diversos autores 1GO, 0 sentidoarcaico do sagrado nao pode ser reduzido a moralizac;:ao posterior dareligiao, ja que tende a ultrapassar todas as dualidades (bern e mal, beloe feio, util e inutil, extase e terror).

Ao assinalar as duas etapas do rito tarahumara, Artaud destaca aimportancia do comportamento altruista e disciplinado, que prepara 0

candidato para penetrar em domfnios nos quais as multiplas formas deidentificac;:iio e cristaliza<;:ao do "eu" serao abaladas em s~~s. Assim,o cwtivo de qualidades como a da "generosidade", por exe~plo, ajudariama dissolver os rigidos limites de uma individualidade enclausurada. Porisso, nao se pode almejar aos "estados " prometidos pelo Ciguri sem essaatenuac;:ao inicial das tendencias contrarias ao processo:

'\ Ninguem pode ser iniciado no M6cico, quer dizer, ninguem pode

,J receber a unc;:ao dos sacerdotes do Sol e a marca imersiva e

reagregadora dos que pertencem ao Ciguri, que e rito de

aniquilarnento, se antes nao for tocado pelo gladio do velho chefe\ indio que preside apaz e aguerra (...) (OC:IX, 11),

o primi~ivo, como nao se sente distinto daquilo que cxisrc, nao \.pode cre-rque a1guma coisa exista para Ja de si meSillO e nao rem 0

Submeter-se ao gIadio e ao poder do "velho chefe" que preside arelac;:ao entre os homens e prova indispensavel, sem a qual nao hapenetrac;:ao nas experiencias mais profundas prometidas pela tradic;:ao.Os vislumbres metaffsicos que 0 rito pode desencadear sao impossfveissem 0 controle dos impulsos egocentricos, qualidade desenvolvida noconvfvio com os outros homens. Num artigo escrito sobre a artistamexicana Maria Izquierdo, Artaud ja havia tecido algumas considerac;:6esobre 0 comportamento indfgena, marcado pela "au &ncia do sentimenrode propriedade" e por urn-<>altrufsmo" que emanaria de uma eterminadapercep~aodo mundo: ~

Antonin Artaud - Teatro e Ritual176

-

Page 42: Anronin Artaud Teatro e Ritual

16J. "Quando urn indio tarahumara se julga chamado a manejar 0 ralador e distribuir a CIiIoI,

durante tres anos, pda Pascoa, vai estar uma semana na floresra" (OC:IX, 48).

Nao nos interessa a u' . r exatamente a precisao antropoI6gi(.1dessas afir"mac;:6es, mas ex licita(_~ _convicc;:6es qu'e as animam. N.I

percepc;:ao de Arta~d, 0 "ethos" primitivo, mais do que urn c6digo mol',"inculcado por uma educ~orarresultaria do cultivo de uma esp i'de "empatia" com a natureza, apoiada na sensibilidade as similaridad S '

ao destino comum de todos os seres, e numa "abertura" para fora d ..',1que pode atenuar os limites rlgidos do pr6prio eu. "Fazer 0 sacriffcio dtsi proprio e entrar na realidade murmurante" (idem:259). 0 sacriFrcioda individualidade enclausurada e a abertura para uma realidade aind,1nao codificada e nao sedimentada passaria por tais distens6es preliminal'('~'

lapidac;:6es necessarias, cultivadas nas situac;:6es mais cotidianas.Artaud chega a reconhecer em diversos eventos que cercaram S('II

contato com os Tarahumaras esse genera de "prava" - as agruras da viag('111feita a cavalo ate as montanhas, a longa espera de vinte e oito dias alpoder presenciar os rituais do Ciguri, os falsos feiticeiros que 11H'prometiam todo tipo de cura - "como se tudo aquila fizesse parte dllrito" (OC:IX, 43). Os limites do rito nao ficam assim bern assinaladm,

f·1 Suas etapas iniciais confundem-se com a propria vida que, desse modo,.Ipassa a ser vista tambem da perspectiva do ritual. 0 que se dara flO

" espayo circunscrito das cerimonias se anuncia e se prefigul'.,anteriormente, em acontecimentos que parecem confluir para uma direC;::111privilegiada. Assim como 0 Indio tarahumara entende que "e chamado .1ser um sacerdote do Ciguri", permanecendo um longo tempo na floresl.late que esta the revele os segredos necessarios para 0 born desempenhodessa funyao 161

, Artaud vai interpretando os varios acontecimentos dl'sua viagem como etapas de urn pracesso de "purificac;:ao"que 0 prepal'.1para os cerimoniais do Ciguri.

179Antonin Artaud - Teatro e Ritual

E, segundo ele, todos aqueles esforyos "nao foram em vao". Hapelo menos duas descric;:6es detalhadas de sua participac;:ao nos ritos doPeyotl, em Les Tarahumaras162

• Observamos nesses textos uma preocupayaosemelhante a~resente na abordagem do~i: apreender

dom~ aguc;:ado POSSlvel uma "li~~a",que em~na deuma r~e~~gnos.Porem, mais do que nos espetaculos ~meses,nos rituais ~a!:ahumara Art~foi u~o partIClpant"€. Em algunsmomentos parece, inclusive, que 0 ri~a senao r~lizado para elel63 •

Acrescenta-se ainda 0 fato de tratar-se de uma cerimonia na qual, num

determinado momento, inge~e_,uma poderosa plaI!ta alucin~gena.

Portanto, nao poderfamos esperar urn ;~l~to muito "sistematizado" dosacontecimentos; da mesma forma que nos textos sobre os espetaculosbalineses, Artaud nos apresentara um qua~ivo de sua experiencia,revelador de se~oprios sonhos e aspirac;:6es.

Os ritos come~ sempre ~ci.t:cunscriy~mespac;:o, urn / /"camRo ritual". De forma circular ou semi-circular, esse campo destaca- tse do~cotidianocomo lugar em que se dara a intensificac;:ao da V 'experiencia-d~ado. A determinayao das direc;:6es e fundamental na lsua constituic;:ao, e nesse sentido a trajetoria solar desempenharaimportante papel. 0 rito e "uma danc;:a apertad~ entre" dois sois": 0 "solque desce" e "0 sol que sobe". Crepusculo e aurora, oeste e leste, sao ospontos cardeais que definem as areas e momentos cruciais, do infcio edo fim da ac;:ao. E se 0 sol e uma referencia central, e de seudesaparecimento que 0 rito tratata. "Rit~ negro", da "morte eterna dosol':~~lebrado durante toda uma .noite, 0 Ciguri_noS"Con-d"uz a umaimersao na escuriCfao. E, para Artaud, esse mergulho no escuro se darainicialmente pe[o lado do mal e da doenc;:a: "pois essa penetrac;:ao nadoenc;:a e uma viagem, uma descida para RETORNAR AVIDA" (OC:IX,45; grifos do autor).

162. E.stas descri~6es aparecem nos capitulos Le Rite du Peyotl chez les Tal'ahumaras (OC:IX, ~ \9-32), escrito no ano de 1943 em Rodez, e La Danse du Peyotl (OC:IX, 40-50), que [ I'data de seu retorno 11 Paris, em 1937,

163. Em "La Danse du Peyot!' le-se: "Dez cruzes no cfrculo e dez espelhos, Uma viga comtres [eiticeil'os em cima, Quatl'o servidores (dois Machos e duas femeas). 0 dan~arino

epiletico e eu mesmo, para quem faziam 0 rito" (OC:IX, 44; grifos do autor),

Antonin Artaud - Teatro e Ri 111t11

sentimento da propriedade; por sua VeL, as coisas que existem naopodem ter propriedades que realmente Ihes perten<;:arn, pois estaspatticiparn de tudo 0 que existe; e assim que 0 sentimento do etemoaltru{smo das coisas nos conduz a uma especie de transmuta<;:aoalqu{mica, ate 0 sentimento da unidade (OC:VIII, 258-259).

178

Page 43: Anronin Artaud Teatro e Ritual

180 Antonin Artaud - Teatro e Ritual Antonin Artaud - Teatro e Ritual 181

Vejamos como nas ~esGf.i-<;:6es retornam varias tematica.\associadas ao '~~~...d.a-eroeldade". A "doenc;:a" nao e simplesmente U III

mal fisico ou psfquico q;;-acomete as pessoas individualmente, mas aexpressao de urn conflito originario, referente a propria constituic;:ao domundo, uma desordem cosmica que se espraia par multiplos nfveis d;1realidade, e que cabeao homem remediar. Desse ponto de vista, 0 rito.para ser eficaz, deve presentificar materialmente 0 conflito (nos cOfjJos.gestos;ob]etos etc.), e,-ao mesmo remp-;, lidar com 0 sentid~ mais abstraloe invisfveIdo que esti em jogo. Os danc;:arinos, por exemplo, que OCUp<l1llo centro do drculo na primeir~devem ser vistos comop~sso-;-s que represenram-uffi "pape!" numa his~da. Naquck­rm:mre1TI:o, eles ef~e-encarnam princlplOs abstrafOs: "pela formade ficarem urn na [rente clo outro, sobtetudo--ficar cada qual no sell

espac;:o, como se estl~~_<:fll_~lll-l?QIsa~-Sie vazio e frac;:6es do inflnito.compreendia-se que i.LnaQ....§~rr~tava_~li__~(:..~omem e'mulher, mas d .d.9i~ prindpios (...)" (OC:IX, 21). --

o campo ritual nao se constitui apenas como uma area homogenc;1na qual se desenvolve uma " e If.esentac;:ao'' que ilus~ uma visao cit·mundo. Deve ser urn es~c;:o " eito de frestas e ass~~~ara

o~ pIanos e modos de percepc;:ao, deslocando-nos do cotidiano t·

projetando-nos num rama c6Srci"~~. 0 participa~re Artaud ~-convocadoa partlcipar da ac;:ao"de'~ formas. Senta-se num tronco petto dodrculo, e levado ate as cruzes onde e aspergido com agua, e recebe <10

final reduzidas porc;:6es de Peyotl. Tudo que se passa "exteriormenre",seja 0 desempenho dos gestos e dos passos, seja a entonac;:ao dos cantose os deslocamentos do espac;:o, parecem ter como proposito a mobilizac;:50de uma profunda experiencia interior que ressoe por todo 0 organismo.

Mesmo submerso na intensidade do acontecimento, Artaud lutapara tentar compreender os modos de articulac;:ao dos diversos pIanos deexpressao. Por exemplo, os gestos dos danc;:arinos muitas vezes parecelllcorresponder aos toques que 0 sacerdote faz no proprio figado e bac;:o.Ffgado e bac;:o seriam as express6es organicas dos mesmo prindpios,

masculino e feminino, encarnados pelos danc;:arinos. Dos sacerdorcsfeiticeiros parecem tambem provir comandos dos ritmos e das fases cit'desenvolvimento das ac;:6es. Atraves das batidas fte bast6es contra 0 chao.

·Ics marcam as ~ssagens de uma etapa para outra, na evol~_dadanc;:;!.Artaud tenta ainda apreender as relac;:6es numericas e geometric;,~

presentes nos passos, nos gestos, na disposic;:ao dos objetos, nos desenhosque os sacerdotes trac;:am no ar. Sao triangulos, drculos, sinais de infinirotrac;:ados pelos pes dos danc;:arinos e pelos bast6es dos feiticeiros. Sao dezcruzes postadas simetricamente no canto leste do drculo, nas quais saoamarrados dez espelhos. Sao doze os tempos que dividem essa travessiaentre os dois sois. Insinua-se uma matematica e uma geometria imanenteaorganizac;:ao do rito, que Artaud pressente mas nao consegue explicitartotalmente. Talvez a im~~!E mais eloquel1 te dessa profusao de sigD9-sseja uma visao provocada em'Attaud pelo propno "Pey-mI: -

--.c:::;:7 ~

o que me saia do ba<;:o e do figado vinha em forma de letras de urnantiqufssimo e misterioso a1fabeto mastigado por urna boca enormemas assustadoramente pressionada, orgulhosa, iLegivel, ciosa de suainvisibilidade; sinais varridos em todos os sentidos do espa<;:o, aomesmo tempo em que eu tinha a sensa<;:ao de subir atraves dele (...)(OC:IX, 26; grifo do autor).

Vma linguagem murmurante que se desentranha do proprio corpo,feita de partkulas de signos, mal safdos do invisivel, que se propagam noespac;:o como urn enxame. 0 rito parece conduzir Artaud para alga quefoi motivo de intensas buscas, desde seu periodo surrealista ate as diversastentativas no campo teatral: 0 vislumbre da linguagem em estado nascente, Ia visao da lingua "mitica" que ainda nao se separou completamente da .}vida para rornar-se a "palavra soprada" (como nos diz Derrida), essa I

\.. .palavra que nos aparta de uma experiencia primeira, nos desapossa dopensamento como forc;:a que ainda nao se formalizou. Manter-se nesseintersticio, nessa zona em que se da a passagem do informe para asfigurac;:6es iniciais do pensamento e da linguagem, seria recuperar umaespecie de integridade. Depois de tal experiencia, pode-se voltar de ummodo mais livre ao mundo dos habitos e costumes cotidianos, mundodas formas estaveis e sedimentadas, pois teriamos aprendido a transitarsem medo nos limbos onde tais formac;:6es sao geradas. 0 rito de Ciguriajudaria a "fixar" a consciencia nesses intersrkios, tornando-nos capazesde habita-Ios, suportando a dissoluc;:ao de nossos apoios habituais.

/Essa operac;:ao singular de "fixac;:ao" da consciencia no seu pontO

de origem, que nos Faria recobrar 0 sentido profundo do "si mesmo",op6e-se frontalmente as experiencias subseqiientes de Artaud nos hospitais Ipsiquiatricos: l

Page 44: Anronin Artaud Teatro e Ritual

Os asilos e 0 mundo dos ritos sao os dois extremos do drama da~

cura d!:-..Ar~d. Nao por acaso, ao sair de Rodez, ele compara osmarilc6mios a "centros de magia negra", colocando-os no polo oposto ao

que os feiticeiros tarahumaras representam. Se certos ramos da psiquiatria,, . ~ces da~&-crapulosamagia", aplicam terapias de

eletrochoque para tornarem seus pacientes "esvaziados e disponiveis", os

ritos representariam a possibilidade contraria, da restituis:ao de podercs

originarios do homem. A eloquencia e a vjolencia d.ess.es_discursos

reafirmam as disposis:6es polTtlcas da atuas:ao de Artaud. No final de sua

(\ vida, talvez- mais do que nunca, ele invectivara contra os modos de

escravizas:ao da consciencia desenvolvidos pelo mundo contemporaneo.

\A denuncia dos hospitais psiquiatricos e da violencia contra os "loucos",

\

acrescenta-se 0 alerta contra os procedimentos laboratoriais de controle

da vida, que aparece na sua ultima emissao radiofonica. Pode-se dizer

ique, no final dos anos 40, Artaud ja antevia com muita perspicacia 0

desenvolvim~o as novas estrategias de dominas:ao das consciencias cdaquilo qu ele~arade "sociedade dq controle". Por isso ele sc

tornou uma eferencia-;ao importante para os pensadores contemporineos

preocupados em discutir os processos de produs:ao das subjetividades no

capitalismo pos-moderno.

Ao mesmo tempo, 0 ~nunca deixou de ser para Artaud urninstrumento privilegiado de "g~"~-0 abandonado-dos pakos

tradicionais re res~uma radicalizas:ao da rocura de um modo de

as:ao suficienteme~~ficaz, capaz de atingir multiplos niveis de

experieJ!,cia e d~rar.19.rS:.'ls tr~madoras do homem. Se os ritosindfgen~ nao podem ser simplesmente transpostos~_palcoou para~ - --.----

1 ultura ocidental, muitas coisas deles po em ,ser-ap.teendidas. Em relas;ao, I s, Artau~recia primei~ent~ interessado em encontrar uma "cura"

p, ra si pro rio. Nao num sentidorr;:divi~sta,mas~ conquista de

um nov~a+tida,que possibilitasse um aprofundamento de sua /

atuas:a~ndo. Se sao~~nuas e ineficazes as tentatlvas de /7-transposic;:ao desses ritoLpara urn palco, visto que as condic;:6es que eles LJ _demandam sao radi;;}mente distintas, resta 0 testemunho desse artistaque sentiu ser necessario 0 ap~ofundament;;-de ;:;-m trabalho interior de-- ------...uma certa n~za, a principio descompromissado com 0 mundo do

esp~tacu, para que se possa ~ovar 0 proprio sentido do~o.. -----"

oc' . teo Outros depois dele puderam levar a cabo algo des;e-projeto, deum modo talvez menos sofrido.

183Antonin Artaud - Teatro e RitualAntoninArtaud-Teatro e Ritual

Cada ap1ica<;:ao de eletrochoques me mergulhava num terror quedurava urn nlimero cada vex maior de horas. E sempre que eu viaaproximar-se outra sessao nao podia futtar-me ao desespero, potnao ignotar que iria uma vex mais perder a consciencia ever-me urndia inteiro sufocado no meio de mim pr6prio sem conseguirreconhecer-me, sabendo muiro bern que estava em alguma partemas s6 0 diabo poderia dizer onde, como se eu estivesse morto

(OC:IX, 30; grifo do aurar).

182