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No mar da Criméia Tchekhov I As trevas tornam-se cada vez mais densas. A noite desce. Gusief, antigo soldado, agora em baixa definitiva, incorpora-se na sua rede e diz baixinho: — Escuta, Pavel Ivanytch: um soldado me contou que o barco dele chocou-se, no Mar da China, com um peixe que era do tamanho de uma montanha. Será verdade? Pavel Ivanytch permanece calado, como se não tivesse ouvido nada. O silêncio volta a reinar. O vento zune por entre as enxárcias. As máquinas, as ondas e as redes produzem monótono ruído. Mas quem tem o ouvido habituado há já muito tempo, quase não percebe dir-se-ia, mesmo, que tudo ao redor está mergulhado em profundo sono. O tédio gravita sobre os passageiros que se encontram na enfermaria. Dois soldados e um marinheiro voltam doentes da guerra. Passaram o dia inteiro jogando e agora, cansados, deitam-se e dormem. O mar torna-se um tanto agitado. A rede na qual Gusief está deitado ora sobe, ora desce, lentamente, como um peito arquejante. Algo fez ruído ao cair ao solo; talvez uma caneca. — O vento partiu as suas correntes e está a correr mar — diz Gusief prestando atenção aos rumores que vêm do convés. Desta vez, Pavel Ivanytch tosse e exclama com voz irritada: — Meu Deus! Que idiota que você é! Quando não se põe a dizer que um barco se despedaçou de encontro a um peixe, diz que o vento partiu as correntes, como se fosse uma de carne e osso... — Não sou eu quem diz isso, são as pessoas de bem. — São todos uns ignorantes como você. É preciso saber ter a cabeça no lugar e não acreditar em todas as bobagens que se contam pelo mundo. É preciso refletir bem, antes de aceitar uma idéia alheia. Pavel Ivanytch é sensível ao enjôo. Quando o navio começa a jogar, fica de mau humor e pôr qualquer coisa se irrita. Gusief não compreende pôr que o vizinho de enfermaria se enerva tanto. Não há nada de extraordinário no fato de um barco se despedaçar de encontro a um peixe, havendo, como há, peixes maiores do que montanhas e de pele mais

Anton Tchekhov/Chéjov [Um caso médico & outros contos]

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Literatura russa, contos, short stories, cuentos, siglo 19

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No mar da Criméia

Tchekhov

I

As trevas tornam-se cada vez mais densas. A noite desce. Gusief, antigo soldado, agora em baixa definitiva, incorpora-se na sua rede e diz baixinho:

— Escuta, Pavel Ivanytch: um soldado me contou que o barco dele chocou-se, no Mar da China, com um peixe que era do tamanho de uma montanha. Será verdade?

Pavel Ivanytch permanece calado, como se não tivesse ouvido nada.

O silêncio volta a reinar. O vento zune por entre as enxárcias. As máquinas, as ondas e as redes produzem monótono ruído. Mas quem tem o ouvido habituado há já muito tempo, quase não percebe dir-se-ia, mesmo, que tudo ao redor está mergulhado em profundo sono.

O tédio gravita sobre os passageiros que se encontram na enfermaria. Dois soldados e um marinheiro voltam doentes da guerra. Passaram o dia inteiro jogando e agora, cansados, deitam-se e dormem.

O mar torna-se um tanto agitado. A rede na qual Gusief está deitado ora sobe, ora desce, lentamente, como um peito arquejante. Algo fez ruído ao cair ao solo; talvez uma caneca.

— O vento partiu as suas correntes e está a correr mar — diz Gusief prestando atenção aos rumores que vêm do convés.

Desta vez, Pavel Ivanytch tosse e exclama com voz irritada:

— Meu Deus! Que idiota que você é! Quando não se põe a dizer que um barco se despedaçou de encontro a um peixe, diz que o vento partiu as correntes, como se fosse uma de carne e osso...

— Não sou eu quem diz isso, são as pessoas de bem.

— São todos uns ignorantes como você. É preciso saber ter a cabeça no lugar e não acreditar em todas as bobagens que se contam pelo mundo. É preciso refletir bem, antes de aceitar uma idéia alheia.

Pavel Ivanytch é sensível ao enjôo. Quando o navio começa a jogar, fica de mau humor e pôr qualquer coisa se irrita. Gusief não compreende pôr que o vizinho de enfermaria se enerva tanto. Não há nada de extraordinário no fato de um barco se despedaçar de encontro a um peixe, havendo, como há, peixes maiores do que montanhas e de pele mais

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dura que o gelo. É muito natural, também, que o vento rompa as suas cadeias. Há muito tempo contaram a Gusief que lá longe, no fim do mundo, há enormes muralhas de pedra, às quais estão presos os ventos; às vezes eles partem as correntes e lançam-se através dos mares, uivando como cães loucos. Por outra parte, se não fosse verdade que estão acorrentados, onde se escondem quando o mar está calmo?

Gusief fica a pensar longamente nos peixes do tamanho de montanhas, e nas pesadas cadeias recobertas de ferrugem. Depois aborrece-se disso e passa a pensar na sua aldeia, para onde, agora, regressa, depois de cinco anos de serviço no Extremo Oriente. Sua imaginação evoca um vasto dique, recoberto de gelo e de neve. Numa das suas margens ergue-se uma fábrica de louças, construída com tijolos vermelhos, de cuja alta chaminé saem negros rolos de fumaça. Na margem oposta estão espalhadas as casas da aldeia.

Gusief imagina que está vendo sua casa. Seu irmão Alexey, que na sua ausência se tornou o chefe da família, sai do pátio num trenó, acompanhado de seus dois filhos, Vânia e Akulka, ambos com grossas botas; Alexey está um tanto bêbedo. Vânia ri, Akulka traz um xale que quase lhe oculta o rosto.

— Pobres crianças, que frio devem sentir! — pensa Gusief. — Virgem Santa, protegei os coitadinhos!

O marinheiro estendido ao lado de Gusief tem o sono muito agitado e começa a sonhar em voz alta.

— É preciso mandar pôr meia-sola nas botas — exclama. — Se não é melhor jogá-las fora.

A aldeia natal desaparece da mente de Gusief, seus pensamentos tornam-se desconexos. Vê a seguir uma enorme cabeça de boi, sem olhos; trenós, cavalos envoltos num espesso halo... Recorda, porém, embora vagamente, ter visto os seus, e isso lhe provoca uma alegria tão intensa que ele estremece da cabeça aos pés.

— Vi a minha gente! Vi a minha gente! — murmura sonhando, com os olhos bem fechados.

No mesmo instante incorpora-se bruscamente, abre os olhos e pede um copo de água. Depois de beber, torna-se a deitar e os sonhos retornam.

E assim até raiar o sol.

II

A escuridão vai diminuindo e a cabina ilumina-se. A princípio vê-se um círculo azul; é o postigo. Logo Gusief começa a distinguir o vizinho de maca, Pavel Ivanytch, o qual dorme sentado porque estendido sufocaria. Tem o semblante acinzentado, o nariz pontiagudo e os olhos muito aumentados pela horrenda magreza, vincadas as frontes,

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melenas longas... Pelo aspecto não se lhe adivinharia a categoria: intelectual, negociante ou clérigo? Pelas linhas do semblante e pela guedelha, parece um noviço de qualquer convento; porém, quando fala, verifica-se que não é frade. Aniquilado pela tosse, pelo calor e pela doença, respira a muito custo e para falar precisa fazer grande esforço. Notando que Gusief o observa, volve a cabeça e diz:

— Começo a compreender... Agora, sim, compreendo tudo, perfeitamente bem!

— Como, Pavel Ivanytch?

— Olhe... Parecia-me estranho que vocês, tão doentes, estivessem aqui, num barco em terríveis condições higiênicas, respirando numa atmosfera impura, exposto ao enjôo, ameaçados a todo momento pela morte. Agora já não estranho isso. É uma peça de mau gosto que os médicos vos pregaram. Meteram vocês neste barco para se livrarem de vocês. Estavam fartos de vocês. Além disso, não lhes interessa tratar de doentes dessa laia, pois vocês não pagam. E não queriam que morressem no hospital, pois isso sempre causa má impressão. Para se desembaraçarem de vocês, bastava, em primeiro lugar, não possuir consciência nem sentir amor à humanidade; depois, é só enganar o comandante do navio. Quanto ao primeiro ponto, nem é preciso falar; somos, a esse respeito, artistas; e, com alguma prática, o segundo dá sempre bom resultado. Ninguém nota a falta de quatro ou cinco doentes entre quatrocentos soldados e marinheiros em perfeita saúde. Embarcados, vocês são postos no meio dos saudáveis; contados de afogadilho e na confusão da partida, nada se vê de anormal. Inicia-se a viagem, percebem, como é natural, que todos vocês são paralíticos e tuberculosos de último grau, a se arrastarem....

Gusief não compreende Pavel Ivanytch . Supondo que Pavel está desgostoso com ele, diz para desculpar-se:

— Não tenho culpa. Deixei que me embarcassem alegrando-me muito pelo fato de poder voltar para casa.

— Oh! É revoltante — continuou Pavel Ivanytch. — Principalmente porque eles bem sabem que vocês não podem suportar esta longa travessia. Admitamos que vocês cheguem até o Oceano Índico. E depois? ... É terrível pensar nisso!... Eis a recompensa de cinco anos de fiel e irrepreensível serviço!

Pavel Ivanytch, com expressão de ira e voz sufocada, diz:

— Os jornais deveriam contar essas sujeiras! Seria uma boa lição para esses canalhas!

Os dois soldados e o marinheiro doente acordaram e puseram-se a jogar baralho.

O marinheiro está meio sentado na maca; os soldados, perto dela, sobre a ponta, em posição incômoda. Um tem o braço enfaixado e o pulso envolto num verdadeiro monte de pensos, de tal maneira que se vale da flexão de cotovelo para segurar as cartas.

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O barco baloiça violentamente, o que impede que a gente se levante para tomar chá.

— Você era ordenança? — pergunta Pavel Ivanytch a Gusief.

— Justamente.

— Meu Deus! Meu Deus! — levanta-se Pavel Ivanytch. — Arrancar um homem do seu ninho, obrigá-lo a fazer quinze mil verstas e apanhar a tuberculose, para... para que pergunto-lhes eu?... Para dele fazer a ordenança do capitão Kopeikine ou de um porta-bandeira Durka... Haverá lógica nisso?

— O trabalho não é difícil, Pavel Ivanytch. É só levantar cedo, engraxar as botas, arrumar os quartos, e nada mais. O meu oficial ficava a traçar projetos o dia todo, eu podia dispor do meu tempo, podia ler, passear, conversar com os amigos. Francamente, não posso queixar-me.

— Sim, de fato; o tenente esboçava plantas e você ficava a se aborrecer a quinze mil verstas da sua terra, desperdiçando os melhores anos da sua vida. Traçar plantas!... Não se trata de plantas mas da vida humana, meu caro. E o homem só tem uma vida; devemos poupá-la.

— Realmente, é verdade, Pavel Ivanytch — continua Gusief que mal entende o raciocínio do vizinho. — Um pobre diabo não é bem tratado em parte alguma, nem em casa, nem no serviço. Mas se a gente cumpre sua obrigação, como eu, não tem nada e temer, que necessidade haverá de maltratá-los? Os chefes são pessoas instruídas e compreendem as coisas... Eu, em cinco anos, nunca estive preso e, quanto a ser espancado... não o fui — se Deus não me tolhe a memória — senão uma vez...

— E por quê?

— Por uma rixa. Tenho a mão pesada, Pavel Ivanytch. Quatro chineses, se bem me lembro, entraram no pátio da casa. Acho que procuravam trabalho. Pois bem, para passar o tempo comecei a dar neles. O nariz de um dos réprobos sangrou... O tenente, que tudo vira da janela, me deu uma boa lição.

— Meu Deus! Que imbecil que você é! — murmura Pavel Ivanytch. — Você não compreende nada!

Completamente aniquilado pelo balanço do barco, ele fecha os olhos. A cabeça ora se lhe inclina para trás, ora sobre o peito. Tosse cada vez mais. Depois de curta pausa, diz:

— Por que é que você espancou aqueles coitados?

— À toa. Estava muito aborrecido.

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Reina de novo o silêncio. Os dois soldados e o marinheiro passam horas e horas a jogar, por entre blasfêmias e insultos. Mas as oscilações acabam por fatigá-los. Acabam a partida e deitam-se. Mal fecha os olhos, Gusief revê o grande lago, a fábrica, a aldeia... sua aldeia, com seu irmão e seus sobrinhos. Vânia recomeça a rir e a tola da Akulka, pondo as pernas fora do trenó, exclama: “Olhe, ó gente, as minhas botas são novinhas e não como as de Vânia!”

— Ela vai para os seis anos — delira Gusief — e ainda não tem juízo. Em vez de mostrar as botas, devia trazer água para o titio soldado! Depois, dar-lhe-ei bombons.

Depois avista seu amigo Andron, pederneira a tiracolo. Carrega uma lebre que matou. Issaitchik, judeu, segue-o a propor-lhe a troca da lebre por um pedaço de sabão. Ali, à porta da cabana, há uma novilha negra. Eis que surge Domna, sua esposa, que costura uma camisa e chora. Por que chora ela?... E eis, de novo, a cabeça de boi sem olhos e a fumaça preta.

Adormece, mas um ruído no tombadilho o desperta. Alguém, lá em cima, está a gritar; acorrem diversos marinheiros. Parece que alguma coisa enorme e pesada foi levada à ponte ou, então, aconteceu qualquer coisa inesperada. Acorrem mais homens... Terá sucedido alguma desgraça?! Gusief ergue a cabeça, espreita e vê que os dois soldados e o marinheiro recomeçaram o jogo. Pavel Ivanytch, sentado, move os lábios como se quisesse falar; mas não diz nada. Todos ofegam, sufocam, têm sede; o calor continua. Gusief tem a garganta a arder, mas a água morna causa-lhe repugnância. E o barco continua a dançar.

De repente, algo de anormal acontece a um dos soldados que jogam. Ele confunde o naipe de copas com o de ouros, erra na conta e deixa cair as cartas. Depois, olha em torno de si com um sorriso hediondamente alvar.

— Voltarei logo, camaradas... Esperem... eu... eu... — e estende-se no pavimento.

Os companheiros interrogam-no, estupefatos; ele não responde.

— Stepan! Sente-se mal? — pergunta-lhe o soldado do braço ferido. — Hein? Quer que chame o padre, sim?

— Stepan, beba água, beba, camarada, beba! — diz-lhe o marinheiro.

— Mas por que você lhe empurra a caneca à boca? — exclama Gusief, irritado. — Não vês, então, seu idiota?...

— Como?...

— “Como?..” — repete Gusief arremedando; — ele já não respira... está morto. E ainda perguntas: “Como?” Que idiota, meu Deus!

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III

Cessa o baloiço. Pavel Ivanytch está de novo alegre, não se irrita mais por qualquer coisa. Tornou-se até fanfarrão, escarnecedor. Tem o ar de quem deseja contar uma história tão engraçada que provoque dor de barriga.

Pelo postigo aberto, uma brisa suave passa sobre Pavel Ivanytch. Ouvem-se vozes; os remos ferem a água compassadamente... Sob o postigo, alguém regouga; talvez um chinês que se tenha aproximado num bote.

— Sim — diz Pavel Ivanytch, sorrindo zombeteiro — eis-nos no ancoradouro. Um mês mais, e estaremos na Rússia. Sim, cavalheiros, estamos chegando. Os soldados são muito acatados, sim senhor. Chegando em Odessa, seguirei para Carcov, onde tenho um amigo escritor a quem direi: “Vamos, amigo, deixa pôr um minuto os teus escabrosos temas relacionados com mulheres e com amor; deixa de cantar as belezas da natureza e procura divulgar as sujeiras dos seres de duas patas. Trago-te esplêndidos temas...”

Depois de ter pensado um minuto em qualquer coisa, torna:

— Gusief, você sabe como os enganei?

— A quem?

— Aos que mandam no navio...Compreende? Na embarcação não há senão duas classes: a primeira e a terceira. De terceira só viajam os mujiks, também chamados broncos. Se você tiver um jaquetão e um certo ar de cavalheiro ou de burguês, é obrigado a viajar de primeira. Dir-lhe-ão: “ Arranje-se como puder, mas deve pagar quinhentos rublos”. “Qual a razão desse regulamento? Quererá o senhor elevar com isso o prestígio dos intelectuais russos?” “Absolutamente, não. Não lhe permitimos viajar de terceira pelo simples motivo de que não convém às pessoas distintas; passa-se bem mal e é repugnante”. “Muito agradecido, prezado senhor, pela sua solicitude para com as pessoas distintas! Mas, como quer que seja, não disponho de quinhentos rublos. Não fiz negócios escuros, não roubei o Estado, não exerci contrabando, não fiz morrer ninguém sob o açoite. Como posso ser rico? Ora, pense bem. Tenho eu o direito de estabelecer na primeira classe e, sobretudo, insinuar-me entre os intelectuais russos?” — Dado, porém que não é possível vencê-los pelo raciocínio, recorre-se a um ardil. Visto o capote e calço as botas altas; tomando um ar de bêbedo dirijo-me ao bilheteiro:

— Excelência, desejo uma passagem de terceira e que Deus o abençoe.

— Qual é a sua profissão? — pergunta-me o funcionário.

— Sou do clero. Meu pai foi um “pope” honesto. Muito sofreu pôr dizer sempre a verdade aos poderosos deste mundo. Eu também sempre digo a verdade...

Pavel Ivanytch cansa-se de falar; respira com dificuldade. Mas prossegue:

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— Sim, sempre digo a verdade sem rebuço... Não temo coisa alguma nem ninguém. Nesse ponto, há entre mim e vocês considerável diferença. Vocês não enxergam nada. Ignorantes, cegos, esmaga-os o peso da própria inferioridade. Acreditam que o vento está amarrado com correntes e outras bobagens. Vocês beijam a mão que vos fere. Um espertalhão qualquer, vestido de peliça, rouba tudo que vocês têm e depois vos atira quinze kopeks de gorjeta, e vocês dizem: — “Dê-me, Excelência, a honra de lhe beijar a mão”. Párias, asquerosos... Quanto a mim, sou bem diferente. Levo uma vida consciente. Vejo tudo, como a águia ou o abutre que se eleva muito acima da terra. Compreendo tudo. Sou a encarnação do protesto. Protesto contra o arbitrário, contra o beato hipócrita, contra os suínos triunfantes. E sou indomável. Nem mesmo a Inquisição espanhola me obrigaria a calar. Sim... Se me arrancassem a língua, minha mímica protestaria. Lancem-me num cubículo, tranquem a porta: bradarei tão fortemente, que serei ouvido a uma versta de distância; ou então, me deixarei morrer de fome para que a lôbrega consciência dos carrascos sinta um peso a mais. Todos os conhecidos me dizem: — “Pavel Ivanytch, na verdade você é insuportável!” Mas eu me orgulho dessa reputação. Enfim, que me matem! Minha sombra voltará aterradoramente. Prestei três anos de serviço no Extremo Oriente, e lá deixei uma reputação para cem, porque me incompatibilizei com todo mundo. Os amigos escrevem-me: “Não apareça!”, pois conhecem meu caráter belicoso. E eu embarco! e volto a despeito dos seus avisos!... Sim, essa é a vida que eu compreendo. Isso sim é que se pode chamar a vida.

Gusief deixa de escutar e olha através do postigo. Uma canoa oscila sobre a água transparente, cor de turquesa pálida, banhada em cheio pelo sol deslumbrante e abrasador. Nela, de pé e nus, alguns chineses oferecem gaiolas de canários e gritam:

— Canta bem! Canta muito bem!

Outra canoa bate contra a primeira: passa uma embarcaçãozinha a vapor. E eis ainda outra canoa, em que se vê um gordo chinês, que come arroz com pauzinhos. A água gorgulha preguiçosamente; há gaivotas brancas voando com indolência.

— Oh! aquele gorducho... — pensa Gusief. — Seria gozado dar uns sopapos nesse animal de cara amarela.

Dormindo em pé, aparece-lhe que toda a natureza cabeceia com sono. O tempo corre veloz. O dia se escoa sem que se dê pôr isso e do mesmo modo a noite vem chegando...

O barco desamarrou e prossegue para destino ignorado.

IV

Passaram-se os dias. Pavel Ivanytch já não está sentado, mas curvado. Tem os olhos fechados e o nariz afinou-se ainda mais.

— Pavel Ivanytch! — grita-lhe Gusief. — Ouviu, Pavel Ivanytch?

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— Como é? Isso vai ou não vai?

— Assim, assim... — responde Pavel Ivanytch, arquejante. — Ao contrário, vai até melhor... Olhe, passo até deitado... A coisa vai melhorando.

— Então, que Deus seja louvado!

— Sim, estou melhor. Quando me comparo a vocês, sinto compaixão...Tenho os pulmões fortes; a tosse me vem do estômago... Sou capaz de suportar o inferno. Por que falar no mar Vermelho? Além do mais, considera a minha doença e os remédios do ponto de vista crítico... e vocês são uns pobres diabos... É terrível para vocês... muito, muito terrível. Tenho verdadeira pena de vocês.

As ondas já não fazem o barco jogar, mas a atmosfera é cálida e pesada como um barco a vapor. Gusief apóia a cabeça nos joelhos e põe-se a pensar na sua aldeia. Com o calor que faz, é um prazer pensar na aldeia, completamente coberta de neve nesta época do ano. Sonha que está passeando de “ troika “ através dos campos gelados. Os cavalos espantados sem motivo, correm como loucos e atravessam o dique num único salto. Os camponeses procuram detê-los, mas Gusief pouco se importa. Sente-se possuído pôr intensa alegria. É com prazer que recebe no rosto e nas mãos a glacial carícia do vento, e a neve a lhe cair pelo cabelo, pelo pescoço e pelo peito o imunda de felicidade.

Não se sente menos contente quando, em dado momento, o carro vira, atirando-o na neve. Levanta-se satisfeito, coberto de neve da cabeça aos pés, e fica a se sacudir entre gostosas gargalhadas. Ao redor, os camponeses também soltam risadas e os cachorros, nervosos, ladram. Realmente formidável.

Pavel Ivanytch entreabre um olho, fita Gusief e pergunta:

— Teu oficial roubava?

— Não sei Pavel Ivanytch. Essas coisas não são de nossa conta.

Volta a reinar profundo silêncio. Gusief mergulhou de novo nos seus sonhos. De quando em quando toma um pouco de água. O calor é tão forte que ele não tem vontade nenhuma de falar nem de ouvir, e teme que a qualquer momento alguém lhe dirija a palavra.

Uma, duas horas transcorrem. À tarde sucede a noite; mas Gusief parece não ter notado nada; continua na mesma posição, a fronte nos joelhos, a pensar na sua aldeia, no frio, na neve.

Ouvem-se passos, vozes. Ao cabo de cinco minutos tudo volta a cair no silêncio.

— Que a terra lhe seja leve! — murmura o soldado do braço ferido. — Era um homem que deixava a gente nervoso.

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— Quem? — pergunta Gusief esfregando os olhos. — De quem é que estás falando?

— Ora, de quem? De Pavel Ivanytch! Morreu. Levaram-no para cima.

— Como? — murmura Gusief como se não compreendesse. Fica longo tempo a meditar e por fim, com um suspiro, diz: — Então tudo se acabou! Que Deus o perdoe!

— O que é que você acha? — pergunta o soldado. — Você acha que ele será admitido no Paraíso?

— Ele quem?

— Pavel Ivanytch, homem!

— Ah!... Creio que sim. Sofreu muito. Além disso, era do clero. Seu pai era “pope” e rogará a Deus pelo filho.

O soldado senta-se na cama de Gusief e olhando-o fixamente, diz em voz baixa:

— Também você, Gusief, não há de viver muito. Não voltará a ver a sua terra.

— Quem disse isso!? O médico? O enfermeiro?

— Ninguém, mas a gente vê logo. Percebe-se muito bem quando uma pessoa está para morrer. Você não come, emagrece dia a dia... causa medo. Enfim, é a tuberculose. Não digo isso para o assustar, mas apenas no seu próprio interesse. Deveria receber os Sacramentos... Além disso, se você tem dinheiro deve deixá-lo com o comissário do navio...

— Nem escrevi para minha gente — suspira Gusief. — Morrerei e eles não saberão de nada.

— Como não saberão? Quando você morrer eles escreverão para as autoridades militares de Odessa, que, por sua vez, avisarão sua família.

Gusief está profundamente perturbado. Vagos desejos o afligem. Toma um pouco de água, volta a perscrutar o mar através do postigo, porém nada consegue acalmá-lo. Nem mesmo a lembrança da aldeia consegue, agora, tranqüilizá-lo. Tem a impressão de que se permanecer mais um minuto na enfermaria cairá sufocado.

— Estou muito mal, meus irmãos — diz baixinho. — Não posso continuar aqui... Quero ir lá para cima. Quem quer ajudar-me?

— Bom — diz o soldado. — Vou acompanhá-lo, já que não pode ir só. Apoie-se no meu ombro.

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Gusief obedece. O soldado segura-o com a sua mão sã e ambos sobem vagarosamente a escada que conduz ao convés.

Em cima, o tombadilho está cheio de marinheiros e de soldados deitados no chão. São tantos que é difícil abrir caminho.

— Sente-se — diz o soldado. — Eu o seguro.

Não se vê muito bem. Não há luz no tombadilho, nem nos mastros, nem no mar. Uma sentinela, de pé na extremidade do navio, está tão imóvel que parece adormecida. Dir-se-ia que o barco se encontra abandonado ao seu próprio destino e que ninguém se importa em lhe dar um rumo.

— Vão atirar Pavel Ivanytch ao mar — murmura o soldado. — Vão costurá-lo num saco e atirá-lo às ondas.

— Sim — responde Gusief suavemente. — É do regulamento.

— É melhor morrer em terra. De vez em quando a mãe da gente vem chorar junto ao túmulo, ao passo que aqui...

— Sim, eu também preferiria morrer na minha casa, na aldeia...

Penosamente, os dois se erguem e começam a andar. Em certo trecho sente-se pronunciado cheiro de forragem e de esterco: vem de um curral improvisado no tombadilho, onde se encontram oito vacas. Um pouco mais adiante, há um potro amarrado. Gusief estende a mão para acariciá-lo, mas o cavalo sacode furiosamente a cabeça e mostra os dentes, com eloqüente intenção de mordê-lo.

— Bicho do inferno! — protesta Gusief.

Ele e o soldado apoiam-se na balaustrada e ficam a olhar em silêncio ora o mar, ora o céu. Sob a abóbada celeste, calma e muda, reinam a inquietação e as trevas. As ondas se entrechocam ruidosamente. Cada uma procura erguer-se mais do que a outra e se atropelam, e se Empurram, furiosas e disformes, coroadas de branca espuma.

O mar é impiedoso. Se o navio não fosse tão grande e tão sólido, as ondas o destroçariam sem piedade, tragando cruelmente todos quantos viajam nele, sem distinguir os bons dos maus. O próprio barco não é menos cruel. Semelhando um estranho monstro, corta com a quilha milhões de ondas. Não teme nem a noite, nem o vento, nem o espaço infinito, nem a solidão. Se a superfície do mar estivesse cheia de seres humanos, cortá-los-ia da mesma maneira, sem tampouco, fazer distinção entre os bons e justos e os pecadores.

— Onde estamos agora? — pergunta Gusief.

— Não sei. Acho que no oceano.

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— Não se vê terra...

— Que dúvida! Antes de oito dias não veremos nem sombra de terra!

Ambos continuam perscrutando a espuma branca e fosforescente, mergulhados no mais completo silêncio. Cada um parece perdido em remotos pensamentos. Gusief é o primeiro a falar:

— Eu não tenho medo do mar. É lógico que, de noite, a gente não vê bem. Mas mesmo assim, se agora me mandassem, num bote, a pescar a cem quilômetros daqui, iria com muito gosto. Ou, se por exemplo, tivesse que salvar alguém que tivesse caído na água, eu me atiraria sem vacilar. Isto é, caso se tratasse de um cristão. É claro que eu não arriscaria a vida por um turco ou por um chinês.

— Não tem medo da morte?

— Tenho sim, principalmente quando penso na minha casa. Sem a minha presença tudo irá por água abaixo. Meu irmão é uma verdadeira calamidade, um beberrão que bete na mulher todo o santo dia e não respeita os pais. Sim, sem mim tudo irá mal. Minha gente ver-se-á obrigada, talvez, a pedir esmolas para não morrer de fome.

Cala-se por alguns instantes e por fim conclui:

— Vamos para baixo. Não posso mais suster-me em pé. Além disso, a atmosfera está muito pesada... Já é hora de dormir.

V

Gusief desce para a enfermaria e deita-se. Vagos desejos, cuja natureza não pode precisar, continuam a atormentá-lo. Sente um peso no peito; dói-lhe a cabeça. Sua boca está seca que sente dificuldade em mover a língua. Cai em profunda sonolência e logo depois, esgotado pelo calor e pela atmosfera carregada, adormece. Os mais fantásticos sonhos voltam a repetir-se!!!

Dorme, assim, dois dias seguidos. Ao cair da tarde do terceiro, os marinheiros vêm buscá-lo e levam-no para o convés.

Costuram-no num saco, no qual introduzem, também, para torná-lo mais pesado, dois enormes pedaços de ferro. Metido no saco Gusief parece uma cenoura: volumoso na cabeça e afinado nas pernas.

Ao pôr do sol colocam o cadáver sobre uma prancha que tem uma das extremidades apoiada na balaustrada e a outra num caixão de madeira. Ao redor enfileiram-se os soldados e os marinheiros todos de gorro na mão.

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— Bendito seja Deus todo-poderoso pelos séculos dos séculos — diz com tom solene o sacerdote.

— Amém! — respondem os marinheiros.

Todos fazem o sinal-da-cruz e ficam a olhar as ondas. É algo estranho ver um homem metido num saco e a ponto de ser lançado ao mar. No entanto, é uma coisa que pode suceder a qualquer um de nós!

O sacerdotes deixa cair um pouco de terra sobre Gusief a faz profunda reverência. A seguir, canta-se o Ofício.

O oficial de plantão soergue um dos extremos da prancha. Gusief desliza de cabeça para baixo, dá uma volta no ar e cai na água. Por alguns instantes fica a boiar, coberto de espuma, como se estivesse envolto em rendas; por fim, desaparece.

Submerge rapidamente. Chegará ao fundo? Segundo os marinheiros, a profundidade do mar nestas paragens alcança quatro quilômetros.

Após fazer vinte metros, começa a descer mais lentamente. O cadáver vacila, como se hesitasse em continuar a viagem. Finalmente, arrastado pela corrente, prossegue a marcha diagonalmente.

Não demora em tropeçar com um cardume de peixinhos — dos chamados “pilotos”, os quais, ao divisarem o enorme vulto, estacam assombrados e, como se obedecessem a uma ordem, voltam-se, todos ao mesmo tempo, e, como minúsculas flechas, atiram-se a Gusief.

Minutos depois aproxima-se uma enorme massa escura: um tubarão. Lentamente, com fleuma, como se não notasse a presença de Gusief, coloca-se sob o saco de maneira a dar a impressão de que o cadáver está de pé sobre o seu ombro. Visivelmente satisfeito, o tubarão dá, depois várias voltas na água e, sem se apressar, escancara a enorme boca, armada de duas fileiras de dentes. Os “pilotos” estão encantados. Mantêm-se um pouco afastados e admiram o espetáculo atentamente.

Depois de brincar um pouco com o corpo de Gusief, o tubarão crava os dentes de mansinho, no tecido da mortalha, a qual no mesmo instante abre-se de cima a baixo. Um pedaço de ferro tomba no lombo do tubarão, assusta os “ pilotos” e desce rapidamente.

Enquanto isso, lá no alto, no céu, onde o sol pouco a pouco se oculta, as nuvens vão-se acumulando. Uma delas parece um arco-de-triunfo, outra um leão; outra ainda uma tesoura. Através de uma das nuvens projeta-se até o centro da abóbada do céu um amplo raio verde. Ao lado dele surge, pouco a pouco, um colorido de lilás bem pálido. Sob este esplêndido céu, o oceano torna-se a princípio obscuro; logo, porém, passa, por sua vez, a tingir-se de cores tão suaves, alegres e belas que a língua humana é incapaz de descrevê-las.

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Varka

TchekhovTradução de Costa Neves

Anoitece. Varka balança com o pé um berço onde chora uma criança, cantarolando monotonamente:

— Bain bainscki bain...

Uma lâmpada verde brilha diante de uma imagem de santo. Um par de grandes calças negras pende de uma corda. A lâmpada projeta uma mancha verde sobre as coisas e as calças fazem dançar sombras na parede e no berço. A chama vacila como tocada pelo vendo. O ar é sufocante, impregnado de um odor de sapatos, de couro, de tinta.

O menino chora. Não cessa de chorar e de gemer; está extenuado, sua vozinha tornou-se rouca; mas ele chora ainda, sem parar.

Varka tem sono. Seus olhos fecham-se, sua cabeça inclina-se para o peito. Mal pode abrir os olhos tanto lhe pesam as pálpebras.

— Bain bainscki bain... — murmura com voz extinta, — bain bain...

Um grilo estridula numa frincha do chão. No aposento vizinho, ouve-se a máquina do sapateiro.

O berço range lamentosamente. Varka cantarola, e tudo se confunde num doce murmúrio que convida ao sono. Mas não se deve dormir! Varka resiste ao torpor que a invade, porque, se por desgraça adormecer, o patrão bater-lhe-ia. A chama da lâmpada vacila. A mancha verde e a sombra negra dançam diante dos olhos fixos que Varka se esforça por conservar abertos. Sonhos indistintos vagam no seu cérebro amodorrado. Ela vê nuvens negras que se perseguem, gritando com voz infantil. As nuvens se desfazem e Varka divisa uma estrada, longa, negra e lamacenta. Filas de carros avançam lentamente; homens caminham vagarosamente, sombras se agitam aqui e acolá! Através de uma névoa cinzenta e fria ela entrevê os albergues, dos dois lados da estrada. As sombras se alongam, os viajantes perdem-se na estrada lamacenta.

— Por quê? — pergunta Varka.

— Para dormir, para dormir...

E dormem um sono de chumbo, profundamente, enquanto sobre os fios telegráficos corvos gritam, com voz infantil, para acordar aqueles homens...

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— Bain bainscki bain... — canta Varka, e, súbito, acha-se numa mísera isba negra, acanhada e sufocante. Não é aquele seu pai, Efim Stepanov, que ali jaz por terra e se estorce em sofrimentos atrozes? Ela vê, mas não ouve os gemidos. É a sua hérnia que o atormenta. A dor é tão forte que ele não pode falar; respira penosamente, com um gargarejo contínuo:

— Groo... groo... groo...

Eis a mulher, Pelágia, que se precipita para fora da isba, para dizer ao patrão que Efim é moribundo. Quando voltará? Saiu já há muito tempo e Varka espera-a. Varka está acordada perto do fogão, mas não dorme e escuta o ofegar do moribundo:

— Groo... groo... groo...

Finalmente, um rumor de rodas que se dirige para a isba. Um médico vem visitar o doente. Entra no quarto. A escuridão é tanta que Varka não o vê, mas ouve a sua voz.

— Dê-me uma luz! — exclama ela.

A mãe acende uma vela. Efim sufoca.

— Que tem? pergunta o médico curvando-se sobre ele.

— Que tenho? Morro. Está acabado.

— Ainda não. Salvar-te-emos. Havemos de curar-te.

— Se vossa senhoria acha, agradeço-lhe muito. Mas se a morte está aqui, paciência.

O médico examinava o doente. Os minutos corriam.

— Não posso fazer nada — disse —, é preciso mandá-lo para o hospital para ser operado; mas isto depressa, sem perder um minuto. É tarde, e no hospital devem todos estar recolhidos, mas eu darei um bilhete de recomendação para o diretor. Compreendeu?

— Mas ele não pode andar, senhor! Nós não temos cavalo! — gemeu a mãe.

— Mandarei buscá-lo — disse o médico, e foi-se, e a vela apagou-se e Varka ouve novamente:

— Groo... groo... groo...

Alguns instantes depois pára um carro à porta. Recebe Efim e parte...

É dia. O tempo está alegre. A mãe vai ao hospital saber notícias. E volta. Entrando na isba, faz o sinal-da-cruz e chora.

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— Operaram-no, e a princípio estava melhor, mas depois, pela madrugada, morreu. Que Deus o tenha em sua paz. Disseram que era muito tarde, que deveríamos tê-lo mandado mais cedo para o hospital.

Eis Varka no meio do bosque. Caminha ao lado da mãe, e chora, chora amargamente.

De repente ela recebe uma pancada na cabeça, tão violenta que cai e bate com a cabeça numa árvore. Abre os olhos e vê o patrão, o sapateiro:

— Que fazes, preguiçosa?! — grita ele. — O menino chora e tu dormes?

E puxa-lhe as orelhas; ela recomeça a balançar o berço, cantarolando:

— Bain bainscki bain...

A mancha verde e a grande sombra negra dançam na parede, e o cérebro dela se entorpece. Ei-la novamente na grande estrada lamacenta. Os viajantes dormem profundamente. Varka tem sono também, tem tanto sono e seria tão feliz se pudesse dormir... Mas sua mãe caminha sempre e arrasta-a pela mão. Dirigem-se à cidade em busca de trabalho.

— Uma esmola, pelo amor de Deus! — mendiga a mãe durante todo o caminho. — Tende piedade...

— Depressa, dá-me o menino! — responde uma voz tonitruante — dá-me o menino! Tu dormes, canalha! — grita a voz irritada e rude.

Varka levanta-se, estremunhada. Sim, compreende: não mais a longa estrada, os viajantes, a imagem da mãe. É a patroa que aparece no meio do quarto, que vem aleitar o menino. Aquele era o passado de Varka, visto em sonho; este é o presente.

Enquanto a gorda patroa aleita o menino, procurando adormecê-lo, Varka, de pé, lança os olhos pela janela. O céu empalidece, a sombra e a mancha verde estão quase desvanecidas: dentro em pouco será dia.

— Toma, segura o menino! — ordena a patroa, abotoando a camisa no peito. — Ele chora sempre. Tu com certeza o maltrataste!

Varka torna a deitar o menino e recomeça a embalá-lo. Que sono terrível! Os olhos se fecham, a cabeça pesa-lhe como chumbo.

— Varka, é tempo de acender o fogão — brada a voz do patrão.

É preciso levantar-se e trabalhar. Varka larga o berço e vai buscar a lenha. Está contente de poder mover-se, andar, espantar aquele sono tremendo. Está pronto o fogo. Suas idéias aclaram-se, seu rosto distende-se.

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— Varka! o samovar! depressa! — grita a patroa.

Varka apronta o samovar e recebe nova ordem.

— Varka, vai limpar as botas do patrão!

E ela acocora-se para limpar as botas. Ah! como seria bom meter a cabeça dentro de uma daquelas botas e dormir! Varka escancara os olhos e sacode-se vigorosamente.

— Varka, vai lavar a sala! Está que é uma vergonha! E os fregueses não tardam!

Varka lava rapidamente o chão, varre tudo, limpa tudo, acende o outro fogão! O tempo urge: não há um momento a perder.

O dia passa. Varka vê com alegria a noite que chega. O ar fresco da noite promete-lhe um longo e profundo sono. Mas, quando a noite chega, chegam visitas.

— Varka! — grita a patroa — depressa, o samovar!

O samovar é pouco, e Varka deve ferver mais água, enquanto os patrões e os visitantes abancam-se em torno da mesa.

— Varka corre a buscar três garrafas de cerveja! Varka, os copos! Varka!

Vão-se finalmente os visitantes. Apaga-se a luz; os patrões vão deitar-se.

— Varka! vai embalar o menino! — dizem eles.

O grilo canta, a mancha verde e a sombra negra agitam-se novamente ante os olhos sonolentos e entorpecem-lhe o cérebro.

— Bain bainscki bain...

O menino grita... Varka revê a estrada lamacenta, os viajantes, a sua mãe Pelágia, seu pai Efim... Reconhece-os perfeitamente, mas não pode ver o monstro que a tortura, que a tem amarrada de pés e mãos, que a sufoca, que a impede de viver.

Volve a cabeça de todos os lados e procura aquele inimigo infernal, para libertar-se. Em um esforço supremo, abre os olhos, vê a mancha verde, a sombra negra que se agita, quando, de súbito, um grito do menino fere-lhe os ouvidos.

Finalmente! Varka encontrou o inimigo que a impede de viver. É aquele menino o seu inimigo impiedoso! E ela ri, espantada de o não haver descoberto antes. Que estúpida! A mancha, a sombra, o grilo, tudo ri com ela, tão estúpidos como ela. Uma idéia luminosa passa-lhe no cérebro pesado. Levanta-se vagarosamente do escabelo em que está sentada, com um claro sorriso no rosto embrutecido, e dá alguns passos. A idéia de libertar-se do

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menino aparece-lhe mais viva. Libertar-se daquele que a impede de viver! Precisa matá-lo, e depois dormir, dormir, dormir...

Sorrindo, rindo e piscando os olhos para a mancha verde, Varka avizinha-se do berço, curva-se sobre o menino: e sufoca-o. Depois estende-se rapidamente no chão, sorrindo de alegria ao pensamento de que finalmente poderá dormir. E adormece logo.

Varka dorme um sono profundo e pesado como a morte.

— Fim —

Fonte: TCHECOV. Contos. Coleção Clássicos Jackson, Volume XXXVII. São Paulo: WM Jackson Inc. Editores, 1965.

O vingador

Tchekhov

Logo depois de haver surpreendido sua mulher em flagrante, encontrava-se Fedor Fedorovich Sigaev na loja de armas de Schmuks e Cia, a escolher o revólver que melhor lhe pudesse servir. Seu rosto expressava ira, dor e decisão irrevogável.

“Bem sei o que devo fazer!”, pensava. “Quando os fundamentos de uma família são profanados, e a honra é arrastada pela lama e triunfa o vício... eu, como cidadão e como homem honrado, devo ser o vingador. Matarei primeiro a ela, depois ao amante e finalmente suicidar-me-ei”.

Não havia ainda escolhido o revólver e nem sequer assassinara alguém, mas na imaginação já se lhe apresentavam três cadáveres ensangüentados, de crânios triturados, os miolos a flutuarem... Barulho, ruído de curiosos e autópsia.

Possuído pela insensata alegria do homem ofendido, calculava o horror dos parentes e do público, a agonia da traidora e até lhe parecia poder ler em pensamento os artigos da primeira página, a comentarem a decomposição dos fundamentos da família.

O empregado da loja, tipo inquieto, afrancesado, de ventre pequeno e colete branco, apresentava-lhe os revólveres e juntando os calcanhares dizia, sorrindo respeitosamente:

— Eu aconselharia a Mousieur que levasse este magnífico modelo do sistema Smith & Wesson. É a última palavra na ciência das armas. Possui três propulsores e pode-se dispará-lo a uma distância de seiscentos passos. Chamo também a atenção de Mousieur para a limpeza do acabamento. Seu sistema é que está mais em moda. Vendemos diariamente dezenas deles, que são utilizados contra os bandidos, os lobos e os amantes. Seu tiro é preciso e forte, alcança distâncias enormes e mata, atravessando-os, a mulher e o amante. Quanto aos suicidas, Mousieur, não conheço, para eles, melhor sistema.

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E o empregado, apertando e soltando o gatinho, soprando o cano e fingindo mirar, parecia próximo a afogar-se de puro entusiasmo. A julgar-se pela expressão extasiada de seu rosto, poder-se-ia pensar que ele mesmo, de boa vontade, pregaria um tiro na testa, se possuísse uma arma tão maravilhosa quanto aquela.

— E qual o preço? — perguntou Sigaev.

— Quarenta e cinco rublos, Mousieur.

— Hum! É muito caro, para mim.

— Neste caso, Mousieur, posso oferecer-lhe algo mais em conta. Aqui está. Tenha a bondade de examinar. Temos estoque variado e de todos os preços... Este, por exemplo, do sistema Lefrauché, que custa somente 18 rublos. Porém... — o empregado fez um muxoxo de pouco caso — é um sistema, Mousieur, demasiadamente antiquado. Quem o compra são os pobres de espírito e os psicopatas. Suicidar-se ou matar a própria mulher com um Lefauché é considerado atualmente de mau gosto. O bom-tom admite somente uma Smith & Wesson.

— Não necessito matar-me ou a alguém — mentiu, com acento sombrio, Sigaev. — Compro-o simplesmente para a minha casa de campo... Para assustar os ladrões.

— Não nos interessa o seu motivo —sorriu o empregado, baixando modestamente os olhos — Se, em cada caso, buscássemos as razões, já deveríamos ter fechado a loja. Para espantar os corvos, Mousieur, o Lefauché não serve, pois produz ruído um tanto surdo. Eu lhe proponho uma pistola Mortimer, das chamadas para duelos.

“E se eu o provocasse para um duelo?”, passou pela cabeça de Sigaev. “Porém... não... Seria honra demasiada. A essas bestas, devemos matá-las, como cachorros...”

O empregado, revoluteando graciosamente e em pequenos passos, sem deixar de sorrir e de conversar, apresentou-lhe todo o monte de revólveres. O Smith & Wesson era o de aspecto mais sólido e justiceiro. Sigaev tomou um destes nas mãos, fixou-o e quedou ensimesmado. A imaginação desenhava-o destroçando um crânio, o sangue a escorrer como um rio sobre o tapete e o assoalho, a traidora, moribunda, agitando um pé convulso... Para a alma indignada, aquilo era pouco. O quadro de sangue, os soluços e o estupor não o satisfaziam. Deveria pensar em algo mais terrível.

“Isto é o que farei”, pensou. “Matarei a ele e a mim em seguida, porém ela... deixaria viver. Que morra do arrependimento e do desprezo dos que a cercam! Para natureza tão nervosa quanto a sua, será martírio maior que a morte!”

Começou a imaginar o próprio funeral: ele, o ofendido, estendido no ataúde, com um sorriso bondoso nos lábios... Ela, pálida, torturada pelos remorsos, caminhando atrás do féretro, como uma Níobe, sem poder escapa aos olhares depreciativos e aniquiladores, lançados pela multidão indignada...

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— Vejo, Mousieur, que lhe agrada o Smith & Wesson — comentou o empregado, interrompendo o devaneio — Se o acha muito caro, posso fazer uma redução de cinco rublos, embora tenhamos outros mais baratos.

A figurinha afrancesada girou graciosamente sobre os próprios tacões e alcançou na prateleira outra dúzia de estojos com revólveres.

— Aqui está outro, Mousieur. O preço, trinta rublos. Não é caro, se lembrarmos que o câmbio está baixo e que os direitos alfandegários sobem cada dia mais... Juro-lhe, Mousieur, que sou conservador, porém já começo a protestar! Imagine que o câmbio e a tarifa da alfândega são o motivo de que somente os ricos possam adquirir armas! Para os pobres nada mais resta que as armas de Tula, e os fósforos. E as armas de Tula são uma desgraça! Se alguém pretender disparar uma arma de Tula sobre a própria mulher, apenas consegue atingir a própria omoplata...

Repentinamente Sigaev entristeceu-se com a idéia de morrer e não contemplar os sofrimentos da traidora. A vingança unicamente é doce quando existe a possibilidade de ver e tocar seus frutos. Pois, que sentido encontraria em estar deitado no ataúde, se nada poderia perceber?!

“E se eu fizesse isto?... matá-lo, ir a seu enterro, ver tudo e depois me suicidar?... Sim. Porém... antes do enterro eu seria preso e me tirariam a arma... Bem... O que farei será matá-lo e deixar que ela viva. Eu... enquanto não decorra um certo tempo, não me matarei. Serei preso. Para suicidar-me, sempre terei ocasião. Estar preso será melhor, pois que ao prestar declarações, terei possibilidade de demonstrar, ante o poder e a sociedade, toda a baixeza do seu comportamento. Se eu morresse, ela, com seu caráter desavergonhado e embusteiro, jogaria a culpa sobre mim, e a sociedade acabaria por absolvê-la.... de outro lado, talvez caçoe de mim, se continuo a viver... Então....”

Um minuto depois, pensava:

“Se... Talvez me acusem de sentimentos mesquinhos se eu me matar... E, depois, para que suicidar-me? Isso em primeiro lugar. Em segundo... o suicídio é covardia. Então, o que farei será matá-lo, deixá-la viver e eu irei para o cárcere. Serei julgado e ela figurará como testemunha... Veremos seu sobressalto e vergonha, quando precisar enfrentar meu advogado! Por certo que as simpatias do tribunal, do público e da imprensa estarão ao meu lado!...”

Enquanto assim devaneava, o empregado continuava a expor a mercadoria e considerava de seu dever, entreter o comprador.

— Veja aqui, outros, ingleses, de sistema novo, que recebemos há pouco. Porém, previno-o, Mousieur, de que todos os sistemas empalidecem diante do Smith & Wesson. Por certo, terá lido, há poucos dias, acerca de um militar que comprara um Smith & Wesson em nossa casa, e que o usou contra o amante... E que imagina tenha acontecido? A bala atravessou primeiro o amante, alcançou, depois o abajur de bronze, em seguida o

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piano de cauda e deste, como uma carambola, matou um cachorro pequinês e roçou a esposa... As conseqüências foram brilhantes e honraram nossa firma. O militar está preso agora... Por certo o condenarão a trabalhos forçados!... Em primeiro lugar, porque temos leis muito antiquadas , em segundo, porque já se sabe que o tribunal sempre toma o partido do amante. Por quê? Muito simples, Mousieur. Porque também o jurado, os juízes, o procurador e o advogado de defesa se entendem com esposas alheias e mais tranqüilos estão quando sabem de que um marido há na Rússia. A sociedade se encantaria, caso o Governo desterrasse todos os maridos para a ilha de Sajalin. Ah! Mousieur! Não pode o senhor imaginar a indignação que me desperta este desmoronar dos costumes morais contemporâneos!... Nestes tempos, cortejar mulheres alheias causa tanto prazer quanto filar cigarros os outros ou pedir livros emprestados! Cada ano que passa, o nosso comércio declina, porém não significa que haja menos amantes... Significa que os maridos reconciliam-se com a situação e temem os trabalhos forçados — e o empregado, olhando em torno de si, sussurrou: - E quem é o responsável, Mousieur? O Governo!

“Acabar em Sajalin, por causa de um porco... não, não é razoável”, refletiu Sigaev. “Se me condenam aos trabalhos forçados, somente conseguirei dar à minha mulher a possibilidade de casar-se outra vez e de enganar também ao segundo marido. O lucro será todo dela! O que farei então será isto: deixá-la viver, não me matar e nem matar a ele... Devo imaginar algo mais prudente e sentimental. Castigá-los-ei com meu desprezo e encetarei escandaloso processo de divórcio...”

— Aqui está, Mousieur, um sistema novo — comentou o empregado, recolhendo de outra prateleira mais uma dúzia de revólveres. — Chamou-lhe a atenção para o mecanismo original do cão...

Porém, uma vez tomada aquela decisão, Sigaev não mais necessitava de revólver. Em compensação, o empregado, cada vez mais inspirado, não cessava de mostrar-lhe os artigos que tanto elogiava. O marido ofendido envergonhou-se de que, por sua causa, o sujeito estava trabalhando em vão, a entusiasmar-se e a perder tempo.

—Bem — balbuciou. — Será melhor que eu volte mais tarde ou mande alguém...

Conquanto não visse a expressão do rosto do empregado, compreendeu que, para suavizar a violência da situação, não havia outra saída que comprar algo. Porém, o que? Seus olhos percorreram as paredes da loja, em busca de uma coisa barata, e se detiveram numa rede de cor verde, pendurada junto à porta.

— E isso? Que é isso? — perguntou.

— É uma rede para caçar codornas.

— Qual o preço?

— Oito rublos.

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— Pois pode mandar embrulhar.

O marido ofendido pagou os oito rublos, passou a mão na rede para levá-la e, cada vez mais ofendido, saiu da loja.

— Fim —

Um caso médico

Tchekhov

Um telegrama enviado da fábrica dos Lialikov pedia ao professor que viesse o mais depressa possível.

A filha da Senhora Lialikov, que devia ser a proprietária da fábrica, estava doente; era tudo o que se podia perceber num longo telegrama mal redigido. Por isso o professor não esteve para se incomodar; contentou-se em enviar, para o substituir, o seu ajudante Koroliov. Tinha que se descer na terceira estação para lá de Moscovo e andar em seguida, de carro, quatro «verstas». Na estação, esperava o ajudante um carro de três cavalos. O cocheiro tinha um chapéu de penas de pavão e, com voz vibrante, como um soldado, respondia sempre a todas as perguntas: «De modo algum!» ou «Exactamente!».

Era num sábado de tarde. Punha-se o Sol. Da fábrica para a estação vinham grupos de operários que cumprimentavam para o carro onde seguia o médico. Aquele fim de dia, os palacetes senhoriais e as casas de verão, dos dois lados da estrada, os amieiros, a calma impressão que de tudo se exalava, na hora em que, já quase a repousarem, os campos, os bosques e o Sol pareciam preparar-se para descansar e talvez até para rezar ao mesmo tempo que os operários — tudo isto encantava Koroliov.

Nascido e educado em Moscovo, o médico não conhecia o campo e nunca se tinha interessado pelas fábricas; nunca tinha visitado nenhuma; mas, depois do que tinha lido sobre este assunto, tinha-lhe acontecido estar em casa de proprietários e falar com eles. E, quando via de longe ou de perto uma fábrica, pensava que por fora tudo parecia calmo e pacífico, mas que lá dentro deviam reinar a impenetrável ignorância e o egoísmo obtuso dos proprietários, o trabalho aborrecido e insalubre dos operários, e as intrigas, e o «vodka» e a bicharia...

E agora, à medida que se afastavam do carro com respeito e medo, lia no rosto do operário, nos bonés, no andar, a porcaria, o alcoolismo, o enervamento, o atordoamento em que viviam.

Entrou pelo portão grande da fábrica. Apareceram de ambos os lados as pequenas casas dos operários, figuras de mulher, e, às cancelas da entrada, roupa branca e mantas. O cocheiro, sem segurar os cavalos, gritava: «Cuidado!».

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Num pátio grande, sem o mínimo sinal de erva, levantavam-se cinco grandes corpos de edifícios com altas chaminés, afastados uns dos outros, com armazéns e alpendres, tudo mergulhado numa espécie de neblina cinzenta, como uma flor de poeira. Aqui e além, como os oásis no deserto, havia uns jardinzitos enfezados e os telhados verdes e vermelhos das casas da Administração. O cocheiro, sofreando de repente os cavalos, parou diante duma casa que fora há pouco pintada de cinzento. Os lilases do jardim estavam cobertos de poeira, e o pórtico, pintado de amarelo, cheirava fortemente a tinta.

— Faça favor de entrar, Senhor Doutor — disseram vozes de mulher à porta da entrada e no limiar da antecâmara.

Ouviram-se depois suspiros e murmúrios.

— Faça favor de entrar... Estamos à sua espera já há tanto tempo... Foi mesmo uma desgraça. Por aqui, faça favor...

A Senhora Lialikov, já de idade e corpulenta, vestida de seda negra e com mangas à moda, mas, pelo que parecia, simples e pouco instruída, olhava para o doutor com receio, sem se atrever a estender-lhe a mão; não ousava fazê-lo.

Perto dela, encontrava-se uma criatura de cabelos curtos, magra e já nada nova, que trazia uma blusa colorida e usava luneta. Os criados chamavam-lhe Cristina Dmitrievna e Koroliov adivinhou ser a governante. Como era a única pessoa instruída da casa, tinham-na sem dúvida encarregado de receber o médico, porque logo se apressou a expor, com pormenores de todo inúteis, as causas da doença, mas sem dizer quem estava doente nem de que se tratava. Koroliov e a governante falavam sentados, enquanto a dona da casa esperava, Imóvel, junto da porta. No decurso da conversação, veio Koroliov a saber que a doente era uma rapariga de vinte anos, Lisa, filha única da Senhora Lialikov. Estava enferma há muito tempo e já a tinham tratado vários médicos. Na noite anterior, sentira, desde a tarde, tais palpitações que ninguém em casa tinha dormido; chegara-se a recear que morresse.

— Ela, na verdade, tem sido doentinha desde criança — contava Cristina Dmitrievna com uma voz cantada e limpando ininterruptamente os lábios com a mão. — Os médicos dizem que são nervos, mas ainda em pequena meteram-lhe para dentro os humores frios, e daí é que vem todo o mal, acho eu.

Passaram ao quarto da doente. Já mulher, alta, bem feita, mas feia, parecida com a mãe, com os mesmos olhitos e a parte inferior do rosto larga e exageradamente desenvolvida, despenteada, os cobertores puxados até ao queixo, a rapariga deu de princípio a Koroliov a impressão de uma pobre criatura, enferma, recolhida por piedade. Ninguém acreditaria que fosse a herdeira dos cinco enormes edifícios da fábrica.

— Venho tratar de si — disse Koroliov. — Bom dia, Menina. Disse o nome e apertou-lhe a mão, mão grande, feia e fria. Ela soergueu-se e, já muito acostumada aos médicos, indiferente à nudez das espáduas e dos braços, deixou-se auscultar.

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— Sinto umas palpitações — disse ela. — Toda a noite... foi uma coisa terrível... julguei que morria de medo. Dê-me qualquer coisa, a ver se isto acaba.

— Não tenha receio, vou já receitar.

Koroliov examinou-a e encolheu os ombros.

— O coração está bom — disse ele; — tudo vai bem, está tudo em ordem. Os nervos talvez um pouco abalados... mas é também coisa vulgar. A crise já passou, parece. Deite-se e veja se dorme...

Neste momento trouxeram um candeeiro. A doente piscou os olhos e, de repente, pousando a cabeça nas mãos, pôs-se a chorar.

E a impressão dum ser infeliz e feio desapareceu. Koroliov já não dava pelos olhos pequeninos nem pela parte do rosto anormalmente desenvolvida. Via uma suave expressão de sofrimento, muito comovedora e espiritual, e a rapariga, no conjunto, apareceu-lhe elegante, feminina e simples. E já a queria acalmar, não por medicamentos ou conselhos, mas por uma simples palavra graciosa. A mãe puxou a si a filha e beijou-lhe a testa. E na expressão da face, quanta tristeza, quanto desgosto!

Tinha criado e educado a filha sem se poupar a nada; tinha posto todo o cuidado em lhe mandar ensinar francês, música e dança. Tinha-lhe dado uma dúzia de mestres, tinha chamado os melhores médicos, tomado uma governante — e não compreendia donde vinham aquelas lágrimas e tantos sofrimentos! Não compreendia, atrapalhava-se e tinha uma expressão de culpabilidade; e andava desolada, inquieta, como se tivesse esquecido alguma coisa de muito urgente, como se tivesse tido alguma negligência, como se não tivesse chamado alguém. Quem? Não sabia...

— Lisaunka — disse ela, apertando a filha ao peito -, minha querida, minha pomba, minha filhinha, que tens tu? Diz à mãezinha... Tem pena de mim... Diz...

Ambas choravam amargamente. Koroliov, sentando-se na borda da cama, pegou na mão de Lisa.

— Vamos, não chore mais — disse-lhe ele com um tom de carícia -. Há lá razão para isso... Não há nada no mundo que seja digno dessas lágrimas. Vá, não chore mais. Assim não pode ser...

E pensou:

— Já era tempo de a casar...

— O médico da fábrica dava-lhe brometos — disse a governante — mas notei que só lhe faziam mal. Eu acho que para o coração o bom são umas gotas... ai, esquece-me o nome... Junquilho, hem?

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E recomeçou com os seus pormenores. Interrompia Koroliov, impedia-o de falar e lia-se-lhe no rosto o tormento que lhe causava pensar que, sendo a mulher mais instruída da casa, devia falar sem interrupção com o médico — e falar de medicina, claro.

Koroliov estava embaraçado.

— Não acho nada de especial — disse ele à mãe ao sair do quarto. — Como o médico da fábrica tratou sua filha, pode continuar. O tratamento que lhe deu até aqui foi bom; não vejo que seja preciso mudar. Para quê? É uma doença vulgar; não tem nada de grave...

Falava sem pressa e ia calçando as luvas; a Senhora Lialikov olhava-o de lágrimas nos olhos, imóvel.

— Ainda tenho meia hora até o comboio das dez; terei tempo de apanhá-lo, não...?

— O Senhor Doutor não desejaria ficar? — perguntou a mãe, e de novo as lágrimas lhe correram pela cara.

Custa-me tanto incomodá-lo; mas, pelo amor de Deus — continuou, a meia voz e voltando-se para a porta -, faça-me esse favor. Só tenho esta filha... Assustou-nos tanto a noite passada... Nem estou ainda em mim... Pelo amor de Deus, não se vá embora!

Koroliov ainda quis dizer que tinha muito que fazer em Moscovo, que a família estava à espera, que lhe era muito difícil passar uma tarde e uma noite fora da clínica; olhou para ela: suspirou e pôs-se a descalçar as luvas, silencioso.

Acenderam todas as velas e todos os candeeiros da sala e da saleta; sentado junto do piano de cauda, Koroliov folheou a música, depois foi contemplar os quadros e os retratos. Os quadros, com suas molduras douradas, eram vistas da Crimeia, um mar encapelado com um barquito, um monge católico com um cálice de licor — tudo pobre, lambido, sem talento... Nos retratos, nenhuma figura bela, interessante: faces largas, olhos espantados. Lialikov, o pai de Lisa, tinha a testa baixa e um ar satisfeito; o uniforme ficava-lhe como uma espécie de saco sobre o corpo grande e vulgar; no peito uma medalha e a insígnia da Cruz Vermelha. Cultura estreita, luxo de ocasião, um luxo que não tinha motivos nem vinha a propósito — como aquele uniforme. O brilho dos soalhos irrita, o lustre também; e pensa-se, nem se sabe porquê, na história do comerciante que ia tomar banho de medalha de honra ao pescoço... Na antecâmara havia murmúrios e alguém ressonava suavemente. De súbito, no pátio, ressoaram uns sons agudos, sacudidos, metálicos, que Koroliov nunca tinha ouvido e não soube explicar. Ecoaram na sua alma dum modo bem desagradável e estranho.

— Acho que não ficava aqui por nada deste mundo — pensou ele.

E tornou a folhear a música.

A governante entrou e chamou a meia voz:

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— Senhor Doutor, pode vir jantar...?

Koroliov seguiu-a.

A mesa, grande, estava coberta de aperitivos e de vinhos; mas só havia duas pessoas: ele e Cristina Dmitrievna. Ela bebia madeira, comia depressa e falava contemplando-o pela luneta.

— Os operários estão muito satisfeitos connosco. Todos os invernos dão nesta fábrica espectáculos em que eles próprios representam. Há também, naturalmente, conferências com projecções, uma sala de chá magnífica; e tudo o mais... Têm muita dedicação por nós; quando souberam que a Lisaunka estava pior, mandaram fazer umas rezas. São pouco instruídos mas têm muito bons sentimentos.

— Parece que não há nenhum homem em casa, não?

— Nenhum. Piotre Nikanorytch morreu há ano e meio e ficámos sozinhas. Vivemos as três, no Verão aqui, no Inverno em Moscovo. Já estou nesta casa há onze anos. É como se estivesse em minha casa.

Serviram esturjão, croquetes de frango e uma compota. Os vinhos eram caros, vinhos de França.

— Faça favor, Senhor Doutor... Não faça cerimónias... Coma — dizia Cristina Dmitrievna comendo e limpando a boca à mão (via-se que estava realmente à vontade). Faça favor de comer.

Depois do jantar, levou o médico a um quarto onde lhe tinham preparado uma cama. Mas não tinha sono; o quarto era quentíssimo e cheirava a tintas; vestiu o sobretudo e saiu.

Fora, havia fresco. Já havia um prenúncio de alvorada e, no ar húmido, desenhavam-se os cinco edifícios, com as chaminés, os barracões e os armazéns. Como era domingo, não se trabalhava; as janelas estavam escuras e só duas, num dos edifícios onde ainda estava aceso um forno, pareciam incendiadas; de quando em quando, saía lume pela chaminé, de mistura com o fumo. Ao longe, para lá do pátio, coaxavam rãs e um rouxinol cantava.

Ao olhar os casarões da fábrica e as barracas dos operários, Koroliov voltou aos seus pensamentos do costume. Tinham-se instituído espectáculos para os operários, projecções, médicos privativos, toda a espécie de melhoramentos: mas os operários que ele vira de tarde, na estrada, em nada diferiam dos que tinha visto na sua infância, quando não havia para eles nem espectáculos, nem melhoramentos.

Era médico e tinha sido obrigado a fazer uma ideia exacta das doenças crónicas, cuja causa inicial é incompreensível e incurável; considerava do mesmo modo as fábricas como um equívoco cujas causas são também obscuras e inelutáveis. Todos os

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melhoramentos da sorte dos operários não lhe apareciam, claro, como supérfluos, mas comparava-os ao tratamento das doenças incuráveis.

— Há certamente um engano nesta coisa toda... — pensou olhando as janelas purpúreas. Mil e quinhentos ou dois mil operários trabalham sem descanso, num ambiente insalubre, para fabricarem péssima chita. Vivem na fome e só de tempos a tempos a taberna os liberta do pesadelo. Uma centena de pessoas vigia-lhes o trabalho e a vida destes contramestres passa-se a aplicar multas, a proferir injúrias e a cometer injustiças. E só duas ou três pessoas, chamadas patrões, aproveitam com os lucros, apesar de não trabalharem e de terem desprezo pela chita ordinária. Mas que lucros! E de que maneira os aproveitam! A Lialikov e a filha são umas infelizes e mete pena vê-las. Só a solteirona, a estúpida Cristina Dmitrievna vive à vontade! E trabalha-se numa fábrica destas, com cinco oficinas, e vende-se má chita nos mercados do Oriente, para que uma Cristina Dmitrievna possa comer esturjão e beber madeira.

De repente, repetiram-se os sons estranhos que Koroliov tinha notado antes do jantar. Perto de um dos edifícios, alguém batia numa placa metálica e logo amortecia a ressonância, de modo que os sons eram breves, ásperos, mal definidos, qualquer coisa como «dê... dê.. dê...». Depois, meio minuto de silêncio. E, perto do outro edifício, outros sons sacudidos, mas mais baixos, graves: «dran... dran... dran...».

Repetiram-nos onze vezes. Eram, evidentemente, os guardas a darem as onze horas. Junto do terceiro edifício, ouviu-se: «jak... jak... jak...». A mesma coisa diante de cada um dos edifícios, depois por detrás das barracas e às portas.

Parecia que, na calma da noite, os sons eram produzidos por um monstro de olhos de púrpura: o próprio Diabo, que era aqui o senhor de patrões e de operários e que a uns e outros enganava.

Koroliov saiu para os campos.

— Quem está aí? — gritaram-lhe, com voz grosseira.

— Exactamente como numa prisão — pensou ele.

E não respondeu nada.

Fora, ouviam-se melhor os rouxinóis e as rãs. Sentia-se o cheiro da noite de Maio. Da estação vinham ruídos de comboios; para outro lado, cantavam galos sonolentos; contudo, a noite estava calma: a natureza dormia pacificamente.

No campo, não longe da fábrica, erguia-se o esqueleto duma casa de toros; ao lado, encontravam-se materiais de construção. Koroliov sentou-se numas tábuas e continuou a pensar.

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— Só a governante vive aqui a seu gosto e a fábrica trabalha para a satisfazer. Mas é apenas uma aparência; é uma personagem imaginária: o patrão para quem tudo se faz aqui é o Diabo.

E pensava no Diabo em que não acreditava. E voltava-se para as duas janelas que o lume iluminava.

Parecia-lhe que, por estes olhos de púrpura, o próprio Diabo o olhava: numa palavra, a força desconhecida que estabeleceu as relações entre os fracos e os fortes, o erro grosseiro que nada agora pode emendar. É necessário que o forte impeça o fraco de viver: tal é a lei da natureza. Mas isto não é compreensível e não entra facilmente no espírito senão à luz dum artigo de jornal ou dum manual. No tumultuar da vida quotidiana e no entrelaçar de todos os nadas de que se entretecem as relações humanas, não parece uma lei; é um absurdo lógico, no qual o forte e o fraco são vítimas das suas relações mútuas e se submetem involuntariamente a uma força condutora desconhecida, que reside fora da vida e é estranha ao homem.

Assim pensava Koroliov, sentado sobre as tábuas, invadido pouco a pouco pela impressão de que essa força desconhecida e misteriosa estava realmente perto dele e o contemplava.

Entretanto, o céu a leste empalidecia; os minutos precipitavam-se. Os cinco edifícios da fábrica e as chaminés tinham, sobre o fundo cinzento da madrugada, nessa hora em que não se via alma viva, em que tudo parecia morto, — os edifícios e as chaminés tinham um aspecto especial, diferente do de dia. Esquecia-se por completo que houvesse lá dentro motores a vapor, electricidade e telefones; mais depressa se pensava nas habitações lacustres e na cidade de pedra; sentia-se a presença de uma força grosseira, inconsciente...

E de novo se ouviu:

— Dê... dê... dê... dê...

Doze vezes.

Depois o silêncio — meio minuto de silêncio -, e, na outra extremidade do pátio:

— Dran... dran... dran...

— É bem desagradável, esta coisa... — pensou Koroliov.

E logo ouviu, num terceiro lugar:

— Jak... jak... jak...

O ruído era sacudido, áspero, exactamente como se estivesse aborrecido.

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— Jak... jak...

Para dar a meia-noite foram precisos quatro minutos.

Depois, silêncio completo. E, de novo, a impressão de que tudo estava morto à volta.

Koroliov, depois de estar ainda algum tempo sentado, voltou para casa. Mas ficou ainda muito tempo sem se deitar.

Nos quartos vizinhos conversava-se. Ouvia-se o perpassar de pantufas e de pés descalços.

— Será uma crise? — pensou o médico.

Saiu para ir ver a doente. No quarto havia lá muita claridade; na parede da sala tremia um fraco raio de sol, através do nevoeiro da manhã. A porta estava aberta e Lisa sentara-se numa poltrona perto do leito, de roupão, envolta num xale e com os cabelos caídos. Os estores das janelas estavam corridos.

— Como se sente? — perguntou-lhe Koroliov.

— Obrigada...

Tomou-lhe o pulso, depois arranjou-lhe os cabelos que tinha sobre a testa.

— Não dorme? Está um tempo limpo, é a Primavera... Lá fora cantam os rouxinóis, e a Menina fica aí sentada, às escuras, a pensar não se sabe em quê...

Ela escutava-o e olhava-o. Tinha uns olhos tristes, inteligentes e via-se que queria dizer qualquer coisa.

— Isto dá-lhe muitas vezes? — perguntou ele.

Ela mexeu os lábios e respondeu:

— Muitas vezes... Quase todas as noites me sinto mal. Neste momento, os guardas, no pátio, começaram a dar as duas horas.

Ouviu-se: «Dê... dê...» Lisa teve um sobressalto.

— Estes sons incomodam-na? — perguntou o médico.

— Não sei... — respondeu ela, reflectindo — . . aqui tudo me incomoda, tudo me aborrece. Sinto compaixão na sua voz; pareceu-me desde o primeiro minuto, não sei porquê, que consigo podia falar de tudo...

— Fale, faça favor.

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— Vou dar-lhe a minha opinião. Parece-me que não estou doente, mas atormento-me e tenho medo porque isto tem que ser assim e não pode ser de outra maneira. O ser mais saudável não pode deixar de inquietar-se quando um bandido lhe ronda a porta. Têm todos os cuidados comigo — continuou baixando os olhos e sorrindo timidamente. Estou muito reconhecida e não contesto a utilidade da medicina; mas desejaria falar, não com um médico, mas com alguém que estivesse perto do meu espírito: um amigo que me compreendesse e me demonstrasse que tenho ou não tenho razão.

— Não tem amigos?

— Sinto-me só... Tenho minha mãe e gosto dela. Mas sinto-me só. Calhou assim a minha vida... Quem está só lê muito, mas fala pouco e ouve pouco também; a vida é-lhe misteriosa. É-se místico e vê-se o Diabo onde ele não está; a Tamara de Lermontov era só e via o Demónio.

— Lê muito?

— Muito. Tenho todo o tempo livre, de manhã à noite. De dia leio, à noite tenho a cabeça vazia; em lugar de ideias, passam-me vagas sombras...

— Vê qualquer coisa de noite? — perguntou Koroliov.

— Não... mas sinto.

Sorriu de novo e levantou os olhos para o médico. O seu olhar era cheio de melancolia e cheio de inteligência. Pareceu a Koroliov que Lisa tinha confiança nele, lhe queria falar sinceramente e tinha pensamentos semelhantes aos seus. Mas ela calara-se e esperava talvez que ele falasse.

E sabia bem o que tinha a dizer-lhe. Era evidente que se tornava necessário que ela abandonasse o mais depressa possível os cinco edifícios da fábrica e o seu milhão, se acaso o tinha, e deixasse aquele Diabo que de noite a olhava. Era igualmente claro para Koroliov que ela também o pensava e que esperava que lho dissesse alguém em quem ela tivesse confiança.

Mas o médico não sabia por onde começar... Como havia de ser?... É difícil perguntar aos condenados por que razão os condenaram; e é também aborrecido perguntar aos ricos por que motivo têm necessidade de tanto dinheiro; por que fazem tão mau uso da sua riqueza, por que não a deixam, mesmo quando vêem que aí reside a sua infelicidade... E se se começa a falar disto a conversação é geralmente embaraçada e longa.

— Como hei-de dizê-lo? — pensava Koroliov. — E será preciso?

E disse o que queria, não directamente, mas com uns desvios:

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— A Menina está descontente da sua situação de proprietária de fábrica e de herdeira rica; não acredita nos seus direitos e não dorme. É seguramente melhor do que se estivesse satisfeita e dormisse profundamente pensando que tudo vai bem. A sua insónia é respeitável e, seja o que for, é bom sinal. Com seus pais seria impossível uma conversa semelhante àquela que hoje temos aqui. De noite, não conversavam, dormiam profundamente; mas nós, os desta geração, dormimos mal. Preguiçamos, falamos muito, e consideramos continuamente se temos ou não temos razão. Para os nossos filhos e para os nossos netos já essa questão estará resolvida. Verão mais claro do que nós. Dentro de cinquenta anos, a vida será bela; é pena que não possamos viver até lá. Devia ser bem interessante...

— Que farão então os nossos filhos e os nossos netos? — perguntou Lisa.

— Não sei... Talvez deixem tudo e partam...

— Para onde?

— Para onde? Mas para onde quiserem — disse Koroliov a rir-se. — Há poucos lugares para onde possa ir um homem bom e inteligente?

Olhou para o relógio.

— Já nasceu o Sol. É tempo que durma. Dispa-se e repouse à vontade. Tenho muito prazer em a ter conhecido — disse-lhe ele, apertando-lhe a mão. — É interessante e simpática. Boa noite!

Voltou para o quarto e deitou-se.

No dia seguinte de manhã, quando trouxeram o carro, toda a gente veio acompanhar o médico à porta. Lisa, de vestido branco como num dia de festa, tinha uma flor nos cabelos. Pálida, lânguida, contemplava Koroliov, como de noite, com ar triste e inteligente. Sorria e falava sempre com a mesma expressão de lhe querer dizer alguma coisa de particular, de grave, alguma coisa que fosse só para ele. Ouviram-se as cotovias cantar, os sinos tocavam. As janelas da fábrica brilhavam alegremente. Ao atravessar o pátio e enquanto o conduziam à estação, Koroliov já não pensava nos operários nem nas habitações lacustres, nem no Diabo. Pensava no tempo, já talvez próximo, em que a vida seria tão luminosa e alegre como essa manhã calma de Maio. E pensava em como era agradável, em semelhante manhã de Primavera, viajar num bom carro, com os seus três cavalos, e aquecer-se ao sol.

— Fim —

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Angústia

TchekhovTradução de Tatiana Belinky

“Com quem a dor partilharei?...”

Anoitece. A neve graúda e úmida gira preguiçosamente ao redor dos lampiões recém acesos e deita-se em placas macias e finas nos telhados, nos lombos dos cavalos, nos ombros, nos gorros. O cocheiro Iona Ptápov está todo branco, como um fantasma. Está sentado na boléia, curvado, tão curvado quanto é possível curvar-se um corpo vivo, e não se mexe. Se toda uma avalanche se despencasse sobre ele, nem assim, ao que parece, ele acharia necessário sacudir a neve... A sua eguazinha também está branca e imóvel. Pela sua imobilidade, suas formas angulosas e as pernas retas como paus, até de perto ela parece um cavalinho de pão-de-mel de um copeque. Ao que tudo indica, ela está mergulhada em meditações. Quem foi arrancado do arado, das costumeiras paisagens cinzentas, e atirado aqui, neste atoleiro, cheio de luzes monstruosas, zoeira incessante e gente apressada, este não pode deixar de meditar...

Iona e a sua eguazinha não se movem do lugar já faz muito tempo. Saíram do pátio ainda antes do almoço, porém não fizeram nem uma corrida. Mas eis que a sombra da noite desce sobre a cidade. A luz pálida dos lampiões cede lugar à cor viva e o bulício das ruas torna-se mais ruidoso.

— Cocheiro, para a Viborgskaia! — ouve Iona. — Cocheiro!

Iona estremece e, através dos cílios grudados pela neve, vê um militar de capote e capuz.

— Para Viborgskaia! — repete o militar. — Mas tu estás dormindo, heim? Para Viborgskaia!

Em sinal de assentimento, Iona puxa as rédeas, em conseqüência do que, placas de neve caem dos seus ombros e do lombo do cavalo. O militar toma assento no trenó. O cocheiro estala os lábios, estica o pescoço à maneira de um cisne, soergue-se e, mais por hábito que por necessidade, brande o chicote. A eguazinha também estica o pescoço, arqueia as pernas magras e, insegura, põe-se em movimento.

— Por onde te metes, lobisomem! — ouve Iona, assim que sai, gritar de dentro da massa escura que balança para diante e para trás. — Aonde te carrega o diabo? Para a dirr-reita!

— Não sabes dirigir! Agüenta a direita! — ralha o militar.

Um cocheiro de carruagem particular pragueja ao cruzar e um transeunte, que atravessara a rua correndo e batera com o ombro no focinho da égua, olha furioso e sacode a neve da manga. Iona se contorce na boléia como se estivesse sentado em alfinetes, joga os

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cotovelos para os lados, e seus olhos correm como possessos, como se ele não compreendesse quem é e por que está aqui.

— Como todos são canalhas! — zomba o militar. — Só procuram abalroar-te ou se jogar debaixo do teu cavalo! É que estão todos de conluio contra ti!

Iona olha para trás, para o passageiro, e move os lábios... Vê-se que quer dizer alguma coisa, mas da sua garganta não sai nada, a não ser um som gutural.

— O que é? — pergunta o militar.

Iona torce a boca num sorriso, força a garganta e rouqueja:

— É que... patrão... coisa... o ... meu filho... se finou esta semana.

— Hum!... E de que foi que ele morreu?

Iona volta-se de corpo inteiro para o passageiro e fala:

— E quem sabe lá! Vai ver, foi a febre... Ficou três dias no hospital e se finou... É a vontade de Deus.

— Vira, demônio! — soa na escuridão. — Estás tonto, ou o quê, cachorro velho? Toca para a frente!

O cocheiro torna a esticar o pescoço, a soerguer-se, brandindo o chicote com graça pesada. Depois, por várias vezes, ele se volta para o passageiro, mas este fechou os olhos e, pelo visto, não está disposto a escutar. Deixando-o na Viborgskaia, Iona pára diante de um botequim, dobra-se na boléia e torna a ficar imóvel... De novo a neve úmida tinge de branco a ele e a sua égua. Passa uma hora, outra...

Pelo passeio, pisando ruidosamente com as galochas e altercando, passam três rapazes; dois deles são altos e magros, o terceiro é baixo e corcunda.

— Cocheiro, para a ponte Policial! — grita o corcunda com voz de tremolo. — Nós três — por vinte copeques!

Iona puxa as rédeas e estala os lábios. Vinte copeques não é preço justo, mas ele não está para pensar em preço... um rublo ou cinco copeques, para ele dá na mesma agora — haja passageiros... Os moços, aos empurrões e palavrões, vêm para o trenó e sobem no assento todos ao mesmo tempo! Começa a discussão do problema: quais os dois que irão sentados, e qual o terceiro que irá de pé? Após longos debates, bate-boca e acusações, eles chegam à decisão de que deve viajar de pé o corcunda, por ser o menor.

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— Anda, toca! — range o corcunda, firmando-se e bafejando na nuca de Iona. — Descansa o cavalo! Mas que gorro o teu, heim, mano! Pior não se acha em toda Petersburgo!...

— Hehe... hehe... — gargalha Iona. — É o que é...

— Anda, tu aí, “é o que é”, toca pra frente! É assim que vais andar o caminho inteiro? E que tal um pescoção?

— A cabeça me estala... — diz um dos compridos. — Ontem na casa dos Dukmássov nós dois, o Vaska e eu, limpamos quatro garrafas de conhaque.

— Não entendo por que mentir! — enfeza o outro comprido.

— Mentes que nem um animal!

— Que Deus me castigue se não é verdade...

— É tão verdade quanto um piolho tossir.

— He... he... — ri Iona. — Os senhores alegres...

— Arre, que os diabos te carreguem!... — indigna-se o corcunda. — Vais andar, carcaça velha, ou não? Isto é maneira de dirigir? Chicote nela! Upa, diabo! Upa! Dá-lhe rijo!

Iona sente atrás das costas o corpo irrequieto e a vibração da voz do corcunda. Ouve os insultos que lhe são dirigidos, vê a gente, e o aperto da solidão pouco a pouco começa a afrouxar no seu peito. O corcunda continua a imprecar até que engasga num palavrão de seis andares e desanda a tossir. Os dois compridos põem-se a conversar sobre uma certa Nadejda Petrovna. Iona olha para eles por cima do ombro. Escolhendo um momento propício, volta-se novamente e balbucia:

— E eu nesta semana...coisa... finou-se meu filho!

— Todos vamos nos finar... — suspira o corcunda, enxugando os lábios depois do acesso de tosse. — Anda, toca, toca! Deus meu, palavra que não agüento mais viajar assim! Quando é que nós vamos chegar?

— Você poderia animá-lo um pouquinho — na nuca!

— Estás ouvindo, traste velho? Vou te encher de pescoções! Se a gente começa a fazer cerimônia com a tua laia, acaba andando a pé! Estás ouvindo, Dragão Gorinitch? Ou não te importa o que dizemos?

E Iona ouve, mais do que sente, o ruído do pescoção.

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— Heehe... — ri ele. — Que senhores alegres... benza-os Deus!

— Cocheiro, és casado? — pergunta um dos compridos.

— Eu, é? Hehe... alegres senhores! Eu agora só tenho uma mulher — a terra úmida... Hehe... hoho... A sepultura, é o que é!... O filho, este morreu... e eu estou vivo... Coisa esquisita, a morte errou de porta... Em vez de vir me buscar, foi ao filho...

E Iona volta-se para contar como morreu seu filho, mas aí o corcunda suspira aliviado e declara que, graças a Deus, eles já chegaram, finalmente. Tendo recebido os vinte copeques, Iona finca longamente o olhar no encalço dos farristas, que desaparecem num portão escuro. Outra vez ele está só, e outra vez o silêncio cai sobre ele... A angústia, que amainara um pouco, surge de novo e oprime o peito com força maior ainda. Os olhos de Iona correm aflitos e martirizados pelas turbas que se agitam de ambos os lados da rua: não haverá no meio dessas milhares de pessoas ao menos uma que quisesse ouvi-lo? Mas as turbas correm sem notá-lo, nem a ele, nem à sua angústia... Angústia enorme, que não conhece limites. Se estourasse o peito de Iona e a angústia se derramasse, ela inundaria, parece, o mundo inteiro — e no entanto, ela é invisível. Ela conseguiu aninhar-se numa casca tão ínfima, que não se pode enxergá-la nem com lanterna à luz do sol...

Iona vê um zelador de prédio com um saco na mão e decide falar com ele.

— Mano, que horas serão? — pergunta ele.

— Passa das nove... E por que ficas parado aqui? Vai andando!

Iona afasta-se alguns passos, dobra o corpo e entrega-se à angústia... Dirigir-se aos homens ele já considera inútil. Mas não passam nem cinco minutos e ele se endireita, sacode a cabeça como se sentisse uma dor aguda e puxa as rédeas... Ele não agüenta mais.

“Para casa — pensa ele. — Para casa!”

E a eguazinha, como que adivinhando-lhe o pensamento, põe-se a correr a trote miúdo. Cerca de hora e meia depois, Iona já está sentado junto a uma estufa grande e suja. Em cima da estufa, nos bancos, no chão, homens estão roncando. O ar está denso e abafado... Iona olha para os dorminhocos, coça-se, e lamenta que voltou para casa tão cedo.

“Não ganhei nem para a aveia”, pensa ele. “É por isso que estou aflito. Um homem que entende do seu trabalho... que está de barriga cheia e o cavalo também, este está sempre sossegado...

Num dos cantos, acorda um cocheiro moço, pigarreia e estende a mão para o balde de água.

— Deu vontade de beber? — pergunta Iona.

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— De beber, pelo visto!

— Pois é... Bom proveito... Pois eu, mano... morreu meu filho... Soube? Esta semana, no hospital... Que história!

Iona olha para ver o efeito que produziram suas palavras, mas não vê nada. O moço puxou a coberta por cima da cabeça e já dorme. O velho suspira e se coça. Assim como o moço tinha vontade de beber, ele tem vontade de falar. Logo vai fazer uma semana que o filho morreu, e ele ainda não conversou direito com ninguém... É preciso conversar com vagar, com calma... É preciso contar como o filho ficou doente, como sofreu, o que disse antes de morrer, como morreu. É preciso descrever o enterro e a viagem ao hospital para buscar a roupa do defunto. Na aldeia ficou uma filha, Aníssia... Também dela é preciso falar... Há tanta coisa de que poderia falar agora... O ouvinte deve gemer, suspirar, compadecer-se... Melhor ainda seria falar com mulheres. Elas podem ser burras, mas põem-se a chorar à segunda palavra.

“Vou ver o cavalo — pensa Iona. — “Sempre terei tempo para dormir... Dormirei até que chegue...”

Iona se veste e vai para a cavalariça, onde está a sua égua. Ele pensa na aveia, na palha, no tempo... No filho, quando está sozinho, ele não consegue pensar. Falar com alguém a respeito do filho, isso ele poderia, mas pensar sozinho e imaginá-lo é-lhe insuportável e assustador...

— Mastigas? — pergunta Iona ao seu cavalo, vendo-lhe os olhos brilhantes. Mastiga, anda, mastiga... Se não ganhamos para a aveia, comeremos palha... Pois é... Já estou velho para este trabalho... O filho é que devia trabalhar, e não eu... Aquele sim é que era cocheiro de verdade... Se ao menos vivesse...

Iona cala-se um pouco, depois continua:

— Assim é, mana egüinha... Não temos mais Kusma Ionitch... Foi-se desta para melhor... Pegou e morreu, à toa... Agora, imagina tu, por exemplo — tu tens um potrinho, e tu és a mãe desse potrinho... E de repente, imagina, esse mesmo potrinho se despacha desta para melhor... Dá pena ou não dá?

A eguazinha mastiga, escuta e esquenta com seu bafo as mãos do dono...

Iona se deixa arrebatar e conta-lhe tudo...

— Fim —

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O bispo

TchekhovTradução de Maria Jacintha

I

Na véspera do Domingo de Ramos celebraram-se os últimos ofícios divinos, no Mosteiro de Staro-Petrovsky. Quando distribuíam os ramos, já eram quase dez horas, as luzes baixavam, os pavios queimavam — e tudo parecia envolto em bruma. Na penumbra da igreja, a multidão ondulava como um mar e Monsenhor Piotr, doente há três ou quatro dias, tinha a impressão de que todos os rostos — dos velhos, dos jovens, dos homens, das mulheres — se assemelhavam; de que os olhos de todos quantos se aproximavam para receber o ramo eram iguais, em sua expressão. A semi-escuridão impedia-o de distinguir a porta, a multidão continuava a desfilar, dir-se-ia que interminavelmente. Um coro de mulheres cantava. Uma religiosa lia os cânones.

Sufocava-se. Que calor! E como fora longo o ofício! Monsenhor Piotr estava fatigado, respiração ofegante, curta, seca, ombros doendo de cansaço, as pernas trêmulas. Enervava-se com as exclamações dos homens simples. Subitamente, como em sonho, ou em delírio, pareceu-lhe ver sua mãe, que não via há nove anos, destacar-se da multidão e aproximar-se... sua mãe, ou uma mulher parecida com ela, que, depois de receber o ramo de suas mãos, afastou-se, não sem olhá-lo alegremente, como seu bom e radioso sorriso... até perder-se no meio do povo. E, sem poder conter-se, lágrimas correram pelo seu rosto.

Sua alma estava em paz, tudo corria bem, ele olhava fixamente o coro da esquerda, onde limam os cânones, sem poder reconhecer ninguém, na penumbra, e chorava — as lágrimas brilhando em sua barba e em todo o rosto. Alguém começou a chorar, não muito longe, depois mais alguém; pouco a pouco a igreja encheu-se de soluços contidos... até que, minutos depois o coro do convento entoou um hino, os prantos cessaram e tudo voltou ao normal.

O ofício terminou. Enquanto o bispo tomava assento em seu carro, para voltar à casa, em todo o jardim iluminado pelo luar ressoaram o belo e sonoro carrilhão e os pesados e preciosos sinos. As paredes brancas, as cruzes brancas sobre os túmulos, as bétulas brancas projetando sombras negras, a lua longínqua, no céu, bem sobre o mosteiro, tudo parecia viver, no momento, uma vida singular¸ misteriosa — mais próxima, porém, do homem.

Abril começava, o dia fora tépido e primaveril, começava a gelar, levemente, embora se sentisse, na atmosfera doce e fresca, o sopro da primavera. A estrada que levava à cidade era arenosa, precisava-se andar lentamente os peregrinos ladeando a carruagem, sob a claridade e a maciez do luar. Todos calados, recolhidos; tudo, em torno, acolhedor, jovem, fraterno — árvores, céu, a própria lua. E era bom sonhar que seria sempre assim.

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A carruagem chegou, enfim, à cidade e tomou a rua principal. As lojas já estavam fechadas, salvo a de Erakine, o milionário, onde se experimentava a iluminação elétrica, muito tremulante, ainda, em torno da qual as pessoas se agrupavam. Em seguida, atravessou ruas longas e sombrias, ruas desertas; depois, a estrada construída pelo zemstvo — alcançando, enfim, o campo, de onde emanava o odor dos pinheiros. Subitamente, erguida diante de seus olhos, uma muralha branca, ameada, fazendo fundo para um alto campanário inundado de luz, e para cinco cúpulas douradas, resplandecentes: o Mosteiro de São Pancrácio, morada de Monsenhor Piotr. Sobre a qual, também, muito alta e dominando o convento, pairava a lua, tranqüila e sonhadora. A carruagem transpôs o portão, fazendo ranger a areia. Aqui e ali, ao luar, passavam fugitivas silhuetas negras de monges, os passos ressoando nas lajes de pedra.

— Monsenhor, sua mãe chegou, em sua ausência — anunciou um irmão leigo, quando o bispo entrou.

— Mamãe? Quando? Antes dos últimos ofícios. Perguntou logo onde estava o senhor. Depois, foi para o convento das freiras.

— Então, foi ela mesma que vi na igreja. Ah! Senhor!

E o bispo riu de alegria, enquanto o irmão leigo continuava:

— Madame mandou dizer que voltará amanhã. Trouxe com ela uma menina... deve ser sua neta. Desceu no Albergue de Ovsiannikov.

— Que horas são?

— Mais de onze.

— Que pena!

O bispo ficou um instante no salão, meditativo, como se duvidasse de que fosse tão tarde. Sentou-se, as pernas e os braços cansados, a nuca dolorida. Sentia calor, certo mal-estar. Após curto repouso, retirou-se para seu quarto, onde ainda ficou sentado um instante, pensando na mãe. Ouviu distanciarem-se os passos do irmão leigo e a tosse do padre Sissol, atrás do tabique. O relógio soou meia hora.

O bispo mudou de roupa e pôs-se a dizer as velhas preces que conhecia há muito tempo, pensando em sua mãe. Nove filhos e quase quarenta netos. Em outros tempos morava com o marido, diácono de seu distrito, uma pobre aldeia onde vivera durante muito tempo, dos dezessete aos sessenta anos. Lembrava-se dela desde a mais remota infância, desde os três anos. Amava-a muito. Doce, querida, inolvidável infância! Por que esse tempo se fora para sempre? Assim distante, sem retorno, parecia mais radiosa, mais bela e mais rica do que na realidade. Quando, menino ou adolescente, adoecia, como sua mãe sabia ser terna, sensível! E, agora, suas preces misturavam-se às recordações que se

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reacendiam, como uma chama cada vez mais viva, que não o impedia de pensar em sua mãe.

Terminada a oração, deitou-se: no escuro, reviu seu pai e sua mãe, Lessopolia e sua cidade natal. Ao rangidos das rodas, os balidos dos carneiros, o carrilhão da igreja nas claras manhãs de verão, os ciganos mendigando às janelas... ah! Como era doce recordar! Lembrou-se do padre de Lessopolia, padre Simeon, um homem terno, tranqüilo, benevolente. Era baixo, magro, mas seu filho seminarista era corpulento, voz forte de baixo. Um dia, o filho do pope irritou-se com a cozinheira e injuriou-a: “Jumenta de Zegouldil!” O Padre Simeon nada disse, mas corou de confusão, porque não conseguia recordar-se da passagem da Sagrada Escritura, que falava nessa jumenta. Seu sucessor, em Lessopolia, o Padre Demiani, bebia até ao delírio, quando via “a ser pente verde” — o que lhe valeu o apelido de Demiane da Serpente. O professor de Lessopolia era o antigo seminarista Matvei Nicolaitch, homem excelente, nada tolo, mas bêbado, também. Não batia nos alunos, mas pendurava, diariamente, na parede da sala de aula, um apanhado de varas de bétula, sobre o qual lia-se uma inscrição em latim, realmente assombrosa: Betula kinderbalsamica secuta. Possuía um cão negro e crespo, chamado Sintaxe. E o bispo ria, à recordação disso tudo.

A oito verstas de Lessopolia, situava-se a aldeia de Obnino, onde existia um ícone miraculoso. No verão, levavam-no, em procissão, pelos lugarejos vizinhos — e, à sua passagem, os sinos repicavam. Monsenhor tinha a impressão de que o ar palpitava de alegria e ele seguia o ícone de cabeça e pés nus, com ingênua fé, sorriso devoto, infinitamente feliz. Em Obnino, lembrava-se, havia sempre muita gente o padre do lugar, padre Aleixo, para ter tempo de chegar ao ofertório, fazia ler por seu sobrinho Hilarion, que era surdo, os papeizinhos e os nomes escritos nos pães de consagração... “pela saúde de...”, “pelo repouso de...” Para lê-los, Hilarion recebia de cinco a dez copeques por missa. Já era um homem grisalho e calvo, sua juventude já passara, quando descobriu um papel em que haviam escrito: “Como podes ser tão tolo, Hilarion?” Pelo menos até aos quinze anos, monsenhor, a quem, então, chamavam Popaul, era muito atrasado e trabalhava muito mal, em aula. Tão mal que haviam pensado em retirá-lo do seminário e colocá-lo em uma loja. E havia, ainda, aquele dia em que, indo buscar as cartas no correio, observara longamente os empregados e lhes perguntara: “Permitam-me indagar como são pagos... Por mês, ou por dia?”

Monsenhor benzeu-se e, voltando-se para outro lado, fugindo a recordar, adormeceu. Ainda teve tempo de pensar e de sorrir: “Mãe chegou...”

A lua entrava pela janela, iluminando o assoalho e povoando-o de sombras. Um grilo cantava. Atrás do tabique, no compartimento vizinho, o Padre Sissol roncava e seu roncar de velho tinha qualquer coisa de solitário, de repousado, talvez mesmo de vagabundo. Em outros tempos, Sissol havia sido ecônomo da diocese — e era agora chamado de “ex-padre ecônomo”. Tinha setenta anos, morava em um convento a dezesseis verstas da cidade. Três dias antes, chegara ao Convento de São Pulcrácio, onde monsenhor o retivera para, nas horas possíveis, conversar com ele sobre seu tempo perdido, sobre negócios e hábitos locais...

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A uma hora e meia soaram as matinas. Ouviu-se o padre Sissol tossir, resmungar, erguer-se e passear descalço de um quarto a outro. Monsenhor chamou:

— Padre Sissol!

Sissol voltou ao seu quarto e apareceu, pouco depois, já de botas calçadas, com uma vela na mão. Vestira a batina sobre a camisola e trazia, à cabeça, um velho solidéu desbotado. Sentando-se na cama, monsenhor disse:

— Não consigo dormir. Devo estar doente... sei lá o que tenho. Estou com febre.

— Deve Ter sido a friagem, monsenhor. Precisa fazer uma fricção com sebo...

Esperou ainda um instante. Bocejou...

— Senhor, perdoai a este pobre pecador!

Acrescentou:

— Instalaram eletricidade, hoje, em casa de Ekarine. É uma coisa que não me agrada.

O Padre Sissol já era idoso. Muito magro, curvado, sempre descontente, olhar colérico, olhos proeminentes como os dos caranguejos. Repetiu, retirando-se:

— Não me agrada, mesmo. Não me agrada, absolutamente!

II

No dia seguinte, Domingo de Ramos, monsenhor celebrou a missa, na catedral, dirigindo-se, depois, à casa do bispo da diocese e, em seguida à de uma velha generala, muito doente. Voltou à casa e, a uma hora, estava sentado à mesa, em companhia de duas visitantes, muito caras a seu coração: sua velha mãe e sua sobrinha Katia, menina de uns oito anos. Durante a refeição, um, sol primaveril iluminou a janela, resplandeceu sobre a toalha branca e sobre os cabelos ruivos de Katia. Através dos duplos caixilhos, ouvia-se o crocitar dos corvos e o canto dos estorninhos, no jardim. A velha senhora dizia:

— Há exatamente nove anos que não nos vemos. Ontem, no convento, o que senti quando o vi, meu Deus! Não mudou em nada, apenas emagreceu um pouco e sua barba está mais longa. Rainha do Céu, Mãe Nossa! Não pude deixar de chorar... ninguém pôde deixar de chorar, quando oficiou as completas. Não sei por que, bruscamente, pus-me a chorar... por quê? Nem eu mesma o sei... É a vontade divina!

A despeito do tom carinhoso com que falava, sentia-se que não estava à vontade, não sabendo se deveria dizer-lhe tu, ou vós, rir, ou não — muito mais esposa de diácono, do que mãe de bispo. Sem pestanejar, Katia fixava monsenhor seu tio, como se procurasse adivinhar que homem era ele. Cabelos penteados em forma de auréola, presos por uma

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travessa e por uma fita de veludo, nariz arrebitado, olhos astuciosos — e tão inquieta que, antes de sentar-se à mesa, quebrara um copo. Agora, enquanto falava, sua avó ia afastando dela ora um copo de vinho, ora um pequeno cálice. Monsenhor ouvia sua mãe e lembrava-se de que, outrora, há muitos anos, ela o levava e a seus irmãos à casa dos parentes que considerava ricos. Naquele tempo, preocupava-se por seus filhos... Hoje, por seus netos... E havia trazido Katia...

— Sua irmã Varia tem quatro filhos. Katia é a mais velha. Ivan, meu genro, caiu doente, antes da Assunção, só Deus sabe de quê, e morreu, em três dias. Agora, minha Varia é obrigada a mendigar pelas ruas.

— E Nicanor? — perguntou monsenhor, referindo-se a seu irmão mais velho.

— Não vai mal, graças a Deus. Digo que não vai mal e agradeço a Deus, porque tem do que viver. Somente meu neto Nicolai não quis ser padre; está na faculdade, estudando para médico. Acha que será melhor... mas quem sabe? É a vontade de Deus.

— Nicolai corta cadáveres — disse Katia, derramando água sobre os joelhos.

Calmamente, a avó disse, tirando-lhe o copo das mãos:

— Fica quieta, pequena. Reza, enquanto comes.

Acariciando ternamente o ombro e o braço da mãe, monsenhor disse:

— Há quanto tempo não nos vemos! Senti muitas saudades suas, no estrangeiro, mamãe. Muitas, mesmo.

— Obrigada.

— À noite, sentava-me junto à janela, sozinho, ouvindo a música lá fora. Então, subitamente, a nostalgia tomava-me de assalto... e eu creio que teria dado tudo para poder voltar a vê-la.

Ela sorriu, seu rosto iluminou-se. Mas logo retomou o seu ar sério e disse:

— Obrigada.

Repentinamente, o humor do bispo transformou-se. Olhava sua mãe, sem poder compreender de onde vinha aquela expressão respeitosa, tímida em seu rosto e em sua voz. Não a reconhecia. Sentiu-se triste. Depois, como na véspera, sua cabeça tornou-se pesada, suas pernas começaram a doer... o peixe pareceu-lhe insípido... não conseguia acalmar a sede...

Após o jantar, recebeu a visita de duas senhoras, ricas, proprietárias, que se demoraram mais de uma hora, em silêncio, pesando no ambiente, com seus rostos alongados; do

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arquimandrita, homem taciturno e surdo, que fora tratar de negócios. As vésperas soaram, o sol escondeu-se atrás da floresta e o dia terminou. Regressando da igreja, monsenhor fez apressadamente suas orações e meteu-se na cama, agasalhando-se muito.

O peixe do almoço lhe deixara uma sensação desagradável. O luar o incomodava. Ouviu vozes: em um outro compartimento, no salão, provavelmente o Padre Sissol conversava sobre política.

— Os japoneses estão em guerra. Estão se batendo. Os japoneses, minha cara senhora, são a mesma coisa que os montenegrinos... são da mesma raça. Estiveram juntos sob o jugo turco...

Ouviu a voz da mãe:

— Então, depois de termos feito nossas orações, depois de bebermos chá, fomos à casa do Padre Iegor, em Novokhatnoia...

E, a cada cinco minutos, repetiu: “depois de tomarmos chá...” Dir-se-ia que, em toda a sua vida, ela só aprendera a tomar chá. Lentamente, vagamente, voltavam à memória do monsenhor o pequeno e o grande seminário. Por mais de três anos, fora professor de grego... já não podia ler sem óculos... Quando recebeu a tonsura, foi nomeado inspetor. Em seguida, defendeu tese. Aos trinta e dois anos, era diretor do seminário. Já sagrado arquimandrita. A vida tornou-se, então, de tal maneira fácil e agradável, tão longa que parecia não Ter fim. Foi quando caiu doente. Emagreceu muito, ficou quase cego e, a conselho médico, abandonou tudo e partiu para o estrangeiro.

Na sala vizinha, Sissol perguntou:

— E depois?

— Depois, bebemos chá — respondeu sua mãe.

— Meu pai, sua barba é verde! — disse, subitamente,Katia.

Lembrando-se de que, realmente, a barba grisalha do Padre Sissol tinha reflexos verdes, monsenhor pôs-se a rir.

Ouviu a voz colérica do Padre Sissol:

— Meu Deus, que maldição de criança! Como é mal-educada! Fica quieta!

Monsenhor reviu a igreja branca, novinha, onde oficiava no estrangeiro... Recordou o ruído do mar tranqüilo. Seu apartamento constituía-se de cinco peças, altas e claras. Em seu gabinete de trabalho, havia uma escrivaninha nova e uma biblioteca; ele escrevia e lia muito. Lembrou-se de sua nostalgia de então; de um mendigo cego que, diariamente, cantava, sob suas janelas, canções de amor, acompanhadas de guitarra, e de que, cada vez

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que o ouvia, pensava no passado. Mas oito anos haviam decorrido, ele fora chamado à Rússia e, agora, era bispo sufragâneo — todo seu passado desaparecido muito longe, na bruma, como um sonho...

Com uma vela na mão, Padre Sissol entrou no quarto. Espantou-se:

— Já está dormindo, monsenhor?

— Que tem isso?

— É muito cedo, ainda... Comprei uma vela de sebo e gostaria de friccionar suas costas...

— Estou com febre. E muita dor de cabeça. Evidentemente, é preciso fazer alguma coisa — disse monsenhor, sentando-se.

Sissol tirou-lhe a camisa e fez-lhe uma fricção no peito e nas costas, com sebo.

— Assim... assim... Senhor Jesus! ... Assim... Hoje estive na cidade, em casa de... como se chama mesmo ele...? Em casa do Arquiprior Sidonski... Tomei chá com ele... Não simpatizo com ele... Senhor Jesus... Assim... Assim... Pois é, não simpatizo com ele...

III

O bispo da diocese, homem idoso e obeso, vencido pelo reumatismo, ou pela gota, não se levantava da cama há mais de um mês. Monsenhor Piotr visitava-o diariamente e dava audiência, em seu lugar. Agora, que também sofria, pensava, chocado, no vazio e na pequenez de tudo quanto lhe pediam, de tudo por que se lamuriavam os que iam procurá-lo. A timidez e o atraso dessas pessoas o irritavam. Todas as frivolidades, todas as coisas ociosas o esmagavam: tinha a impressão de que, enfim, compreendia o bispo titular que, outrora, em sua juventude, escrevera um Tratado do Livre Arbítrio, e parecia-lhe que, agora, sua personalidade se constituía apenas de detalhes, que tudo esquecera, que não pensava mais em Deus. No estrangeiro, desacostumara-se da vida russa — e agora sentia muito seu peso. Chocava-se com a grosseria do povo, com os pedidos tolos dos que apelavam a seu auxílio, com a incultura dos seminaristas e professores, autênticos selvagens, na maioria das vezes. O correio que enviava, ou recebia, existia na proporção de dez para mil — e que correio! Os deãos de todas as dioceses davam notas à conduta dos padres, jovens e velhos, a suas mulheres, a suas crianças e era preciso comentar tudo isso, escrever cartas sérias a respeito, ler. Não lhe restava, positivamente, um só minuto de liberdade, seu espírito sempre inquieto, só sentindo tranqüilidade na igreja.

Também não conseguia acostumar-se ao medo que inspirava, involuntariamente, apesar de sua doçura e de sua discrição. Todos os habitantes da paróquia ficavam intimidados, contritos em sua presença —humildes e assustados. Mesmo os velhos arquimandritas anulavam-se diante dele — e, bem recentemente, uma solicitante, a velha esposa de um pope de província, sentira tanto medo, ao defrontá-lo, que não pudera articular uma só palavra e partira sem nada lhe solicitar. E ele que, em seus sermões, jamais pudera ser

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severo, que jamais dirigira, a quem quer que fosse, uma censura, pois sentia piedade, perdia a linha, encolerizava-se e atirava todos os pedidos no chão. Desde que chegara, ninguém lhe havia falado sinceramente, humanamente, com simplicidade. Sua própria mãe não era a mesma. Por que falava sem cessar e ria tanto com Sissol, enquanto com ele, seu filho, era tão grave, tão taciturna, tolhida por um constrangimento que não combinava com ela? A única pessoa que sentia à vontade, em sua presença, dizendo tudo o que queria dizer, era o velho Sissol, que durante toda a sua vida servira a bispos, dos quais já enterrara onze. E também ele, monsenhor, sentia-se à vontade com ele, embora fosse, incontestavelmente, um homem difícil e ardiloso.

Na terça-feira, depois da missa, ao receber os solicitantes, no bispado, monsenhor agitou-se, exaltou-se. Ao entrar em casa, sempre indisposto, desejava deitar-se. Mal chegou, porém, anunciaram-lhe o jovem solicitante Erakine, generoso benfeitor das boas obras, que lhe pedia audiência, para tratar de um assunto muito importante. Não pôde recusar-se. Erakine demorou perto de uma hora; falava alto, quase aos gritos — e monsenhor custara a entender o que dizia.

Ao sair, disse:

— Deus permita que assim seja! É absolutamente necessário! De acordo com as circunstâncias, Reverendíssima Excelência! Desejo ardentemente que assim seja!

Após Erakine, recebeu a madre superiora de um longínquo convento. E quando ela se retirou, soaram as vésperas; teve que voltar à igreja.

À noite, os monges entoaram um canto harmonioso e inspirado. Um jovem monge, de barba negra, oficiava. E monsenhor, ouvindo os versos sobre o esposo que veio à meia-noite e, encontrando a casa enfeitada, não sentia arrependimento de seus pecados, nem aflição, mas sim calma e paz interior, deixou seu pensamento voar para um distante passado — sua infância e sua juventude, quando se cantava também esse esposo que chega à meia-noite a essa casa adornada. Agora, esse passado parecia-lhe vivo, magnífico, radioso, como talvez nunca o tivesse sido. Quem sabe, em outro mundo, em outra vida, também recordemos nosso longínquo passado e nossa vida terrena, sentindo-os, assim, vivos e próximos... quem sabe?

Estava escuro. Sentado perto do altar, monsenhor deixava correr suas lágrimas, sonhando que atingira a tudo que era acessível a um homem de sua posição. Tinha fé. Mas nem tudo estava claro, faltava-lhe qualquer coisa, não queria morrer: essa qualquer coisa que lhe faltava era, talvez, o essencial de sua vida, com o que confusamente sonhara, outrora. No presente, a mesma esperança em um futuro, acompanhando-o, desde o seminário, desde que estivera fora de seu país.

E pensava, ouvindo atentamente os cânticos:

— Como estão cantando bem, hoje! Como cantam bem!

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IV

Na quinta-feira, oficiou na catedral e também na cerimônia de lava-pés. Quando o serviço terminou e os fiéis se retiraram, fazia sol, o tempo estava quente, alegre, a água murmurava nos riachos — e nos arredores, vindo do campo, soava o canto ininterrupto das andorinhas, um canto pleno de ternura, convidando ao repouso. As árvores, despertas, pareciam sorrir gentilmente e o céu insondável, ilimitado, perdia-se muito longe, só Deus saberia onde.

Em casa, Monsenhor Piotr tomou chá, mudou de roupa e deitou-se, pedindo ao irmão leigo que fechasse as janelas. A escuridão invadiu o quarto. Mas que cansaço, que dor nas pernas e nas costas, que sensação de peso, de frio, que zoada nos ouvidos! Fazia muito tempo que não dormia longamente. Tinha a impressão de que o que o impedia de adormecer era um quase nada que se erguia em seu cérebro, logo que fechava os olhos. Como na véspera, chegavam-lhe, de compartimentos vizinhos, através dos tabiques, vozes, ruídos de copos, de colheres... Sua mãe contava, alegremente, uma estória pitoresca, semeada de provérbios. Padre Sissol respondia, com voz sombria e descontente:

— Ah! Que gente! Que coisa! Ainda esta!

E monsenhor sentia-se novamente contrariado, mortificado, porque sua velha mãe se mostrava natural e simples, com os estranhos, enquanto diante dele, seu filho, intimidava-se, pronunciando raras palavras, que não correspondiam a seus pensamentos. Até mesmo... pelo menos lhe parecera... até mesmo procurava pretextos para se levantar, quando ele estava presente, constrangida, evitando ficar sentada em sua presença. E seu pai? Sem dúvida, se fosse vivo, também não poderia falar, diante dele...

No quarto vizinho, um objeto caiu ao chão e quebrou-se. Teria sido obra de Katia, deixando cair uma xícara, ou um pires, pois logo se ouviu a voz do Padre Sissol, irritado:

— Maldita menina! Senhor, perdoa-me estas palavras de pecador! Que flagelo!

Depois, fez-se silêncio. Ouviam-se, apenas, os ruídos vindos de fora. Quando monsenhor reabriu os olhos, viu Katia, observando-o, imóvel. Com seus cabelos ruivos, levantados por uma travessa em forma de auréola — como sempre. Perguntou-lhe:

— És tu, Katia? Quem está a todo instante abrindo e fechando lá em baixo?

— Não ouço nada — respondeu Katia.

— Alguém acaba de passar.

— É em sua barriga, tio.

Ele riu e acariciou-lhe a cabeça.

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— Então, teu primo Nicolai corta cadáveres? — perguntou, depois de um curto silêncio.

— Sim... Está estudando.

— Ele é gentil?

— Muito. Só que tem que beber, É terrível.

— E teu pai? De que morreu?

— Papai era muito fraco... magro... magro... De repente, ficou atacado da garganta. Eu e meu irmão também adoecemos... meu irmão Fiodor, sabe? Todos ficaram doentes da garganta. Pai morreu, tio, mas nós todos ficamos bons.

Seu queixo começou a tremer, lágrimas brotaram de seus olhos, rolaram pelo rosto. Disse, com voz fraca, chorando agora amargamente:

— Monsenhor,, mamãe e eu somos tão desgraçadas... Dê-nos um pouco de dinheiro... Faça-nos esta caridade, querido tio!

Monsenhor sentiu, também, lágrimas brotando em seus olhos. A emoção o impediu, por um momento, de falar. Depois, acariciou, mais uma vez, a cabeça da menina, bateu-lhe carinhosamente nas costas e respondeu:

— Bem... bem, minha querida. Está chegando o dia da Páscoa... Voltaremos a falar neste assunto. Vou ajudá-las, sim... vou ajudá-las...

Viu a mãe entrar, timidamente, para uma oração diante do ícone. Notando que ele não dormia, perguntou-lhe:

— Quer tomar uma sopinha?

— Não, obrigado. Estou sem fome.

—Está muito abatido... mas também como não ficar doente? Os dias inteiros sem repousar... meu Deus, só de olhá-lo sinto pena! Felizmente, a Semana Santa está próxima e, se Deus quiser, ;poderá descansar e poderemos conversar. Agora, não quero incomodá-lo com as minhas tagarelices. Vem, Katia... Deixa monsenhor dormir um pouco.

Lembrou-se de que, quando era pequeno, há muitos anos, sua mãe falava ao deão no mesmo tom, ao mesmo tempo brincalhão e respeitoso... Somente seus olhos, extraordinariamente bondosos, o olhar tímido, preocupado, que ela lhe lançara, ao sair, deixavam transparecer que era sua mãe. Fechou os olhos. Mas não adormeceu. Ouviu, por suas vezes, o relógio soar — e a tosse do Padre Sissol, atrás do tabique. Uma carroça, ou uma caleça, a se julgar pelo ruído, aproximou-se da escadaria. Uma pancada súbita, uma porta batendo... O irmão leigo entrou:

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— Monsenhor!

— Sim?

— Os cavalos estão prontos: já é hora do ofício da Paixão.

— Que horas são?

— Sete e quinze.

— Vestiu-se e dirigiu-se à catedral. Durante a leitura dos evangelhos, era obrigado a fica de pé, imóvel, no meio da igreja. O primeiro evangelho, o mais belo e o mais longo, ele próprio o dizia. Sentiu-se novamente forte e bem disposto.

Esse primeiro evangelho — “Glória a Ti, ó Filho do Homem” — ele sabia de cor. Às vezes, enquanto o recitava, olhava em torno e via um mar de olhos. E ouvia o crepitar dos círios. Mas não lhe pareciam os mesmos fiéis dos anos precedentes, nem mesmo os reconhecia... Eram as mesmas gentes dos tempos de sua infância e de sua juventude, que seriam sempre as mesmas a cada ano que passasse... Até quando? Só Deus o sabia.

Seu pai era diácono, seu avô padre, seu bisavô diácono... toda a sua ascendência, talvez, depois da evangelização da Rússia, pertencera ao clero — e o amor de seu ministério, do sacerdócio, do carrilhão, era, nele, inato, profundo, desenraizável. Era na igreja, sobretudo quando oficiava, que se sentia mais ativo, disposto, feliz. E era o que lhe acontecia, naquele instante.

Somente depois da leitura do oitavo evangelho, sentiu que sua voz enfraquecera, nem mesmo sua tosse se ouvia, a cabeça doendo-lhe terrivelmente: teve medo de cair. Com efeito, suas pernas estavam completamente entorpecidas, a ponto de, pouco a pouco, não mais as sentir. Não compreendia como e sobre que se sustentava, por que não caía...

Terminado o ofício, faltavam quinze para meia-noite. Voltando à casa, trocou de roupa e deitou-se imediatamente, sem mesmo dizer suas orações. Não podia falar, sentia-se incapaz de manter-se em pé. E foi exatamente enquanto se cobria que um súbito desejo de partir o dominou... partir para o estrangeiro, uma irresistível vontade... Parecia-lhe que teria dado sua vida para não mais ver aqueles horríveis postigos, aqueles tetos baixos — e não mais sentir o pesado cheiro do convento. Se ao menos existisse um homem a quem pudesse falar, abrir sua alma!

Ouviu por muito tempo passos no quarto vizinho, sem conseguir lembrar-se de quem eram. Por fim, a porta abriu-se e o Padre Sissol entrou com uma vela e trazendo-lhe uma xícara de chá.

— Já está deitado, monsenhor? Vim fazer-lhe uma fricção, com vodca e vinagre. Uma boa fricção sempre faz bem. Senhor Jesus! Estou acabando de chegar de nosso

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convento... Ele não me agrada, não me agrada! Vou-me embora amanhã, Excelência... Não desejo ficar nem mais um dia. Senhor Jesus... Pronto!

O Padre Sissol não gostava de permanecer por muito tempo em um lugar e já estava com a impressão de que passara o ano inteiro em São Pancrácio. Além disso, ouvindo-o, era difícil saber onde ficava sua casa, se ele amava alguém, ou qualquer coisa, se acreditava em Deus... Ele próprio não compreendia por que era monge... Aliás, ele não pensava mais nisso, há muito tempo se apagara, em sua memória, qualquer recordação da época em que recebera a tonsura... parecia-lhe que já nascera monge.

— Parto amanhã. Estou me despedindo de tudo isso.

— Gostaria de conversar com o senhor... Mas nunca houve ocasião — disse monsenhor, em voz baixa, penosamente. — Não conheço ninguém aqui... não estou a par de nada...

— Pois ficarei até Domingo, se quiser. Mas não além de Domingo... Ah! Não!

Monsenhor prosseguiu, em voz baixa:

— Que espécie de bispo sou eu? Deveria Ter sido pope, de aldeia, diácono... ou simples monge... Tudo isso me acabrunha... me acabrunha...

— Como? Senhor Jesus, que idéia! Vamos, durma, monsenhor... Que estranha idéia! Boa noite!

— Fim —

A noiva

TchekhovTradução de Andrei Melnikov,colaboração de José Augusto

I

Eram dez da noite, e a lua cheia iluminava o jardim. Em casa dos Chumin acabara, há pouco, o serviço litúrgico encomendado pela avó, Marfa Mikhailovna, e agora Nadia, que saíra um momento para o jardim, via lá dentro, porem a mesa na sala e a avó, no seu pomposo vestido de seda, andar aí preocupada. O arcipreste Andrei, da Catedral, dizia qualquer coisa a Nina Ivanovna, mãe de Nadia, que vista através da janela, à luz artificial, parecia estranhamente jovem. Junto a eles, encontrava-se Andrei Andreitch, filho do padre Andrei, ouvindo com atenção o que os outros diziam.

O jardim, silencioso, respirava frescura; sombras estendiam-se, quietas, pelo chão. Ao longe, talvez fora da cidade, ouvia-se o coaxar das rãs. A brisa de Maio — delicioso

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Maio! — fazia-se sentir em tudo. Respirava-se a plenos pulmões, e parecia que algures, sob o céu, por sobre as árvores, muito além da cidade, nos campos e bosques, brotava a vida primaveril, misteriosa, bela, efervescente e sagrada, inacessível à compreensão dos homens, seres fracos e pecaminosos. Dava vontade de chorar, não se sabia porquê.

Nadia tinha já vinte e três anos. Desde os dezesseis anos que desejava ansiosamente casar, e agora era finalmente noiva de Andrei Andreitch, aquele que se via na sala. O homem agradava-lhe, o casamento já estava marcado para sete de Julho. No entanto, Nadia não se sentia alegre, dormia mal, andava desalentada... Do pavimento inferior, onde ficava a cozinha, chegavam pela janela aberta sinais dos preparativos do jantar: barulho dos talheres, o bater da porta, o cheiro a peru assado e compota de cerejas. E parecia que toda a vida seria assim, sem alterações nem fim!

Alguém saiu de casa e deteve-se à entrada. Era Aleksandr Timofeitch ou, simplesmente, Sacha, de Moscovo, que ali se hospedara há dez dias. Houve uma altura em que uma parente afastada de Marfa Mikhailovna — uma viúva fidalga, mas arruinada, baixinha, franzina e doentia — vinha pedir ajuda. A viúva tinha um filho chamado Sacha. Dizia-se que ele prometia vir a ser um bom pintor, e quando a mãe morreu, Marfa Mikhailovna enviou-o, por caridade, para um colégio técnico em Moscovo. Dois anos depois, entrou para a Escola de Belas Artes, que freqüentou quase quinze anos, tendo-se licenciado, a muito custo, em arquitetura, e trabalhava numa litografia de Moscovo. Quase todos os anos, no Verão, passava uns tempos na casa dos Chumin, para descansar e restabelecer-se.

Estava de casaca abotoada, calças de cotim, puídas e pisadas em baixo, e camisa amarrotada. Aliás, todo o aspecto dele era o de um amarrotado. Escanzelado, olhos grandes, dedos compridos e magros, barba e cabelos negros, era, apesar de tudo, bastante belo. Habituara-se aos Chumin, que se lhe tornaram próximos, e sentia-se ali como em sua casa. O quarto que ocupava era, desde há muito, o “quarto de Sacha”.

Viu Nadia e aproximou-se dela.

— Está-se bem aqui.

— Claro que está. Deveria ficar connosco até ao Outono.

— Sim, parece que é isso que vou fazer. É possível que fique até setembro.

Ele riu-se, sem qualquer razão aparente, e sentou-se ao pé dela.

— Estou a observar a mamã — disse Nadia. — Vista daqui, parece tão jovem! — E, após uma pausa, acrescentou:— Claro que tem as suas fraquezas, mas é realmente uma mulher extraordinária.

— Sim, uma boa mulher — concordou Sacha. — É certo que a sua mãe é uma mulher bondosa e simpática, à sua maneira, mas... como hei-de dizer-lhe? Hoje, de manhã cedo,

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passei pela cozinha e encontrei lá quatro criadas a dormir na chão. Não têm camas, só trapos fedorentos com percevejos e baratas... Precisamente como há vinte anos atrás, nada mudou. Quanto à avó, ainda se compreende, pois é uma pessoa idosa, mas a mamã, que fala francês, representa em espetáculos de amadores, deveria ser mais compreensiva.

Quando falava, Sacha erguia diante do interlocutor dois dedos magros e compridos.

— Por falta de hábito, tudo aqui me parece bárbaro — prosseguiu ele. — Diabos! Ninguém faz absolutamente nada. A mamã passa o dia a passear, como se fosse uma duqueza; a avó não faz coisa nenhuma, e a Nadia também não. Andrei Andreitch, o seu noivo, também nada faz.

Nadia ouvira já tudo isto no ano anterior e mesmo antes, e sabia que Sacha não podia raciocinar doutra forma. Outrora, em ocasiões daquelas, apetecia-lhe rir, mas agora sentiu-se enfadada.

— Não são coisas novas o que diz, estou farta de ouvi-las — disse ela, levantando-se. — Arranje algo mais original.

Ele riu-se, pondo-se também de pé, e ambos se dirigiram para casa. Alta, airosa e esbelta, Nadia parecia ao lado dele vistosa e plena de saúde. Ela sabia isso, tinha pena de Sacha e, por uma razão qualquer, sentia-se embaraçada.

— Tem o mau hábito de falar a despropósito — disse ela. — Por exemplo, referiu-se há bocado ao meu Andrei, se bem que não o conheça.

— “Ao meu Andrei!” Pouco me importo com o seu Andrei. Tenho pena é da sua juventude.

Quando entraram na sala, estavam já todos sentados à mesa de jantar. A avó — ou a avozinha, como era tratada em casa — , muito redonda, feia, de sobrancelhas espessas e buço, falava alto, e pela sua voz e maneira de falar via-se que era ela quem mandava em casa. Possuía tendas na feira e uma casa antiga com colunas e jardim; porém, todas as manhãs rezava para que Deus a salvasse da ruína e chorava. A nora, Nina Ivanovna, mãe de Nadia, uma mulher loura, de cintura muito estreita, com pince-nez e anéis de brilhantes em cada dedo da mão; o padre Andrei, um velho magro, desdentado, com ar de quem quer contar qualquer coisa muito engraçada, e o filho dele, Andrei Andreitch, o noivo de Nadia, um janota gorducho, de cabelo encaracolado, de aparência própria de um actor ou pintor — , todos os três falavam de hipnotismo.

— Aqui, numa semana pões-te bom — disse a avozinha, dirigindo-se a Sacha — , mas tens que comer mais. Vê a tua figura! — Ela suspirou. — Mete dó ver-te! Um filho pródigo, é o que és.

— Esbanjou os bens do progenitor — disse o padre Andrei com voz pausada e olhos risonhos — , e foi pastar bolotas com um rebanho de porcos insensatos...

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— Gosto do meu pai — disse Andrei Andreitch, passando a mão pelo ombro do pai. — Um velho bizarro, uma jóia de velho.

Todos se calaram. De repente, Sacha soltou uma risada e tapou a boca com o guardanapo.

— Então, a senhora acredita em hipnotismo? — perguntou o padre Andrei a Nina Ivanovna.

— Não posso afirmar, evidentemente, que acredito — respondeu esta, tomando um ar muito sério, quase severo. — Mas reconheça que, na Natureza, há muitas coisas misteriosas e incompreensíveis.

— Plenamente de acordo, mas sou de opinião que a fé reduz, em grande medida, o domínio do misterioso.

Serviram um peru, grande e muito gordo. O padre Andrei e Nina Ivanovna continuavam a conversar Os anéis brilhavam nos dedos de Nina Ivanovna, e nos seus olhos brilhavam lágrimas de emoção.

— Não me atrevo a contestá-lo — disse ela — , mas convenhamos que, na vida, há muitos enigmas indecifráveis.

— Nem um só, asseguro-lhe.

Depois do jantar, Andrei Andreitch tocou violino, acompanhado ao piano por Nina Ivanovna. Há cerca de dez anos formara-se na faculdade de Letras, mas não se empregara, não tinha nenhuma ocupação definida e só, de vez em quando, participava em espetáculos de beneficência. Na cidade, chamavam-lhe artista.

Andrei Andreitch tocava e todos escutavam em silêncio. Na mesa fervia, surdo, o samovar. Só Sacha tomava chá. Já depois da meia-noite, uma corda do violino partiu, todos riram, alvoroçaram-se e começaram a despedir-se.

Depois de acompanhar o noivo à porta, Nadia foi para o andar de cima, que habitava com a mãe (o andar de baixo era ocupado pela avó). Em baixo, na sala, apagavam as luzes, mas Sacha deixou-se ainda ficar aí a tomar chá. Bebia sempre demoradamente, umas sete chávenas, à maneira dos moscovitas.

Depois de se ter despido e deitado, Nadia ouviu ainda durante muito tempo a criadagem arrumar a sala e a avó ralhar com alguém. Por fim, tudo ficou silencioso. Só de vez em quando, em baixo, no quarto de Sacha se ouviam tossidelas roucas.

II

Nadia despertou aproximadamente às duas da manhã. Começava a alvorecer. Algures, ao longe, o guarda batia com a matraca. Nadia não tinha sono, a cama era demasiado fofa,

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incômoda. Como em todas as anteriores noites de Maio, sentou-se na cama e pôs-se a pensar. Os pensamentos eram os mesmos da noite passada, monótonos, inúteis, obsessivos. Recordava como Andrei Andreitch começara a cortejá-la e lhe fizera a proposta de casamento, como ela tinha aceite e como, com o tempo, passara a estimar esse homem bondoso e inteligente. Mas agora, quando faltava só um mês para o casamento, começou a sentir medo e ansiedade, como se a esperasse algo incerto e penoso.

“Tic-toc, tic-toc”, batia preguiçosamente o guarda. “Tic- toc!”

Pela janela grande vê-se o jardim, arbustos de lilases em flor, modorrentos e murchos de frio. A névoa, branca e espessa, aproxima-se de mansinho dos lilases, para envolvê-los. Ao longe, nas árvores, crocitam gralhas ensonadas.

— Ó meu Deus, porque estou eu tão aflita?

Experimentarão todas as noivas o mesmo nas vésperas do casamento? Quem sabe! Ou será resultado da influência de Sacha? Mas já há anos seguidos que Sacha repete a mesma coisa, palavra por palavra, e enquanto fala parece tão ingênuo e estranho. Mas porque Sacha não me sai da cabeça? Porque?

O guarda deixou há muito tempo de matracar. Os pássaros armaram uma grande algazarra sob a janela e, no jardim, a névoa dissipou-se e um sol de primavera iluminou tudo em volta como um sorriso. Pouco depois, todo o jardim, acalentado e acariciado pelo sol, acordou e as gotas de orvalho cintilaram nas folhas como diamantes. O velho jardim, abandonado há muito, parecia aquela manhã muito jovem e lindo.

A avó despertou já. Ouviu-se a tosse áspera de Sacha. Ouvia-se, na andar de baixo, servirem chá e mexerem cadeiras.

As horas arrastavam-se. Há muito que Nadia se levantara e passeava pelo jardim, mas ainda era manhã.

Apareceu Nina Ivanovna com os olhos vermelhos de chorar, com um copo de água mineral na mão. Ela dedicava-se ao espiritismo, à homeopatia, lia muito, gostava de falar das suas dúvidas e tudo isso parecia, aos olhos de Nadia, encerrar um sentido profundo e misterioso. Nadia beijou a mãe e pôs-se a caminhar ao seu lado.

— Porque choraste, mamã?

— Ontem à noite li uma novela em que se falava de um velho e da filha. Aconteceu que o chefe da instituição onde o velho trabalhava se enamorou da filha. Ainda não cheguei ao fim, mas há uma passagem que não é possível ler sem chorar — respondeu Nina Ivanovna, bebendo um gole de água mineral.

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— Ando deprimida desde há algum tempo — disse Nadia, após um momento de silêncio. — Porque será que não consigo dormir de noite?

— Não sei, querida. Quando não tenho sono, fecho bem os olhos, assim, e imagino Anna Karenina*, o seu modo de andar, de falar, ou então qualquer episódio da história, da antigüidade...

Nadia sentiu que a mãe não a compreendia, nem seria capaz de a compreender. Percebeu-o pela primeira vez na vida, e teve medo. Quis esconder-se e foi para o quarto.

Ás duas da tarde, todos se reuniram para o almoço. Era quarta-feira, dia magro, por isso a avó comia uma sopa de couve e peixe com papas.

Para arreliá-la, Sacha comeu tanto a sopa de carne como a sopa magra. Motejou durante toda a refeição, mas os seus ditos saíam-lhe pesados, com o cheiro a ensinamentos morais, e não tinha graça nenhuma quando erguia os dedos compridos e descarnados como os dum morto. Isto fazia lembrar que ele estava gravemente doente, que talvez não durasse muito, e dava muita pena.

Depois do almoço, a avó foi descansar para o seu quarto. Nina Ivanovna demorou-se mais um bocado, a tocar piano, e depois também saiu.

— Oh, querida Nadia — começou Sacha a sua habitual história de tarde — , quem me dera convencê-la, quem me dera!

De olhos cerrados, ela escutava, aconchegada numa poltrona antiga, enquanto Sacha passeava vagarosamente pela sala dum canto para outro.

— Oh, se fosse estudar! — dizia ele. — Só as pessoas cultas e puras são interessantes, só elas são necessárias. Quanto mais gente dessa houver, mais cedo chegará à Terra o reino de Deus. Com o tempo, da sua cidade não restará uma só pedra, tudo será virado de avesso, tudo se transformará como por encanto. Aparecerão enormes e magníficos edifícios, maravilhosos jardins, admiráveis fontes, excelentes pessoas... Mas não é isso o essencial. O mais importante é que não haverá gentalha no sentido actual da palavra. Este mal deixará de existir, porque cada homem terá fé e consciência daquilo para que vive, vencerá o instinto gregário. Vá, minha boa Nadia, decida-se! Mostre a todos que está farta desta vida estagnada, vazia, abjecta. Ao menos, mostre-o a si própria.

— Não posso, Sacha. Estou para casar.

— Deixe-se disso! Casar para quê?

Saíram para o jardim e deram um passeio.

— Seja lá como for, querida Nadia, mas tem o dever de tomar consciência e ver até que ponto é desonesta e imoral esta sua vida ociosa — prosseguiu Sacha. — Vejamos: se

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você, a sua mãe e a avozinha não fazem nada, isso quer dizer que alguém trabalha por vós, que estais a consumir vidas alheias. E não é isso sórdido, torpe?

Nadia quis responder que isso era verdade, que ela compreendia, mas não pôde: as lágrimas inundaram-lhe de repente os olhos, murchou, retraiu-se e foi para o seu quarto.

À noite, chegou Andrei Andreitch e, como de costume, tocou violino durante muito tempo. Em geral, era pouco falador e, talvez gostasse de tocar violino precisamente para que isso o libertasse da necessidade de falar. Por volta das onze, quando ia a sair, já com o casaco vestido, abraçou Nadia pela cintura e começou a beijar-lhe avidamente o rosto, os ombros, as mãos.

— Querida, minha jóia, minha bela!... — balbuciava ele. — Como estou feliz! Sinto-me louco de prazer.

Nadia teve a impressão de ter já ouvido ou lido, há muito, aquelas palavras, talvez num romance velho, gasto pelo uso, esquecido num canto qualquer.

Na sala, sentado à mesa, Sacha tomava chá por um pires pousado nas pontas dos dedos abertos. A avozinha fazia uma paciência com as cartas. Nina Ivanovna lia. A chama da lamparina crepitava, e todo o ambiente era sereno e reconfortante. Nadia deu as boas-noites, subiu para o seu quarto, deitou-se e adormeceu logo. Porém, como na noite anterior, despertou ao romper da manhã. Não tinha sono, sentia-se inquieta e oprimida. Sentada com a cabeça apoiada nos joelhos, pensava no noivo, no seu casamento... Lembrou-se de que a mãe não amara o falecido marido, e estava agora sem quaisquer meios, na mais completa dependência da sogra, a avozinha. Por mais que reflectisse nisso, Nadia não conseguia explicar a si própria como podia ter visto, na sua mãe, algo de especial, de extraordinário, sem notar que era uma mulher simples, banal e infeliz.

No andar de baixo, Sacha também não dormia: ela ouvia-o tossir. Um homem estranho, ingênuo — pensava — , os seus devaneios sobre os maravilhosos jardins e as admiráveis fontes são um absurdo. Contudo, aquela sua ingenuidade e até os devaneios ridículos não deixam de ter o seu lado belo. Bastou que ela pensasse em estudar e logo experimentou um arrepio de êxtase, e o peito encheu-se-lhe de alegria e deleite.

— É melhor não pensar nessas coisas, é melhor não pensar... — murmurava. — Não devo pensar nisso.

“Tic-toc...”, matracava o guarda ao longe. “Tic-toc...tic-toc...”

III

Nos meados de Junho, sentindo-se enfadado, Sacha começou a preparar a partida para Moscovo.

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— Não posso viver nessa cidade — dizia com ar taciturno. — Nem água, nem esgotos! É um nojo comer aqui: a cozinha está incrivelmente suja...

— Espera ai, filho pródígo! — insistia a avó, cochichando. — No dia sete é a boda.

— Não quero esperar.

— Mas querias ficar até setembro!

— Antes queria, agora não. Tenho que trabalhar!

Com efeito, o ambiente convidara ao trabalho: o tempo estava húmido e frio, o jardim, com as árvores molhadas, tinha um aspecto sombrio e triste. Por toda a casa ouviam-se vozes de mulheres e, no quarto da avó, matraqueava uma máquina de costura: o dote da noiva era preparado a toda a pressa. Só pelicas, eram seis, e a mais barata, a acreditar na avó, custava trezentos rublos! Esta azáfama irritava Sacha, que não saia do quarto e se aborrecia. Contudo, convenceram-no a ficar e ele prometeu que não partiria antes de um de Julho.

O tempo corria veloz. No dia de São Pedro, à tarde, Andrei Andreitch foi com Nadia à rua Moskovskaia para apreciar, uma vez mais, a casa alugada para o jovem casal e já há tempos preparada para o receber. Era uma moradia de dois pisos, mas, por enquanto, só estava mobilado o de cima. O soalho do salão, com um desenho imitando tacos, reluzia: viam-se cadeiras, um piano de cauda e uma estante para pautas de música. Cheirava a tinta. Pendurado numa parede havia um quarto grande a óleo, numa moldura dourada, representando uma dama nua junto a um vaso lilás de asa partida.

— Um quarto excelente — disse Andrei Andreitch com um suspiro de veneração. — É de Chichmatchevski.

Passaram, em seguida, para a sala de estar, onde havia uma mesa redonda, um sofá e poltronas forradas de pano azul-vivo. Em cima do sofá, via-se uma grande fotografia do padre Andrei com o chapéu de clérigo e ordens ao peito. Entraram na sala de jantar e depois no quarto de dormir, mergulhado na penumbra, onde estavam, uma ao pé da outra, duas camas. Pelos vistos, quem mobilara o quarto, pensara que ali se estaria sempre muito bem, e nem poderia ser de outra maneira. Andrei Andreitch mostrava a Nadia as divisões, abraçando-a sempre pela cintura. Ela sentia-se fraca e culpada, odiava todos aqueles aposentos, camas, poltronas. A dama nua do quadro metia-lhe nojo. Estava certa que deixara de amar Andrei Andreitch ou que, talvez, nunca o tivesse amado. Mas não sabia como, a quem e para que dizê-lo, apesar de ter pensado nisso durante dias e noites... Ele continuava a abraçá-la pela cintura, falava-lhe com carinho e recato, tão feliz andando por aquela casa que era sua, ao passo que ela via em tudo apenas vulgaridade, ingênua e insuportável vulgaridade. A mão que lhe cingia a cintura parecia-lhe dura e fria como uma argola. Apetecia-lhe fugir, romper em soluços ou atirar-se da janela abaixo. Andrei Andreitch levou-a à casa de banho, abriu uma torneira fixa à parede e correu água.

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— Que te parece? — indagou ele, rindo. — Mandei instalar um grande tanque no sótão, e assim temos água em casa.

Atravessaram o pátio, chegaram à rua e tomaram uma carruagem. A poeira volteava no ar em nuvens espessas, e parecia que de um momento para o outro começaria a chover.

— Não tens frio? — perguntou Andrei Andreitch, fechando os olhos por causa da poeira.

Ela não respondeu.

— Ontem Sacha — lembras-te? — censurou-me por eu não fazer nada — disse Andrei Andreitch, após uma pausa. — Bom, ele tem razão. Carradas da razão! Não faço nada, nem posso fazer nada. Porquê, querida? Porque repugna a idéia de, um dia, vestir uma farda e ir para o serviço? Porque me basta ver um advogado ou um professor de latim ou um membro da administração para sentir mal-estar? Ai Rússia minha, quantos homens inúteis e ociosos ainda suportas no teu seio! Quantos homens como eu aumentam os teus sofrimentos!

Apresentava a ociosidade dele como um fenômeno generalizado, um sinal dos tempos.

— Depois do casamento vamos para a aldeia, trabalharemos lá! — prosseguiu Andrei Andreitch. — Compraremos uma nesga de terra com pomar e rio e vamos trabalhar, observar a vida. Será maravilhoso!

Tirou o chapéu e os cabelos ondularam-lhe ao vento. Ela escutava-o, dizendo para si: “Céus! Quando acabará isto? “ Já quase a chegar, ultrapassaram o padre Andrei.

— Ai vem o meu pai! — alegrou-se Andrei Andreitch, acenando-lhe com o chapéu. — Quero-lhe — disse, enquanto pagava ao cocheiro. — Um velho às direitas.

Nadia entrou em casa aborrecida, mal disposta, pensando que, toda a noite, teria que tolerar os convidados, entretê-los, sorrir, escutar o violino e toda a espécie de asneiras, e ouvir falar apenas do casamento. A avó, imponente e majestosa no seu vestido de seda, com aquele ar altivo que assumia sempre que recebia visitas, estava sentada diante do samovar. O padre Andrei entrou, com o sorriso astuto de sempre.

— Tenho o prazer e a feliz consolação de a encontrar de boa saúde — disse à avó, num tom que não dava para entender se falava a sério ou estava a brincar.

IV

O vento assobiava, nas janelas e no telhado, e parecia que um duende rugia na chaminé, entoando uma plangente e melancólica canção. Passava da meia-noite. Já se haviam deitado todos, mas ninguém dormia. Nadia tinha a impressão de que no andar de baixo, tocavam violino. Ouviu-se uma forte pancada — o vento devia ter arrancado uma

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portada. Passado um minuto, entrou Nina Ivanovna em camisa de noite e uma vela na mão.

— Que foi aquilo, Nadia? — perguntou.

De cabelos entrançados e um sorriso tímido, a mãe parecia naquela noite de temporal mais velha, mais feia e pequena. Nadia lembrou-se que ainda há pouco considerava a mãe uma mulher invulgar, e escutava com orgulho o que ela dizia. Agora, porém, não conseguia recordar as palavras dela, e tudo o que lhe vinha à memória não passava de frases frouxas e inúteis.

Na chaminé parecia cantar com vozes de baixo, e até se distinguia: “Ó-o, meu De-eus!” Nadia sentou-se na cama e, de súbito, agarrou com força os cabelos e desatou a chorar.

— Mãe, querida, se soubesses o que se passa comigo! Peço-te, rogo-te, deixa-me partir! Rogo-te!

— Para onde? — indagou Nina Ivanovna sem compreender, sentando-se na cama. — Partir para onde?

Nadia chorou um bom bocado, incapaz de articular palavra.

— Deixa-me partir daqui! — pronunciou por fim. — Não pode haver, não haverá casamento nenhum. Não gosto daquele homem...Detesto até o falar dele.

— Não, minha filha, não — disse rapidamente Nina Ivanovna, muito assustada. — Acalma-te, é que tens andado mal-humorada. Isso há-de passar. São coisas que acontecem. Deves ter tido qualquer desentendimento com Andrei Andreitch, mas isso são arrufos de namorados.

— Deixa-me, deixa-me, mãe — voltou a soluçar Nadia.

— Sim — disse Nina Ivanovna, após um silêncio.— Ainda há pouco eras uma criança, uma menina, e agora és noiva. Na natureza tudo se sucede, tudo se reproduz. Assim sem dares por nada, também se tornarás mãe, vais ficar velha e terás uma filha voluntariosa como a minha.

— Mãe, querida, és boa, inteligente, mas infeliz — disse Nadia — , muito infeliz. Então, para que dizes trivialidades? Para quê?

Nina Ivanovna queria dizer mais alguma coisa, mas não conseguiu, retirou-se soluçando. Saídas da chaminé ouviram-se outra vez assustadoras vozes de baixo. Assustada. Nadia saltou da cama e correu para o quarto da mãe. Nina Ivanovna, com a cara molhada de lágrimas, estava deitada, com um livro nas mãos e coberta com uma manta azul.

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— Tenho uma coisa a dizer-te, mãe — pronunciou Nadia. — Suplico-te que reflictas bem nisso e me tentes compreender. Quero que percebas até que ponto é mesquinha e vexatória a nossa vida. Sabes, abriram-se-me os olhos, agora vejo tudo. Como é esse Andrei Andreitch? Um homem falho de inteligência! Oh, meu Deus! Sim, mãe, ele é tão estúpido!

Nina Ivanovna sentou-se bruscamente na cama.

— Tu e a tua avó atormentam-me! — disse com um soluço. — Quero viver! Viver! — exclamou dando murros no peito. — Quero ser livre. Ainda sou jovem, quero viver, e vós fazeis de mim uma velha!

Chorando amargamente, deitou-se e enrolou-se sob o cobertor. Parecia agora tão pequena, tolinha, digna de lástima. Nadia voltou para o quarto dela, vestiu-se e, sentada à janela, pôs-se a esperar o amanhecer. Passou assim toda a noite a pensar, enquanto lá fora alguém batia na portada e silvava, sem parar.

Na manhã seguinte, a avó queixou-se de que o vento tinha atirado ao chão todas as maças e quebrado uma velha ameixeira. O dia estava cinzento, desolador e tão sombrio que era caso para acender as luzes. Toda a gente se queixava do frio, a chuva tamborilava nas janelas. Depois do chá, Nadia foi ter com Sacha. Sem dizer nada, ajoelho-se no canto ao pé da poltrona e tapou o rosto com as mãos.

— O que tem? — perguntou Sacha.

— É insuportável... — respondeu ela. — Como pude eu viver aqui até hoje? Não percebo. Detesto o meu noivo, detesto-me a mim própria, detesto toda esta vida ociosa e fútil.

— Ora, ora... — pronunciou Sacha, ainda sem compreender o que se passava. — Isso não é nada. É até bom.

— Estou farta desta vida — prosseguiu Nadia. — Não agüento aqui nem mais um dia. Parto amanhã mesmo. Leve-me daqui por amor de Deus!

Durante um minuto Sacha contemplou-a com assombro: por fim, compreendeu e deu largas ao seu regozijo infantil. Levantou os braços e pôs-se a sapatear, dançando de alegria.

— Óptimo! — exclamava ele, esfregando as mãos. — Magnifico!

Ela fitava-o sem pestanejar com os seus olhos grandes, apaixonados, como enfeitiçada, esperando que ele lhe dissesse, naquele preciso instante, algo de significativo, algo de extrema importância. Ele não disse nada, mas a Nadia parecia que se abriam perante ela novos e vastos horizontes que antes desconhecera. Olhava para Sacha cheia de esperanças e disposta a tudo, mesmo a morrer se fosse preciso.

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— Amanhã parto — disse ele, depois de reflectir um momento — , a Nadia acompanha-me à estação. Levo as suas coisas na minha mala, pago-lhe a passagem e, ao terceiro sinal, entra no vagão e pronto, vamos embora. Acompanha-me até Moscovo e, depois, vai sozinha para Petersburgo. Tem os documentos em ordem?

— Tenho, sim.

— Juro que não vai lamentar nem se arrependerá — disse Sacha, entusiasmado. — Sairá daqui, irá estudar; o resto, é com o destino. Logo que der um novo rumo à vida, tudo mudará. O essencial é uma pessoa dar um novo rumo à vida, o resto não importa. Então, partimos amanhã, não é assim?

— Sim! Leve-me, por amor de Deus!

Nadia tinha a impressão de estar perturbada e deprimida como nunca, julgava que, até ao momento da partida, teria que suportar o tormento de penosas hesitações, mas quando subiu para o quarto e se deitou, adormeceu logo e dormiu a sono solto até à tarde, com a cara molhada de lágrimas e um sorriso nos lábios.

V

Mandaram buscar uma carruagem. Nadia já de chapéu e sobretudo, foi ao andar de cima dar a última olhadela àquilo que lhe era tão familiar. Deixou-se ficar algum tempo no seu quarto ao lado da cama ainda quente, olhando demoradamente á volta; depois, devagarinho, passou ao quarto da mãe. Ali tudo estava silencioso, Nina Ivanovna dormia. Nadia beijou-a, ajeitou-lhe o cabelo e ficou a olhá-la uns dois minutos... Depois desceu sem pressa.

Lá fora chovia a cântaros. A carruagem, com a capota levantada, aguardava diante do portão.

— Não cabem os dois, Nadia — disse a avó, quando os criados começaram a arrumar as malas. — Que te deu para acompanhá-lo com um tempo destes! É melhor que fiques em casa. Olha como chove!

Nadia quis dizer qualquer coisa, mas não pôde. Sacha ajudou-a a subir para a carruagem e cobriu-lhe os pés com uma manta. Feito isso, sentou-se ao lado dela.

— Boa viagem! Deus te acompanhe! — gritou a avó da porta. — Escreve de Moscovo, Sacha!

— Está bem. Adeus, avozinha!

— Que a Virgem Santíssima te guarde!

— Raio de tempo! — disse Sacha.

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Só agora Nadia começou a chorar. Estava agora certa de que partiria, se bem que, ainda há pouco, ao despedir-se da avó e ao dar um beijo à mãe, não acreditasse nisso. Adeus cidade! Num instante recordou tudo: Andrei Andreitch, o pai deste, a casa alugada, a dama nua junto ao vaso. Tudo aquilo já não a assustava nem a oprimia, e até se lhe afigurava ingênuo, mesquinho e cada vez mais remoto. Quando ela e Sacha ocuparam os seus lugares no vagão e o comboio se pôs em movimento, o passado, tão longo e tão grave, contraiu-se para ficar reduzido a uma bagatela, enquanto o futuro, até então pouco visível, se abria, enorme e vasto. A chuva batia nas janelas dos vagões: lá fora, via-se apenas o descampado verde, postes telegráficos ficando rapidamente para trás e pássaros pousados nos fios. De súbito, Nadia sentiu que a alegria lhe cortava a respiração: lembrou-se de que ia ao encontro da liberdade, ia estudar, o que era o mesmo que receber carta de alforria. Ria, chorava e rezava ao mesmo tempo.

— Isto vai bem! — dizia Sacha, a sorrir.

VI

Passou o Outono, depois o Inverno. Nadia tinha já muitas saudades da família e todos os dias pensava na mãe, na avó, e também em Sacha. As cartas que recebia de casa eram meigas e benévolas; parecia que tudo estava já perdoado e esquecido. Em Maio, depois dos exames, bem disposta e alegre, partiu para casa. Na passagem, deteve-se em Moscovo, para ver Sacha. Encontrou-o de aspecto como no verão passado: barbudo, cabelos soltos, o mesmo casaco e calças de cotim e os mesmos olhos grandes e belos. Mas tinha um ar doentio, cansado; parecia mais velho, mais magro e tossia amiúde. Por uma razão qualquer, Nadia achou-o insípido e provinciano.

— Céus, Nadia aqui! Minha querida Nadia! — exclamou ele, rindo de alegria.

Durante algum tempo, conversaram na litografia onde pairava um cheiro forte, sufocante, a tabaco e a tintas; depois, foram para o quarto dele, sujo e impregnado de fumo de cigarros. Na mesa, ao lado do samovar frio, estava um prato partido com um pedaço de papel. Na mesa e no soalho, viam-se muitas moscas mortas. Tudo indicava que Sacha não cuidava da habitação, vivia ao Deus-dará, desprezando por completo as comodidades e se lhe falassem da sua felicidade pessoal, da sua vida privada, do amor, não compreendia nada e punha-se a rir.

— Sabe, tudo correu bem — contava Nadia apressadamente. — No Outono, a mãe foi ver-me a Petersburgo. Disse que a avó não estava zangada, mas que entra no meu quarto e faz o sinal da cruz virada para a paredes.

Sacha estava com ar jovial, porém, tossia e falava com voz rouca. Nadia observava-o com atenção, sem perceber se ele estava de facto gravemente doente ou era apenas imaginação sua.

— Sacha, querido, vejo que esta doente, muito doente!

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— Não é nada. Só um pouco achacado...

— Oh, meu Deus — alvoroçou-se Nadia. — Porque não se trata, porque não cuida da sua saúde? Meu caro, querido Sacha — disse ela, e as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Sem saber porquê, viu mentalmente Andrei Andreitch, a dama nua junto ao vaso, todo o seu passado, agora tão longínquo como a infância. Chorava porque Sacha não se lhe afigurava tão original, inteligente e interessante como o ano passado. — Querido Sacha, está muito, muito doente. Como gostava que estivesse menos pálido e menos magro. Devo-lhe tanto! Não imagina quanto fez por mim, meu caro Sacha. No fundo, agora é a pessoa mais próxima de mim.

Conversaram algum tempo. Depois do Inverno passado em Petersburgo, Sacha, as suas palavras, o seu sorriso e toda a sua figura evocavam a Nadia algo fora de moda, antiquado, arcáico, talvez até morto.

— Depois de amanhã vou para o Volga e dali para o sul — disse Sacha. — Penso curar-me com kumis**. Vou com um amigo que leva a mulher. Ela é uma pessoa admirável. Ando a convencê-la para que estude. Quero que ela dê um novo rumo à vida.

Foram ambas à estação e, no bufete, Sacha pediu chá e maçãs. Quando o comboio se pôs em movimento, ele agitou o lenço em sinal de despedida, e mesmo pelos seus pés se notava que estava gravemente doente e não duraria muito.

Nadia chegou à sua cidade ao meio-dia. O caminho da estação para casa deixou-lhe a impressão de que as ruas eram muito largas e as casas pequenas e achatadas. Não havia gente nas ruas; cruzaram-se apenas com um afinador de pianos, um alemão de sobretudo cor de cenoura. Dir-se-ia que todas as casas estavam cobertas de poeira. A avó, velha de todo, gorda e feia como antes, abraçou Nadia e chorou muito, incapaz de afastar o rosto encostado ao ombro dela. Nina Ivanovna também estava visivelmente mais velha e mais feia, como que encolhida, mas continuava com a cintura fina e anéis com brilhantes nos dedos.

— Minha querida! — exclamava ela, tremendo toda. — Minha querida!

As três ficaram algum tempo chorando em silêncio. Notava-se que tanto a avó como a mãe sentiam que o passado estava perdido para sempre, irremediavelmente; já não gozavam a consideração de antes, não tinham a mesma posição social nem o direito a receber visitas. O mesmo se sente quando uma casa, em que se levava uma vida fácil e despreocupada, é invadida de noite por policiais que revistam tudo, descobrindo-se então que o dono havia desviado fundos ou falsificado dinheiro, e pronto — adeus vida fácil e despreocupada!

Nadia subiu ao andar de cima e viu a mesma cama, as mesmas janelas com simples cortinas brancas, lá fora o mesmo jardim inundado de luz, alegre e sussurrante. Passou a mão pelo tampo da sua mesa, sentou-se e ficou pensativa. Havia almoçado bem e tomado chá com natas, gordas e saborosas, mas sentia falta de qualquer coisa; os quartos

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pareciam-lhe vazios e os tectos muito baixos. Quando, à noite, se deitou, metendo-se por baixo do cobertor, pareceu-lhe estranhamente engraçado estar naquela cama quente e muito fofa.

Nina Ivanovna entrou e sentou-se com timidez e cautela, como se se sentisse culpada de alguma coisa.

— Então, Nadia, estás satisfeita? — perguntou, após um silêncio. — Muito satisfeita?

— Sim, mãe.

Nina Ivanovna levantou-se e benzeu Nadia.

— Tornei-me religiosa, como vês — disse ela. — Sabes, dedico-me à filosofia, passo o tempo a pensar. Agora vejo claro muitas coisas. Creio que o essencial é que toda a vida passe como através de um prisma.

— Como vai a saúde da avó?

— Menos mal. Quando leu o telegrama que enviaste depois de partires com Sacha, desmaiou e ficou três dias de cama sem se mexer. Passou muito tempo a chorar e a dizer orações, mas já se restabeleceu.

Nina Ivanovna deu alguns passos pelo quarto.

“Tic-toc...”, matracava o guarda. “Tic-toc, tic-toc...”

— O essencial é que a vida passe como que por um prisma — repetiu Nina Ivanovna. — Por outras palavras, a consciência deve decompor a vida em elementos básicos, assim como um prisma decompõe a luz em sete cores, e cada elemento deve ser estudado separadamente.

Nadia não soube que disse mais Nina Ivanovna, nem quando saiu, pois adormeceu logo.

Passou Maio, entrou Junho. Nadia habituara-se novamente à casa. A avó lidava com o samovar, suspirando fundo. Nina Ivanovna expunha, à noite, a sua filosofia. Vivia ali como uma comensal, e sempre que precisava de dinheiro, pouco que fosse, via-se obrigada a pedir à avó. A casa estava cheia de moscas, e os tectos pareciam cada vez mais baixos. A avó e Nina Ivanovna quase nunca saíam, temendo cruzar-se com o padre Andrei ou Andrei Andreitch. Nadia passeava pelo jardim, pelas ruas, observava as casas, os tapumes cinzentos, com a impressão de que tudo na cidade envelhecera, caducara, esperando apenas o fim ou, pelo contrário, o principio de algo novo, diferente. Como ansiava por essa vida nova, pura, uma vida que permitisse olhar aberta e diretamente o rosto do destino, ter a certeza de estar no seu direito, mostrar-se alegre e gozar a liberdade! E essa vida havia de chegar, tarde ou cedo! Chegaria o tempo em que a casa da avó, onde quatro criadas viviam comprimidas num quartinho imundo da cave,

Page 62: Anton Tchekhov/Chéjov [Um caso médico & outros contos]

desapareceria sem deixar rasto, e ninguém mais se lembraria dela. Nadia distraía-se apenas com os miúdos da vizinhança: enquanto ela passeava pelo jardim, eles batiam na cerca e troçavam entre gargalhadas: “A noiva! A noiva”

Sacha escreveu-lhe de Saratov. Com a sua letra ligeira e saltitante, dizia-lhes que a viagem pelo Volga correra bem, mas que em Saratov se sentira um pouco mal, perdera a voz e há duas semanas que estava no hospital. Nadia, dominada por um pressentimento ou, antes, por uma triste certeza, compreendeu o que aquilo significava. Desagradava-lhe o facto desse pressentimento e a imagem de Sacha não a comoverem como antes. Desejava apenas e ardentemente viver, regressar a Petersburgo, e a amizade com Sacha parecia-lhe já pertencer ao enternecedor mas longínquo passado. Não dormiu toda a noite e, de manhã, sentou-se à janela, esperando. Em baixo ouviu rumores, a avó interrogou alguém à pressa com voz perturbada , depois um choro... Quando Nadia desceu, a avó rezava num canto, com a cara molhada de lágrimas. Sobre a mesa estava um telegrama.

Nadia andou muito tempo pela sala dum canto para outro, ouvindo a avó chorar. Depois pegou no telegrama e leu-o. Dizia que, na manhã do dia anterior, falecera em Saratov, tuberculoso, Aleksandr Timofeitch ou simplesmente, Sacha.

A avó e Nina Ivanovna foram à igreja tratar da missa. Pensativa, Nadia continuou a andar pela casa. Tinha plena consciência de que a sua vida tomara um novo rumo, como Sacha queria, que em casa estava só, estava a mais, como uma estranha, e que nada a prendia ai. Rompera já com o passado, que ardeu, e as cinzas levou-as o vento. Entrou no quarto de Sacha e deixou-se ficar ai algum tempo.

“Adeus, querido Sacha!”— pensou. Entretanto, mentalmente via abrir-se diante de si uma vida nova, ampla extensa, e essa vida, ainda indistinta, cheia de mistérios, atraia-a e chamava por ela.

Subiu ao andar de cima e começou a arrumar as suas coisas. Na manhã seguinte, depois de se despedir dos familiares, bem disposta e alegre, partiu da cidade. Supunha que para sempre.

1903

— Fim —

* Personagem do romance do mesmo nome de Lev Tolstói.** Leite de égua fermentado.

O caçador

TchekhovTradução de Andrei Melnikov,colaboração de José Augusto

Page 63: Anton Tchekhov/Chéjov [Um caso médico & outros contos]

Um meio-dia quente e sufocante. No céu, nem uma única nuvem... As ervas, queimadas pelo sol, apresentam um aspecto triste e desolado: já não recuperarão mais o seu viço, mesmo que chova... A floresta queda-se muda, imóvel, parecendo que as copas das árvores observam qualquer coisa ao longe e esperam.

Pela orla do bosque caminha, preguiçoso e gingão, um homem de uns quarenta anos, alto, de ombros estreitos, camisa vermelha, botas altas e calças herdadas do patrão, já cobertas de remendos. Arrasta-se ao longo da estrada. À direita, verdeja a moita; à esquerda, ocupando todo o espaço até ao horizonte, estende-se um mar dourado de centeio maduro... O homem está vermelho e transpira. Na sua cabeça bonita, de cabelos louros, leva um boné posto à banda, branco e de pala direita, de jóquei, provavelmente oferecido por algum jovem ricaço num arroubo de generosidade. Ao ombro leva um bornal, com um tetraz aí metido às três pancadas. Nas mãos, uma espingarda de dois canos, engatilhada, e não desprende o olhar do velho e escanzelado cão que corre às frente, farejando arbustos. Em volta, apenas o silêncio... Todos os seres vivos fugiram do calor para os esconderijos.

— Egor Vlassitch — ouve subitamente pronunciar, em voz baixa.

Sobressaltado, olha à roda e fica de cenho carregado. Tem diante de si, como que caída do céu, uma camponesa dos seus trinta anos, de tez pálida e com uma foice na mão, que lhe procura ver o rosto e sorri timidamente.

— Ah, es tu, Pelagueia! — diz o caçador, detendo-se e desengatilhando a arma. — Hum!... O que andas a fazer por aqui?

— Estou aqui a ceifar com as da nossa aldeia... Andamos à jorna.

— Pois é... — resmunga Egor, e põe-se de novo a andar com lentidão.

Pelagueia segue-o. Dão, em silêncio, uns vinte passos.

— Há já muito que não o vejo, Egor Vlassitch... — diz Pelagueia, acompanhando com um olhar afetuoso os movimentos dos ombros e das costas do homem. — Desde aquele dia, na Semana Santa, que foi à nossa casa pedir um copo de água, nunca mais lhe pusemos os olhos em cima Entrou só e saiu, e ainda assim... muito borracho... Armou uma bulha, deu-me uma sova e foi-se embora... E eu que o esperei tanto, a olhar a todo o instante para a janela, a ver se aparecia... Ai, Egor Vlassitch, Egor Vlassitch! Por que não quer dar um salto a casa?

—Para fazer o quê?

— Nada, é claro, mas aquilo sempre é propriedade sua... Podia dar uma olhadela, ver como é que andam as coisas. O dono é você... Ena! Matou um tetraz! Por que não se senta e descansa um bocado?

Page 64: Anton Tchekhov/Chéjov [Um caso médico & outros contos]

Ao dizer isto, Pelagueia ri, feita uma parva, erguendo os olhos para o rosto de Egor Vlassitch. A sua cara respira felicidade.

— Pois bem, descansemos... — anuiu o caçador em tom indiferente e escolhendo um lugar entre dois abetos. — Por que estás aí de pé? Senta-te também.

Pelagueia senta-se um pouco afastada ao sol, e, envergonhada da sua alegria, tapa com a mão a boca sorridente.

— Se ao menos passasse um dia pela casa — diz em voz baixa.

—Para quê? — Egor suspira, descobrindo-se e limpando a testa vermelha a uma manga. — Não há necessidade. Se fico uma hora ou duas, .é perder tempo e desarranjar-te, e quanto a fixar-me para sempre na aldeia, isso é-me insuportável. Sabes que sou um homem mimado. Quero ter cama, bom chá, trato delicado e tudo o mais, e lá na tua aldeia só há miséria, imundície... Não agüento ali nem um só dia. Se me obrigassem, pela força, a viver contigo, ou pegava fogo à casa ou suicidava-me. Sou assim de pequeno, buliçoso. Não tem cura.

— E onde é que mora agora?

— Em casa do patrão, Dmitri Ivanitch, como caçador. Levo caça para a cozinha dele... Mas é antes por prazer que me mantém.

— Não é séria a sua ocupação, Egor Vlassitch... Para os outros, é um divertimento, para ti, é como um ofício... um verdadeiro emprego...

— Não compreendes nada, pateta — diz Egor, fixando no céu um olhar sonhador. — Nunca compreendeste e nunca compreenderás que espécie de homem sou eu... Na tua opinião, sou um estroina, um desatinado, mas, para quem sabe, sou o maior atirador de todo o concelho. Os senhores que me conhecem sentem-no, e até referiram o meu nome numa revista. Não há quem se compare comigo na arte da caça... Se não aceito a vossa labuta de campo, não é por leviandade, nem por orgulho. Sabes, desde criança que não conheço outra coisa além da espingarda e dos cães. Se me tiravam a espingarda, pegava na cana de pesca, se me tiravam a cana, servia-me das mãos. Quando tinha “massa”, também me metia em negócios de cavalos, corria as feiras. Sabes, o camponês que se dedicar ao ofício de caçador ou se ocupar de cavalos já não pega mais no arado. Se um homem ganhou o gosto pela liberdade, já ninguém lho tira. Assim como o senhor que envereda pela carreira de ator ou artista, sei lá, nunca mais será funcionário ou rendeiro. E tu, que és uma pacóvia, não tens cabeça para compreender estas coisas.

— Eu compreendo, Egor Vlassitch.

— Se compreendesses, não estavas agora quase a chorar.

Page 65: Anton Tchekhov/Chéjov [Um caso médico & outros contos]

— Não, não choro — retorquiu Pelagueia, voltando a cabeça. — Mas assim não dá, Egor Vlassitch. Se ficasses comigo pelo menos um dia... Há já doze anos que nos casamos e ainda nem uma só vez fizemos amor... Não, não, estou a chorar.

— Qual amor! — resmunga Egor, coçando uma mão. — Não pode haver amor nenhum entre nós. Somos um casal só no papel, mas corresponde isso à realidade? Tu achas-me um selvagem, e eu acho-te uma simplória sem entendimentos. Como podemos dar-nos? Sou um homem livre, mimado, folgazão, e tu és uma jornaleira, uma campônia, vives na lama, trabalhas de sol a sol. Considero-me um caçador sem igual, e tu lastima-me... Diz-me, que raio de casal é o nosso?

— Mas sempre estamos unidos pelo casamento!... — contrapõe Pelagueia num soluço.

— Não por nossa vontade... Ou já te esqueceste? A culpa foi tua e do conde Serguei Pavlovitch. O conde, que tinha inveja de não saber atirar tão bem como eu, andou um mês a encher-me de vinho, e a um bêbado é fácil casá-lo, ou até convertê-lo a outra fé. Pois então desforrou-se, casando-me contigo... Um caçador com uma ordenhadora! Ora, se vias perfeitamente que eu estava bêbado, por que não te opuseste? Não és serva nenhuma, ninguém te podia forçar! É claro que, para uma ordenhadora, casar com um caçador é a sorte grande, mas também, é preciso pôr a cabeça a trabalhar. Agora estás aqui a sofrer as conseqüências, a verter lágrimas. O conde ri-se e tu choras, martirizas-te...

Silêncio. Três patos bravos aparecem e sobrevoam a moita. Egor segue-os com o olhar até que eles se transformam em três pontos quase invisíveis e pousam muito para além da floresta.

— De que vives?—pergunta ele, passando os olhos dos patos para Pelagueia.

— Agora, ando à jorna, no inverno costumo ir ao orfanato buscar um bebê e criá-lo em casa a biberão. Pagam um rublo e meio por mês.

—Pois...

Outra pausa. Do campo de centeio chegam sons duma canção, que logo se interrompe. O calor não deixa cantar.

— Ouvi dizer que construiu para Akulina uma casa nova —diz Pelagueia.

Egor não responde.

— Sendo assim, gosta dela...

— Bom, é assim a tua sina! Paciência, órfã — diz o caçador, espreguiçando-se.. — Pronto, já me demoraste muito na cavaqueira. Antes que anoiteça, tenho que estar em Boltovo...

Page 66: Anton Tchekhov/Chéjov [Um caso médico & outros contos]

Egor ergue-se, espreguiça-se e põe a arma ao ombro. Pelagueia levanta-se também.

— Quando passa então pela aldeia? — pergunta baixinho.

— Para quê? Se não estiver com pinga, nunca lá vou, e bêbado em nada te serei útil. A bebida torna-me raivoso. Adeus!

— Adeus, Egor Vlassitch...

Egor enfia o boné na cabeça e, assobiando ao cão, põe-se novamente a caminho. Pelagueia fica no mesmo sítio, a observá-lo pelas costas. Enquanto contempla os ombros e o pescoço forte de Egor, que se afasta num passo preguiçoso e lasso, os seus olhos irradiam tristeza e carinho. O seu olhar acaricia, afaga toda a figura do marido, alto e magro. Ele parece sentir esse olhar, pois detém-se e volta a cabeça... Embora continue calado, vê-se pela sua cara e ombros alteados que quer dizer alguma coisa. Pelagueia aproxima-se timidamente e fita-o com um olhar implorador.

— Toma! — diz Egor, sem olhar para ela e estendendo uma nota de um rublo, muito usada. E, afasta-se a passo rápido.

— Adeus, Egor Vlassitch! —diz ela, aceitando maquinalmente a nota. Ele vai caminhando pela estrada comprida e reta como um cinturão. Pálida e imóvel como um monumento, Pelagueia acompanha com o olhar os passos dele. Por fim, o vermelho da camisa de Egor acaba por fundir-se com o cinzento das calças, os passos tornam-se imperceptíveis e é já impossível distinguir o cão das botas. Vê-se apenas o boné. De repente, Egor volta à direita, mete pela moita dentro e o boné desaparece entre a verdura.

— Adeus, Egor Vlassitch! — murmura Pelagueia, pondo-se nos bicos dos pés e procurando avistar, ainda uma vez mais, o boné branco.

— Fim —

O caçador

TchekhovTradução de Andrei Melnikov,colaboração de José Augusto

Um meio-dia quente e sufocante. No céu, nem uma única nuvem... As ervas, queimadas pelo sol, apresentam um aspecto triste e desolado: já não recuperarão mais o seu viço, mesmo que chova... A floresta queda-se muda, imóvel, parecendo que as copas das árvores observam qualquer coisa ao longe e esperam.

Pela orla do bosque caminha, preguiçoso e gingão, um homem de uns quarenta anos, alto, de ombros estreitos, camisa vermelha, botas altas e calças herdadas do patrão, já cobertas

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de remendos. Arrasta-se ao longo da estrada. À direita, verdeja a moita; à esquerda, ocupando todo o espaço até ao horizonte, estende-se um mar dourado de centeio maduro... O homem está vermelho e transpira. Na sua cabeça bonita, de cabelos louros, leva um boné posto à banda, branco e de pala direita, de jóquei, provavelmente oferecido por algum jovem ricaço num arroubo de generosidade. Ao ombro leva um bornal, com um tetraz aí metido às três pancadas. Nas mãos, uma espingarda de dois canos, engatilhada, e não desprende o olhar do velho e escanzelado cão que corre às frente, farejando arbustos. Em volta, apenas o silêncio... Todos os seres vivos fugiram do calor para os esconderijos.

— Egor Vlassitch — ouve subitamente pronunciar, em voz baixa.

Sobressaltado, olha à roda e fica de cenho carregado. Tem diante de si, como que caída do céu, uma camponesa dos seus trinta anos, de tez pálida e com uma foice na mão, que lhe procura ver o rosto e sorri timidamente.

— Ah, es tu, Pelagueia! — diz o caçador, detendo-se e desengatilhando a arma. — Hum!... O que andas a fazer por aqui?

— Estou aqui a ceifar com as da nossa aldeia... Andamos à jorna.

— Pois é... — resmunga Egor, e põe-se de novo a andar com lentidão.

Pelagueia segue-o. Dão, em silêncio, uns vinte passos.

— Há já muito que não o vejo, Egor Vlassitch... — diz Pelagueia, acompanhando com um olhar afetuoso os movimentos dos ombros e das costas do homem. — Desde aquele dia, na Semana Santa, que foi à nossa casa pedir um copo de água, nunca mais lhe pusemos os olhos em cima Entrou só e saiu, e ainda assim... muito borracho... Armou uma bulha, deu-me uma sova e foi-se embora... E eu que o esperei tanto, a olhar a todo o instante para a janela, a ver se aparecia... Ai, Egor Vlassitch, Egor Vlassitch! Por que não quer dar um salto a casa?

—Para fazer o quê?

— Nada, é claro, mas aquilo sempre é propriedade sua... Podia dar uma olhadela, ver como é que andam as coisas. O dono é você... Ena! Matou um tetraz! Por que não se senta e descansa um bocado?

Ao dizer isto, Pelagueia ri, feita uma parva, erguendo os olhos para o rosto de Egor Vlassitch. A sua cara respira felicidade.

— Pois bem, descansemos... — anuiu o caçador em tom indiferente e escolhendo um lugar entre dois abetos. — Por que estás aí de pé? Senta-te também.

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Pelagueia senta-se um pouco afastada ao sol, e, envergonhada da sua alegria, tapa com a mão a boca sorridente.

— Se ao menos passasse um dia pela casa — diz em voz baixa.

—Para quê? — Egor suspira, descobrindo-se e limpando a testa vermelha a uma manga. — Não há necessidade. Se fico uma hora ou duas, .é perder tempo e desarranjar-te, e quanto a fixar-me para sempre na aldeia, isso é-me insuportável. Sabes que sou um homem mimado. Quero ter cama, bom chá, trato delicado e tudo o mais, e lá na tua aldeia só há miséria, imundície... Não agüento ali nem um só dia. Se me obrigassem, pela força, a viver contigo, ou pegava fogo à casa ou suicidava-me. Sou assim de pequeno, buliçoso. Não tem cura.

— E onde é que mora agora?

— Em casa do patrão, Dmitri Ivanitch, como caçador. Levo caça para a cozinha dele... Mas é antes por prazer que me mantém.

— Não é séria a sua ocupação, Egor Vlassitch... Para os outros, é um divertimento, para ti, é como um ofício... um verdadeiro emprego...

— Não compreendes nada, pateta — diz Egor, fixando no céu um olhar sonhador. — Nunca compreendeste e nunca compreenderás que espécie de homem sou eu... Na tua opinião, sou um estroina, um desatinado, mas, para quem sabe, sou o maior atirador de todo o concelho. Os senhores que me conhecem sentem-no, e até referiram o meu nome numa revista. Não há quem se compare comigo na arte da caça... Se não aceito a vossa labuta de campo, não é por leviandade, nem por orgulho. Sabes, desde criança que não conheço outra coisa além da espingarda e dos cães. Se me tiravam a espingarda, pegava na cana de pesca, se me tiravam a cana, servia-me das mãos. Quando tinha “massa”, também me metia em negócios de cavalos, corria as feiras. Sabes, o camponês que se dedicar ao ofício de caçador ou se ocupar de cavalos já não pega mais no arado. Se um homem ganhou o gosto pela liberdade, já ninguém lho tira. Assim como o senhor que envereda pela carreira de ator ou artista, sei lá, nunca mais será funcionário ou rendeiro. E tu, que és uma pacóvia, não tens cabeça para compreender estas coisas.

— Eu compreendo, Egor Vlassitch.

— Se compreendesses, não estavas agora quase a chorar.

— Não, não choro — retorquiu Pelagueia, voltando a cabeça. — Mas assim não dá, Egor Vlassitch. Se ficasses comigo pelo menos um dia... Há já doze anos que nos casamos e ainda nem uma só vez fizemos amor... Não, não, estou a chorar.

— Qual amor! — resmunga Egor, coçando uma mão. — Não pode haver amor nenhum entre nós. Somos um casal só no papel, mas corresponde isso à realidade? Tu achas-me um selvagem, e eu acho-te uma simplória sem entendimentos. Como podemos dar-nos?

Page 69: Anton Tchekhov/Chéjov [Um caso médico & outros contos]

Sou um homem livre, mimado, folgazão, e tu és uma jornaleira, uma campônia, vives na lama, trabalhas de sol a sol. Considero-me um caçador sem igual, e tu lastima-me... Diz-me, que raio de casal é o nosso?

— Mas sempre estamos unidos pelo casamento!... — contrapõe Pelagueia num soluço.

— Não por nossa vontade... Ou já te esqueceste? A culpa foi tua e do conde Serguei Pavlovitch. O conde, que tinha inveja de não saber atirar tão bem como eu, andou um mês a encher-me de vinho, e a um bêbado é fácil casá-lo, ou até convertê-lo a outra fé. Pois então desforrou-se, casando-me contigo... Um caçador com uma ordenhadora! Ora, se vias perfeitamente que eu estava bêbado, por que não te opuseste? Não és serva nenhuma, ninguém te podia forçar! É claro que, para uma ordenhadora, casar com um caçador é a sorte grande, mas também, é preciso pôr a cabeça a trabalhar. Agora estás aqui a sofrer as conseqüências, a verter lágrimas. O conde ri-se e tu choras, martirizas-te...

Silêncio. Três patos bravos aparecem e sobrevoam a moita. Egor segue-os com o olhar até que eles se transformam em três pontos quase invisíveis e pousam muito para além da floresta.

— De que vives?—pergunta ele, passando os olhos dos patos para Pelagueia.

— Agora, ando à jorna, no inverno costumo ir ao orfanato buscar um bebê e criá-lo em casa a biberão. Pagam um rublo e meio por mês.

—Pois...

Outra pausa. Do campo de centeio chegam sons duma canção, que logo se interrompe. O calor não deixa cantar.

— Ouvi dizer que construiu para Akulina uma casa nova —diz Pelagueia.

Egor não responde.

— Sendo assim, gosta dela...

— Bom, é assim a tua sina! Paciência, órfã — diz o caçador, espreguiçando-se.. — Pronto, já me demoraste muito na cavaqueira. Antes que anoiteça, tenho que estar em Boltovo...

Egor ergue-se, espreguiça-se e põe a arma ao ombro. Pelagueia levanta-se também.

— Quando passa então pela aldeia? — pergunta baixinho.

— Para quê? Se não estiver com pinga, nunca lá vou, e bêbado em nada te serei útil. A bebida torna-me raivoso. Adeus!

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— Adeus, Egor Vlassitch...

Egor enfia o boné na cabeça e, assobiando ao cão, põe-se novamente a caminho. Pelagueia fica no mesmo sítio, a observá-lo pelas costas. Enquanto contempla os ombros e o pescoço forte de Egor, que se afasta num passo preguiçoso e lasso, os seus olhos irradiam tristeza e carinho. O seu olhar acaricia, afaga toda a figura do marido, alto e magro. Ele parece sentir esse olhar, pois detém-se e volta a cabeça... Embora continue calado, vê-se pela sua cara e ombros alteados que quer dizer alguma coisa. Pelagueia aproxima-se timidamente e fita-o com um olhar implorador.

— Toma! — diz Egor, sem olhar para ela e estendendo uma nota de um rublo, muito usada. E, afasta-se a passo rápido.

— Adeus, Egor Vlassitch! —diz ela, aceitando maquinalmente a nota. Ele vai caminhando pela estrada comprida e reta como um cinturão. Pálida e imóvel como um monumento, Pelagueia acompanha com o olhar os passos dele. Por fim, o vermelho da camisa de Egor acaba por fundir-se com o cinzento das calças, os passos tornam-se imperceptíveis e é já impossível distinguir o cão das botas. Vê-se apenas o boné. De repente, Egor volta à direita, mete pela moita dentro e o boné desaparece entre a verdura.

— Adeus, Egor Vlassitch! — murmura Pelagueia, pondo-se nos bicos dos pés e procurando avistar, ainda uma vez mais, o boné branco.

— Fim —

O monge negro

Tchekhov

I

Andrey Vasilievich Kovrin, Magister, esgotara-se a trabalhar e tinha os nervos desarranjados. Não fizera qualquer esforço para se tratar com regularidade; só uma vez, por acaso, enquanto bebia uma garrafa de vinho, conversara com um amigo médico que o aconselhara a ir para o campo durante a Primavera e o Verão. Entretanto, recebeu uma carta de Tania Pesotzky, convidando-o a passar uma temporada em casa do pai dela, em Borisovka. E resolveu partir.

Mas, primeiro (estava-se em Abril), dirigiu-se às suas propriedades, em Kovrinka, onde nascera, e ali ficou três semanas sozinho; só quando veio o bom tempo é que encetou a viagem para casa do seu antigo tutor e segundo primo, Pesotzky, célebre horticultor russo. De Kovrinka a Borisovka, a distância era de umas setenta verstas e, na confortável caleche, por aquele tempo primaveril, a jornada prometia ser agradável.

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A casa de Borisovka era grande, tendo na frontaria uma fila de colunas adornadas com estátuas de leões, cujo gesso estava a cair aos pedaços. À porta encontrava-se um criado de libré. O parque antigo, tristonho e severo, desenhado à inglesa, com uma versta de comprido, estendia-se da casa até ao rio, e terminava ali numa margem argilosa e alcantilada, coberta de pinheiros, cujas raízes descarnadas lembravam garras aduncas. Lá em baixo cintilava o rio deserto; no céu, as narcejas voavam em círculos, soltando pios melancólicos. Numa palavra, tudo convidava o visitante a sentar-se e a escrever uma balada. Porém os jardins e os pomares que, juntamente com a horta, ocupavam uma extensão de oitenta hectares, inspiravam sentimentos totalmente diversos. Mesmo sob o mau tempo eram risonhos e inspiravam alegria. Kovrin nunca vira tão belas rosas, tantos lírios e camélias, túlipas tão raras, uma infinidade de flores de toda a espécie e dos mais variados tons, desde o branco puro ao negro da fuligem. Uma riqueza floral que constituía uma novidade para Kovrin. Estava-se apenas no início da Primavera e as maiores raridades encontravam-se ainda abrigadas por vidros. No entanto muitas floriam já nas alamedas e nos canteiros, a ponto de constituírem um reino de delicados coloridos. E tudo isto era ainda mais belo às primeiras horas da manhã, quando as gotas de orvalho cintilavam sobre as folhas e corolas.

Na infância, a parte decorativa do jardim, classificada com desprezo por Pesotzky como «inútil», produzira em Kovrin uma impressão fabulosa. Que milagres da arte, que monstruosidades estudadas, que escárnios da natureza! Espaldares feitos com árvores de fruto, uma pereira em pirâmide, do feitio dum choupo, carvalhos e tílias arredondados, casas formadas por macieiras, arcos, monogramas, candelabros, até mesmo a data de 1862 feita em ameixieiras, para comemorar o ano em que Pesotzky começara a dedicar-se à jardinagem. Havia ali árvores imponentes e simétricas, de troncos erectos como os das palmeiras, mas que eram, afinal, groselhas. Porém o que mais animava o jardim, emprestando-lhe um tom festivo, era o movimento constante dos jardineiros de Pesotzky. Desde a madrugada até altas horas, junto das árvores, dos arbustos, nas alamedas, sobre os canteiros, afadigavam-se os homens, quais abelhas diligentes, com os carrinhos de mão, as enxadas e os regadores.

Kovrin chegou a Borisovka às nove da noite, indo encontrar Tania e o pai num grande susto. A noite clara e cheia de estrelas fazia prever geada, e o chefe dos jardineiros, Yvan Karlich, fora à cidade, não havendo portanto ninguém em quem se pudesse confiar. À ceia só se falou na ameaça da geada e ficou decidido que Tania não iria deitar-se a fim de inspeccionar os jardins à uma hora, para ver se estava tudo em ordem, ao passo que Yegor Semionovich se levantaria às três horas, ou antes ainda.

Kovrin ficou junto de Tania todo o serão e depois da meia-noite acompanhou-a ao jardim. Pairava já no ar um forte cheiro a queimado. No pomar grande, chamado o «pomar comercial», que todos os anos rendia a Yegor Semionovich milhares de rublos, adejava, junto ao chão uma espessa nuvem de fumo acre que iria envolver as folhas novas e salvar as plantas. As árvores estavam dispostas em linha recta como filas de soldados; e esta regularidade estudada, bem como a altura uniforme das casas, tornava o jardim monótono e até enfadonho. Kovrin e Tania caminhavam ao longo das alamedas, observando as fogueiras de esterco, palha e lixo; mas era raro avistarem os trabalhadores, que andavam

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pelo meio do fumo como sombras. Só as ameixieiras e algumas raras macieiras estavam já em flor, mas todo o jardim se encontrava envolvido pelo fumo e só quando chegaram aos alfobres é que Kovrin conseguiu respirar.

— Lembro-me de que, em pequeno, o fumo fazia-me espirrar — declarou ele, encolhendo os ombros. — Mas até hoje ainda não consegui descobrir como é que ele salva as plantas da geada.

— O fumo é um bom substituto quando não há nuvens — respondeu Tania.

— Mas para que querem vocês as nuvens?

— Com o tempo enevoado não há geada pela manhã.

— Ah, sim? — exclamou Kovrin.

Riu-se e pegou na mão de Tania. A cara da rapariga, muito séria e apreensiva; as suas sobrancelhas negras e espessas; a gola direita do casaco que a impedia de mover livremente o pescoço; a saia arregaçada por causa do gelo; toda a sua figura esbelta e aprumada lhe agradava.

«Santo Deus! Como ela cresceu!» — disse consigo.

E declarou em voz alta:

— A última vez que aqui estive eras ainda uma criança. Magra, de pernas compridas, descuidada, de saias curtas, e eu costumava arreliar-te. Que mudança nestes cinco anos!

— Sim, cinco anos! — suspirou Tania. — Muitas coisas mudaram desde então. Diz-me sinceramente, Andrey — pediu ela, fitando-o, prazenteira -, achas que perdeste o à-vontade connosco? Mas para que pergunto eu isto? És um homem, tens uma vida cheia de interesses, possuis... É natural que te sintas estranho. Mas, seja ou não assim, Andriusha, quero que nos consideres como tua família. Temos esse direito.

— Mas é assim que vos considero, Tania!

— Palavra de honra?

— Palavra de honra!

— Admiras-te de termos cá tantos retratos teus. Mas bem sabes como o meu pai te adora, como te quer. És um sábio e não um homem vulgar; tens feito uma carreira brilhante e está firmemente convencido de que isso se deve ao facto de haveres sido educado por ele. Cá por mim não lhe tiro as ilusões. Deixemo-lo acreditar!

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Era já madrugada. O céu clareava. A folhagem e as nuvens de fumo começavam a ver-se mais distintamente. O rouxinol cantava e, nos campos, ouvia-se o grito dos esquilos.

— São horas de irmos para a cama; e está a ficar frio! — exclamou Tania. Pegou na mão de Kovrin: — Obrigada por teres vindo, Andriusha. Nós temos uma praga de amigos enfadonhos e, mesmo esses, não são muitos. Aqui reina a jardinagem, jardinagem e nada mais. Troncos, madeiras — ria ao dizer isto -, pêros, maçãs reinetas, florescimento, poda, limpeza. enxertos... Toda a nossa vida gira em volta dos pomares, não sonhamos com outra coisa que não sejam maçãs e pêras. Claro que tudo isto é muito bom e muito útil, mas às vezes não posso impedir-me de suspirar por uma mudança. Lembro-me de quando vinhas visitar-nos ou passar aqui as férias; toda a casa se me afigurava mais alegre e animada, como se alguém houvesse retirado as coberturas à mobília. Era então uma rapariguita, mas já compreendia...

Tania falou durante algum tempo animadamente. Nesta altura veio à ideia de Kovrin que, durante o Verão, podia suceder-lhe ficar preso a esta criaturinha frágil, miúda e faladora, que podia deixar-se atrair, apaixonar-se... naquelas condições que havia de mais natural? Esse pensamento agradou-lhe, divertiu-o e, enquanto se curvava para o rostozinho amável e perturbado, cantarolou o verso de Pushkine:

Onegin, não posso esconder

Que amo Tania a valer...

Quando chegaram a casa, já Yegor Semionovich estava levantado. Kovrin não sentia vontade de dormir; pôs-se a conversar com o velhote e voltou com ele para o jardim. Yegor Semionovich era alto, largo de ombros e forte. Sofria de falta de ar, mas caminhava tão apressadamente, que se tornava difícil acompanhá-lo. A sua expressão era sempre preocupada, irrequieta, e parecia imaginar que tudo se perderia se chegasse um segundo atrasado.

— Olha, irmão, resolve lá tu este mistério! — começou ele, parando para tomar fôlego. — À superfície da terra, como vês, há geada, mas, se erguermos o termómetro uns metros na ponta de um pau, o ar está morno... Porque será isto?

— Confesso que não sei — retorquiu Kovrin, rindo.

— Não!... Não podes saber tudo... O maior cérebro é incapaz de abranger todas as coisas. Continuas interessado pela tua filosofia?

— Sim... Estou a estudar psicologia e filosofia duma maneira geral.

— E não te aborreces?

— Pelo contrário, não poderia viver sem isso.

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— Bem, queira Deus... — começou Yegor Semionovich alisando as enormes suíças com ar pensativo. — Bem, queira Deus... Folgo muito com isso, irmão. Folgo muito...

De súbito, pôs-se de ouvido à escuta, fazendo uma carranca medonha, e desatou a correr pela rua fora, desaparecendo entre as árvores no meio duma nuvem de fumo.

— Quem prendeu aqui este cavalo? — clamou uma voz desesperada. — Qual de vocês, seus ladrões, assassinos, se atreveu a prender este cavalo a uma macieira? Meu Deus! Meu Deus! Tudo estragado, arruinado, destruído! O jardim está arruinado! O jardim está destruído! Meu Deus!

Quando voltou para junto de Kovrin trazia estampada no rosto uma expressão de impotência e indignação.

— Que diabo podemos nós fazer com esta maldita gente? — inquiria em voz lamentosa a torcer as mãos. — Stepka trouxe para aqui um carro de estrume na noite passada e prendeu o cavalo a uma macieira... atou as rédeas tão curtas, o idiota, que a casca ficou arrancada em três sítios. Que podemos nós fazer com homens como este? Quando falo com ele, pisca os olhos com um ar estúpido. Merecia ser enforcado!

Finalmente calmo, abraçou Kovrin e beijou-o na face.

— Bem! Queira Deus... Queira Deus... gaguejava. — Estou muito contente, muito contente, por teres vindo. Nem sei dizer quanto me sinto feliz! Obrigado!

Em seguida, com o mesmo ar ansioso e o mesmo passo rápido, deu a volta ao jardim todo, mostrando ao seu antigo pupilo o laranjal, as estufas, os abrigos e duas colmeias que lhe descrevia como sendo uma das maravilhas daquele século.

Enquanto passeavam, o sol rompeu, iluminando o jardim. O ar ficou mais quente. Ao pensar no dia longo e soalheiro que tinha na sua frente, Kovrin lembrou-se de que se estava apenas no princípio de Maio e que o esperava um Verão inteiro de dias compridos, alegres e felizes. Num repente, assaltou-o aquele mesmo sentimento de juvenil satisfação que experimentara em criança, quando brincava naquele mesmo jardim. Então abraçou e beijou ternamente o velhote. Comovidos pelas respectivas recordações, penetraram ambos em casa e tomaram chá pelas velhas chávenas chinesas, acompanhado com leite e biscoitos saborosos. Estes pormenores cada vez faziam lembrar mais a Kovrin a sua infância. O presente risonho e as recordações do passado, tudo se misturava, enchendo o coração de Kovrin duma intensa felicidade.

Esperou que Tania acordasse e, depois de tomar com ela o café da manhã e de dar uma volta pelo jardim, foi para o quarto e começou a trabalhar. Lia com atenção e tomava apontamentos, só erguendo os olhos dos livros quando lhe apetecia olhar lá para fora através da janela aberta ou contemplar as rosas frescas que tinha numa jarra em cima da secretária, ainda molhadas de orvalho. E parecia-lhe que todas as veias do seu corpo estremeciam e pulsavam de alegria.

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II

Kovrin, no entanto, continuava a viver a mesma vida nervosa e inquieta que levava na cidade. Lia, escrevia muito e estudava italiano. E, quando saía a passear, estava sempre com a ideia de voltar ao trabalho. Dormia tão pouco, que todos em casa se admiravam. Se acaso passava pelo sono meia-hora durante o dia, nessa noite não conseguia pregar olho. Mas, apesar dessas noites de insónia, sentia-se satisfeito e activo.

Conversava muito, bebia vinho e fumava charutos caros. Quase todos os dias, raparigas da vizinhança vinham a Borisovka tocar piano e cantar na companhia de Tania. Por vezes aparecia também um rapaz amigo que tocava bem violino. Kovrin escutava, embevecido, a música e o canto, mas ficava depois exausto, a ponto de cerrar os olhos sem querer e deixar descair a cabeça sobre o ombro.

Numa dessas tardes, encontrava-se ele sentado na varanda a ler, enquanto, na sala, Tania, que era soprano, uma das amigas, com uma voz de contralto, e o jovem violinista executavam uma conhecida serenata de Braga. Kovrin prestava atenção aos versos, mas, embora fossem russos, não conseguia perceber-lhes o sentido. Por fim, poisando o livro, escutou atentamente e compreendeu. Uma rapariga, de imaginação exaltada, ouvia à noite, no jardim, uns sons tão harmoniosos e estranhos, tão mágicos e encantadores, que para os simples mortais se tornavam incompreensíveis. Então, arrebatada por eles, voou para o céu. As pálpebras de Kovrin descaíram. Ergueu-se, dominado pela música, e começou a passear na sala, dum lado para o outro, e depois pelo corredor. Quando a melodia terminou, pegou na mão de Tania e saiu com ela para a varanda.

— Hoje, desde manhã cedo — começou ele -, não me sai da ideia uma lenda estranha. Não sei onde a li, ou se a ouvi contar a alguém, mas é uma lenda notável e não muito coerente. Devo mesmo dizer que a não acho assaz clara. Aqui há mil anos, um monge, de hábito negro, andava a vaguear pelo deserto, algures na Síria ou na Arábia... A algumas milhas de distância os pescadores avistaram um monge idêntico a avançar devagarinho sobre a superfície do lago. O segundo monge era uma miragem. Pensa agora em todas as leis da óptica que a lenda, claro, não menciona, e escuta: a primeira miragem deu lugar a outra, esta a uma terceira, e assim, sucessivamente, a imagem do monge negro é sempre reflectida duma camada da atmosfera para a outra. Duma vez foi vista na África, doutra na Espanha, depois na Índia, mais tarde no Pólo Norte. Finalmente ultrapassou os limites da atmosfera terrena, sem nunca encontrar condições que a fizessem desaparecer. Talvez hoje esteja visível no planeta Marte, ou na constelação do Cruzeiro do Sul. Mas o ponto principal, o que constituí a verdadeira essência da lenda, consiste na profecia de que, precisamente mil anos depois de o monge ter ido para o deserto, a miragem será de novo projectada na atmosfera da Terra e apresentar-se-á no mundo dos homens. Parece que o prazo dos mil anos está agora a expirar... Segundo a lenda, é provável que o monge apareça hoje ou amanhã...

— Que história estranha! — murmurou Tania, a quem a lenda não agradara.

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— Mas o mais espantoso — prosseguiu Kovrin, rindo — é que não consigo recordar-me de que maneira isto agora me veio à ideia. Tê-la-ia lido? Ou ouvido contar? Ou fui eu que sonhei com o monge negro? Não me lembro. Mas a história interessa-me. Durante todo o dia não tenho pensado noutra coisa.

Soltando a mão de Tania, que voltou para junto dos convidados, saiu de casa e pôs-se a passear, absorto nos seus pensamentos, em volta dos canteiros. O sol estava a pôr-se. As flores, acabadas de regar, exalavam um cheiro húmido e irritante. Dentro de casa, a música recomeçara e, à distância, o violino assemelhava-se a uma voz humana. Sempre a puxar pela memória, numa tentativa de se recordar onde ouvira a lenda, Kovrin atravessou lentamente o parque e, sem saber para onde ia, dirigiu-se à margem do rio.

Começou a descer pelo atalho que serpenteava no meio das raízes descarnadas, assustando as narcejas e perturbando os patos. Os últimos raios do sol brilhavam sobre os pinheiros negros, porém a superfície das águas estava já totalmente coberta de escuridão. Kovrin atravessou o rio. Na sua frente estendia-se um prado em que ondulava centeio novo. Naquela enorme extensão não se avistava vivalma ou qualquer habitação humana. Parecia que aquele atalho conduzia directamente à região misteriosa e inexplorada onde o sol acabava de se pôr: onde brilhava ainda, imóvel e majestosa, a refracção dos seus raios.

«Que vastidão! Que paz! Que liberdade! — pensava Kovrin avançando pelo atalho. — Parece que o mundo inteiro me observa de qualquer lugar oculto, à espera que eu lhe compreenda o sentido.»

Um sopro de ar agitou o centeio e a brisa leve da noite afagou-lhe a cabeça descoberta. Dali a um minuto, o vento soprou de novo, desta vez com mais força. O centeio ondulou e lá atrás, ouviu-se o sussurrar monótono dos pinheiros. Kovrin deteve-se, surpreendido. No horizonte, lembrando um ciclone ou uma tromba de água, ergueu-se uma coluna negra que subia da terra para o céu. Os seus contornos permaneciam indefinidos; no entanto, via-se logo que não estava imóvel, antes avançava com incrível rapidez na direcção de Kovrin; e, à medida que se aproximava, ia-se tornando cada vez mais pequena. Sem se aperceber disso, Kovrin deu um passo para o lado, a fim de lhe abrir caminho. Um monge de hábito negro, com os cabelos e as sobrancelhas brancas, de mãos cruzadas no peito, passou na sua frente, a uns vinte metros de distância. Os seus pés descalços não poisavam no chão. Olhou, olhou para trás, fez um aceno de cabeça a Kovrin e sorriu-lhe amavelmente, mas ao mesmo tempo com uma certa astúcia. O rosto do velho era magro e pálido. Depois de haver passado, começou de novo a crescer, transpôs o rio, foi bater sem ruído na margem de argila e nos pinheiros, e sumiu-se no meio deles, desaparecendo como o fumo.

— Ora vêem? — gaguejou Kovrin. — Afinal de contas a lenda era verídica!

Sem tentar sequer explicar este estranho fenómeno, satisfeito com o facto de haver contemplado tão de perto e com tanta clareza, não só a veste negra, mas ainda o rosto e os olhos do monge, Kovrin regressou a casa, agradavelmente agitado.

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Os visitantes passeavam agora calmamente no jardim. Dentro da sala, a música prosseguia. Sendo assim, só ele é que divisara o Monge Negro. Experimentava um forte desejo de contar o que acabava de ver a Tania e a Yegor Semionovich. Receava, porém, que estes considerassem aquilo uma alucinação da sua parte, e decidiu calar-se. Pôs-se a rir, cantou, dançou a mazurca, sentindo-se muito bem disposto. Os convidados de Tania notaram-lhe no rosto uma curiosa máscara de êxtase, de inspiração, e acharam-no deveras interessante.

III

No fim do jantar, depois de os visitantes se terem ido embora, Kovrin retirou-se para o quarto e deitou-se no sofá. Queria pensar no monge. Mas dali a momentos entrou Tania.

— Olha, Andriusha, se quiseres podes ler os artigos do pai. São esplêndidos — declarou ela. — Ele escreve muito bem.

— Não haja dúvida! — exclamou Yegor Semionovich com um sorriso contrafeito. — Não lhe dês ouvidos, pelo amor de Deus!... Ou então lê-os, se queres dormir depressa. São um óptimo soporífero.

— Cá por mim acho-os magníficos — exclamou Tania, muito convencida. — Lê-os, Andriusha, e convence o pai a escrever mais vezes. Julgo-o capaz de produzir um tratado completo de jardinagem.

Yegor Semionovich riu-se, corou e murmurou as frases convencionais usadas pelos autores envergonhados. Por fim concedeu:

— Se estás realmente disposto a lê-los, começa por estes do Gauché e pelos artigos russos — gaguejou, segurando nos jornais com as mãos trémulas. — De contrário, não perceberás nada. Antes de leres as minhas respostas, tens de saber a quem as dirijo. Mas isto não te deve interessar... Que estupidez! São horas de ir para a cama.

Tania saiu. Yegor Semionovich sentou-se na ponta do sofá e soltou um fundo suspiro.

— Ah, meu irmão!... — começou depois de um prolongado silêncio. — Como vês, meu caro Magister, escrevo artigos, tomo parte em exposições, às vezes ganho medalhas... O Pesotzky, diz-se por aí, produz maçãs do tamanho de cabeças... O Pesotzky faz uma fortuna com os pomares... Numa palavra: «o Kochubey é rico e glorioso». Mas qual será o fim de tudo isto, pergunto eu! Os meu jardins, disso não pode haver dúvida, são maravilhosos, modelares... Não são propriamente jardins, mas antes uma instituição de grande importância política, um passo em frente na nova era da agricultura e da indústria na Rússia... Mas qual o seu fim? Qual o seu objectivo?

— A resposta é fácil.

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— Não falo nesse sentido. O que eu queria saber é o que acontecerá a tudo isto depois da minha morte? Tal como as coisas estão, nada disto pode manter-se sem mim, nem sequer durante um mês. O segredo não reside no facto de o jardim ser grande, no número de trabalhadores, mas antes no amor que eu lhe dedico, compreendes? Amo isto, talvez mais do que a mim próprio. Vê bem! Trabalho de manhã até à noite. Faço tudo com as minhas próprias mãos. Os enxertos, as podas, as plantações, eu é que faço tudo. Quando alguém me ajuda, sinto ciúmes e acabo por me irritar a ponto de ser grosseiro. O segredo de tudo está no amor, nos olhos atentos do dono, nas mãos do dono, na sensação que experimento, quando vou dar um passeio ou visito alguém durante meia-hora, de que deixei o coração para trás e não estou em mim... Receio constantemente que alguma coisa tenha acontecido aos pomares. Imagina agora que eu morro amanhã: quem tomará conta de tudo isto? Quem fará o trabalho? O chefe dos jardineiros? Os trabalhadores? Ora a minha maior preocupação, actualmente, não é a lebre, nem o escaravelho, nem a geada. São as mãos estranhas.

— E a Tania? — inquiriu, rindo, Kovrin. — Será ela mais perigosa do que uma lebre? A Tania ama e compreende o seu trabalho.

— Sim. A Tania ama-o e compreende. Se, depois da minha morte, ela ficasse com isto, nada mais eu poderia desejar. Mas suponha-mos... Deus nos defenda!... que ela se casa? — Yegor Semionovich falava em voz baixa e fitava Kovrin com olhares assustados. — Aí é que está o busílis! Pode casar-se, ter filhos e então não lhe restará tempo para cuidar do jardim. Isto só por si já seria mau. Mas o meu maior receio é que venha a casar-se com um perdulário, esganado por dinheiro, que arrende o jardim a mercenários, e lá se vai tudo por água abaixo logo no primeiro ano! Num negócio desta espécie, uma mulher é uma praga!

Yegor Semionovich suspirou e ficou calado uns momentos.

— Podes chamar a isto egoísmo. Mas eu não desejaria que a Tania se casasse. Tenho receio! Tu já viste esse peralvilho que aí vem com o violino fazer uma barulheira medonha. Bem sei que a Tania nunca consentiria em casar com ele. Mas não posso enxergar o sujeito... Enfim, meu amigo. Sou um velho casmurro... sei isso muito bem!

Yegor Semionovich ergueu-se e pôs-se a passear muito excitado dum lado para o outro. Via-se claramente que tinha algo de muito importante para dizer, mas não conseguia resolver-se.

— Estimo-te de mais para não te falar com toda a franqueza — declarou por fim, enterrando as mãos nos bolsos. — Em todas as questões delicadas só digo o que penso e odeio as mistificações. Confesso, portanto, com toda a sinceridade, que és tu o único homem que não me importaria de ver casado com a Tania. És esperto, tens bom coração e não serias capaz de arruinar o meu trabalho. Mais ainda, amo-te como a um filho... tenho orgulho em ti. Por isso, se tu e a Tania acabarem por... arranjar uma espécie de romance... eu sentir-me-ei muito satisfeito, muito feliz. Digo-te isto cara a cara, sem vergonha, como é próprio de todo o ser honesto.

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Kovrin sorriu. Yegor Semionovich abriu a porta e ia a sair, mas parou ainda na soleira, para acrescentar:

— Se tu e a Tania tivessem um filho, eu poderia fazer dele um horticultor. Mas isto é uma pura fantasia. Boas noites!

Uma vez só, Kovrin instalou-se confortavelmente e pegou nos artigos do velhote. O primeiro intitulava-se: «Cultura intermediária», o segundo, «Algumas palavras em resposta às observações do senhor Z. acerca do tratamento do solo num jardim recente», o terceiro «Ainda acerca dos enxertos». Os restantes eram do mesmo teor. Mas tudo aquilo respirava inquietação e irritabilidade doentia. Até mesmo um escrito com o pacífico título de «Macieiras russas» exalava mau génio. Yegor Semionovich começava com estas palavras: «Audi alteram partem» e terminava: «Sapienti sat»; no meio destas eruditas citações, irrompia uma torrente de palavras azedas dirigidas contra «a sábia ignorância dos nossos horticultores encartados que observam a natureza do alto das suas cátedras académicas» e contra M. Gauché «cuja fama se baseia na admiração dos profanos e dos dilettanti». Deparou-se-lhe finalmente uma tirada despropositada e pouco sincera em que o autor lamentava o facto de já não ser legal usar-se o chicote para com os camponeses que são apanhados a roubar fruta e a maltratar as árvores.

«O trabalho dele é útil, salutar e empolgante — pensou Kovrin -, no entanto, nestes panfletos nada encontramos senão mau génio e guerra aberta. Calculo que o mesmo se passa em toda a parte; os especialistas, seja qual for o seu campo, mostram-se nervosos e são vítimas desta mesma sensibilidade exacerbada. Provavelmente não pode ser doutra maneira.»

Pensou em Tania, tão encantada com os artigos do pai e depois em Yegor Semionovich. Tania, pequenina, pálida e frágil, com as clavículas salientes, os olhos negros e espertos, sempre muito abertos, que pareciam estar à procura de qualquer coisa. E em Yegor Semionovich com os seus passinhos apressados. Voltou a recordar-se de Tania, do prazer que mostrava em conversar e discutir, acompanhando as frases mais insignificantes com mímica e gestos. Nervosa. Também ela devia ser nervosa no mais alto grau.

Kovrin tentou ler de novo, mas não percebia nada do que vinha nos livros e desistiu. A agradável emoção com que dançara a mazurca e escutara a música continuava a empolgá-lo, fazia surgir-lhe uma montanha de pensamentos. Passou-lhe pela cabeça que, se aquele estranho e misterioso monge só tinha sido visto por ele, é porque devia estar doente, a ponto de sofrer de alucinações. Esta ideia assustou-o, mas em breve a pôs de parte.

Sentou-se no sofá, com a cabeça entre as mãos, tentando dominar a alegria que se apoderara de todo o seu ser; passeou depois para cá e para lá durante um minuto e voltou ao trabalho. Porém os pensamentos que lia nos livros já o não conseguiam satisfazer. Aspirava a qualquer coisa de mais vasto, de infinito, de avassalador. Pela madrugada despiu-se e meteu-se na cama, contrafeito. Reconhecia que era melhor descansar. Quando, finalmente, ouviu Yegor Semionovich que se dirigia para o trabalho no jardim,

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tocou a campainha e mandou ao criado que lhe trouxesse vinho. Bebeu uns poucos de copos, até começar a sentir a consciência entorpecida e adormeceu.

IV

Yegor Semionovich e Tania questionavam amiudadas vezes e diziam um ao outro coisas muito desagradáveis. Nessa manhã estavam ambos irritados e Tania desatara a chorar e fora para o quarto, não voltando a aparecer nem para o jantar, nem para o chá. A princípio, Yegor Semionovich começou a andar dum lado para o outro, solene e empertigado, como se quisesse dar a entender que, para ele, a ordem e a justiça constituíam o supremo interesse da vida. Mas não conseguiu manter por muito tempo esta atitude. Faltou-lhe a coragem e desatou a passear pelo parque, suspirando:

— Ah, meu Deus!

Ao jantar não comeu nada e por fim, torturado pela consciência, foi bater de mansinho à porta da rapariga, murmurando timidamente:

— Tania! Tania!

Do outro lado respondeu-lhe uma voz fraca, chorosa, mas decidida:

— Deixe-me em paz! Suplico-lhe!

A tristeza do pai e da filha reflectiam-se em toda a casa e até nos trabalhadores do jardim. Kovrin, como de costume, achava-se mergulhado no seu interessante trabalho, mas até ele acabou por se sentir cansado e mal disposto. Resolveu interferir e dissipar aquela nuvem, antes da noite. Foi bater à porta de Tania, e esta mandou-o entrar.

— Vamos! Vamos! Que vergonha! — começou ele num tom brincalhão. Depois, olhando, surpreendido, aquele rosto lacrimejante e aflito, coberto de rosetas vermelhas, disse: — Então isso é a sério? Ora, ora!

— Se soubesses a que ponto ele me torturou! — exclamou ela, enquanto uma onda de lágrimas lhe rebentava dos olhos. — Atormentou-me! — prosseguiu a torcer as mãos. — E eu não tinha dito nada... Só alvitrei que não era necessário mantermos uma chusma de trabalhadores efectivos... uma vez que nos podíamos arranjar com jornaleiros... Bem sabes que os homens não têm feito nada durante toda esta semana... Eu... eu só disse isto e ele pôs-se a berrar comigo e disse-me uma data de coisas... muito ofensivas... insultuosas. E tudo sem razão nenhuma.

— Não faças caso! — declarou Kovrin, afagando-lhe os cabelos. — Tu já barafustaste e tiveste o teu desabafo; agora pronto! Não deves prolongar isto indefinidamente... não está certo... tanto mais que ele gosta de ti a valer, sabes isso muito bem.

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— O pai estragou-me a vida — soluçava Tania. — Nunca ouvi outra coisa senão insultos e afrontas. Considera-me a mais na sua própria casa! Deixá-lo. Faço-lhe a vontade! Vou estudar e arranjar emprego como telegrafista!... Ele verá.

— Ora, ora! Acaba lá com isso, Tania. Só te faz mal!... Sois ambos muito exaltados, impulsivos, e nenhum tem razão. Vamos, eu é que vou fazer as pazes!

Kovrin falava num tom suave e persuasivo, mas Tania continuava a chorar e sacudia os ombros, a torcer as mãos como se na verdade estivesse esmagada por uma verdadeira desgraça. Kovrin sentia-se ainda mais apoquentado por verificar a insignificância do motivo deste desgosto. Um simples nada bastava para tornar infeliz durante um dia inteiro aquela criaturinha, ou, segundo ela afirmava, durante toda a vida! E, enquanto tentava consolar Tania, ocorreu-lhe que, a não ser ela e o pai, mais ninguém no mundo o estimava assim como se fizesse parte da família. Se não fossem eles, ter-se-ia sentido órfão em pequeno, passaria a vida inteira sem gozar uma carícia sincera e sem experimentar aquele amor simples e irreflectido que apenas dedicamos aos entes do nosso sangue. E sentia que os seus nervos, esgotados e tensos como cordas de viola, correspondiam aos desta rapariguinha chorosa e trémula. Considerava também que nunca seria capaz de amar uma mulher saudável, de faces rubicundas; sentia-se, porém, atraído pela pequena Tania, pálida, fraca e infeliz.

Dava-lhe prazer contemplar os seus ombros e os seus cabelos. Apertou-lhe a mão e limpou-lhe as lágrimas... Ela por fim deixou de chorar. Mas continuava ainda a queixar-se do pai, da vida insuportável que levava em casa, suplicando a Kovrin que compreendesse bem a sua situação. Depois, pouco a pouco, começou a sorrir e a suspirar, afirmando que Deus a castigara com um génio impossível; por fim, ria alto, chamando tola a si própria, e acabou por sair a correr do quarto.

Passados uns momentos Kovrin dirigiu-se ao jardim. Como se nada se tivesse passado, Yegor Semionovich e Tania passeavam na alameda, ao lado um do outro, comendo pão de centeio com sal. Ambos estavam cheios de fome.

V

Satisfeito com o seu papel de medianeiro, Kovrin foi para o parque. Quando estava sentado num banco, ouviu o ruído duma carruagem e um riso de mulher. Mais visitas, sem dúvida! As sombras começaram a envolver o jardim. O som de um violino, a voz da mulher, tudo ali chegava tão atenuado pela distância, que mal se ouvia. Recordou-se então do Monge Negro. Em que regiões, em que planetas, pairaria agora aquela absurda ilusão de óptica?

Mal lhe viera à mente a ideia da lenda, evocando a escura aparição no campo de centeio, logo viu surgir detrás das árvores, caminhando sem ruído, um homem de estatura mediana. Trazia a cabeça grisalha a descoberto, vestia de negro e vinha descalço como um mendigo. No seu rosto pálido como o de um cadáver avultavam vários pontos negros. Depois de um cumprimento de cabeça, o desconhecido, talvez um mendigo, dirigiu-se

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silenciosamente para o banco e sentou-se. Kovrin reconheceu então o Monge Negro. Durante uns momentos olharam um para o outro, Kovrin com ar de espanto, porém o monge com amabilidade e, tal como da primeira vez, mostrando no rosto uma certa ironia.

— Mas tu és uma miragem! — disse Kovrin. — Porque estás aqui e porque vieste sentar-te neste lugar? Isso não está de acordo com a lenda.

— É tudo a mesma coisa — replicou suavemente o monge, voltando-se para Kovrin. — A lenda, a miragem, eu mesmo, tudo são produtos da tua imaginação exaltada. Eu sou um fantasma.

— Isso quer dizer que não existes? — inquiriu Kovrin.

— Pensa o que quiseres — replicou o monge, com um leve sorriso. — Eu existo na tua imaginação, e como a tua imaginação faz parte da Natureza, devo também existir na Natureza.

— A tua fisionomia é distinta e inteligente. Tenho a impressão de que, na realidade, existes há mais de mil anos — observou Kovrin. — Nunca me julguei capaz de imaginar um fenómeno assim. Porque me olhas tão encantado? Simpatizas comigo?

— Sim, és um daqueles entes raros que podem, com justiça, ser chamados eleitos de Deus. Tu serves a eterna verdade. Os teus pensamentos, as tuas intenções, a tua ciência espantosa, toda a tua vida traz o selo da divindade, a marca do céu. Dedicas tudo ao racional e ao belo, ou seja, ao Eterno.

— A eterna verdade, disseste tu. Poderá então a eterna verdade ser acessível e necessária ao homem se não houver vida eterna?

— Há uma vida eterna — afirmou o monge

— Tu acreditas na imortalidade do homem?

— Pois claro. A vós, homens, espera-vos um futuro belo e grandioso. E, quanto mais homens como tu houver no mundo, mais perto se está de alcançar esse futuro. Sem vós, ministros dos altos princípios, que viveis conscientes e livres, a humanidade nada seria. Deixando-a desenvolver pela ordem natural das coisas, ela teria de esperar o fim da história da terra. Mas vós conseguistes adiantá-la no caminho do reino da eterna verdade alguns milhares de anos. E é este o grande serviço que lhe prestais. Vós personificais a bênção que Deus derrama sobre o povo.

— E qual é o objectivo da vida eterna? — inquiriu Kovrin.

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— O mesmo de todas as vidas. O prazer. O verdadeiro prazer reside no conhecimento e a vida eterna oferece inúmeras e inexauríveis fontes de conhecimento; foi neste sentido que se disse: «Na casa de meu pai existem várias mansões...»

— Não calculas o prazer que sinto em ouvir-te — declarou Kovrin esfregando as mãos, deliciado.

— Ainda bem.

— Sei, no entanto, que, mal te fores embora, ficarei atormentado por dúvidas acerca da tua realidade. Tu és um fantasma, uma alucinação. Mas significará isso que estou fisicamente doente, que não me encontro no meu estado normal?

— E se assim for? Não te deves preocupar com isso. Estás doente em virtude de haveres trabalhado para além das tuas forças, porque sacrificaste a saúde a uma ideia, e não vem longe o dia em que sacrificarás não só a saúde mas também a vida. Que mais poderás desejar? É a isso que aspiram todas as naturezas nobres e bem dotadas.

— Mas se me encontro de verdade enfermo, como posso acreditar em mim próprio?

— E quem te diz que todos aqueles homens de génio que o mundo admira não tiveram visões? Hoje afirma-se que o génio está muito perto da loucura. As pessoas saudáveis e normais não passam de simples homens, constituem o rebanho. Receios, esgotamentos, estados de degenerescência, tudo isso só pode preocupar aqueles cujos objectivos na vida se resumem ao presente. Esses é que formam o rebanho.

— Os romanos consideravam como seu ideal: mens sana in corpore sano.

— Nem tudo o que afirmavam os gregos e os romanos é verdade. A exaltação, as aspirações, os estados de excitamento, o êxtase, todas estas coisas que são o apanágio dos poetas, dos profetas, dos mártires de ideias fora do comum, são incompatíveis com a vida animal, quero dizer, com a saúde física. Repito: se desejas ser saudável e normal, segue o rebanho.

— Como é estranho que estejas a repetir aquilo mesmo que tenho pensado muitas vezes! — exclamou Kovrin. — Dá a impressão de teres lido os meus mais secretos pensamentos. Mas não falemos de mim. O que entendes tu por estas palavras: verdade eterna?

O monge não respondeu. Kovrin olhou para ele mas não conseguiu distinguir-lhe a cara. As feições haviam-se-lhe desvanecido, a cabeça e os braços tinham desaparecido. O corpo dissolvera-se no banco e no crepúsculo, sumindo-se por completo.

— Lá se foi a alucinação! — exclamou Kovrin, rindo. — Que pena!

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Voltou para casa alegre e feliz. O que ouvira ao Monge Negro lisonjeara-lhe, não só o amor-próprio, mas também a alma e todo o seu ser. Considerar-se um eleito, um ministro da eterna verdade, fazer parte do grupo daqueles que apressam em milhares de anos o momento em que a humanidade se tornará digna do reino de Cristo, poupar a essa mesma humanidade milhares de anos de luta, de pecado, de sofrimento, pôr tudo ao serviço duma ideia — juventude, força, saúde -, ser capaz de morrer pelo bem-estar colectivo, que glorioso ideal! E quando a memória lhe fez reviver o passado, uma vida pura e casta, cheia de trabalho, quando pensou no que aprendera e no que ensinara aos outros, concluiu que não havia exagero nas palavras do Monge.

Lá vinha Tania ao seu encontro, no parque. Trazia um vestido diferente do que lhe vira da última vez.

— Estás aí? — gritou ela. — Andávamos à tua procura há que tempos... Mas que aconteceu? — inquiriu a rapariga, surpreendida, vendo a expressão radiosa e exaltada de Kovrin, e reparando-lhe nos olhos cheios de lágrimas. — Que esquisito tu estás, Andriusha!

— Estou contente. Tania — explicou ele, poisando-lhe a mão no ombro. — Estou mais do que contente, estou feliz! Tania, querida Tania! Não sabes quanto te quero! Sinto-me muito satisfeito.

Beijou-lhe com fervor as mãos e prosseguiu:

— Acabo de viver os momentos mais maravilhosos, mais belos, mais estranhos da minha vida... Mas não posso contar-te tudo, de contrário chamar-me-ias louco ou recusar-te-ias a acreditar em mim... Falemos antes de ti! Tania, amo-te desde há muito! Ver-te constantemente, encontrar-te a toda a hora, é-me absolutamente necessário. Não sei como hei-de passar sem ti quando me for embora!

— Ora! — retorquiu Tania rindo. — Vais esquecer-nos dentro de dois dias! Nós somos pessoas insignificantes e tu és um grande homem!

— Vamos falar a sério — disse Kovrin. — Quero levar-te comigo, Tania. Sim? Vens comigo? Queres ser minha?

Tania exclamou:

— O quê! — e tentou rir outra vez. Mas não conseguiu e apareceram-lhe no rosto duas rosetas vermelhas. Respirava com força e pôs-se a andar muito depressa. — Não sabia... Nunca pensei nisto... nunca pensei — declarava apertando as mãos uma na outra, como se estivesse desesperada.

Kovrin, porém, correu atrás dela e, com a mesma expressão deslumbrada e entusiasta, continuou a falar:

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— Aspiro a um amor que possa tomar conta de todo o meu ser, e este amor, Tania, só tu mo podes dar. Sou feliz! Tão feliz!

A rapariga sentia-se desorientada, confundida, exausta, e parecia ter envelhecido dez anos de repente. Mas Kovrin achava-a encantadora e exprimiu em voz alta o seu êxtase:

— Como é linda!

VI

Quando ouviu da boca de Kovrin que, além de um romance, iria haver um casamento, Yegor Semionovich pôs-se a andar pelos cantos a fim de esconder a sua agitação. Tremiam-lhe as mãos, tinha o pescoço inchado e vermelho. Deu ordem para atrelarem os cavalos à sua charrete de corrida e saiu. Tania, ao ver a maneira como chicoteava os cavalos e enterrava o boné até às orelhas, percebeu o que ele estava sentindo e fechou-se no quarto a chorar todo o dia.

No pomar, os pêssegos e as ameixas estavam já maduros. O empacotamento e o despacho, para Moscovo, de tão delicada mercadoria exigia muitos cuidados, atenção e actividade. Por causa do calor, todas as árvores tinham de ser regadas; o processo ficava dispendioso em tempo e trabalho. Começaram a aparecer muitas lagartas que Yegor Semionovich e Tania, bem como os trabalhadores, esmagavam com o dedo, com grande escândalo de Kovrin. Tornava-se necessário satisfazer as encomendas do Outono relativas a frutos e a árvores, e por isso mantinha-se uma correspondência muito activa. No auge do trabalho, quando parecia que ninguém poderia dispor dum momento, começou a faina dos campos, deixando o jardim desfalcado em mais de metade dos trabalhadores. Yegor Semionovich, bastante queimado pelo sol, muito irritado e cheio de preocupações, corria dum lado para o outro, ora no jardim, ora nos campos. E gritava a toda a hora que isto dava cabo dele e que iria meter uma baia nos miolos.

Além de tudo, havia a preocupação com o enxoval de Tania, a que os Pesotzky ligavam grande importância. A casa inteira vibrava com o ruído das tesouras, o matraquear das máquinas de costura, o cheiro dos ferros de engomar, as exigências da modista muito nervosa e susceptível. E, para cúmulo, todos os dias chegavam visitas que era preciso divertir, alimentar, alojar durante a noite. No entanto, os trabalhos e as preocupações desvaneciam-se numa névoa de alegria. Tania tinha a impressão de que o amor e a felicidade se haviam apoderado dela, como se desde os catorze anos alimentasse a certeza de que Kovrin não casaria com nenhuma outra mulher. Mantinha-se num permanente estado de espanto, de dúvida, de incerteza para consigo própria. Em determinados momentos, a sua alegria era tamanha, que se julgava capaz de subir aos céus para orar a Deus; noutros, então, recordava-se de que, em Agosto, teria de deixar a casa da sua infância e abandonar o pai. E assustava-a a ideia que lhe vinha, não sabia donde, de ser uma rapariguinha vulgar e insignificante, indigna dum grande homem como Kovrin. Quando a assaltavam tais pensamentos, corria a fechar-se no quarto e ali chorava com amargura durante horas. Quando, porém, estavam presentes as visitas, reparava de súbito que Kovrin era um belo homem e que todas as mulheres o amavam e a invejavam a ela. E

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em tais momentos o seu coração inflamava-se de orgulho, como se tivesse conquistado o mundo inteiro. Quando ele ousava sorrir para qualquer outra mulher, tremia de ciúmes e fugia para o quarto, novamente em lágrimas. Estes sentimentos haviam-se apossado por completo de Tania. Ajudava maquinalmente o pai, não dava atenção aos jornais, nem às lagartas, nem aos trabalhadores, nem à rapidez com que passava o tempo.

Yegor Semionovich encontrava-se num estado de espírito mais ou menos semelhante. Continuava a trabalhar de manhã à noite, corria pelo jardim e irritava-se a todo o momento, mas sempre mergulhado nas suas mágicas divagações. Dentro daquele corpo robusto digladiavam-se dois homens: um, o verdadeiro Yegor Semionovich, que, ao ouvir o jardineiro, Yvan Karlovich, relatar-lhe qualquer engano ou percalço, perdia a cabeça e arrepelava os cabelos; o outro, o novo Yegor Semionovich, um velho obcecado, que interrompia uma conversa importante para agarrar no ombro do jardineiro, gaguejando:

— Podes dizer o que quiseres, mas quem sai aos seus não degenera. A mãe dele era uma senhora das mais finas e inteligentes. Dava prazer fitar aquela cara, boa, pura, franca como a de um anjo. E também pintava muito bem, escrevia versos, falava cinco línguas e cantava... Coitadinha! Deus a tenha em descanso. Morreu tísica!

O novo Yegor Semionovich suspirava e, após um momento de silêncio, prosseguia:

— Quando ele era um rapazinho que se fazia homem em minha casa, tinha também uma cara assim, boa, franca e pura. A sua aparência, os seus gestos e palavras eram tão suaves e graciosos como os da mãe. E que inteligência! Não é sem razão que alcançou o grau de Magister. Mas vais ver, Ivan Karlovich, vais ver o que ele será dentro de dez anos! Vamos perdê-lo de vista!

Nesta altura, porém, o verdadeiro Yegor Semionovich caía em si, voltava à terra e trovejava:

— Malandros! Tudo queimado, arruinado, destruído! O jardim está arruinado! O jardim está destruído!

Kovrin trabalhava com o antigo entusiasmo e raramente dava pelo rebuliço à sua volta. O amor não fazia mais do que deitar azeite na lume. Depois de cada encontro com Tania, regressava ao quarto, encantado e feliz, e atirava-se aos livros e manuscritos com a mesma paixão com que a beijara e lhe jurara o seu amor. Aquilo que lhe dissera o Monge Negro acerca de ele ser um dos eleitos de Deus, ministro da eterna verdade e do glorioso futuro da humanidade, conferia ao trabalho de Kovrin um significado especial e desusado. Uma ou duas vezes por semana, quer no parque, quer dentro de casa, encontrava-se com o frade, e ambos conversavam durante horas; isto porém não assustava Kovrin, antes o encantava, pois adquirira já a certeza de que tais aparições só visitam os eleitos e os raros que se dedicam ao ministério das ideias.

O dia da Assunção passou despercebido. Seguiu-se a boda realizada com grande pompa segundo o desejo expresso por Yegor Semionovich, quer dizer, com aqueles festejos sem

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significado algum, mas que duram dois dias. Gastaram-se três mil rublos em comidas e bebidas; porém, no meio da música de baixa categoria, dos brindes ruidosos, dos criados atarefados, dos clamores e da atmosfera pesada das salas, ninguém apreciou os vinhos caros nem os extraordinários hors-d'oeuvre encomendados expressamente em Moscovo.

VII

Numa das longas noites de Inverno, Kovrin encontrava-se na cama a ler um romance francês. A pobre Tania, que todas as noites sofria de dores de cabeça por não estar habituada à vida na cidade, adormecera havia muito e, em sonhos, ia murmurando palavras incoerentes.

O relógio bateu três horas. Kovrin apagou a vela e deitou-se para baixo, ficando contudo muito tempo sem poder dormir em virtude do calor do aposento e do murmurar contínuo de Tania. Às quatro e meia acendeu de novo a vela. O Monge Negro estava sentado numa cadeira, ao lado da cama.

— Boa-noite! — disse o monge. E, depois de um momento de silêncio, inquiriu: — Em que estás agora a pensar?

— Na glória — respondeu Kovrin. — No romance francês que acabo de ler, o herói é um jovem que comete toda a casta de loucuras e morre de paixão pela glória. Quanto a mim, esta paixão afigura-se-me inconcebível.

— És demasiado inteligente. Olhas com indiferença para a fama como para um brinquedo que te não pode interessar.

— Isso é verdade.

— A celebridade não te atrai. Que prazer, que alegria ou conhecimento pode um homem tirar do facto de saber que o seu nome será gravado num monumento, do qual o tempo cedo ou tarde virá a apagar as letras? Sim, felizmente vocês são tantos, que a fraca memória humana vos não pode recordar a todos o nome.

— Claro — retorquiu Kovrin. — Mas para quê recordá-los... Falemos antes de outra coisa. Da felicidade, por exemplo. O que é a felicidade?

Quando o relógio bateu cinco horas estava Kovrin sentado na cama, com os pés poisados no tapete e a cabeça voltada para o monge; dizia:

— Nos tempos antigos houve um homem que teve tanto medo da sua felicidade que, a fim de aplacar os deuses, lhes ofereceu um anel que muito estimava. Já ouviste contar isto? Também eu agora, tal como Polícrates, me sinto um pouco assustado com a minha própria felicidade. De manhã à noite só sinto alegria, que me absorve e abafa todos os outros sentimentos. Não sei o que é a dor, o cansaço ou a aflição. Falo a sério. Começo a desconfiar.

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— Porquê? — inquiriu o monge num tom admirado. — Consideras então a alegria um sentimento sobrenatural. Achas que não é o estado normal das coisas? Não! Quanto maior é o grau moral e mental que o homem atinge, mais livre se sente, maior é a satisfação que ele tira da vida. Sócrates, Diógenes, Marco Aurélio conheciam a alegria e não a tristeza. E o apóstolo disse: «Alegra-te extraordinariamente». Alegra-te e sê feliz!

— E se de repente os deuses se encolerizam? — inquiriu Kovrin. — Cá por mim, não me agradava nada que me tirassem a felicidade e me obrigassem a tremer e a morrer de fome.

Tania acordou e olhou para o marido com espanto e terror. Este falava, voltado para a cadeira, a gesticular e a rir. Brilhavam-lhe os olhos e o seu riso tinha um som estranho.

— Andriusha, com quem estás tu a falar? — inquiriu ela agarrando na mão que ele estendia para o monge. — Andriusha, quem está aí?

— Quem? — respondeu Kovrin. — Mas é o monge!... Está ali sentado. — E apontava para o Monge Negro.

— Ali não está ninguém... ninguém, Andriusha! Estás doente!

Tania abraçava o marido, apertava-o contra si, como a querer defendê-lo da aparição, e tapava-lhe os olhos com as mãos.

— Tu estás doente — soluçava ela, toda a tremer. — Desculpa, querido, mas desconfio há muito de que andas um pouco nervoso... Não estás bem... fisicamente, Andriusha!

A tremura dela comunicou-se a Kovrin. Olhou mais uma vez para a cadeira, agora vazia, e sentiu as pernas e os braços subitamente tomados de fraqueza. Começou a vestir-se.

— Não é nada. Tania. Não é nada... — gaguejava ele ainda a tremer. — Não estou lá muito bem... Já é tempo de o confessar.

— Há muito que andava desconfiada... e o meu pai também — confessou ela, tentando dominar os soluços. — Andas constantemente a falar sozinho, a sorrir dum modo tão estranho... e não dormes. Oh, meu Deus, meu Deus, tem pena de nós! — exclamava com terror. — Mas não te assustes, Andriusha, não te assustes... pelo amor de Deus, não te assustes...!

Tania vestiu-se também... Só então, ao olhar para a mulher, Kovrin compreendeu o perigo da sua situação e atingiu o que quisera dizer o Monge Negro nas suas conversas. Convenceu-se absolutamente de que estava doido.

Sem saberem porquê, um e outro vestiram-se e saíram para o vestíbulo, onde encontraram Yegor Semionovich de roupão. Vinha ter com eles, pois acordara com os soluços de Tania.

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— Não tenhas medo, Andriusha — dizia Tania, tremendo como se estivesse com febre. — Não se assuste, pai... Isto passa... isto passa.

Kovrin ficara tão agitado, que mal podia falar. Mas tentava levar as coisas a rir. Voltou-se para o sogro e começou:

— Dêem-me os parabéns... parece que estou a ficar maluco. — Mas apenas conseguiu mover os lábios e sorrir amargamente.

Às nove horas vestiram-lhe um casaco, um sobretudo de peles, embrulharam-no num xale e levaram-no ao médico. Começou então a tratar-se.

VIII

Chegara de novo o Verão. Por ordem do médico, Kovrin fora para o campo. Recuperara a saúde e não voltara a ver o Monge Negro. Só dependia dele próprio adquirir as forças físicas. Habitava em casa do sogro, bebia muito leite, trabalhava apenas duas horas por dia, não provava vinho e deixara de fumar.

Na tarde do dia 29 de Junho, véspera de Santo Elias, realizou-se lá em casa uma cerimónia religiosa. Quando o padre tomou o turíbulo do incenso das mãos do sacristão e todo o vestíbulo ficou a cheirar a igreja, Kovrin começou a sentir-se fatigado. Saiu para o jardim. Sem reparar nas flores que o rodeavam, começou a andar dum lado para o outro, sentou-se durante um bocado num banco, e depois dirigiu-se ao parque. Desceu a rampa até à margem do rio e quedou-se a olhar interrogativamente a água. Os enormes pinheiros com as suas raízes descarnadas que um ano atrás o tinham visto tão jovem, tão alegre, tão activo, já não murmuravam desta vez. Mantinham-se calados e imóveis, como se o não reconhecessem... Na verdade, com os cabelos cortados curtos, o andar vacilante, o rosto mudado, pálido e de expressão carregada, tão diferente do que era um ano antes, ninguém o reconheceria.

Atravessou o rio. No campo da outra margem, outrora coberto de centeio, viam-se agora regos de aveia seca. O sol escondera-se já e, no horizonte, flamejava uma larga facha vermelha, a anunciar trovoada. Tudo estava calmo. Ao dirigir os olhos para o ponto onde um ano antes vira o Monge Negro, Kovrin quedou-se vinte minutos a observar o clarão do céu. Quando regressou a casa, cansado e insatisfeito, Yegor Semionovich e Tania estavam sentados nos degraus do terraço, a tomar chá. Conversavam um com o outro e, ao verem aproximar-se Kovrin, calaram-se. Mas este percebeu-lhes no rosto que haviam estado a falar a seu respeito.

— São horas de tomares o teu leite — disse Tania para o marido.

— Não, por ora não — retorquiu este, sentando-se no último degrau. — Bebe tu. A mim não me apetece.

Tania trocou um olhar tímido com o pai e tornou, a medo:

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— Sabes perfeitamente que o leite te faz bem.

— Oh, muitíssimo bem! — troçou Kovrin. — Dou-te os meu parabéns! Já engordei uma libra desde sexta-feira passada. — Apertou a cabeça nas mãos e lamentou-se, numa voz dolorosa: — Oh, porque é que me curaram? Brometos... descanso, banhos tépidos, uma vigilância aturada sobre tudo o que eu metia à boca, sobre todos os passos que dava... tudo isto ainda acaba por dar comigo em doido! Andava maluco... tinha a mania da grandeza... Mas fora isso sentia-me lúcido, activo e sempre satisfeito... Era um homem interessante e original. Agora tornei-me racional e sólido, como toda a gente. Sou um medíocre e a vida não passa de uma coisa enfadonha. Oh, que cruéis... que cruéis vocês foram para mim! Tinha alucinações... que mal fazia isso aos outros? Que mal, pergunto eu?...

— Só Deus sabe o que ele quer dizer na sua! — suspirou Yegor Semionovich. — Até chega a ser estupidez estar para aqui a ouvir-te!

— Então não oiçam!

A presença de estranhos, sobretudo de Yegor Semionovich, passara a irritar Kovrin; respondia ao sogro num tom seco, frio, mesmo mal-educado e, quando o olhava, não conseguia disfarçar o ódio e o desprezo. Yegor Semionovich sentia-se atrapalhado, e tossia, culposo, não compreendendo que mal poderia ter feito ao genro. Incapaz de perceber o motivo de tamanha reviravolta nas relações de ambos, outrora tão cordiais, Tania abraçava-se ao pai e fitava-o nos olhos, assustada. Via claramente que as relações entre os dois homens pioravam dia a dia, que o pai envelhecera extraordinariamente e que o marido se tornara irritável, caprichoso, excitado e enfadonho. A rapariga deixara de rir, de cantar, não comia nada, passava as noites sem dormir, vivendo sob a ameaça dum terror permanente. Torturava-se a tal ponto, que chegava a ficar inconsciente desde o jantar até à noite. Durante a cerimónia religiosa teve a impressão de que o pai estava a chorar. Agora, ali sentada no terraço, fazia um esforço para não pensar nisso.

— Que felizes foram Buda, Maomet e Shakespeare por não terem tido parentes e médicos solícitos que os curassem do seu êxtase e inspiração! — exclamou Kovrin. — Se Maomet houvesse ingerido brometo de potássio para os nervos, trabalhado apenas duas horas por dia e bebido leite, esse homem extraordinário nada mais teria deixado atrás de si do que o seu cão. Os parentes solícitos e os médicos não fazem outra coisa senão tornar a humanidade estúpida. Tempos virão em que a mediocridade será considerada génio e em que a humanidade acabará por perecer. Se vocês soubessem — prosseguiu Kovrin com petulância -, se vocês soubessem como vos estou grato!...

Sentia uma forte irritação e, para não falar de mais, ergueu-se e entrou em casa. Não fazia vento e lá dentro pairava o cheiro à planta do tabaco e a jalapa. Através da janela do enorme átrio, os raios de luar vinham poisar no chão e sobre o piano. Kovrin recordou-se dos encantos do Verão passado, em que o ar também cheirava a jalapa e a luz da lua entrava pela janela... A fim de reviver a atmosfera de então, entrou no quarto, acendeu um charuto forte e mandou que o criado lhe trouxesse vinho. A verdade, porém, é que o

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charuto amargava, sabia mal, e o vinho perdera todo o paladar do ano anterior. O que faz a falta de hábito! Depois de um único charuto e de dois goles de vinho sentiu a cabeça andar à roda e teve de tomar brometo de potássio.

Antes de se meterem na cama, Tania disse-lhe:

— Ouve lá! O meu pai adora-te, mas tu estás aborrecido com ele por qualquer motivo e isso mata-o. Repara como envelhece de dia para dia, de hora para hora! Suplico-te, Andriusha, pelo amor de Deus, por alma do teu pai, para meu descanso, vê se te mostras mais amável com ele!

— Não posso, nem quero!

— Mas porquê? — Tania tremia toda. — Explica-me porquê?

— Porque não gosto dele, pronto! — respondeu Kovrin com indiferença, encolhendo os ombros. — Mas o melhor é não falarmos nisso, é teu pai.

— Não posso, não posso perceber — tornou Tania. Apertava a testa com as mãos e fitava um ponto vago. — Nesta casa passa-se qualquer coisa de terrível, de incompreensível. Tu mudaste, Andriusha. Já não és o mesmo... Tu, um homem inteligente e excepcional..., a irritares-te com ninharias. Aborreces-te com pequenas coisas em que noutros tempos nem reparavas. Não... não te zangues — prosseguia ela, beijando-lhe as mãos, assustada com as suas próprias palavras. — És inteligente, bom, honesto. Hás-de ser justo para com o pai. Ele é tão bondoso!

— Ele não é bondoso, mas apenas bem-humorado. Estes tios de opereta, no género do teu pai, bem alimentados, de rosto bonacheirão, são figuras típicas à sua maneira e outrora conseguiam divertir-me, tanto nos romances, nas comédias, como na vida real. Hoje, porém, odeio-os. São egoístas até à medula... O que mais me enoja é a sua auto-suficiência, o seu optimismo estomacal, puramente bovino... ou antes, suíno.

Tania sentou-se na cama e poisou a cabeça no travesseiro.

— Isto é uma tortura! — murmurou. E pelo tom da sua voz notava-se claramente que se sentia extremamente cansada e lhe custava falar. — Desde o Inverno, nem um momento só de sossego... É horrível, meu Deus! Sofro tanto...

— Pois claro! Eu sou um Herodes e tu e o teu paizinho os inocentes massacrados. Claro!

A cara dele afigurava-se a Tania uma máscara feia e desagradável. Aquela expressão de ódio e desprezo não lhe ficava bem. A rapariga observou até que faltava qualquer coisa na cara do marido: desde que cortara o cabelo parecia mudado. Sentiu um estranho desejo de lhe dizer qualquer coisa insultante, mas dominou-se a tempo e, aterrada, retirou-se para o seu quarto.

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IX

Kovrin foi nomeado para uma cátedra independente. O seu discurso inaugural estava marcado para o dia 2 de Dezembro e nesse sentido foi colocado um aviso nos corredores da Universidade. Mas, quando chegou a data marcada recebeu-se ali um telegrama a comunicar às autoridades universitárias que o professor não poderia comparecer por motivo de doença.

Subira-lhe sangue à garganta. Vomitou-o e, duas vezes naquele mês, teve fortes hemoptises. Sentia-se terrivelmente fraco e caiu numa modorra contínua. A doença, porém, não o assustava, pois sabia que sua mãe, atacada da mesma moléstia, vivera ainda dez anos. Os médicos declararam também que o doente não se encontrava em perigo e aconselharam-no a não se preocupar, a fazer uma vida regular e a falar menos.

Em Janeiro, a conferência foi adiada pelo mesmo motivo e em Fevereiro era já demasiado tarde para começar o curso. Ficou, portanto, resolvido dar-lhe início no próximo ano.

Kovrin, nesta altura, não vivia já com Tania, mas sim com outra mulher mais velha do que ele, que o tratava como uma criança. Tornara-se calmo e obediente; submeteu-se de bom grado quando Varvara Nikolayevna, assim se chamava ela, tomou a iniciativa de o levar para a Crimeia, embora soubesse que a mudança de ares nenhum bem lhe faria.

Chegaram a Sebastopol ao fim de tarde e pararam para descansar, tencionando seguir para Yalta no dia seguinte. Ambos se sentiam fatigados da viagem. Varvara Nikolayevna tomou chá e foi deitar-se. Kovrin, porém, ficou a pé. Antes de sair de casa para a estação, recebera uma carta de Tania que ainda não abrira. A lembrança desta carta causava-lhe uma estranha agitação. No mais íntimo do ser sentia que o seu casamento com Tania fora um erro. Achava-se satisfeito por se ter finalmente separado dela; porém a recordação daquela mulher que nos últimos tempos parecia haver-se tornado apenas um manequim ambulante no qual tudo morrera, excepto os olhos enormes e inteligentes, só despertava nele um sentimento de piedade e de remorso. A letra, no envelope, vinha lembrar-lhe que, dois anos atrás, havia sido culpado de crueldade e de injustiça e que exercera vingança sobre pessoas que nenhuma culpa tinham da vacuidade do seu espírito, da sua solidão, do desencanto que experimentava perante a vida... Recordou-se de ter feito em pedaços a sua dissertação e todos os artigos que escrevera desde que estivera doente, atirando-os pela janela fora e de como os fragmentos de papel haviam sido levados pelo vento, indo poisar nas árvores e nas flores; em cada uma daquelas páginas via apenas uma pretensão estranha e infundada, uma irritação frívola, a mania da grandeza. E tudo isto produzira em si uma tal impressão, que acabara por escrever um relatório das suas próprias culpas. E contudo, no momento em que 95 últimos pedaços do derradeiro caderno eram arrastados pelo vento, sentiu tamanha amargura e desilusão, que se dirigira à mulher, falando-lhe cruelmente. Céus, como lhe arruinara então a vida! Recordava-se de uma vez em que, querendo martirizá-la, declarara que o pai dela desempenhara no seu casamento um papel fora do vulgar, chegando mesmo a pedir-lhe para casar com a filha; e Yegor Semionovich, que por acaso ouvira estas palavras, rompera pelo quarto dentro, tão

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consternado que emudecera e não fora capaz de pronunciar qualquer frase, limitando-se a bater com os pés no chão e a soltar uns grunhidos estranhos, como se lhe tivessem cortado a língua. Ao ver o pai naquele estado, Tania pusera-se a gritar que cortava o coração e caíra por terra sem sentidos. Fora horrível.

A lembrança de todas estas coisas voltava-lhe agora à memória, ao ver aquela letra tão sua conhecida. Dirigiu-se à varanda. O ar estava tépido, calmo, vinha do mar um cheiro salgado, e tanto o luar como as luzes em volta reflectiam-se na superfície da baía maravilhosa, duma tonalidade impossível de classificar. Era uma suave combinação de azul e verde. Em certos pontos, a água assemelhava-se a sulfato, noutras em vez de água era luar líquido que enchia o mar. E toda esta harmoniosa combinação de tons exalava tranquilidade e exaltação.

No andar inferior da hospedaria, por baixo da varanda, as janelas estavam sem dúvida abertas, pois ouviam-se claramente vozes e risos de mulher. Devia tratar-se duma festa.

Kovrin fez um esforço sobre si mesmo, abriu a carta, entrou no quarto e começou a ler:

«O meu pai acaba de morrer. Isto te devo, pois foste tu que o mataste. O nosso pomar está arruinado, tem sido entregue a mãos estranhas. Acontece aquilo que o meu pobre pai tanto receava. Também isto se deve a ti. Odeio-te com toda a minha alma e desejaria que morresses em breve! Ah, como sofro! O meu coração estala com uma dor intolerável!... Maldito sejas! Julguei-te um ente excepcional, um homem de génio; amava-te e afinal revelaste ser um louco...»

Kovrin não conseguiu ler mais; rasgou a carta e atirou fora os pedaços... Sentia-se tomado de inquietação, quase duma espécie de terror... Do outro lado do biombo dormia Varvara Nikolayevna. Ouvia-lhe a respiração. No andar de baixo chegavam-lhe as vozes e os risos de outras mulheres. Afigurava-se-lhe, porém, que em todo o hotel o único ser humano era ele. O facto de essa pobre e abandonada Tania o haver amaldiçoado na carta causava-lhe desgosto; e olhava, receoso, para a porta, temendo ver surgir de novo essa força desconhecida que no espaço de dois anos trouxera tamanha ruína para a sua vida e para a daqueles que lhe eram mais queridos.

Sabia por experiência que, quando os nervos fraquejam, o melhor remédio é o trabalho. Costumava então sentar-se à mesa e concentrar-se num pensamento definido. Retirou da pasta vermelha um caderno que continha o resumo dum pequeno trabalho que tencionava realizar durante aquela estadia na Crimeia, se acaso se fartasse da inactividade... Sentou-se à mesa e pôs-se a trabalhar nesse resumo. Afigurou-se-lhe estar a assumir de novo a sua antiga personalidade calma, resignada, objectiva. Aquele sumário levou-o a especular sobre a vaidade do mundo. Pensou no alto preço que ela exige em troca dos benefícios mais mesquinhos e vulgares concedidos ao homem. Para reger uma cadeira de filosofia antes dos quarenta anos; para ser um vulgar professor; para expor pensamentos comuns, pensamentos estes que lá não eram seus, numa linguagem fraca, pesada e cansativa; numa palavra, para atingir a posição de um medíocre letrado, estudara durante quinze anos, trabalhara noite e dia, sofrera uma doença grave, fizera um casamento desastrado,

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tornara-se culpado de muitas loucuras e injustiças cuja recordação se tornava para ele uma tortura. Kovrin convencia-se agora completamente de que não passava de um medíocre e não conseguia conformar-se com esse facto, sabendo perfeitamente que todo o homem se deve dar por satisfeito com aquilo que é.

O sumário que tinha na frente acalmara-o; porém, os restos da carta espalhados pelo sobrado desviavam-lhe a atenção. Ergueu-se, apanhou-os e atirou com eles pela janela fora. Mas uma leve brisa que soprava do mar, fê-los voar para o peitoril. Kovrin sentiu-se outra vez inquieto, quase aterrorizado, e afigurou-se-lhe de novo que, em todo o hotel, o único ser vivo era ele... Voltou para a varanda. A baía parecia uma coisa viva e fitava-o com uma infinidade de olhos brilhantes, azuis escuros, cor de turquesa e de fogo, a chamá-lo. Estava um calor sufocante; seria delicioso ir tomar banho, pensou!

De súbito, lá em baixo, ouviu-se um violino a tocar e duas vozes de mulher a cantarem. Era uma melodia muito sua conhecida. Falava duma jovem de imaginação doente que ouvira de noite, no jardim, uns sons misteriosos, achando neles uma harmonia e um encanto incompreensíveis para o resto dos mortais... Kovrin susteve a respiração, o coração deixou de bater e aquele mágico e estático enlevo, há muito esquecido, vibrou-lhe de novo no peito.

Uma coluna negra e alta, semelhante a um ciclone ou a uma tromba de água, surgiu na costa, em frente. Corria com incrível rapidez na direcção do hotel; ia-se tornando cada vez mais pequena e Kovrin afastou-se para a deixar passar... O monge, de cabeça grisalha a descoberto, as sobrancelhas negras, pés descalços e mãos cruzadas no peito, passou na sua frente e deteve-se no meio do quarto.

— Porque não acreditaste em mim? — inquiriu num tom de censura, olhando com meiguice para Kovrin. — Se me tivesses dado crédito quando te disse que eras um génio, estes dois últimos anos não teriam sido para ti tão dolorosos e tão inúteis.

Kovrin começava a convencer-se de novo que era um eleito de Deus e um génio; recordou-se nitidamente da sua conversa anterior com o monge e quis replicar. Porém, o sangue jorrava-lhe da boca para o peito, e ele, sem saber o que fazia, esfregou nele as mãos até ficar com os punhos vermelhos. Quis gritar por Varvara Nikolayevna que dormia atrás do biombo e, ao fazer um esforço, só conseguiu chamar: «Tania!»

Caiu no chão, agitando as mãos, e de novo gritou:

— Tania!

Chamava por Tania, chamava pelo enorme jardim com as suas flores maravilhosas, chamava pelo parque, pelos pinheiros com as suas raízes nodosas, pelos campos de centeio, chamava pela sua ciência espantosa, pela sua mocidade, pela sua coragem, pela sua alegria, gritava pela vida que fora tão bela. Via no chão, à sua frente, uma grande poça de sangue e sentia-se tão fraco, que não conseguia pronunciar uma só palavra. No entanto, todo o seu ser se sentia tomado duma alegria infinita. Por baixo da varanda a

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serenata prosseguia e o Monge Negro murmurava-lhe ao ouvido que ele era um génio e, se estava a morrer, era porque o seu corpo frágil e mortal perdera o equilíbrio e já não servia para abrigar um génio.

Quando Varvara Nikolayevna acordou e saiu de detrás do biombo, Kovrin estava morto. Mas no seu rosto estampava-se um sorriso indelével de felicidade.

- Fim -

O bilhete premiado

TchekhovTradução de Aurora Bernardini

Ivan Dmítritch, homem remediado que vivia com a família na base de uns 1200 rublos por ano, muito satisfeito com seu destino, certa noite, depois do jantar, sentou-se no sofá e começou a ler o jornal.

— Esqueci de dar uma olhada no jornal de hoje — disse sua mulher tirando a mesa. — Dê uma espiada para ver se saiu o resultado do sorteio.

— Saiu — respondeu Ivan Dmítritch —, mas você não penhorou seu bilhete?

— Não. Paguei os juros na terça.

— Qual é o número?

— A série é 9499, bilhete 26.

— Então... Vejamos... 9499 e 26.

Ivan Dmítritch não acreditava na sorte da loteria e em outra ocasião jamais se daria ao trabalho de verificar a lista. Agora, porém, que não tinha nada para fazer e o jornal estava bem debaixo de seu nariz, percorreu com o dedo de cima para baixo Os números da série. E não é que logo de cara, corno que para zombar de sua descrença, já no alto da segunda coluna apareceu de repente, diante de seus olhos, o numero 9499! Sem conferir o número do bilhete nem verificar se tinha lido certo, deixou cair rapidamente o jornal no colo e corno se alguém lhe tivesse derramado água na barriga, sentiu um friozinho agradável no fundo do estômago. Era urna sensação de coceira terrível e deliciosa ao mesmo tempo.

— Macha — disse com voz surda -, o 9499 está aqui. A mulher olhou para seu rosto surpreso, assustado, e compreendeu que o marido não estava brincando.

— 9499? — perguntou ela, empalidecendo e deixando cair na mesa a toalha dobrada.

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— Sim, sim... Está, de verdade!

— E o número do bilhete?

— E mesmo! Ainda falta o número do bilhete. Mas tenha paciência... espere. Então, que tal? De qualquer modo o número de nossa série está, hem? De qualquer modo, entendeu?...

Ivan Dmítritch olhou para a mulher e sorriu num sorriso largo e apalermado como uma criança a qual tivessem mostrado alguma coisa brilhante. A mulher também sorria. Sentia o mesmo prazer que o marido por ele ter lido somente a série e não ter tido pressa em saber do número do feliz bilhete. E tão delicioso, tão angustiante consumir-se e espicaçar-se na esperança de uma felicidade possível!

— A nossa série está — disse Ivan Dmítritch depois de um longo silêncio. — Significa que existe uma possibilidade de termos ganho. Apenas uma possibilidade, mas, apesar de tudo, ela existe!

— Está bem, mas agora, olhe.

— Espere. Ainda teremos tempo a vontade para nos desiludir. Se esta na segunda coluna de cima, quer dizer que o prêmio é de 75 mil. Isso não é dinheiro, é uma força, um capital! E se de repente eu olhar para a lista e lá estiver o numero 26? Hem? Escute, e se tivermos ganho de verdade?

Os cônjuges começaram a dar risada e a olhar demoradamente um para o outro, sem falar nada. A possibilidade da ventura deixara-os obnubilados, e eles não conseguiam sequer sonhar, dizer para que precisavam daqueles 75 mil, o que comprariam, para onde iriam. Imaginavam apenas Os números 9499 e 75 mil, desenhavam-nos em sua imaginação, mas a idéia da felicidade, que estava tão próxima, parecia não lhes passar pela cabeça.

Ivan Dmítritch andou algumas vezes de um lado para outro com o jornal nas mãos e só quando a primeira impressão se acalmou é que, aos poucos, começou a sonhar.

— E se tivermos ganho? — disse. — Seria uma vida nova, uma catástrofe! O bilhete é seu, claro, mas se fosse meu, antes de mais nada, naturalmente eu compraria algum imóvel, algo como uma propriedade, no valor de, digamos, 25 mil; deixaria uns 10 mil para despesas extras: mobília nova... uma viagem... pagamento de dívidas e assim por diante. Os 40 mil restantes colocaria no banco, para render juros...

— Realmente, uma propriedade seria ótimo — disse a mulher sentando-se e deixando cair os braços no colo. — Nalgum canto, na região de Tula ou de Orlóv... Em primeiro lugar, não seria preciso alugar nenhuma casa de campo e, em segundo, não deixa de ser uma renda.

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E na imaginação dele começaram a se aglomerar imagens, uma mais poética e aprazível que a outra. E em cada uma delas ele se via satisfeito, tranqüilo, saudável e chegou a sentir um calorzinho agradável, um calorzão, mesmo! Lá está ele, depois de ter comido uma sopa de legumes fria como o gelo, de barriga para cima na areia quente, na beira do rio ou no jardim mesmo, embaixo de uma tília... Faz calor... O filho e a filha rastejam perto dele, rolam na areia ou caçam algum bichinho na relva. Cochila docemente sem pensar em nada e sente com todo o corpo o que significa não ter de ir ao serviço nem hoje, nem amanhã, nem depois. E quando cansar de ficar deitado, pode ir ver cortar o feno, ou ao bosque, colher cogumelos, ou então ficar observando como os camponeses pescam os peixes com o arrastão. Ao pôr-do-sol, pega um pano, um sabonete e esgueira-se na casa de banho, onde se despe devagarzinho, passa um tempão alisando o peito nu com as palmas das mãos e finalmente cai n'água. Na água, Os peixinhos se agitam em volta das bolhas turvas de sabão e as plantas aquáticas balançam na corrente. Depois do banho, um chá com creme e rosquinhas doces... À noite, um passeio ou uma partida de uíste com os vizinhos.

— Sim, seria bom comprar uma propriedade — diz a mulher, também sonhando. Lê-se em seu rosto que está encantada com os próprios pensamentos.

Ivan Dmítritch imagina o outono chuvoso, as noites frias, o veranico. Nessa época é preciso andar um tempão pelo jardim, pela horta, pela margem do rio até sentir bem o frio e depois beber um copo cheinho de vodka junto com cogumelos salgados ou um pepino em salmoura e pronto — tomar outro trago. As crianças vêm correndo da horta, trazendo cenoura e nabo. Sente-se o cheiro fresco da terra... Depois, estirar-se no sofá e folhear uma revista qualquer, sem pressa, até que o sono chegue. Cobrir o rosto com a revista, desabotoar o colete e entregar-se...

Após o veranico o tempo é fechado, ruim. Chove dia e noite. As árvores despidas choram, o vento é úmido e frio. Os cachorros, os cavalos, as galinhas — não há quem não esteja molhado, melancólico, encolhido. Não se tem por onde passear; sair de casa, nem falar! Passa-se o dia inteiro andando de um canto para outro e olhando tristemente pelas janelas embaçadas. Que coisa enfadonha!

Ivan Dmítritch parou e olhou para a mulher.

— Sabe de uma coisa, Macha, eu iria é para o estrangeiro.

E ficou pensando como seria bom viajar para o estrangeiro, cruzar o oceano profundo e ir para algum lugar no sul da França, para a Itália... Para a Índia!

— Eu também iria para o estrangeiro correndo — disse a mulher. — Mas olhe o número do bilhete!

— Espere! Daqui a pouco...

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Andou pelo quarto e continuou a pensar. E se a mulher fosse realmente para o estrangeiro? Viajar é bom sozinho, ou em companhia de mulheres despreocupadas, sem compromisso, que vivem o momento presente, e não com aquelas que ficam o tempo todo pensando e falando em crianças, suspirando, tremendo com medo de gastar um copeque que seja. Ivan Dmítritch imaginou sua mulher no vagão, cheia de embrulhos, cestas, pacotes: suspira e queixa-se que a viagem lhe deu dor de cabeça, que gastou muito dinheiro. É preciso correr na estação atrás de água quente, sanduíches, água potável. Almoçar ela não pode, custa caro...

“Tenho certeza que ela iria controlar cada copeque”, pensou ele, olhando para a mulher. “O bilhete é dela, não é meu! E pra que ela precisa ir para o estrangeiro! O que é que lhe falta ver lá de importante? Já sei. Ficará fechada o tempo todo no hotel e não me deixará desgrudar dela um só momento.”

E pela primeira vez em sua vida reparou que a mulher tinha envelhecido, ficara feia e cheirava a cozinha, enquanto ele ainda era moço, saudável, viçoso, bom para se casar uma segunda vez.

“Claro, tudo isso é bobagem, é besteira”, pensou. “Mas... para que iria ela ao estrangeiro? O que ela aproveitaria lá? Mas iria mesmo... Imagino. Para ela Nápoles ou Klin iriam ser a mesma coisa. Ficaria me atormentando e eu dependeria dela. Tenho certeza de que na hora em que recebesse o dinheiro, iria trancá-lo a sete chaves, como faz o mulherio... Iria escondê-lo de mim... Aos parentes dela tudo, mas para mim, contaria cada copeque.”

Ivan Dmítritch ficou pensando na parentela. Logo que todos esses irmãozinhos, irmãzinhas, titias, titios soubessem do ganho, viriam se arrastando, bancando Os mendigos, sorrindo untuosamente, bajulando. Eta gentinha sórdida! Se lhe oferecem a mão, pegam o braço. Se não lhe oferecem, amaldiçoam, rogam pragas, desejam todo tipo de desgraça.

Ivan Dmítritch lembrou-se de seus parentes e seus rostos, que ele sempre olhara com indiferença, pareciam-lhe agora odiosos, repulsivos.

“São uns canalhas”, ele pensou.

E o rosto da mulher começou também a parecer-lhe odioso, repulsivo. Em seu íntimo começou a ferver um ressentimento contra ela e ele pensou com alegria perversa: “Não entende nada de dinheiro, por isso é avarenta. Se ganhasse, mal me daria cem rublos, e o resto iria direto para o cofre”.

Já olhava agora para a mulher com ódio e não mais com um sorriso. Ela também olhava para ele com maldade e com ódio. Ela tinha seus próprios sonhos dourados, seus pianos, suas idéias e sabia perfeitamente no que estava pensando o marido. Sabia que seria o primeiro a avançar no que ela teria ganho.

“É bom sonhar por conta dos outros!”, dizia o olhar dela. “Não, você não conseguirá!”.

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O marido compreendeu seu olhar: o ódio ferveu-lhe no peito e para decepcionar sua mulher e fazer-lhe mal olhou rápido na quarta página do jornal e anunciou solene:

— Série 9499, bilhete 46! Não 26!

A esperança e o ódio desapareceram ambos de repente e, no mesmo instante, Ivan Dmítritch e sua mulher acharam os aposentos escuros, pequenos e abafados, e o jantar que tinham acabado de comer pesado e insosso, e as noites longas e enfadonhas.

— Só o diabo sabe — disse Ivan Dmítritch, começando a implicar. — Por todo lado que eu pise, só há papéis, migalhas, casquinhas, sei lá. Será que nunca varreram esses quartos? Terei de ir embora de casa, o diabo que me carregue. Vou sair e me enforcar na primeira árvore.

— Fim —

A feiticeira

Tchekhov

Era quase meia-noite. Deitado em um imenso leito, na casa do sacristão, o chantre Saveli Guikine não dormia, se bem que tivesse o hábito de dormir cedo, como as galinhas. Sob a coberta imunda, feita de restos de chita de todas as cores, apareciam seus ásperos cabelos ruivos. Do outro lado da coberta, saíam dois pés enormes, que havia muito não eram lavados. Escutava...

A casa do sacristão era cercada pelo muro curial e sua única janela dava para o campo, onde se travava uma verdadeira guerra. Era difícil perceber o que fazia a imensa algazarra; ou notar pela perda de quem a natureza punha tudo de pernas para o ar; mas, a julgar pelo seu esbravejar incessante e sinistro, que repercutia violentamente, alguém estava em perigo... Uma força vitoriosa corria pelos campos; danificava a floresta e os telhados da igreja; batia furiosamente nas janelas; varria; rasgava — e qualquer coisa vencida urrava e chorava.

O gemido lamuriento ouvia-se, ora além da janela, ora no telhado, ora descendo pela chaminé — e não era um apelo de socorro que se sentia nele, mas angustiada consciência de que não havia mais salvação, de que era tarde demais...

Os montículos de neve estavam cobertos de uma fina casca de gelo e lágrimas congeladas tremiam sobre eles e sobre as árvores. Pelos caminhos, os atalhos desafogavam um suco de lama e de neve fundida. Era o degelo. Mas, através da noite opaca, o céu não o percebia e enviava, com toda a sua força, novos flocos de neve. O vento rodopiava como um homem ébrio e sem permitir à neve tocar a terra fazia-a voar, nas trevas, à sua mercê.

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Guikine ouvia o atordoante concerto e franzia o rosto. Sabia, ou pelo menos julgava adivinhar, a que levava toda essa algazarra e de quem ela era obra...

— Eu sei — dizia em um rosnar, ameaçando alguém com o dedo, sob a coberta. — Sei tudo!

Perto da janela, sentada em um escabelo, estava sua mulher Raissa Nilovna. Sobre outro escabelo, uma lâmpada de lata, que, como se estivesse intimidada e incerta de suas forças, derramava uma tênue luz vacilante sobre seus largos ombros, sobre os belos e apetitosos relevos de seu corpo, sobre suas tranças espessas, que tocavam o solo.

Costurava sacos de grossa estopa. Suas mãos corriam ligeiras, mas todo seu corpo, seus olhos, suas sobrancelhas, seus lábios carnudos, seu longo pescoço, imobilizados pelo trabalho monótono e mecânico, pareciam dormir. De quando em quando, erguia a cabeça para relaxar o corpo fatigado e olhar furtivamente a janela, além da qual se desencadeava a tempestade. Mas, logo voltava a debruçar-se sobre o grosso tecido. Nem desejos, nem tristeza, nem alegria — nada transparecia em seu rosto de nariz arrebitado e faces marcadas de covinhas. Assim como nada expressa uma bela fonte, quando não está jorrando.

Ao terminar um saco, atirou-o ao chão e, após espreguiçar-se, com visível prazer, deteve sobre a janela seu olhar fixo e terno: pelos vidros, deslizavam lágrimas e a brancura dos efêmeros flocos de neve que, tombando, se fundiam.

— Vem deitar-te — resmungou o chantre.

— A mulher não respondeu. Mas, subitamente, seus cílios começaram a mover-se a atenção brilhou em seus olhos. Saveli que, sob as cobertas, vigiava sem cessar as expressões de seu rosto, ergueu a cabeça e perguntou:

— Que há?

Raissa respondeu, docemente:

— Nada. Parece que está chegando alguém...

Com as mãos e com os pés, Guikine atirou longe as cobertas, ajoelhou-se na cama e fitou a mulher, com expressão aparvalhada. A luz tímida de pequena lâmpada iluminou a face peluda e crestada do chantre e deslizou por sua áspera cabeça.

— Estás ouvindo? — perguntou à mulher.

Através do ulular contínuo da tormenta, ele apreendeu um som de campainha muito fino, apenas perceptível, semelhante ao zumbido de um mosquito, que se zanga quando é impedido de pousar em um rosto.

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— É o correio — resmungou Saveli, sentando-se sobre as pernas.

A três verstas da igreja passava a mala postal. Quando o vento procedia do lado da estrada, os habitantes da casa ouviam as campainhas. A mulher do chantre suspirou:

— Senhor! Como se pode viajar, com um tempo desses...

— Questão de dever... Queiram ou não, é preciso trabalhar...

O som pairou no ar e extinguiu-se.

— Já se foi — disse Saveli, voltando a deitar-se.

Mas mal teve tempo de puxar as cobertas: logo o som nítido da campainha novamente a seus ouvidos. O chantre, inquieto, olhou para a mulher, saltou da cama, sacudindo-se todo, pôs-se a andar em torno da lareira. A campainha ainda ressoou um pouco, depois silenciou, como se tivesse sido arrancada.

O chantre murmurou, detendo-se, olhando a mulher, os olhos meio fechados:

— Não se ouve mais nada...

Exatamente nesse momento o vento chicoteou a janela e chegou com o som fino e agudo... Saveli empalideceu, tossiu e arrastou, pelo chão, seus pés nus.

— O correio perdeu sua rota — disse, com voz rouca, olhando colericamente a mulher — estás ouvindo? A mala postal extraviou-se. Eu sei... Eu sei... Penas que não compreendendo? Sei tudo! Que o diabo te carregue!

A mulher perguntou, suavemente, sem desviar os olhos da janela:

— Que sabes?

— Sei que és tu que fazes tudo isso, mulher diabólica. É obra tua... Esta tormenta, o correio extraviado... és tu a culpada... és tu!

— Estás louco, ou és imbecil — replicou tranqüilamente a mulher.

— Há muito tempo venho notando... Desde o dia de nosso casamento, senti que há, em tuas veias, sangue de cadela...

— Ora! — exclamou Raissa, surpresa, erguendo os ombros e benzendo-se. — É melhor que faças o sinal da Cruz, idiota!

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— És uma feiticeira, sem remédio — disse em continuação Saveli, voz surda e dolente, assoando-se rapidamente em sua própria camisa. — Embora sejas minha mulher e de condição eclesiástica, direi em confissão o que és...

— É meu dever. Senhor, protege-me e salva-me! O ano passado, no dia do profeta Daniel e dos três adolescentes, houve também uma tempestade de neve... e que aconteceu? Um operário veio ter aqui, para aquecer-se. Depois, no dia de Santo Aleixo, o Homem-de-Deus, o rio degelou. O chefe de polícia veio... conversou a noite toda contigo, o maldito; e, pela manhã, quando saiu, tinha olheiras e as faces cavadas. Hein? Que dizes disso? Também por duas vezes, na festa do Salvador, houve tempestades e, nessas ocasiões, um caçador veio passar a noite. Vi tudo! Que o diabo te carregue! Vi tudo! Ah! Agora ficaste mais vermelha do que uma lagosta, vês?

— Não viste nada disso...

— Tenho certeza! Vi, sim. E, neste inverno, antes do Natal, no dia dos Dez Mártires de Creta, lembra-te? O escrivão do marechal perdeu-se, não achou o caminho e veio cair aqui, o cão... E logo por quem, te enfeitiçaste? Por um reles escrivão! Gastar tempo com uma coisa dessas! Um aborto do diabo, um, ranhoso que não enxerga um palmo acima do chão, com a boca cheia de borbulhas e o pescoço torto... Se, ao menos, fosse belo... Mas é nojento, o cachorro!

O chantre tomou fôlego, enxugou os lábios e ficou atento. Não mais se ouvia a campainha, mas o vento bateu no telhado e a janela vibrou, novamente. Saveli continuou:

— E, agora, a coisa repete-se. Não é por acaso que o correio se extravia! Podes cuspir-me na cara, se não é a ti que ele procura! Ah! O diabo conhece bem suas tarefas... vai extraviá-lo e o trará até aqui. Eu seei! Eu vejo! Não podes mais ocultar-te de mim, guizo do diabo, monstro de luxúria! Adivinhei teus pensamentos, desde que a tormenta começou.

— És um imbecil! Então achas que sou eu quem fabrica o mau tempo?

— Sim, tenho certeza. Podes rir! Penas que não tomo nota? Sempre que teu sangue ferve, faz logo mau tempo e, a cada tormenta, surge-nos um cretino qualquer... Isso acontece todas as vezes... Logo, és tu a culpada!

Para ser mais persuasivo, o chantre levou o dedo à testa, fechou o olho esquerdo e prosseguiu, arrastando a voz:

— Ah! Loucura e danação de Judas! Se fosses realmente uma mulher e não uma feiticeira, devias indagar se esses homens são um operário, ou um caçador, ou um escrivão e não o próprio demônio, disfarçado em suas figuras. Hein? Devias indagar, não devias?

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— Como és cretino, Saveli — disse a mulher, suspirando e olhando o marido com piedade. — Quando meu pai morava aqui, muitas pessoas vinham procurá-lo, para curar as febres... Das aldeias, dos lugarejos, das fazendas dos armênios... Quase todos os dias, sem que fossem tomados por diabos. E agora, se aparece alguém, uma vez por ano que seja, para abrigar-se do mau tempo, ficas logo pensando em feitiçarias, imbecil que és. E imediatamente tua cabeça se enche de toda espécie de maus pensamentos...

A lógica da mulher abalou um pouco Saveli. Afastou os pés nus, baixou a cabeça e refletiu. Não estava ainda firmemente convencido quanto a suas suspeitas; e o tom sincero e tranqüilo da mulher o desarmou completamente. No entanto, depois de pensar um pouco, sacudiu a cabeça e disse:

— É que nunca vêm velhos, ou aleijados: são sempre homens jovens, os que pedem para passar a noite... Por quê? Se ao menos buscassem apenas aquecer-se... mas não! Fazem o jogo do diabo... Não, mulher, não existem criaturas mais ardilosas no mundo do que as da espécie feminina... Do verdadeiro espírito, meu Deus, têm menos do que um estorninho, mas de sua malícia diabólica que a Rainha dos Céus nos salve! Escuta a campainha do correio! Aconteceu logo que a borrasca começou... Adivinhei teus pensamentos... Fizeste as tuas feitiçarias, teceste as tuas teias, aranha!

— Mas que razões trens para me maltratares assim, desgraçado? — disse Raissa, perdendo a paciência. — Por que te colas a mim, resina?

— Maltrato-te porque, se suceder alguma coisa esta noite... Deus nos preserve disso! ... irei amanhã mesmo, de madrugada, a Diadkovo, procurar o padre Nicodime, para lhe contar tudo. Direi o que se está passando. Assim: perdoe-me generosamente, padre, não tenho culpa, mas minha mulher é feiticeira. Por que digo? Por quê? O senhor quer saber por quê? Por isso, por aquilo... Então, pobre de ti, mulher! Serás punida, não só no Juízo Final, mas aqui mesmo, neste mundo, também! Para isso existem os rituais...

Subitamente, bateram à janela. Tão violentamente e de forma tão inusitada, que Saveli empalideceu e encolheu-se de medo. A mulher sobressaltou-se, empalidecendo, também. Procedente de fora, soou uma voz grossa, profunda e trêmula:

— Em nome de Deus, deixem-nos entrar, para nos aquecermos um pouco! Não ouvem? Por piedade, abram! Estamos perdidos...

— Quem sois? — perguntou a mulher do chantre, receosa de abrir a janela.

— Somos da mala postal — respondeu uma outra voz.

— Nunca fazes tuas feitiçarias em vão — disse Saveli, num gesto desanimado. — Já chegaram... Eu tenho razão, vês? Mas cuidado contigo!

O chantre deu dois saltos, diante da cama, atirou-se sobre o colchão e, fungando raivosamente, virou o rosto para a parede. Logo, uma rajada fria bateu-lhe nas costas: a

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porta rangeu e, no umbral, apareceu um vulto alto, coberto de neve. Atrás dele, um outro vulto, também todo branco...

— Devo trazer os sacos? — perguntou o segundo vulto, o da voz rouca.

— Não. Podem ficar lá.

Dito isso, o primeiro homem começou a desabotoar sua capa de montanha e, antes mesmo de terminar, arrancou-a, juntamente como gorro, atirando-a, irritado, para perto da lareira. Depois, despiu, com dificuldade, o casaco e atirou-o no mesmo lugar do manto e pôs-se a andar pela sala, sem lembrar-se de dizer “boa noite”.

Era um jovem empregado postal, metido em uma horrível túnica de uniforme, bastante gasta, e em botas surradas e sujas. Reaquecido pelo movimento, sentou-se diante da mesa, estendeu os pés enlameados sobre os sacos e apoiou a cabeça nas mãos. Seu rosto branco, com manchas vermelhas, guardava ainda a marca dos sofrimentos e das dificuldades que enfrentara. Crispado, expressão angustiada, a neve liqüefazendo-se em suas sobrancelhas, em seu bigode, em sua barba bem aparada e arredondada, era, apesar de tudo, um belo rosto.

— Que vida de cão! — falou numa rosnadela, olhando as paredes, talvez sem acreditar, ainda, que estivesse em abrigo aquecido. — Quase passamos sem ver... não fosse esta luz na janela, nem sei o que nos teria acontecido. E só o Diabo sabe quando tudo isto passará... Não há sentido nesta vida cachorra qu4 levamos!

— Onde estamos? — perguntou, olhando em torno.

— Procurava informar-se, baixando a voz, fixando interrogativamente a mulher do chantre.

— Próximo a Gouliaevo, na propriedade do General Kalinovski... — respondeu Raissa, tocada e corando.

— Ouviste, Stepane? — disse ao companheiro, retido na porta pela largura do saco de couro que trazia aos ombros. — Estamos em Gouliaevo.

— Sim? Tão longe, ainda?

Deixando escorregar as palavras, com um suspiro rouco e entrecortado, o cocheiro saiu e, pouco depois, reapareceu com um segundo saco, bem menor do que o primeiro. Saiu mais uma vez e trouxe o sabre do correio, pendente de uma larga correia, muito parecido como longo gládio achatado que os artistas populares colocam nas mãos da imagem de Judite, perto do leito de Holofernes. Depois de enfileirar os sacos ao longo da parede, sentou-se e acendeu o cachimbo.

— Talvez queiram tomar um pouco de chá — disse a mulher do chantre.

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— Não se trata de tomar chá — respondeu o homem, de cara fechada. — Trata-se de nos aquecermos um pouco e partir o mais depressa possível: não podemos chegar atrasados para o trem da mala postal. Descansaremos uns dez minutos e seguiremos viagem. Só queremos que tenha a bondade de nos indicar o caminho.

A mulher suspirou:

— Parece castigo de Deus, um tempo assim...

— Sim...Talvez seja... Quem é a senhora?

— Nós? Somos daqui mesmo... adidos à igreja... Pertencemos ao clero... Vejam: meu marido já está deitado. Levante-se, Saveli! Vem dizer boa noite... Antes, existia aqui uma paróquia. Mas foi suprimida há um ano e meio. Quando os chefes viviam aqui, vinha muita gente... é natural. Bem que valia a pena termos um padre... Mas agora, faça idéia... como poderia viver aqui um clérigo, coma aldeia mais próxima, Markovka, a cinco verstas? Saveli, no momento, não tem cargo. Está substituindo o zelador... foi incumbido de tomar conta da igreja.

Então, o homem ficou sabendo que, se Saveli tivesse ido falar à mulher do general e escrito uma carta ao arcebispo, certamente lhe teriam dado um bom lugar. Mas não o fizera porque era um sujeito preguiçoso e selvagem.

— Se bem que, servindo ele de zelador, continuamos a fazer parte do clero — esclareceu, ainda, a mulher do chantre.

— E de que vivem?

— Há o prado e o jardim da igreja. Mas isso não rende grande coisa — disse, suspirando, a mulher. — O Padre Nicodime, de Diadkovo, que tem olho grande, acha que, só porque diz missa aqui nos dias de São Nicolau do Verão e de São Nicolau do Inverno, tem o direito de pegar quase tudo para ele. E não há ninguém que nos sustente...

— Mentes — gritou Saveli. — O Padre Nicodime é uma santa alma, uma flâmula da igreja. O que ele pega é regulamentar.

O hóspede sorriu:

— Como teu homem é zangado! Estás casada há muito tempo?

— Há quatro anos... contando do Domingo do Perdão. Papai era chantre, aqui;... quando sua hora se aproximou, dirigiu-se ao consistório, pedindo que seu lugar ficasse para mim, até que nomeassem um chantre solteiro e eu me casasse com ele. Foi assim que me casei...

O correio brincou:

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— Então de uma só cajadada mataste dois coelhos, hein? Pegaste o lugar e pegaste a mulher — disse a Saveli, que se conservava silencioso e de costas.

Saveli agitou nervosamente o pé e reaproximou-se da parede. O hóspede levantou-se, espreguiçou-se e sentou-se sobre um dos sacos. Ficou um instante pensativo. Depois, apalpou o saco em que se sentara, examinando-o, mudou o sabre de lugar e espichou-se, com uma das pernas pendentes.

— Vida de cão! — resmungou, levando as mãos à cabeça e fechando os olhos. — Não desejo uma vida dessas ao mais feroz dos tártaros.

Logo, veio o silêncio. Ouvia-se Saveli fungar, enquanto o correio, adormecido, respirava lenta e tranqüilamente, deixando escapar, a cada exalação, um ruído cheio e prolongado. Dir-s4e-ia, em certos momentos, que uma pequena roda, mal lubrificada, rangia em sua garganta. Sua perna, trêmula, arranhava o saco.

Saveli voltou-se, sob as cobertas, e olhou lentamente em derredor. Sua mulher, sentada no escabelo, o rosto entre as mãos, contemplava o hóspede; e seus olhos tinham a fixidez dos seres dominados pelo espanto e pelo medo.

Irritado, grunhiu:

— Vamos! Que estás olhando?

— Que te importa? Continua deitado e deixa-me em paz — respondeu a mulher, sem desviar o olhar da cabeça loura do jovem.

Saveli, furioso, suspirou profundamente e, de novo, virou-se para a parede. Instantes depois, inquieto, ajoelhou-se na cama e, apoiado no travesseiro, observou a mulher, de esguelha. Raissa, imóvel, continuava a contemplar o viajante: suas faces estavam mais pálidas e em seu olhar brilhava uma estranha luz. O chantre gemeu, deixou-se escorregar da cama e, aproximando-se do homem adormecido, colocou-lhe um lenço no rosto.

— Por que estás fazendo isto? — perguntou a mulher.

— Para que a luz não lhe bata nos olhos.

— Então, o melhor é apagar tudo.

Saveli fixou-a, cheio de suspeitas, esticou os lábios em direção à lâmpada... Deteve-se, porém, e cruzou os braços, exclamando:

— É uma astúcia diabólica! Não existem criaturas mais ardilosas do que as da espécie feminina!...

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— Ah! Basta, demônio de batina — sibilou a mulher, crispada de raiva. — Não perdes por esperar

E, acomodando-se melhor, recomeçou sua contemplação ao jovem hóspede.

Não importava que seu rosto estivesse coberto: isso a interessava muito menos do que a visão geral, o conjunto, a novidade e a juventude do homem adormecido. Um peito largo e forte; belas mãos, finas e musculosas; pernas rígidas e muito mais atraentes do que as gâmbias de Saveli: não havia comparação...

— Posso ser o diabo de batina — disse Saveli, ao cabo de alguns instantes. — Mas eles não têm o direito de vir dormir aqui. Sim... Não têm o direito! O serviço deles e dever de Estado... e nós seremos responsáveis, também, se permitirmos que percam o horário. Quando se transporta a mala postal, deve-se levá-la a seu destino, Não se tem o direito de dormir. Ei! Tu, aí! — gritou. — Tu, aí, cocheiro! Como te chamas? Queres que eu te conduza? Levanta-te. Não está certo dormir, quando se tem a responsabilidade da mala postal...!

Perdeu a paciência, precipitou-se para o correio e puxou-o pela manga:

— Ei! Doutores! Enquanto se pode andar, o dever é caminhar. Se não se pode, tanto pior! O que não é certo é ficar dormindo...

O jovem abriu os olhos, esticou o corpo, sentou-se sobre o leito9 improvisado, correu o olhar ainda perturbado pelo quarto e deitou-se, novamente. Saveli puxou-o mais ima vez pela manga, martelando as palavras:

— Afinal, quando pretendes partir? A mala postal existe para chegar a tempo, não compreendes? Vou mostrar-te o caminho.

O jovem entreabriu os olhos. Aquecido, prostrado, amolecido pela doçura do primeiro sono, não totalmente desperto ainda, via, como através de um véu, o colo branco, o olhar fixo e úmido de Raissa: fechou os olhos e sorriu, como se tudo aquilo não passasse de um sonho. Ouviu uma doce voz de mulher:

— Como será possível viajar, com um tempo desses? Fariam melhor dormindo o quanto quiserem...

— E a mala? Quem levará a mala? Tu a levarás?

Saveli falava, alarmado. O hóspede abriu os olhos, contemplou as vivas covinhas da mulher: lembrou-se do local em que se encontrava e compreendeu. A idéia de sair, pelas gélidas trevas, arrepiou-o da cabeça aos pés. Franziu a testa. Bocejou:

— Bem que ainda podíamos ficar, por uns cinco minutos. De qualquer maneira, já chegaremos atrasados...

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Ouviu-se a voz do cocheiro, à porta:

— Talvez ainda a gente chegue a tempo. Com um tempo mau assim o trem deve estar atrasado.

O jovem ergueu-se, espreguiçou-se e, sem pressa, vestiu o casaco. Saveli, vendo que os homens do correio se preparavam para partir, relinchou de satisfação.

— Ajuda-me aqui! — gritou-lhe o cocheiro, procurando levantar um grande saco.

O chantre correu em seu auxílio e arrastou os sacos para o pátio. O outro empregado público começou a desdobrar seu grosso manto. Raissa olhava seus olhos, como se procurasse sondar-lhe a alma...

— Pelo menos, deviam tomar um pouco de chá...

— Bem que eu gostaria — respondeu o jovem. — Mas já está tudo preparado... É verdade que, de qualquer maneira, já estamos atrasados...

— Então fique — sussurrou a mulher, olhos baixos, tocando-lhe a manga...

— O jovem conseguiu, enfim, desatar o nó do manto e, indeciso, colocou-o, dobrado, no braço. Sentia-se arder, perto da jovem mulher.

— Que lindo pescoço!

Acariciou-lhe levemente o pescoço, com a ponta dos dedos. Sentindo falta de resistência, tocou suas mãos, seu colo, seus ombros.

— Como és bela!

— Fique mais um pouco, para tomar chá...

Ouviu-se, de fora, a voz do cocheiro:

— Que está fazendo com este saco, seu cara de arroz cozido com melaço? Ponha atravessado!

— Fique — dizia a mulher. — Veja como a tempestade está rugindo.

Ainda não totalmente desperto, não podendo resistir ao apelo amolecedor de um sono sadio, o jovem foi subitamente tomada do desejo da mulher próxima, esquecendo os sacos de cartas, os trens-correios, todas as coisas do mundo...Assustado, como se quisesse fugir, ou ocultar-se, voltou as costas à porta, abraçou a mulher pela cintura e já se debruçava sobre a pequena lâmpada, par4a extingui-la, quando ouviu ruído de botas no

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corredor e o cocheiro apareceu. Atrás dele, Saveli olhava-o Deixou cair rapidamente os braços, hesitante.

— Tudo pronto — disse o cocheiro.

Por um segundo, ficou imóvel. Depois, sacudiu a cabeça e, completamente desperto, seguiu o cocheiro. Raissa ficou só.

— Vamos! Sobe! Mostra-nos o caminho! — ouviu ela.

Uma campainha começou a tocar, preguiçosamente. Depois, outra... e mais outra... e os sons, encadeando-se, suavemente, distanciaram-se.

Quando, pouco a pouco, extinguiram-se, a mulher do chantre ergueu-se e pôs-se a andar nervosamente. Muito pálida, de início, enrubesceu logo. Seu rosto convulsionou-se de ódio. A respiração ofegava. Os olhos brilharam, num lampejo de irritação selvagem e cruel. Andando como se estivesse presa em uma gaiola, lembrava um tigre espicaçado com ferro em brasa. Deteve-se um instante, lançando um rápido olhar sobre o alojamento. O leito ocupava quase a metade do compartimento: alongava-se, na extensão da parede, com seu colchão sujo, seus travesseiros duros e cinzentos, suas cobertas feitas de trapos. Formava um amontoado informe, muito semelhante à cara do chantre, quando ele cedia ao desejo de se empomadar. Do leito até a porta que dava para o corredor frio, avultava a lareira, com os seus esfregões e suas panelas suspensas. Tudo, sem excluir Saveli, apresentava-se no superlativo da imundície, dentro do ambiente enfumaçado, no qual parecia estranho ver-se o pescoço alvo e a pele macia e fina da mulher.

Raissa correu à cama, estendeu a mão, como se quisesse dispersar, pisar aos pés, reduzir a pó tudo aquilo. Mas, apavorada ao contato de toda aquela imundície, recuou e recomeçou a andar.

Quando, duas horas depois, Saveli voltou, coberto de neve e extenuado, já a encontrou deitada. Seus olhos permaneciam fechados, mas, pela leve palpitação do rosto, o chantre adivinhou que não dormia. Não pôde privar-se de feri-la, de ofendê-la, embora em todo o trajeto de volta tivesse prometido a si próprio nada dizer-lhe, até o dia seguinte, e não tocá-la:

— De nada serviram tuas feitiçarias... Ele se foi!

Falava com uma ironia malévola. Raissa, no entanto, calava-se. Somente o queixo tremia. Saveli despiu-se lentamente, passou por cima do corpo da mulher e deitou-se bem junto à parede. Encolheu-se, murmurando:

— Explicarei tudo amanhã ao Padre Nicodime... Contarei a mulher que tu és!

Ela se voltou bruscamente. Seus olhos faiscavam.

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— Podes ficar com a casa. Mas vais procurar outra mulher na floresta. Não sou a mulher que mereces. Ah! Como seria bom que estourasses de uma vez! Que grosseiro, que vagabundo caiu-me em cima! Deus me perdoe... é o que sinto...

— Vamos, vamos... Dorme!

— Sou muito desgraçada — disse, soluçando, a mulher. — Se não tivesses aparecido, talvez eu casasse com um negociante, ou com um nobre. Se meu marido fosse outro, eu o amaria agora. Por que a neve não te sepultou de uma vez? Por que não ficaste congelado na estrada, Herodes?

Chorou longamente. Por fim, suspirou bem fundo e acalmou-se. A tormenta crescia cada vez mais, além da janela. Na lareira, na chaminé, do outro lado das paredes, alguma coisa chorava; e a Saveli parecia que esse choro era dentro dele próprio e perto de seus ouvidos. Naquela noite, ficou definitivamente convencido da verdade de suas suspeitas em relação à mulher. Não duvidava mais de que, com a ajuda do maligno, ela dispusesse das tempestades e das tróicas do correio. Não duvidava. E, como para aumentar seu sofrimento, esse poder sobrenatural, esse mistério e essa força selvagem davam à mulher, deitada a seu lado, um fascínio especial, incompreensível mesmo, que nunca percebera antes. Sem que se desse conta, ele a poetizara e parecia-lhe que se tornava agora ainda mais branca, mais suave, mais distante.

— Feiticeira! — exclamou, com raiva. — Fora, sua nojenta!

No entanto, na suposição de que, já acalmada, ela começasse a respirar regularmente, tocou-lhe a nunca com os dedos. E tomou nas mãos sua pesada trança. Ela não o sentiu. Mais audacioso, acariciou-lhe o pescoço.

— Deixa-me! — gritou a mulher. E, com os cotovelos, bateu-lhe tão fortemente no nariz, que centelhas cegaram seus olhos, por instantes.

A dor do chantre acalmou-se logo. Mas seu suplício continuou...

— Fim —

Nota: Cara de arroz cozido com melaço. O nome pitoresco que o cocheiro dá, pejorativamente, a Saveli, vem de os sacerdotes comerem com freqüência o arroz, na antiga Rússia. O costume era preparar um prato de arroz, temperado com mel ou passas, durante os enterros e os serviços fúnebres, e destiná-lo aos presentes, deixando-se o que restasse para o clero.

A mulher do farmacêutico

Tchekhov

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A cidadezinha de B., composta de duas ou três ruas tortas, dorme um sono profundo. No ar parado tudo é silêncio. Ouve-se apenas, ao longe, decerto além da cidade próxima, o tenorzinho ralo e rouco dos latidos de um cão. Aproxima-se a madrugada.

Há muito tempo que tudo dorme. Só não dorme a jovem esposa do farmacêutico. Tchornomordik, dono da farmácia de B. Por três vezes ela já se deitou — mas o sono teima em não vir — e não se sabe porquê. Ela sentou-se junto à janela aberta, de camisola, e olha para a rua. Está com calor, aborrecida, entediada — tão entediada que tem até vontade de chorar, mas por que — também não se sabe. Sente um bolo esquisito no peito, querendo subir para a garganta a toda hora... Atrás, a alguns passos da mulher, aconchegado junto à parede, ronca pacificamente o próprio Tchornomordik. Uma pulga voraz grudou-se-lhe ao nariz, mas ele não a sente, e até sorri, porque sonha que na cidade todos estão tossindo e compram-lhe incessantemente “Gotas do Rei da Dinamarca”. Agora não é possível acordá-lo nem com picadas, nem com canhões, nem com carinhos.

A farmácia fica quase na beira da cidade, de modo que a mulher do farmacêutico pode ver campina, bem longe. Ela vê como pouco a pouco clareia a borda oriental do céu, e depois fica rubra, como que do clarão de um grande incêndio. De repente, de trás de uma touceira distante, aparece uma grande lua de cara larga. Está vermelha (em geral a lua, quando sai de trás dos arbustos, costuma estar, não se sabe porque, horrivelmente encabulada).

Súbito, no silêncio noturno, ressoam passos e o tinir de esporas. Ouvem-se vozes.

“Devem ser oficiais voltando do distrito policial, para o acampamento” — pensa a mulher do farmacêutico.

Pouco depois, aparecem dois vultos vestidos com as túnicas brancas de oficiais; um grande e gordo, o outro menor e mais esguio... Preguiçosamente arrastando os pés, eles vêm andando ao longo da cerca, a conversar em voz alta. Chegando até a farmácia, os dois vultos começam a andar ainda mais devagar e olham para as janelas.

— Cheira à farmácia... — diz o magro. — E é uma farmácia mesmo! Ah, já me lembro... estive aqui na semana passada, comprei óleo de rícino. De um farmacêutico de cara azeda e queixada de burro. E que queixada, homem! Foi com uma dessas que Sansão matava os filisteus.

— Hum... — diz o gordo com voz de baixo. — Dorme a botica. E o boticário também dorme. Aqui, Obtiossov, existe uma boticária bonitinha.

— Eu a vi. Ela me agradou muito... Diga-me, doutor, será possível ela amar essa queixada de burro? Será possível?

— Não, decerto ela não o ama — suspira o doutor com expressão de quem tem pena do farmacêutico. — E agora, dorme a belezinha atrás da janelinha! Hein, Obtiossov? Descobriu-se com o calor... a boquinha entreaberta... e a perninha pende para fora da

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cama... Vai ver, o burro do farmacêutico nem entende nada desta riqueza... Para ele, quiçá, uma mulher ou uma garrafa de ácido carbólico, é a mesma coisa!

— Sabe duma coisa, doutor? — diz o oficial, parando. — Vamos entrar na farmácia e comprar qualquer coisa. Quem sabe, vai dar pra ver a “farmacêutica”.

— Que idéia! No meio da noite!

— E daí? Então eles não têm obrigação de atender também à noite? Vamos, amigão!

— Vá lá...

A mulher do farmacêutico, escondida atrás da cortina, ouve a campainha esganiçada. Com um rápido olhar para o marido, que ronca como dantes e sorri beatificamente, ela enfia o vestido, põe os sapatos nos pés descalços e corre para a farmácia.

Atrás da porta de vidro percebem-se duas sombras. A mulher do farmacêutico aviva o fogo da lâmpada e corre para abrir a porta, e já não está tão aborrecida, nem entediada, nem tem vontade de chorar, só o coração bate com muita força. Entram o gordo doutor e o esguio Obtiossov. Agora já dá para examiná-los. O barrigudo doutor é moreno, barbudo e desajeitado. Ao menor movimento, a túnica lhe estala no corpo e o suor lhe umedece o rosto. Já o oficial é rosado, glabro, efeminado e flexível como um relho inglês.

— O que desejam os senhores? — pergunta a mulher do farmacêutico, aconchegando o vestido sobre o seio.

— Dê-nos... eeehh... quinze copeques de pastilhas de hortelã.

A mulher do farmacêutico alcança sem pressa o pote na prateleira e põe-se a pesar. Os compradores, sem piscar, fitam-lhe as costas; o doutor franze o rosto como um gato satisfeito, mas o tenente está muito sério.

— É a primeira vez que vejo uma senhora trabalhando numa farmácia — diz o doutor.

— Isso não tem nada de extraordinário... — responde a mulher do farmacêutico, olhando de esguelha para o rosto rosado de Obtiossov. — Meu marido não tem auxiliares, e eu sempre o ajudo.

— Ah, é assim... pois a senhora tem aqui uma farmácia muito simpática... Que quantidade destes... diversos potes! E a senhora não tem medo de mexer com estes venenos! Brrr!

A mulher do farmacêutico fecha o pacotinho e entrega-o ao doutor. Obtiossov dá-lhe quinze copeques. Meio minuto passa em silêncio. Os homens se entreolham, dão um passo em direção à porta, entreolham-se novamente.

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— Dê-nos dez copeques de bicarbonato! — diz o doutor. A mulher do farmacêutico, movendo-se preguiçosa e lentamente, torna a estender a mão para a prateleira.

— Será que não existe aqui na farmácia alguma coisa assim... — balbucia Obtiossov, mexendo os dedos — alguma coisa assim, sabe, alegórica, um fluido vitalizante qualquer... água de Seltzer, talvez? A senhora tem água de Seltzer?

— Tenho — responde a mulher do farmacêutico.

— Bravo! A senhora não é mulher, e sim uma fada. Arranje-nos três garrafinhas!

— A mulher do farmacêutico embrulha apressada o bicarbonato e desaparece na escuridão atrás da porta.

— Que fruto! — diz o doutor, piscando um olho. — Uma romã dessas, Obtiossov, nem na ilha da Madeira você encontra. Hein? Que acha? Entretanto... está ouvindo o ronco? É o próprio senhor farmacêutico que se digna repousar.

Um minuto depois, volta a mulher do farmacêutico e põe sobre o balcão cinco garrafas. Ela acaba de voltar do porão e por isso está corada e um pouco excitada.

— Pssst... mais baixo — diz Obtiossov, quando ela, abrindo as garrafas, deixa cair o saca-rolhas. — Não faça tanto barulho, senão vai acordar o marido.

— E que é que tem, se o acordar?

— Ela está dormindo tão gostoso... sonhando... com a senhora... À sua saúde!

— E depois — diz o doutor com sua voz de baixo, arrotando devido à gasosa — os maridos são uma historia tão cacete, que fariam bem se dormissem o tempo todo. É, com esta agüinha seria bom um vinhozinho tinto.

— Essa agora, que idéia! — ri a mulher do farmacêutico.

— Seria excelente! Pena que nas farmácias não vendam bebidas espirituosas! Entretanto... a senhora deve vender vinho como remédio. A senhora tem “vinum gallicum rubrum”?

— Tenho.

— Então! Traga-o aqui! Com os diabos, carregue-o para cá.

— Quantos desejam?

— “Quantum satis!” Primeiro a senhora nos dá uma onça para cada copo, e depois, veremos... Hein, Obtiossov? Primeiro, com água, e depois, per se...

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O doutor e Obtiossov sentam-se junto ao balcão, tiram os quépis e põem-se a beber o vinho tinto.

— Mas este vinho, força é confessar, é o que há de péssimo! “Vinum ruinzissimum”. Porém, na presença de... eeeh... ele parece um néctar! A senhora é encantadora, madame! Beijo-lhe em pensamentos a mãozinha.

— Eu pagaria caro para poder fazê-lo sem ser em pensamentos! — diz Obtiossov. — palavra de honra! Eu daria a vida!

— O senhor, por favor, deixe disso... — diz a senhora Tchornomordik, enrubescendo e fazendo uma cara séria.

— Mas como a senhora é coquete! — ri o médico em voz baixa, fitando-a de esguelha, com ar malandro. — Os olhinhos soltam chispas, dão tiros: pif! Paf! Meus parabéns! A senhora venceu! Fomos derrotados!

A mulher do farmacêutico observa os seus rostos corados, ouve a sua tagarelice e logo também fica animada. Oh, ela já está tão alegre! Ela entra na conversa, ri, coquete, dengosa, e até, após longas súplicas dos compradores, bebe umas duas onças de vinho tinto.

— Os senhores oficiais deveriam vir mais vezes para a cidade, lá do acampamento — diz ela — porque senão aqui é um horror de cacete! Eu quase morro.

— E não é para menos! — horroriza-se o doutor — uma romã assim... maravilha da natureza... neste deserto! Como tão bem o disse Griboiedov: “Para o deserto! Para Saratov!” Mas já é tempo de irmos. Muito prazer em conhecê-la... imenso! Quanto devemos?

A mulher do farmacêutico ergue os olhos para o teto e fica muito tempo movendo os lábios.

— Doze rublos, quarenta e oito copeques! — diz ela.

Obtiossov tira do bolso uma carteira recheada, remexe longamente no maço de notas e paga.

— Seu marido dorme deliciosamente... tem sonhos... — murmura ele, apertando a mão da mulher do farmacêutico em despedida.

— Não gosto de ouvir tolices...

— Que tolices são essas? Pelo contrário... não são tolices... Até Shakespeare já disse: “Feliz quem jovem foi na juventude!”

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— Solte a minha mão!

Finalmente, os compradores, após prolongadas despedidas, beijam a mão da mulher do farmacêutico e, hesitantes, como que ponderando se não esqueceram alguma coisa, saem da farmácia.

E ela corre depressa para o quarto e senta-se junto da mesma janela. Ela vê como o doutor e o tenente, saindo da farmácia, preguiçosamente se afastam uns vinte passos, depois param e começam a cochichar entre si. Sobre o que será? Seu coração palpita, as fontes latejam, e por que — ela mesma não sabe... O coração bate com força, como se aqueles dois, cochichando lá fora, estivessem decidindo seu destino.

Uns cinco minutos depois, o doutor separa-se de Obtiossov e se afasta, ao passo que Obtiossov volta. Ele passa pela farmácia uma vez, outra... Ora se detém perto da porta, ora recomeça a caminhar... Finalmente, cautelosa, tilinta a campainha.

— O que foi? Quem está aí? — Ouve ela de repente a voz do marido. — Estão tocando lá fora, e você não escuta! — diz o farmacêutico, severo. — Que desordem!

Ele se levanta, veste o roupão, e, cambaleando meio adormecido, arrastando os chinelos, vai para a farmácia.

— O que... deseja? Pergunta ele a Obtiossiov.

— Dê-me... dê-me quinze copeques de pastilhas de hortelã.

Com infinito resfolegar, bocejando, adormecendo em pé e batendo com os joelhos no balcão, o farmacêutico escala a prateleira e alcança o pote.

Dois minutos depois, a mulher do farmacêutico vê Obtiossov sair da farmácia e, depois de alguns passos, jogar as pastilhas de hortelã na estrada poeirenta. Detrás da esquina, ao seu encontro, vem o doutor... Os dois se juntam e, gesticulando, desaparecem na névoa matinal.

— Como sou desgraçada! — diz a mulher do farmacêutico, olhando com raiva para o marido, que se despe apressado para voltar a dormir. Oh! Como sou desgraçada! — repete ela, debulhando-se, de repente, em lágrimas. — E ninguém, ninguém compreende...

— Esqueci quinze copeques sobre o balcão — balbucia o farmacêutico, puxando o cobertor. — Guarde, por favor, na gaveta.

E adormece imediatamente.

— Fim —

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Anton Pavlovitch Tchekhov

Biografia

Anton Pavlovitch Tchekhov (1860-1904) Dramaturgo e romancista russo, nascido em Taganrog.

Ao findar o século XIX, a Rússia debatia-se nas garras de terrível reacionarismo. A vida do povo era triste, pesada, sem esperanças. Profunda apatia pesava sobre as classes intelectuais, cansadas e desiludidas das lutas políticas. Uns se lamentavam sem cessar; outros se entregavam a uma existência de completa indiferença...

Foi nessa Rússia que surgiu um escritor cujas obras ganharam enorme repercussão. Chamava-se Anton Pavlovitch Tchekhov, era médico e, apesar de sofrer do peito, levava uma vida agitadíssima. Nascera de pais pobres em 1860 e a custo de esforços lograra concluir o curso com distinção, sendo nomeado professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Moscou.

Começou a escrever para os jornais da capital e de São Petersburgo, mas, a princípio, seus trabalhos foram mal recebidos. Ao contrário do que sucedia com os outros grandes autores eslavos, as personagens de Tchekhov não eram tragicamente profundas; não gritavam, não urravam, não amaldiçoavam céus e terras; levavam uma vida calada, monótona, melancólica. Quando se reuniam, falavam de coisas vagas — de um barco pintado de azul; de pobres soldados discorrendo sobre vários temas; de uma velha governanta que passa seus dias a pensar na cor dos olhos do filhinho, do menino que está ajudando a criar; de um jovem médico que se levanta de manhã bem cedo, enquanto o resto da cidade está dormindo sob a neve, para meditar em paz na hora que precede o amanhecer... Tudo muito melancólico, muito melancólico.

Essa aparente dispersão de assunto, esse estilo nebuloso e vago, provocou estranheza. A Rússia não estava habituada a tanta sutileza. De repente, porém, o império inteiro reconheceu-se, de corpo e alma, na obra do novo escritor. A glória logo lhe sorriu. Concederam-lhe o prêmio Pushkin, elegeram-no para a Sociedade dos Amigos da Literatura Russa, e, suprema honra, construíram um teatro especialmente para a representação de suas peças.

Raros autores foram tão amados pela sua gente como Tchekhov. Ele conhecia intimamente todas as fraquezas, todas as pequenas misérias do seu povo, mas em lugar de fustigá-lo, como Dostoiévski, ou de exaltá-lo, como Tolstoi, compadecia-o e, às vezes, chorava com ele.

É no conto que o gênio de Tchekhov se expande em toda a sua extensão. Na narrativa curta a sua arte finíssima encontrou o clima propício para o florescimento dos seus dotes de observador “enamorado da humanidade”, como escreveu Virginia Wolf. Poucos leitores deixarão de se comover com os sonhos que povoam a alma do pobre Olenka Plemyanniakov, com os pueris terrores do pequeno Yegorushka. E quem não se

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enternecerá com a história do pobre Vanka, escrevendo a incrível carta para a família, ou com esse humilde Gusief recordando a aldeia natal? Pela técnica, pela maneira de tratar o assunto, Tchekhov pode ser colocado entre os grandes inovadores do conto.