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UFRJ
ANTONIO CARLOS HIGINO DA SILVA
OS ELEITOS JOANINOS A força da preexistência de Jesus na tradição
do discípulo amado RIO DE JANEIRO
2009
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
2
Antonio Carlos Higino da Silva
Os Eleitos Joaninos: A força da Preexistência de Jesus na Tradição Joanina.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação de História Comparada, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História. Linha de Pesquisa História Comparada das Diferenças Sociais Orientador: André Leonardo Chevitarese
Rio de Janeiro 2009
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
3
Silva, Antonio Carlos Higino da. Os Eleitos Joaninos: A força da Preexistência na Tradição Joanina / Antonio Carlos Higino da Silva. -- 2009. 89f.: il. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 2009. Orientador: André Leonardo Chevitarese 1. Cristianismo primitivo. 2. Comunidade Joanina. 3.Ideologias religiosas 4. Gnosticismo – Teses. I.Chevitarese. André Leonardo (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. III. Os Eleitos Joaninos.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
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Antonio Carlos Higino da Silva
Os Eleitos Joaninos: A força da Preexistência de Jesus na Tradição Joanina.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação de História Comparada, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História.
Aprovada em
________________________________________________ (André Leonardo Chevitarese, Doutor em História, UFRJ)
____________________________________________ (Marta Mega, Doutora em Historia, UFRJ)
_________________________________________________ (Edgard Leite, Doutor em Historia, UERJ)
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
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AGRADECIMENTOS
É um prazer muito grande encerrar mais esta etapa na minha e ter encontrado em
meu caminho pessoas tão especiais sempre dispostas a contribuir com este trabalho de
pesquisa e mesmo aquelas que sem saber do que se tratava, mas que ainda assim me
deram um voto de confiança.
Não poderia deixar de agradecer a paciência e dedicação dos professores Isidoro
Mazzarolo e Auto Lyra integrantes da Pós-gradução em Teologia da PUC-RJ e do
Departamento de Letras Clássicas da UFRJ, respectivamente. Ao amigo André Barroso
que estabeleceu o contato com o Professor Isidoro, ao meu tio Guilherme dando aquele
apoio nos assuntos referentes à biblioteca, ao professor José Luis Izidoro por seu
interesse, ao professor Louis Painchaud sempre prestativos em seus e-mails, a seu
Joaquim Gonçalves que com sua simplicidade muito me ajudou nos assuntos de
informática reparando meu computador sem perder meus dados, ao professor Edgard
Leite que se fez presente levantando questões e apontando caminhos para este trabalho e
ao meu orientador André Leonardo Chevitarese pela oportunidade e acima de tudo pela
amizade.
A todos os companheiros de trabalho que dividem comigo esta jornada desde
seu início, sempre voluntariosos as minhas necessidades de horários gerando as
oportunidades necessárias ao desenvolvimento deste trabalho.
Aos meus amigos Flávio Alves e Andréia Damiana sempre presentes dividindo
suas importantes opiniões acerca da pesquisa. A meus pais e parentes e, em especial, a
minha irmã Neide que sempre foi um importante referencial para este tipo de tema.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
7
Enfim, a minha esposa que sempre procurou propiciar, da melhor maneira
possível, o ambiente adequado a realização deste trabalho. Obrigado por seu carinho e
seu esforço entre fraldas, choros e papinhas.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
8
E eu de minha parte, disse ao Salvador: Senhor, todas as almas serão salvas e irão para a luz
incontaminada? Ele respondeu e me disse: As questões que surgiram em sua mente são
importantes: de fato, é difícil revelá-los a qualquer um, mas só aos que pertencem a raça
inalterável, sobre a qual o espírito de vida descerá e habitará com poder. Eles alcançarão a
salvação e se tornarão perfeitos. E eles se tornarão dignos de grandezas. E lá eles serão
purificados de toda imperfeição e das angústias da maldade; estando ansioso por nada, exceto
apenas pela incorruptibilidade; meditando sobre isso, daí em diante, sem raiva, inveja, má
vontade, desejo ou insaciabilidade quanto à totalidade; reprimidas por nada senão pela
subsistente entidade da carne, que vestem, aguardando o tempo em que serão visitados pelos
seres que levam embora.
LSSJ 25,16 – 26,1.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
9
RESUMO
Este trabalho de pesquisa procura compreender a ruptura ocorrida no seio da
comunidade joanina no início do segundo século da era comum. Para tal, analisamos
textos produzidos neste recorte temporal com intuito de avaliar os processos
hermenêuticos que se forjaram a partir dos mesmos a fim de propor alternativas ao
judaísmo e ao cristianismo daquela época. Desta maneira constituímos nosso objeto de
pesquisa, ou seja, os sectários da comunidade joanina que intitulamos: Os Eleitos
Joaninos. A busca em instituir um perfil para a comunidade joanina e para o grupo
sectário nos conduziu a colocar na base deste trabalho a metodologia que considera o
quarto evangelho como uma biografia que deve ser lido em diferentes camadas
redacionais níveis, de modo que ele narre, tanto a história de Jesus, quanto a da
comunidade. Sendo assim, seguimos nossa análise procurando estabelecer a composição
da comunidade e ambientando seus componentes ao contexto histórico do judaísmo do
segundo templo com suas perspectivas messiânicas e gnósticas. Este tipo de estudo teve
por objetivo compreender a peculiaridade da preexistência de Jesus na tradição joanina
e as disputas constituídas acerca deste tema.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
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ABSTRACT
This work of research looks for to at the beginning understand the occured rupture in
the interior of the community of Jonh of as the century of the common age. For such,
we analyze texts produced in this secular clipping with intention to evaluate the
hermeneutic processes that if they had forged from the same ones in order to consider
alternatives to the judaism and the Christianity of that time. In this way we constitute
our object of research, that is, the segment of the community of Jonh that we intitle: The
Elect of Jonh. The search in instituting a profile for the community of Jonh and the
group that breached with the tradition in them lead to place in the base of this work the
methodology that considers 4º gospel as a biography that must be read in different
levels, in way that it tells, as much the history of Jesus, how much of the community.
Being thus, we follow our analysis looking for to establish the composition of the
community and relating its components to the historical context of the judaism of as the
temple with its messianic and gnostic perspectives. This type of study had for objective
to understand the peculiarity of the preexistence of Jesus in the tradition of the disciple
evangelist Jonh and the disputes consisting concerning this subject.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
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RESUMÉ
Ce travail de recherche a pour but comprendre la rupture produite dans le sein de la
communauté de Jean dans le début du second siècle de l'ère commune. Pour cela, nous
analysons des textes produits dans ce découpage séculier avec intention d'évaluer les
processus herméneutiques qui se sont forgés à partir des mêmes afin de proposer des
alternatives au judaïsme et au christianisme de ce temps. De cette manière nous
constituons notre objet de recherche, c'est-à-dire, les sectaires de la communauté de
Jean qui nous intitulons : Les Élus de Jean. La recherche à instituer un profil pour la
communauté de Jean de manière qui le groupe sectaire est conduit à base da
communauté. Parce que la méthodologie utiliseé ici considère le quatrième évangile
comme une biographie qui doit être lue dans des différentes niveaux, de façon qu'il dise
aussi l'histoire de Jésus que de la communauté. En étant ainsi, nous suivons notre
analyse en cherchant établir la composition de la communauté et de leurs composantes
au contexte historique du judaïsme du second temple avec leurs perspectives
messianiques et gnostique. Ce type d'étude a eu objectif de comprendre la particularité
de la divinité de Jésus dans la tradition joanina et les disputes constituées concernant ce
sujet.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
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LISTA DE QUADRO:
Quadro 1 – Cristologia........................................................................................pg 40
Quadro 2 – Estrutura do Mito Gnóstico Clássico...............................................pg 42
Quadro 3 - O Livro Secreto Segundo João......................................................pg 52-53
Quadro 4 – Quadro comparativo 1.....................................................................pg 55
Quadro 5 – Quadro comparativo 2 ....................................................................pg 56
Quadro 6 – Salvação da Almas ..........................................................................pg 73
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
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SUMÁRIO
CAPÍTULO 1
1.1 Introdução.............................................................................................................pg 14
1.2 A comunidade Joanina........................................................................................ pg 16
1.2.1 Composição e Messianismo............................................................................pg 28
CAPÍTULO 2
2.1 Os Eleitos Joaninos...............................................................................................pg 39
2.1.1 Cristologia.........................................................................................................pg 41
2.1.2 Outros Embates..................................................................................................pg 56
2.2 Preexistência na tradição joanina..........................................................................pg61
2.3 Livros Sapienciais e o Evangelho de João............................................................pg 66
CAPÍTULO 3
3.1 Conclusão.............................................................................................................pg 69
BIBLIOGRAFIA
Obras de Referência e Documentação .......................................................................pg 83
Trabalhos Específicos.................................................................................................pg 84
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
14
CAPÍTULO 1
1.1 Introdução.
No florescer do cristianismo, as perspectivas cristológicas acerca da missão de
Jesus fomentaram entre os primeiros grupos cristãos de nossa era, disputas em torno da
maneira que melhor representaria, fidedignamente, a continuidade de sua missão ao fim
de sua existência humana. Seus apóstolos e discípulos tornaram-se os principais porta-
vozes de sua mensagem. E as esperanças messiânicas inerentes ao judaísmo, que serão
analisadas neste trabalho, compuseram um verdadeiro mosaico nos textos
neotestamentários. Pois através da crença no Paráclito, enviado para ajudá-los em sua
tarefa de evangelização, deram diversificadas formas a sua fé remetendo as esperanças
messiânicas à outra categoria: a Preexistência.
Neste trabalho buscamos compreender como a tradição desenvolvida sob o
nome do apóstolo João Evangelista constituiu-se, entre as demais, em uma alternativa à
fé cristã. Pois a peculiaridade e a especificidade da preexistência de Jesus nesta tradição
a colocou em destaque, entre os escritos neotestamentários. E é por isso que nos
voltamos a esta vertente a fim de entender como a composição, o ideal messiânico e os
procedimentos hermenêuticos desenvolvidos pela comunidade influenciaram seu
complexo processo de construção e ruptura. Desta forma, focaremos no segmento da
comunidade que se separou do grupo de origem (1 Jo 2,19). E sendo assim, o
messianismo e a preexistência de Jesus nos servirão como tema para que possamos
esquadrinhar este processo.
Primeiramente estudaremos as possibilidades de composição da comunidade
joanina. Para reconstituir sua composição analisaremos fontes variadas, mas acima de
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
15
tudo utilizaremos um enfoque muito fértil nos estudos científicos da tradição joanina.
Este enfoque sugere “que o quarto evangelho deve ser lido em diferentes níveis, de
modo que ele nos narre, tanto a história de Jesus, quanto a da comunidade que cria
nele.” (BROWN, 1999, pg 15). Nesta perspectiva os evangelhos apresentam o Jesus de
cada evangelista, que indiretamente nos remete a vida da comunidade no tempo em que
foi escrito, e revelam-nos também o ponto de vista cristológico do evangelista.
Em seguida avaliaremos as perspectivas messiânicas que podem ser encontradas
na tradição desenvolvida pela comunidade, baseados ainda na leitura do evangelho em
diferentes níveis (camadas). Pois entendemos que estas diferentes camadas traduzem as
rupturas nesta tradição.
O intuito é trazer à tona a constituição deste grupo entendendo que sua
instituição doutrinária não se dá sem o estabelecimento de claras disputas de poder as
quais se expressam no campo da idéias. Sendo assim, buscaremos compreender, por
meio dos textos, os processos hermenêuticos desenvolvidos a partir dos textos
veterotestamentários por esta tradição, de maneira que possamos relacioná-las às suas
escolhas ideológicas e aos Eleitos Joaninos.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
16
1.2 A comunidade Joanina
A atual redação do Evangelho de João apresenta controvérsias que não são
novidades para os estudiosos da escrituras bíblicas. Podem ser encontradas no estilo, no
conteúdo, na perspectiva teológica e nos aspectos redacionais. Para a tradição joanina,
por exemplo, desde o início do século XX podemos citar nomes que procuraram
elaborar teorias para resolver estes desencontros: Eduard Schwartz (1907 e 1908), J.
Wellhausen (1908), Fr. Spitta (1910), J.H. Bernard (1929), Bultmann (1941), W.
Wilkens (1958), R. Schnackenburg (1965), Raymond E. Brown (1966), Robert T.
Fortna (1970). (M.-É. BOISMARD ET A. LAMOUILLE, 1977, Tome III, pg 9-10).
Através dos anos estas teorias se desenvolveram propondo autores, fontes e
redações para o evangelho que conhecemos hoje. Por vezes apontam dois ou três
autores com um redator final. Quanto às fontes, inicialmente, acreditavam em um
evangelho primitivo (A) que teria sofrido revisões (B), mas houve também aqueles que
propuseram três fontes: sinais, revelação e paixão/ressurreição.
Esta maneira de tratar as escrituras nos remete a pensá-las em camadas, ou seja,
que o evangelho que conhecemos hoje sofreu através do tempo adequações. Para
melhor compreender estas camadas redacionais e as possíveis motivações destas
adequações apresentaremos duas sinopses do Evangelho de João. Uma que utiliza a
metodologia das camadas redacionais e outra que analisa a redação final.
Estas duas sinopses foram escolhidas para que ao cotejá-las suas similaridades,
diferenças ou complementaridade possam nos conduzir da melhor maneira a
importantes aspectos da tradição joanina.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
17
Primeiramente vejamos a obra de Raymond Brown1 A Comunidade do Discípulo
Amado que faz sua análise a partir da redação final do Evangelho e das Cartas joaninas
procurando reconstituir a eclesiologia joanina. Brown reconstitui a vida da comunidade
em quatro fases: Pré-evangélica, Evangélica, Epistolar e o período da Dissolução.
PRIMEIRA FASE: ANTES DA ESCRITA DO EVANGELHO (Composição)
Nesta fase o autor apresenta sua teoria sobre a composição da comunidade antes
da escrita do evangelho. Esta seria composta por um grupo de cristologia baixa, ou seja,
que não implicava divindade a Jesus, pois teriam sido originalmente seguidores de João
Batista. O outro grupo possuiria uma cristologia alta implicando na divindade a Jesus,
possivelmente judeus helenistas que converteram samaritanos. E por fim a entrada de
numerosos gentios.
O autor procura apresentar o grupo de cristologia baixa como o originário da
comunidade através da interpretação de Jo 1, 35-51 rejeitando assim reconstituições que
colocavam na origem judeus helenistas, gentios e cristãos gnósticos. No trecho
interpretado os discípulos escolhidos por Jesus referem-lhe títulos como: Mestre, Rabi e
Filho de Deus. Mas nenhum deles lhe confere divindade apenas subentendem
promessas messiânicas.
O grupo de cristologia alta que seria o segundo na composição da comunidade é
identificado pelo autor a partir do segundo e terceiro capítulos. Nestes capítulos
encontramos: primeiro a purificação do templo de Jerusalém que é colocada no final do
ministério de Jesus nos sinópticos e, depois, o dialogo com Nicodemos rico em
1 BROWN, R. E.1999. A Comunidade do Discípulo Amado, São Paulo: Paulus, 4ª ed..
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
18
dicotomias: céu/ terra, luz/trevas. Estes fatos representam, para Brown, a ruptura deste
grupo com Jerusalém e a influência da cultura helenista sobre os mesmos,
respectivamente.
Estes seriam possivelmente os judeus helenistas de At 6-8 que converteram
samaritanos e que teriam assimilado alguns elementos do pensamento samaritano,
inclusive uma cristologia que não era centralizada num Messias davídico. Pois os
samaritanos esperavam um Taheb, um mestre e revelador.
Muito forte também na teologia samaritana era a ênfase em Moisés, de
tal modo que às vezes o Taheb era visto como a figura de um Moisés
que tinha voltado. Pensava-se que Moisés tinha visto Deus e depois
desceria para revelar ao povo o que Deus tinha dito. (BROWN, 1999:
46)
A medida que esta teologia foi se elevando Jesus foi tomando o papel de Moisés.
Se Jesus foi interpretado segundo esta maneira de ver. Então a
pregação joanina teria haurido de tal Moisés material que depois
corrigiria: não foi Moisés mas Jesus que viu Deus e depois desceu à
terra para falar do que ouvira (3,13 e 31; 5,20; 6,46; 7,16). (BROWN,
1999, pg 46)
Esta leitura faz dos samaritanos o terceiro grupo na composição da comunidade.
O interessante é destacar que em João a conversão deles se dá ainda durante o
ministério de Jesus. Em Jo 4,4-42 na passagem de Jesus pela Samaria Ele converte
muitos samaritanos. Ao contrário de Mt 10, 5 onde proíbe a entrada na Samaria e de
Lucas onde os samaritanos se mostram hostis a Jesus (9, 52-55). De acordo com Atos
somente depois da Ressurreição é que o cristianismo foi levado para Samaria (8, 1-25).
No entanto, como os versículos Jo 4,21-22 apontam uma neutralidade do culto
em relação à Samaria e a Jerusalém, no diálogo de Jesus com a samaritana, o autor
pressupõe que o grupo que teria convertido os samaritanos constava de judeus de
opinião contrária ao templo.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
19
Por fim os gentios podem ser detectados através de explicações parentéticas que
o evangelho possui para explicar termos como Mestre e Rabi e também em trechos
como 12, 20-23 que atestam a chegada de estrangeiros e mesmo a citação de Isaías que
explica a rejeição por parte dos judeus (12,40). Ver também: At 28, 25-28 e Mt 13, 13-
15.
SEGUNDA FASE: QUANDO O EVANGELHO FOI ESCRITO
A primeira fase pressuposta pelo autor compreende, basicamente, a formação
dos grupos que compõem a comunidade. Período que pode ter durado uns 30 anos (50 a
80). O evangelho teria sido escrito nos anos 90 e.c., ou seja, dez anos depois.
Identificados os grupos que compõem a comunidade até a passagem pela Samaria, a
partir daí, é possível analisar a relação da comunidade com os estranhos. Sendo assim o
autor identifica seis grupos presente no evangelho.
Três grupos de não crentes: Mundo (14-17), Judeus (5-12) e seguidores de João
Batista (3, 22-26).
Três grupos de outros cristãos: Criptocristãos (12, 42-43), Cristão de fé
inadequada (6, 60-66 eucaristia/7, 3-5 parentes de Jesus/8,31ss descendentes de
Abraão/10,2 mercenários) e Cristãos apostólicos (6, 68-69).
TERCEIRA FASE: QUANDO FORAM ESCRITAS AS EPISTOLAS? (Lutas internas)
Nesta fase o autor analisa a comunidade através das epístolas joaninas. Descreve
de forma resumida as razões de porque datá-las depois do evangelho, sua autoria e
conteúdo.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
20
A segunda e a terceira carta foram escritas por alguém que se intitulou
“presbítero” e resumem-se em orientações para outra igreja. Já a primeira carta é mais
um tratado para defender a comunidade de um grupo que se afastou e está fazendo a
obra do Demônio (2,19). Seus principais erros teriam sido não reconhecer a encarnação
de Cristo (4,2-3), não guardar os mandamentos, pretender estar livres da culpa do
pecado (1;6 e 8; 2,4) e não mostrar amor aos irmãos (2,9-11; 3,10-24; 4, 7-21).
Para Brown as três epístolas foram escritas pela mesma pessoa a quem chama
autor ou presbítero, pois elas amarram os mesmo pontos doutrinais tornando provável
que todas tenham vindo da mesma fase da história da comunidade joanina. Existe
também uma tese popular que pressupõe que o redator de Prólogo e do capítulo 21 do
evangelho seria o redator das cartas.
Com relação à cronologia, Brown admite que haja quem defenda sua escrita
antes do evangelho, mas ele prefere situá-las depois do evangelho e antes dos escritos
de Inácio de Antioquia (Evangelho 90/Epistolas 100/ Inácio 110). Desta forma Inácio
teria proporcionado, na sua luta contra cristãos judeus e docetas no início do segundo
século, um mistura nos padrões encontrados na alta cristologia e naquela encontrada nos
sinópticos.
Quanto à situação vivida nas cartas há três aspectos pressupostos:
desenvolvimento em diferentes igrejas, o papel de doutrinação desempenhado pela
escola joanina e a divisão que ocorreu entre o autor e os separatistas.
As principais áreas de debate seriam: Cristologia, Ética, Escatologia e
Pneumatologia2.
2 Com exceção da Pneumatologia analisaremos estas áreas de embates mais minuciosamente no próximo
capítulo.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
21
QUARTA FASE: DISSOLUÇÃO JOANINA.
Nesta fase o autor conclui e aponta a absorção de cada parte da comunidade
pelos segmentos “ortodoxos” e “heterodoxos” (Gnósticos, Docetas e Montanistas) do
século II. A partir desta fase os grupos opositores no interior da tradição joanina
proporcionaram desenvolvimentos teológicos diferentes que ecoaram no segundo século
de nossa era. Esta seria uma das conseqüências da ruptura apontada na primeira carta e
que nos leva a investigação.
A outra sinopse do evangelho de João que apresentaremos aqui se desenvolve de
maneira mais minuciosa. Ela é um dos três tomos da obra intitulada Synopse des Quatre
Évangile. É no terceiro tomo, L’Évangile de Jean, que achamos o trabalho desenvolvido
por M.-É. Boismard e A. Loumille. A perspectiva destes autores não se limita a
interpretar a redação final do evangelho como na sinopse anteriormente apresentada.
Seus autores apresentam as prováveis camadas do evangelho que conhecemos hoje
identificando a autoria, local de composição, a datação e o conteúdo de cada camada.
A camada mais antiga, chamada de Documento C (Doc. C), já seria um
evangelho completo indo do ministério de João Batista até a aparição do Cristo
ressuscitado. Sem grandes discursos e contendo apenas cinco milagres de Jesus teria
sido escrito na Palestina sendo fortemente influenciado pelo pensamento samaritano.
Ainda na Palestina um autor compôs uma primeira redação baseando-se no Doc.
C. Ele teria conservado a ordem da camada mais antiga, mas ajuntou, entre outras: a
narrativa da vocação de André e de Pedro, dois milagre tomados da tradição sinóptica e
alguns discursos de Jesus. A esta nova redação chamaram João II-A.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
22
Ao se estabelecer na Ásia Menor, provavelmente em Éfeso, o mesmo autor da
primeira redação encontrou dificuldades referentes à hostilidade de judeo-cristãos. Por
isso resolveu escrever uma segunda redação: João II-B. Composta de material de João
II-A e dos sinópticos.
C‟est lui qui introduisit le cadre des Fêtes juives dans lequel se
déroule la vie de Jésus, donnant la primauté à la fête de Pâque au
détriment de celle des Tentes, la seule que était mentionnée dans le
Document C; il fut alors forcé de bouleverser dans une assez large
mesure l‟ordre des sections en provenance de Jean II-A (et donc aussi
du Document C). Dans cette nouvelle rédaction, Jean II subit
l‟influence des lettre de Paul, des écrits de Lc (évangile et Actes), des
textes de Qumrân; la parenté avec les épîtres joanniques est évidente.
(BOISMARD e LOUMILLE, 1977, Tome III, pg 11)3.
Por fim um terceiro autor, João III, inseriu em João II-B os textos paralelos de
João II-A e alguns provenientes de uma coletânea joanina. Este autor inverteu a ordem
dos capítulos 5 e 6 e introduziu um certo numero de glosas a fim de retomar a
escatologia herdada de Daniel. Ele se esforçou para atenuar as tendências antijudaicas
de João II-A e João II-B.
Este tipo de estudo parece ser meramente especulativo quando não vinculado aos
rigorosos critérios da crítica textual e literária. Por isso, em nosso trabalho focaremos na
crítica literária a fim de compreender como adições, dubletes, deslocamentos de texto e
critérios teológicos estiveram intimamente ligados ao ambiente do próprio texto. De
maneira que não se deve entender tais adaptações como simples manipulação de uma
verdade original, mas como um complexo processo de transformação de uma tradição
oral em escrita permeado por rupturas.
3 É ele que introduz o quadro de Festas judias no qual se desenrola a vida de Jesus, dando
primazia a Festa da Páscoa em detrimento da Festa das Tendas, a única que é mencionada no Documento C, Ele foi então forçado a inverter em grande medida na ordem das seções proveniente de João II-A (e, por conseguinte também do Documento C). Nesta nova redação, João II sofreu influencia das Cartas de Paulo, dos escritos de Lucas (evangelho e Atos), dos textos de Qumrãn; o parentesco com as epístolas joaninas é evidente. (Tradução minha)
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
23
Dentre as características indicadas pelos autores desta sinopse focalizaremos
naquelas intimamente relacionadas ao tema da preexistência de Jesus a fim de
compreender suas conseqüências no período da ruptura da comunidade. Tomaremos a
camada inicial e arrolaremos as transformações que interessam ao nosso estudo
identificando as renovações adotadas pela narrativa.
*
O DOC. C4 se dividiria em cinco partes, as quatro primeiras corresponderiam às
regiões onde se desenvolveram o ministério de Jesus: Samaria, Galiléia, Jerusalém e
Betânia. E na última estaria a narrativa da paixão e ressurreição de Cristo.
SAMARIA
João Batista em Enom - O evangelho começaria apresentando o Batista, ou seja,
seu inicio seria em 3,23.25 seguido de 1,19ss. Se hoje 3,23 parece fora de contexto seria
justamente porque este trecho já foi o inicio do evangelho de forma análoga a Mc 1, 4-5.
No entanto, João Batista é colocado na região de Siquém (Enon e Salim), no coração da
Samaria dando independência a esta tradição se comparada aos sinópticos que o coloca
a margem do Jordão.
Vocação de Filipe e Natanael – Esta seqüência é estreitamente ligada ao
testemunho do Batista em 1,19ss, pois Jesus é anunciado como o Profeta semelhante a
Moisés, anunciado em Dt 18,18, e que o Batista nega ser. Destaca-se que as
expectativas messiânicas dos samaritanos estão centradas neste Profeta. Outra tradição
4 O texto na íntegra pode ser encontrado em: M.-É. BOISMARD ET A. LAMOUILLE. 1977. Synopse
des quatre évangile Tome III L’évangile de Jean, pg 16-19.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
24
samaritana em 1,43ss apresenta Jesus como rei de Israel, herdeiro do patriarca José.
Diferente da linha de sucessão patriarcal davídica apresentada nos sinópticos.
Jesus e o diálogo com a Samaritana – Este seria o episódio seqüencial ao
anterior, pois estariam ligados pela posição geográfica. A fonte de Jacó não é longe de
Enon onde estava o Batista. Mas estão próximos também pela teologia que coloca o
Batista na Samaria para que os samaritanos estejam prontos ao anúncio de Jesus. Como
ocorre depois do diálogo com a samaritana. E, assim como na vocação de Natanael, é
dada uma importância especial ao patriarca José como ancestral dos samaritanos em 4,5.
GALILÉIA
Dos cinco milagres encontrados na camada mais antiga (Doc. C) três foram
realizados na Galiléia: A transformação da águas em vinho nas bodas de Canã, seu
primeiro milagre, a cura do filho do funcionário real em Cafarnaum (acreditava-se que
Jesus teria realizado este milagre à distância) e a pesca milagrosa no lago de Tiberíades.
Este último milagre encontra-se no epílogo do evangelho. Mas a tradição evangélica em
geral conclui que a pesca milagrosa é primitivamente uma manifestação de Jesus como
Messias, ao início de seu ministério, e não uma aparição do Cristo ressuscitado. Sendo
assim, é Lucas que guarda o contexto primitivo deste episódio.
“Ce(tte) troisième (fois) fut manifeste Jésus...” La parenté avec les
formules qui terminent les récits de Cana (2 11a) et de Capharnaüm (4
54a) est indéniable, surtout si l‟on se réfère au texte grec qui a partout
le neutre: “ce premier... ce deuxième.. ce troisième..." Nous sommes
donc en prèsence d‟un troisième «signe» accompli par Jésus durant les
débuts de son ministère, miracle qui, dans la source de Jn (pour nous,
le Document C), suivait plus ou moins immédiatement le «premier» et
le «deuxième», les noces de Cana et la guèrison du fils du
fonctionnaire royal de Capharnaüm. En Jn 21,14 la deuxième partie du
verset aurait été ajoutée lorsque la pêche miraculeuse fut présentée
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
25
come une apparition du Christ ressuscité. (BOISMARD e
LAMOUILLE, 1977, Tome III, pg 21)5.
Este número de milagres pode guardar outra ligação com Moisés, pois conforme Ex 4,1-
9 este também devia fazer três milagres para ser reconhecido pelos Hebreus com o
enviado de Deus. Desta forma os três milagres de Jesus realizados no início de seu
ministério, ainda restrito a Galiléia como nos sinópticos, marcariam o reconhecimento
de Jesus pelos judeus.
No entanto, para ser reconhecido é importante que Jesus se manifeste em
Jerusalém o que aponta como seqüência aos milagres da Galiléia o trecho de Jo 7, 1-10
onde foram misturados dois textos primitivos. Um dos textos primitivos encerraria a
passagem pela Galiléia com os irmãos de Jesus o convidando a subir para Jerusalém a
fim de manifestar suas obras ao mundo, mas Ele diz que “ainda não é seu tempo” e fica.
No outro texto primitivo Jesus começa sua caminhada por Jerusalém subindo para a
festa das Tendas. Como base para tal suposição os autores da sinopse utilizam a
contradição dos versículos 2,23/4,45b/5,1 com 7,3-4 que tratam da fama de Jesus em
Jerusalém.
JERUSALÉM
Esta seria a terceira parte do Doc. C onde Jesus sobe para a festa das Tendas que
é uma festa agrícola, uma comemoração da colheita. Para agradecer a Deus os produtos
5 “Esta foi a terceira manifestação de Jesus...” O parentesco com as fórmulas que terminam as
redações de Canã (2, 11a) e de Cafarnaum (4, 54a) é inegável, sobretudo se nos referimos ao texto grego que tem em todas as manifestações: “este é o primeiro ... este é o segundo ... este é o terceiro...” Estamos, então, em presença de um sinal realizado por Jesus durante o início de seu ministério, milagre que, na fonte de João (para nós, o Documento C), seguia mais ou menos imediatamente o primeiro e o segundo, as núpcias de Canã e cura milagre do filho do funcionário rela de Cafarnaum. Em Jo 21,14 a segunda parte do verso teria sido juntada quando a pesca milagrosa foi apresentada como uma aparição do Cristo ressuscitado. (Tradução minha)
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
26
dos campos. É durante esta festa que Jesus entra em Jerusalém, expulsa os vendilhões
do Templo, os Gregos pedem para ver Jesus e Ele cura um cego de nascença no sábado
(Jo 5,1).
BETÂNIA
A quarta parte do Doc. C se passa em Betânia, próximo de Jerusalém. Neste
local ocorre a ressurreição de Lázaro, a unção de Jesus com perfume, o lava-pés, o
anúncio do seu retorno e, enfim, chega à hora do Filho do Homem.
PAIXÃO E RESSURREIÇÃO
A quinta é ultima parte é composta pela paixão e ressurreição de Jesus. Nele
temos a descrição da prisão de Jesus, a negação de Pedro, o comparecimento diante de
Anás, o comparecimento diante de Pilatos, a morte de Jesus, a retirada do corpo de
Jesus da cruz, a ida das mulheres e de Pedro ao túmulo, aparição a Maria Madalena e a
aparição aos discípulos.
Segundo a sinopse de Boismard e Loumille esta seria a composição mais antiga
do Evangelho de João que serviu de base a redações posteriores. Eles datam-na
aproximadamente no ano 50 e.c. (BOISMARD e LAMOUILLE, 1977, Tome III pg 67),
ou seja, bem distante da data proposta para a redação final em 90 e.c.
*
O que podemos extrair a partir das informações apresentadas nestas sinopses?
Entendemos, primeiramente, que cada uma delas se propõe perspectivas diferentes de
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
27
análises. A primeira se desenvolve a partir da redação final do evangelho interpretando-
a preocupando-se em explicar as fases da comunidade até seu estado final. Por isso tem
caráter explicativo e conclusivo. A segunda apresenta o evangelho em camadas de
maneira que cada uma delas pode representar um momento do desenvolvimento da
comunidade e do ambiente do texto. No entanto, não tem por objetivo estabelecer de
forma conclusiva aspectos inerentes a comunidade. Se de um lado o estudo de Raymond
Brown nos abastece de informações sobre a comunidade de João, por outro em
L’évangile de Jean encontramos um estudo focado em restabelecer a composição
textual do evangelho.
Através destas diferenças pretendemos resguardar nosso estudo de qualquer
parcialidade teológica e relacionar os desenvolvimentos das camadas redacionais ao da
comunidade. Esta seria uma forma de sintetizar as características fundamentais de cada
sinopse, ou seja, de adquirir informações sobre a comunidade joanina através de cada
camada redacional ao invés de simplesmente procurá-las na redação final. Todavia não
abrimos mão de elementos da análise de Brown que podem contribuir para a
investigação. Sendo assim, vejamos o que é possível concluir a partir de destes dados.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
28
1.2.1 Composição e Messianismo.
Composição - Estabelecer a composição da comunidade é o primeiro passo para
compreender específicos aspectos da tradição joanina. A sugestão de Brown em 4
segmentos (os ex-discípulos de João Batista, judeus helenistas, samaritanos e gentios)
confronta-se, em parte, com o texto do Doc. C.
Dentre os 4 segmentos “os ex-discípulos de João Batista” são colocados na
origem da comunidade. Pois, na redação final do Evangelho de João os primeiros
discípulos convocados por Jesus são André, Pedro, Filipe e Natanael. Nesta versão
apenas os dois primeiros são apresentados como seguidores de João Batista, ou seja,
estes seriam os fundadores da comunidade. No entanto, no Doc. C encontramos apenas
a convocação de Filipe e Natanael, pois a vocação de André e Pedro seria um acréscimo
redacional de João II-A que completa o Documento C com parte de Mateus e Marcos.
Por conseguinte, os discípulos que remeteriam a uma tradição mais ortodoxa
devido a sua ligação a certos aspectos da tradição sinóptica não estariam na suposta
origem de Raymond Brown. Lembramos também que somente em João, André e Pedro,
são apresentados com seguidores de João Batista.
A conversão dos samaritanos atribuída aos judeus helenistas, conforme
encontramos em Atos dos Apóstolos e na sinopse de Raymond Brown, não são
encontrados no Doc. C fazendo dos samaritanos os primeiros seguidores de Jesus.
Neste contexto, a tradição sinóptica centrada na Judéia sofre um deslocamento,
pois a tradição joanina (Doc C) coloca suas bases na Samaria que é assumida como
referência principal na composição inicial da comunidade. Por isso, João Batista está na
Samaria e não à beira do Jordão sendo questionado se ele é o Profeta. E na convocação
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
29
dos primeiros apóstolos, segundo Boismard (1977, pg 20 e 51), Jesus é anunciado como
rei de Israel em oposição a Judá, pois ele é descendente do patriarca José filho de Jacó,
ancestral dos samaritanos em oposição à linhagem davídica. José também é citado com
o mesmo valor para identificar a região que Jesus dialoga com a samaritana, ou seja,
perto da região que Jacó havia dado a seu filho José (Jo 4,5b).
É possível que em 90 e.c., no período da redação final do evangelho a
comunidade possuísse uma composição bem mais complexa do que na época do Doc.
C, como descreve Brown, mas precisamos considerar o que representa a colocação da
origem desta tradição no seio da Samaria diferentemente do que é proposto em A
Comunidade do Discípulo Amado. Nesta última encontramos primeiramente André e
Pedro, oriundos da tradição sinóptica, seguidos de judeus helenistas, samaritanos e
gentios; enquanto no Doc C. encontramos os samaritanos na origem seguidos de judeus
helenistas e gentios.
Os grupos presentes na composição são os mesmos, mas a origem da
comunidade recai sobre os samaritanos e suas tradições. Conseqüentemente a conversão
deles não pode mais ser atribuída aos judeus helenistas. Embora neste momento isto não
signifique uma ruptura entre os dois grupos. Enfim, temos uma mesma proposta de
composição nas sinopses apresentadas, mas uma nova origem para a tradição joanina.
Isto confere um novo ideal de liberdade à comunidade modificando as
expectativas Messiânicas. Procuraremos identificar estas modificações analisando os
processos hermenêuticos desenvolvidos nas diferentes camadas dos textos do evangelho
de João.
Messianismo - No evangelho de João são atribuídos a Jesus os seguintes títulos:
Profeta, Messias, Rei, Filho do Homem, Sabedoria de Deus, Palavra de Deus e Filho de
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
30
Deus. Estas nomenclaturas não surgiram ao acaso, pois estavam ligadas ao vasto
contexto de expectativas de libertação do povo judeu. Por isso, a partir delas
buscaremos compreender que tipo de relação pode ser estabelecido entre as expectativas
messiânicas e os termos utilizados no evangelho.
Segundo Donizete Scardelai em Movimentos Messiânicos no Tempo de Jesus
vários paradigmas de libertação judaica se desenvolveram a partir da revolta macabaica
de 165 a.e.c. E para analisar este processo ele delineia três títulos-chaves “como
matrizes sobre os quais os critérios para a condição messiânica serão investigados no
contexto da Terra de Israel em luta por liberdade.” (1998, pg 6), ou seja, o desejo de
restabelecer a independência política e religiosa do povo hebreu teve como uma de suas
conseqüências o desenvolvimento de esperanças messiânicas.
Filho de Davi, Filho de José e um redentor Profeta são os títulos-chaves que
orientaram Scardelai como referência para a compreensão das diversas expectativas
messiânicas no recorte temporal que vai das Guerras Macabaicas até as revoltas de 135
e.c. Para o autor este recorte é muito sugestivo por representar um período repleto de
conturbações sociais, batalhas militares, tentativas de libertação nacional feitas por
movimentos populares.
Os antecedentes conceituais sobre os quais repousam estes títulos-chaves
colocam as origens destes messianismos na hermenêutica bíblica (Tanach) que se
desenvolveu através da literatura apocalíptica judaica do período pós-macabaico e na
ideologia monárquica. Somente após a destruição do segundo templo “os rabinos foram,
contudo muito prudentes e discretos para não valorizar excessivamente os aspectos da
apocalíptica”. (SCARDELAI, 1998, pg 26). A força da ideologia monárquica foi, então,
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
31
alavancada pela literatura apocalíptica gerando crenças na manifestação de um redentor.
Por isso, somente
Depois da destruição do Templo, o judaísmo rabínico tornou-se a
plataforma central do que chamamos judaísmo normativo, garantindo
inclusive a própria sobrevivência da nação judaica na diáspora pelos
séculos afora até tempo presente. Gradualmente, o desenvolvimento
das idéias messiânicas foram adquirindo uma composição mais
consistente e uniforme, sem que com isso seu conteúdo fosse
absolutamente esgotado em normas dogmáticas. (SCARDELAI,1998,
pg 36-37).
Desta forma a tradição rabínica garantia a tradição dos antigos enquanto impedia sua
excessiva fragmentação. Pois para impedir a prática de abusos hermenêuticos e
interpretativos à tradição rabínica propôs que seria preciso “pôr um cerco em torno da
Torah” segundo a Mishna Abôt, 1,1 (apud SCARDELAI, 1998, pg 38). Mas este quadro
só pôde ser estabelecido no pós setenta, pois antes havia uma irrestrita autonomia na
relação do judeu com a Torah.
A análise etimológica do termo Messias contribui para que possamos
compreender como a literatura apocalíptica (pós-bíblica) desenvolveu novos rumos da
salvação escatológica.
Os critérios para determinar as referências messiânicas estão
condicionados aos fundamentos da exegese bíblica que, interpolando
o sentido literal bíblico de “ungido” (messias), pode fornecer uma
literatura alternativa inteiramente nova. Por este processo é que foi
possível extrair do texto bíblico original um sentido que não está
explícito. Embora tenha-se constituído numa doutrina tão relevante,
principalmente para a fé cristã, o termo “ungido” (e por extensão
messias) não significa nome pessoal, e muito menos termo teológico
quando empregado no original hebraico. A designação bíblica de
messias é o hebraico Mashiach (ungido), ou o aramaico Mashicha,
como é comumente usada. Somente mais tarde tornou-se modelo de
esperança judaica através dos textos talmúdicos. O sentido posterior
de “messias” fora então alterado, dado à passagem para a terminologia
grega “Christos”. Inicialmente usado pra descrever a função de todo
aquele “ungido com óleo”, Mashiach tornou-se título honorífico para
se referir àqueles que eram escolhidos. Ademais as quarentas
passagens da Escritura em que aparece o termo “messias”, sem
interpolação do sentido salvador, preservam todo seu sentido original
de “ungido”. Como condição exegética é mister ultrapassar esse
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
32
sentido original da palavra bíblica “mashiach” (ungido) a fim de só
então compreender o amplo horizonte e o alcance das interpolações
sofridas, vinculadas à doutrina posterior do messias. (SCARDELAI,
1998, pg 46)
A partir destes antecedentes conceituais (exegese bíblica + ideologia
monárquica) atrelado ao contexto socio-histórico do recorte temporal pós-macabaico
Scardelai estabelece os três títulos-chaves citados acima enfatizando a perspectiva do
messianismo do Filho de Davi “que no tempo de Jesus definia grande parte das
proclamações messiânicas”. (1998, pg 20). O breve período de independência sob os
Macabeus deu força à idéia do messias filho de Davi que resolveria os problemas de
natureza política trazendo novamente a paz.
Retratou-se um ser humano pertencente ao reino restaurado no „aqui‟
do reino terreno. Além dos mandamentos a que o messias estava
sujeito a obedecer em toda sua integridade, como qualquer filho de
Israel deveria fazê-lo, a maioria do povo e os sábios judeus
acreditavam que o agente de Deus não detinha poderes divinos
exclusivos. O cumprimento da redenção de Israel através de um
agente divino estava, por isso, fortemente ligado à tão sonhada
restauração do reino nacional davídico. (SCARDELAI, 1998, pg 57)
Na obra de Scardelai a ênfase na perspectiva davídica fez com que os demais
títulos-chaves (Filho de José e Profeta) ganhassem um tom coadjuvante nesta
investigação. Pois o Filho de José é apresentado como um predecessor do Filho de Davi
e o Profeta como uma ramificação popular do messianismo judaico o qual teria se
originado na Galiléia. Este último seria marcado pela presença de figuras carismáticas
não vinculadas a linhagem davídica. Desta forma Moisés e Elias foram suas principais
referências.
Contudo, a colocação da base da tradição joanina, conforme visto no tópico
anterior, na Samaria nos conduz a uma nova postura diante dos títulos-chaves
apresentados. Por isso, focaremos no messianismo do Filho de José entendendo que
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
33
existe a possibilidade de uma estreita relação entre este tipo de messianismo e os
samaritanos.
Para tal gostaríamos de reforçar que a compreensão do messianismo do Filho de
José em Scardelai se apóia em processos hermenêuticos desenvolvidos na tradição
rabínica (Talmud, Targum e Midrash) tomando por base Zc 12, 10 (Sukka 52), Ct 4,5,
Ex 40, 11 e Dt 33, 17. Pois na tradição rabínica o Messias Ben José era o antecedente de
Davi o qual realizaria a libertação da dominação romana.
Em contrapartida neste trabalho analisaremos o processo hermenêutico
desenvolvido na tradição cristã joanina entendendo que o messianismo do Filho de José
se respaldou em uma leitura diferenciada da bíblia judaica. Pois os cristãos joaninos se
baseavam em Is 53, 1ss (messias servo sofredor), Dt, Ez, e Dn que os conduziram a
perspectivas diferentes de salvação que procuraremos analisar a seguir.
Segundo Boismard6, nos títulos que encontramos em João (Profeta, Messias,
Rei, Filho do Homem, Sabedoria de Deus, Palavra de Deus e Filho de Deus) também é
possível identificar um desenvolvimento exegético e hermenêutico baseado na
interpretação bíblica. No entanto, enquanto uns já podem ser encontrados desde a
camada mais antiga (Doc. C.) sofrendo adequações ao longo das redações de João II-A,
João II-B e João III; outros embora também interpretem o texto bíblico só podem ser
encontrados nas redações tardias de João II-A e João II-B.
De acordo com o autor, estão presentes na camada mais antiga (Doc. C.) os
títulos: Profeta, Rei e Filho do Homem que vão sofrendo processos hermenêuticos ao
6 Ver M.-É. BOISMARD ET A. LAMOUILLE. 1977. Synopse des quatre évangile Tome III
L’évangile de Jean, pg 48-53
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
34
longo das novas redações. Eles seriam interpretações de Dt 18, 18; Ez 37, 24 e Dn 7,
13-14, respectivamente7.
A interpretação de Dt 18,18 faz de Jesus o Profeta, o novo Moisés. Encontramos
este tipo de exegese no encontro de Filipe e Natanael quando o primeiro diz: “aquele
que Moisés escreveu na Lei” (1,45), quando o Batista recusa este título (1,21) e Jesus
confirma esta qualidade fazendo revelações a Natanael (1,48) e a Samaritana (4,16-18).
Nos três milagres realizados na Galiléia teríamos um paralelo com Ex 4, 1-9 onde
Moisés deveria realizar três sinais a fim de que os Hebreus acreditassem que ele era o
enviado de Deus.
Mas o evangelho não permaneceu em sua camada mais antiga (Doc. C.) ele
seguiu se adequando ao contexto do judaísmo de seu tempo. A redação de João II-A,
ainda na Palestina por volta de 60-65 procura atenuar a característica samaritana do
tema mostrando que o Profeta é também o (Messias) Cristo que esperavam os Judeus
(BOISMARD e LOUMILLE, 1977, tome III, pg 68). E em 7, 40-41a a multidão faz
uma dupla profissão de fé: “Aquele é verdadeiramente o Profeta” e “Aquele é o Cristo”.
João II-A coloca em paralelo a afirmação de André e Filipe: “Nós encontramos o
Messias” (1,41) e “Aquele que Moisés escreveu na Lei” (1,45)
Em João II-B escrito na Ásia Menor, ou seja, fora da Palestina por volta do ano
90 e.c. (BOISMARD e LOUMILLE, 1977, tome III, pg 68) abandona-se este
paralelismo e o título de Profeta dá lugar ao de Cristo. João II-B deixa pensar que a
7 Para facilitação do estudo transcrevo da Bíblia de Jerusalém os trechos citados: 1) Dt 18,18 –
“Vou suscitar para eles um profeta como tu, do meio dos seus irmãos. Colocarei as minhas palavras em sua boca e ele lhes comunicará tudo o que eu lhe ordenar. Messias”. 2) Ez 37,24 - “O meu servo Davi será rei sobre eles, e haverá um só pastor para todos, e andarão de acordo com minhas normas e guardarão os meus estatutos e os praticarão.Rei”. 3) Dn 7, 13-14 – “Eu continuava, nas minhas visões noturnas, quando notei, vindo sobre as nuvens do céu, um como o Filho de Homem. Ele adiantou-se até ao Ancião e foi introduzido á sua presença; A ele foi outorgado o poder, a honra e o reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram. Seu império é império eterno que jamais passará, e seu reino jamais será destruído. Filho do Homem”.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
35
Samaritana esperava a vinda do Messias (4,25.29). E em 10,24 torna uma questão
essencial para os Judeus: saber se Jesus é o Cristo. Nesta redação é possível perceber as
dificuldades do pós 70 enfrentadas pelos judeus cristãos deste período, pois o redator
lembra o decreto de exclusão da Sinagoga colocado contra aqueles que reconhecessem
Jesus como o Cristo (9,22).
A interpretação de Ez 37,24 na camada mais antiga (Jo 1,31; 1, 49 e 12, 13)
buscaria reunificar as regiões da Samaria e da Judéia sob o reinado de Jesus. Um rei
para os dois povos, Judá e Israel (Samaria). No entanto, é possível que o autor do Doc.
C visse a possibilidade da reunificação destes dois reinos inimigos, não em proveito de
Judá e da linhagem davídica, mas de Israel (Samaria). Pois Jesus não é designado como
o filho de Davi (Mc 10,47-48; Mt 15, 22; Lc 1, 27.32), mas como filho de José. Este
José seria o patriarca ancestral que formou o reino de Israel e que os samaritanos
consideravam como o rei de Israel.
Em João II-A o tema é tratado sob uma perspectiva menos samaritana, pois ele
toma o cuidado de indicar que o reino de Jesus “não é deste mundo” (18,36). E João II-
B desenvolve o tema do novo Moisés acentuando a referência a Davi, pois Jo 11, 50-51;
12, 26; 13 36-37 seriam interpretações de 2Sm 17,3; 15, 21; 15, 19ss.
O Filho do Homem encontrado em Dn 7, 13-14 é perseguido e humilhado, pois
ele vai receber a investidura real. E provável que nesta origem a expressão Filho do
Homem não induza a nenhum sentido cristológico posterior, ou seja, somente com o
processo exegético desenvolvido na tradição cristã “um como o Filho do Homem”
vincula-se as perspectivas messiânicas8. Ainda na camada mais antiga Jesus será
8 Alguns comentários contestam a titularidade do termo Filho do Homem no contexto de Dn 7,
13-14. Pois entendem que o uso deste termo como título messiânico e escatológico ocorreu posteriormente. Ver IZIDORO, J. L.; LOPES, M. A recepção da expressão Filho do Homem no Novo testamento: “do Jesus Histórico à expressão Filho do Homem. RJHR., v.2, 2009.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
36
humilhado e elevado a direita de Deus a fim de que possa ser investido da realeza (12,
23; 12 32). Neste caso o Filho do Homem está em estreita ligação com o título de Rei.
Em João II-A o Filho do Homem está ligado a um aspecto da missão de Jesus:
abolir o pecado que é a cegueira dos homens e o desconhecimento de Deus (9, 2-3.34-
37). João II-A conhecia o tema da subida apenas como uma forma de elevação (3, 14).
Notar-se-á que 9,36 e 3 14-16 são os únicos textos do Novo Testamento onde se
demanda crer no Filho do Homem.
João II-B retoma este tema (8, 28; 12, 23 e 13,31), porém ele o fundi com o
segundo. Neste sentido se o Filho do Homem pode subir ao céu é porque ele desceu
dela (3, 13; 6, 62). Em 3, 13, o Filho do homem se identifica com o novo Moisés que
vai procurar no céu a revelação da palavra de Deus.
João-III reinsere no evangelho o tema clássico do Filho do Homem vindo julgar
os homens após sua ressurreição, no fim dos tempos (5, 27-29).
Estes são os títulos que, por meio da análise em camadas, encontramos desde a
mais antiga até a mais recente redação podendo avaliar as adequações sofridas. As
adequações que encontramos vão paulatinamente transferindo a base da tradição da
Samaria para a Judéia. O Profeta vai ganhando as configurações do Messias (Cristo) que
era esperado pelos judeus de Jerusalém. O Rei que unificaria as duas regiões em
proveito de Israel (Samaria) no Doc. C. apresenta oscilações, pois em João II-A seu
reino ganha feitios extraterrenos, transcendentais e em João II-B se acentua a referência
a Davi.
No entanto, o uso do termo Filho do Homem como título é um ponto crucial
para o cristianismo. Ele atravessa todas as camadas e vai dando novos rumos ao
Disponível em: <http://www.revistajesushistorico.ifcs.ufrj.br/arquivos2/jose.luis.isidoro.com.mercedes.lopes.pdf>. Acesso em 09/03/2009.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
37
significado inicial proposto na camada mais antiga (Doc. C) de maneira que a exegese
que encontramos nas camadas seguintes (João II-A, João II-B e João III) dá suporte
àquelas que somente aparecem nas redações posteriores (Filho de Deus, Sabedoria de
Deus e Palavra de Deus).
Enfim, nos títulos acima percebemos um deslocamento na percepção política9 do
messianismo de Jesus. Pois no Doc. C. podemos identificar uma esperança de libertação
nos moldes samaritanos, mas à medida que as novas redações vão sendo elaboradas
podemos notar um afastamento dela. No entanto, este deslocamento não se limita a
representatividade política do ministério de Jesus, pois o processo hermenêutico
desenvolvido pelos seguidores de Jesus atribui novos aspectos ao seu messianismo. A
exegese joanina alavanca o messianismo político de Jesus atribuindo- lhe a
Preexistência.
Em linhas gerais os elementos apresentados neste capítulo nos conduzem a uma
reflexão sobre caracteres fundamentais da tradição joanina. Analisando estes caracteres
questionamos: Por que uma comunidade de composição tão variegada que inicialmente
esperava o retorno do Filho de José romper com esta expectativa e assumir a fé na
Preexistência? Sugerimos que este foi um processo gradual em parte aqui apresentado
através da análise das camadas redacionais de João II-A, João II-B e João III. Mas uma
questão insiste em ser respondida. Por que se estabeleceu a ruptura com a perspectiva
messiânica de cunho político em proveito da idéia da Preexistência?
Entendemos que os três títulos (Sabedoria de Deus. Palavra de Deus e Filho de
Deus) que são encontrados apenas nas redações posteriores de João II-A, João II-B
fazem parte de um gradativo processo de ruptura com o Templo. Esta nova expectativa
9 O termo política aqui alude a representação da missão de Jesus no que se refere ao sistema
monárquico que se queria estabelecer.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
38
messiânica, presente apenas nas redações mais recentes, será então averiguada de
maneira mais minuciosa no próximo capítulo. Pois é necessário avaliar se é sustentável
a relação entre a preexistência e o messianismo do Filho de José como uma expectativa
samaritana que refletiu na tradição joanina.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
39
CAPÍTULO 2
2.1. Os Eleitos Joaninos
Antes de retomarmos as questões acerca da preexistência na tradição joanina
situaremos sua relação com o objeto de nossa pesquisa: Os Eleitos Joaninos. Este é o
título do nosso trabalho que se refere aos membros que abandonaram a comunidade
joanina (1 Jo 2,19)10
no período de composição das cartas11
. Por isso, analisaremos
hipoteticamente a relação deste grupo com seus rivais procurando dar voz ao seu
discurso.
O principal ponto de embate nas lutas internas da comunidade em 1 Jo é a
Cristologia. A partir de sua análise poderemos identificar outros pontos de confronto
entre os grupos que compunham a comunidade.
Não reconhecendo que Jesus veio na carne, eles negam a importância
de Jesus (4, 2-3) (...) não viam nenhuma importância em guardar os
mandamentos e pretendiam estar livres da culpa do pecado (1,6 e 8; 2,
4). Em particular não mostram amor aos irmãos (2,9-11; 3, 10-24; 4,
7-21). (BROWN, R. E., 1999, pg 98)
No entanto, como entendemos que as cartas surgiram no intuito de restringir a
interpretação do evangelho de João12
ofereceremos novas fontes as quais possibilitem
ampliar a perspectiva do universo religiosos dos Eleitos. Pois as cartas não são os
únicos documentos que procuravam dar sentido ao evangelho neste período. Desta
maneira não nos limitaremos a esboçar um perfil dos Eleitos Joaninos apenas através da
10
“Eles saíram do nosso meio, mas não eram dos nossos. Se tivesse sido dos nossos, teriam permanecido conosco. Mas era preciso que se manifestasse que nem todos eram dos nossos.” Bíblia de Jerusalém. 11
Esta composição pode ser datada aproximadamente do ano 100 e.c. para maiores detalhes ver: BROWN, R. E., op. cit. pg 97-150. 12
Ver: VASCONCELOS, P. L. 2002. O caminho é estreito: Idas e vindas na incorporação (de parte) da tradição joanina ao cânon do Novo Testamento. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, nº 42/43, Ed. Vozes, pg 121-144.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
40
perspectiva de seus opositores. Pois explicitar parte da possível perspectiva
interpretativa desse grupo ultrapassa o simples uso do título de Eleitos ao invés de
Anticristos.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
41
2.1.1 Cristologia
Jo 1 Jo
Cristologia 1¹No princípio era o Verbo e o
Verbo estava com Deus e o
Verbo era Deus. ² No principio,
ele estava com Deus.³ Tudo foi
feito por meio dele e sem ele nada
foi feito. 4 o que foi feito nele era
vida, e a vida era luz do homens;
1¹O que era desde o princípio, o
que ouvimos, o que vimos com
nosso olhos, o que
contemplamos, e o que nossas
mãos apalparam do Verbo da
vida. ² - porque a Vida
manifestou-se: nós a vimos e dela
vos damos testemunho e vos
anunciamos esta Vida eterna, que
estava voltada para o Pai e que
nos apareceu - ³ o que vimos e
ouvimos vo-lo anunciamos para
que estejais em comunhão
conosco. Quadro 1: Retirado da Bíblia de Jerusalém.
A primeira impressão das citações dos prólogos acima é de continuidade dos
discursos. Entretanto, se considerarmos os textos mais detalhadamente perceberemos
que o início da Carta mais do que ratificar o evangelho procura assegurar que o Verbo
preexistente foi apreendido por meio do testemunho humano. E esse testemunho selava
uma comunhão entre aqueles “viram” e “ouviram”, de maneira que adquirissem
autoridade em seu anúncio.
Esta preocupação em restringir o discurso e apontar seus legítimos anunciadores
pode ser explicada pelos desdobramentos heterodoxos da fé cristã no segundo século da
era comum. Há algumas hipóteses que procuram vincular os separatistas da comunidade
joanina a esta heterodoxia. Não estamos dizendo que os Eleitos Joaninos são
necessariamente integrantes destas vertentes, mas sabemos que elas tinham o evangelho
de João por referência13
.
13 Ver: Adversus Haereses I, 8,5
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
42
Aceito primeiramente entre os heterodoxos, já na segunda metade do século II, o
evangelho de João tinha familiaridade com muitas obras deuterocanônicas, como: As
Odes de Salomão, Tratado tripartido, O Trovão e o Livro Secreto Segundo João entre
outras. O primeiro comentário conhecido do evangelho segundo João se dá em âmbito
heterodoxo. Trata-se do comentário de Heracleão que fora preservado por Orígenes
quando se viu obrigado a rebatê-lo.
Segundo Heracleão, em João Batista temos o símbolo do Demiurgo,
na descida de Jesus a Cafarnaum (Jo 2,12), a descida do Salvador ao
mundo material, a samaritana (Jo 4) simboliza o elemento espiritual
retido neste mundo (Samaria), mas aberto para acolher o Salvador,
etc. (VASCONCELOS, P., 2002, pg 135).
As divergências que tiveram por base a Cristologia variavam de muitas maneiras
oscilando entre representações gnósticas e docetas. Uns acreditavam que Jesus era um
homem comum, outros que era preexistente ou ainda que fosse Deus, mas não
preexistisse.
Segundo Bentley Layton (LAYTON, 2002:12-13) na vertente gnóstica é
possível identificar uma estrutura básica para o mito de fundação do universo que em
sua versão cristã confere preexistência ao Cristo. O mito gnóstico pode ser estruturado
em um enredo com 4 atos e um subenredo, também em 4 atos:
Enredo:
1º Ato. A expansão de um solitário primeiro princípio (deus) em um
universo não-físico (espiritual) completo.
2º Ato. Criação do universo material, incluindo estrelas, planetas, terras e
inferno.
3º Ato. Criação de Adão, Eva e seus filhos.
4º Ato. História subsequente da raça humana
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
43
Subenredo:
1º Ato. Expansão do poder divino (“o pai da totalidade”) para encher o
universo espiritual.
2º Ato. Roubo e perda de algo desse poder nas mãos de um ser não-espiritual
(“Ialdabaöth”).
3º Ato. Engano do ladrão, levando a transferência do poder para uma parte
da humanidade (“os gnósticos”).
4º Ato. Recuperação gradual, pelo divino, do poder que lhe faltava, à medida
que as almas gnósticas são chamadas por um salvador e retornam a deus.
Quadro 2: Retirado do livro Escritura Gnosticas.
Um dos problemas detectados nesta estrutura para que possamos relacioná-la a
tradição joanina é o fato de a construção do universo ser entendida como uma mal. Pois
embora possamos identificar nesta narrativa o Cristo preexistente de maneira análoga ao
evangelho de João, em contrapartida, a vida no Reino da Matéria é compreendida como
um castigo. Este aspecto está em direta contradição com o prólogo do evangelho de
João e com a tradição do Pentateuco. Mas é possível identificar a influência da
hermenêutica joanina em determinados pontos desta vertente. De que maneira, então,
podemos compreender o vínculo estabelecido entre o gnosticismo e a tradição joanina?
Neste ponto faço um parêntese para discorrer sobre as controvérsias acerca do
gnosticismo, pois elas atravessaram a historiografia do século XX que buscou defini-la.
Esta discussão se fez presente na primeira fase desta pesquisa, ou seja, na monografia de
graduação. Naquele momento entendíamos que a gnose era o elemento central na
percepção da comunidade joanina diante de sua realidade social.
A partir de uma abordagem fenomenológica entendíamos a gnosis de maneira
geral permitindo que este conceito atravessasse diferentes âmbitos da História
(religiosos ou não). Em mais de 50 anos de pesquisas realizados por Henri-Charles
Puech podemos detectar as mudanças de ponto de vista sobre este tema.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
44
Em sua obra En Torno a la Gnosis I temos uma coletânea de artigo que se inicia
nos anos de 1930 possibilitando capturar as contendas acerca deste tema. Os artigos
escolhidos por Puech não procuram dar uma ordem cronológica aos fatos, mas sua
eleição não foi feita ao acaso. Embora tenham sido retirados de uma relação maior eles
oferecem certa unidade. Pois estão ligados por um tema central, a Gnosis. O autor,
afirma que o estudo da gnosis se interessa mais pelo fenômeno que por sua gênese e sua
extensão (1982: 10), o que nem sempre foi assim.
Também afirma que o estudo deveria ser constituído por todos os sistemas
gnósticos aparecidos no tempo, porém, reconhece que de fato o campo de estudo do
sistema gnóstico esteve por muito tempo limitado àqueles que se formaram e
desenvolveram em torno ou próximo do cristianismo. Ligado durante os cinco primeiros
séculos de nossa era ao Ocidente, ao Egito e ao Próximo Oriente Médio (1982: 10).
Entre esses grupos encontraríamos os setianos, ofitas, barbelognósticos que são
os autores dos escritos clássicos gnósticos (entre eles O Livro Secreto de João), os
seguidores da doutrina dos grandes gnósticos (Basílides, Carpócrates, Valentino,
Heracleon e outros), judeu-cristãos e as doutrinas chamadas de pagãs ou não cristãs
como o mandeísmo, e sobre tudo o maniqueísmo.
Os achados de 1930 (Fayoum) e 1945 (Nag Hammadi) no Egito enriqueceram
de dados e de textos desconhecidos os escritos até então conhecidos. Os primeiros
enriqueceram as produções maniqueístas (Homilias, Cartas de Mani e etc) e estes
últimos estiveram intimamente ligados às produções dos valentianianos e, sobre tudo,
dos setianos ou herméticos. Juntaram-se a outros mais antigos encontrados em Turfan
que haviam sido publicados em 1904 e, em 1970, a outro achado, desta vez no Egito,
que relatava a juventude de Mani. Da mesma forma juntou-se o achado de 1945 ao
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
45
Codex Berolinensis 8502, de 1895, que se encontra no Museu Egípcio de Berlim e que
entre outros escritos contém uma das versões do Livro Secreto de João.
Com as novas fontes passou-se a dispor de documentos mais extensos, menos
incoerentes, procedentes dos ambientes que o compuseram ou utilizaram e sem a
mediação de compiladores e censores. Progressivamente o acesso à documentação
possibilitou um estudo mais adequado e com novas perspectivas sobre o gnosticismo.
No entanto, antes da publicação destes achados tratava-se da Gnose
especificamente em seus problemas referentes às fontes, a abordagem, ao método, a sua
origem e extensão. Apresentavam com freqüência o gnosticismo como uma seita
originariamente cristã, de dentro da Igreja, que começava a manchar a morte dos
Apóstolos nos tempo de Trajano ou de Adriano, que tinha origem na influência do que
chamavam heresias judias ou, de forma geral, seitas judias, batistas, judeucristãs
espalhadas pela Transjordânia ou regiões baixas do país babilônico: essênios, galileus,
samaritanos (1982: 195-196). E procuravam remontar a origem de todo gnosticismo até
Simão, o Mago, mas esta remontagem apresentou-se artificial.
Devido a falhas no encadeamento desta remontagem e por ser um conjunto de
testemunhos indiretos produzidos pelos heresiólogos (Irineu de Lião, por exemplo) o
primeiro passo dado foi apontar um novo tipo de relação com as fontes existentes, já
que ainda não se tinha acesso às informações dos novos achados. Procuraram definir a
gnose sem que o conceito carregasse consigo o elevado grau de parcialidade até então
encontrado nos documentos existentes. Pois as definições sobre o gnosticismo que
foram construídas a partir do material produzido pelos heresiólogos acabavam por
resolver o problema de forma simplista: ou o cristianismo gnóstico era uma
secularização levada até seu mais alto grau, ou seja, uma helenização radical e
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
46
prematura do cristianismo, com rechaço do Antigo testamento (Aldolf Harnack14
), ou a
Gnosis era uma regressão à suas origens orientais, uma reorientalização igualmente
extrema do cristianismo (Hans Lietzmann15
). Enquanto a primeira era tida como um
progresso a outra era vista como uma regressão, pois a influência do helenismo significa
a presença de uma elevada filosofia e o Oriente significava o retorno a religião.
Mas pouco depois de Harnack apresentar este ponto de vista como sua definição
de Gnosis, ou seja, como “helenização do cristianismo”, novas investigações se
sobrepuseram a sua fórmula até reduzi-la a nada. Em oposição ao gnosticismo de
essência filosófica se propôs um gnosticismo como movimento religioso, mitológico em
que as grandes personalidades do gnosticismo, ou seja, os grandes teólogos do século II,
não representaram outra coisa que emergências tardias de nomes que deviam maior
parte de sua substância a Gnosis coletiva que lhes precedeu (1982: 207). Além de
buscar a origem de seus mitos e ritos no Oriente e de alegar que havia recebido apenas
uma tinta superficial de helenismo e cristianismo, chegou-se a negar qualquer relação
profunda entre cristianismo e gnosticismo (1982: 208).
O que provocou esta inversão ao que representava a fórmula de Harnack foi a
aplicação dos métodos comparativos de Wilhelm Anz, Richard Reitzenstein e Wilhelm
Bousset16
que recolocou o gnosticismo em seu meio histórico, ao aproximá-lo de novos
métodos e relacioná-lo com outras zonas de saber e estabelecer sua dependência a
respeito de outros países, o que proporcionou uma “generalização” do problema da
Gnosis a ponto de ampliar sua concepção e fazê-la deixar de ser um problema interior e
próprio da história da Igreja e converte-la em um fenômeno da história geral das
religiões (1982: 213).
14
Ver Adolf Harnack in PUECH, 1982: 191-192. 15
Ver Hans Lietzmann in PUECH, 1982: 192. 16
Ver Anz, Reitzenstein e Bousset in PUECH, 1982: 212.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
47
A partir de então se pretendeu aplicar o termo gnosticismo a todo movimento
que fizesse uso da gnose, mesmo que nada tenham a ver com o cristianismo. Pois
através de investigações puramente filológicas sobre a palavra gnosis foi possível
buscar a essência da atitude subjacente a este termo e compreender melhor suas
características. O sistema comparativo de Anz, Reitzenstein e Bousset é um meio termo
a caminho da abordagem fenomenológica.
Após retirar a Gnosis do seio da história da Igreja e fornecer-lhe uma amplitude
geral que lhe deu anterioridade e origem exterior ao cristianismo coube então verificar
como se estabeleceu o contato com o Ocidente e como se fundiu com o cristianismo.
Apesar da divergência inicial que dividiu opiniões entre uma origem egípcia e outra
babilônica algumas importantes evidências apontaram uma origem babilônica e logo
Ásia Menor e Síria (1982: 219-222). Mas ainda restaram questões relativas a um
segundo grupo de elementos dentro do sistema gnóstico que apresentavam uma capa
judia superposta à capa “pagã”.
Esta capa judia nasceu de um posterior contato da gnosis “pagã” com o
cristianismo e do desejo de romper com o Antigo Testamento? À diáspora judia da
Babilônia deve ser creditado um gnosticismo judeu anterior a gnosis judeu-cristã e
cristã e cujos começos vieram a coincidir de fato com a helenização do judaísmo na
Diáspora que proporcionou íntima relação com a cultura persa, a de Alexandria, com o
sincretismo helenístico já formado em território egípcio, do judaísmo de Ásia Menor e
ainda da Palestina (1982: 223-224). Sendo o contato com o cristianismo tardio e
superficial.
Algumas dessas questões levantadas já são claras e não são mais temas para
longos debates ou conferências. Não é mais possível seguir a opinião de Harnarck e
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
48
mesmo a vinculação entre a gnosis e o sincretismo do Iran, da Ásia menor ou Síria,
embora verossímil, aguarda confirmação e uma demonstração mais rigorosa.
A comprovação da influência do Oriente na filosofia Grega, apesar de encontrar
em alguns teóricos uma opinião contrária e mesmo não tendo documentos que
comprovassem tal relação entre o Oriente e o Mediterrâneo foi buscada apresentando
fatores e agentes de transferência e de influência que pudessem ser detectados. Ed.
Bevan e J. Bidez17
apontam a importância do iranismo, do papel representado pela
astrologia, da ação exercida pelos semitas que tiveram uma importância capital sobre a
formação e o desenvolvimento do estoicismo e que restabeleceram, na maioria dos
casos, o enlace entre a filosofia grega e as teologias orientais (1982: 60).
Em busca de apresentar, ou mesmo, detectar esses fatores e agentes, Puech,
volta-se para um caso concreto e propõe especificamente o estudo de Numenio de
Apamea, um filósofo da segunda metade do século II. Procura então apresentar o grau
de influência exercida por ele sobre o neoplatonismo e como entrelaçou teologias
orientais ao pensamento grego.
A influência do pensamento oriental sobre ele nos é dada através do primeiro
livro Péri tagathou (Do Bem) que contém um programa definido de sincretismo em que
extrai provas de Platão, vincula declarações dos ensinamentos de Pitágoras e junto a
isso temos testemunho dos mistérios, as doutrinas e as concepções de Brâmanes, os
Judeus, os Magos e os Egípcios conciliáveis com o platonismo (1982: 62). É sobre este
tipo de declaração que, Puech, procurar debruçar-se para:
1. Identificar o que impulsionou Numenio a realizar tal mescla,
2. Como estas doutrinas puderam atuar sobre seu sistema e
17
Ver Edwyb Bevan e J. Bidez in PUECH, 1982: 60.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
49
3. Quais são as teorias que oferecem a marca do Oriente e como as
teologias das nações célebres aparecem em sua obra.
Por meio destes questionamentos pretende assim estabelecer quais influências
atuaram diretamente sobre ele através de um intermediário definido.
São nestas doutrinas orientais que se encontravam o dualismo Bem e Mal que
em diferentes vertentes apresentam o Principio Primeiro e Demiurgo em funções
destacadas onde o primeiro teria uma função mais depurada e o segundo uma função
inferior como a criação e a preexistência, por exemplo. Mas se Numenio é um judeu ou
ao menos um simpatizante do judaísmo, como explicar tal postura? Seu Deus é como o
Demiurgo e, no entanto, representa o Bem? No caso especifico de Numenio o
conhecimento do judaísmo deve ser pensado sob a forma helenizada.
Tudo isto contrasta com o monismo ao qual o estoicismo havia acostumado o
pensamento grego, pois de uma visão otimista no qual Deus seria o criador e gestor de
tudo, onde se poderia alcançá-lo através deste próprio mundo passa-se a uma visão
pessimista de constante luta contra o mundo, aspirando um contato acima dele que
conduziria a paz e a libertação. Este tipo de gnosis era o que representava para Numenio
a antiga verdade das nações famosas que ele relaciona a Pitágoras e a Platão em sua
inspirada interpretação das filosofias tradicionais.
A partir dos estudos comparativos de Anz, Bousset e Reitzenstein, dos
descobertos de Nag Hammadi, do advento dos anos 50 e da adoção de uma nova
abordagem metodológica (fenomenológica) renovou-se o olhar sobre o fenômeno da
gnosis revigorando a pesquisa do gnosticismo.
Este tipo de abordagem acabou por reunir em um bloco relativamente compacto,
diversos sistemas de características teológicos e esotéricos: nascidos no centro ou a
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
50
margem do Islam, nas religiões do Extremo Oriente ou próprios da Europa moderna.
Entre eles podemos citar os gnosticismos cristãos, as gnoses pagãs, maniqueísmo, as
ciências ocultas (a magia, a astrologia, a alquimia) e a Cabala como corrente pré-
gnóstica ou gnostizante do judaísmo (1982: 236).
Mas os adeptos a diversidade logo apresentariam suas objeções à unidade do
gnosticismo, pois acreditavam que seus laços de relação estavam ligados apenas por
vago ar de familiaridade, pela participação no espírito de uma mesma época ou por
relações que o historiador pudera estabelecer. Algo, além disso, tornaria a gnosis uma
abstração que merecia ser exorcizada. Inclusive por que até aquele momento estudá-la
era sinônimo de pesquisar um grupo restringido e definido de sectários. Então por que
ampliá-los?
Diante do impasse entre a diversidade e a unidade no enfoque da abordagem do
gnosticismo não faltou quem procurasse a justa medida. E uma iniludível necessidade
que se identifica com o progresso da investigação científica pouco a pouco conduziu a
generalização do emprego do termo gnosis (1982: 237). E o aparecimento sucessivo de
sistemas religiosos ou teológicos de caráter gnóstico cada vez em maior número acabou
por provocar a renovação da noção de gnosis.
Na prática isto representou uma revisão das concepções produzidas pelos antigos
heresiólogos, dos autores da época patrística, dos orientalistas e dos representantes da
transição ao método fenomenológico: Anz, Bousset e Reitzenstein. Pois as revelações
dos gnosticismos não cristãos tornaram inevitável à palavra gnosis que fosse ampliada e
pensada como uma corrente de idéias e sentimentos que são anteriores ao cristianismo.
Se antes estava restringida e associada a uma heresia de origem cristã agora se revestia
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
51
da forma cristã da mesma forma que se revestiu de formas pagãs, das mitologias
orientais, do culto dos mistérios, da filosofia grega, das ciências e artes ocultas.
Resumidamente esta nova abordagem representou pensar o gnosticismo como
um fenômeno o qual se analisa as diferentes partes, distingui-se os temas essenciais e
desprendem-se implicações mútuas e relações com o conjunto do fenômeno. Por isso
não presta tanta atenção aos por menores das doutrinas, dos ritos ou dos mitos, quanto a
experiência e aos processos espirituais subjacentes a armadura de idéias, imagens e
símbolos mediante os quais aqueles se traduzem e se elaboram de maneira mais ou
menos imediata. Pois neste sentido a gnose é pensada como um “estilo de vida” e não
como uma concepção abstrata, sob o aspecto de um sistema especulativo ou puramente
mítico (1982: 239).
Rudolf Bultmann, (Gnosis, de 1952) somou pesquisa filológica e epistemológica
à abordagem da fenomenologia realizando assim um dos mais importantes trabalhos
sobre o gnosticismo a partir de uma perspectiva geral. Nesta obra o autor trata como os
diferentes grupos18
concebiam o exercício da gnosis, ou seja, o ato de conhecer19
. Este
exercício é analisado através das produções da literatura grega, do Antigo Testamento,
da versão grega do Antigo Testamento, da Lei judaica e do Novo Testamento nos quais
suas concepções do que deveria ser este exercício conduziu ao estabelecimento de
variadas relações entre o homem e Deus de forma que em cada grupo destacavam-se os
atributos considerados mais importantes para efetivação do “ato de conhecer”.
Em linhas gerais estes são os métodos, os aspectos e as características que
fomentaram acaloradas discussões acerca do gnosticismo na historiografia do século
18
Sua pesquisa analisa como a gnosis, entendida como o ato de conhecer, proporcionou a judeus, a gregos e aos cristãos diferentes percepções de sua interatividade com Deus. 19
Em seu livro Bultmann trabalha com o conceito de gnosis como o ato de conceber a realidade a partir das diferentes concepções no interior dos grupos citados.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
52
XX. A amplitude geral dada a gnosis pela abordagem fenomenológica no último
período desta historiografia aguçou-nos a optar por ela como base teórica no início desta
pesquisa (monografia). Todavia os novos dados incorporados a pesquisa bem como uma
nova perspectiva teórica nos dirigem a uma ruptura com aquela visão.
O gnosticismo tido anteriormente como elemento central da pesquisa e como elo
de continuidade entre os múltiplos ambientes aos quais se propunha existir, atualmente,
é visto como um dos aspectos que podem ter contribuído na descontinuidade da relação
de poder da estrutura estabelecida no judaísmo. É bem verdade que a anterioridade e a
exterioridade do gnosticismo ante ao cristianismo continuarão a fazer parte de nosso
enfoque, mas procuraremos associar este aspecto ao demais dados coletados neste
momento da pesquisa.
Percebemos então que o vínculo entre o gnosticismo e a tradição joanina deve
ser compreendido como uma possibilidade em outras (messianismos, possibilidades de
preexistência, intensas interações culturais, dominação política e etc) que se imbricam
nesse universo cultural. Sendo assim, retornemos ao nosso debate cristológico e
encerremos este parêntese.
Esses elementos (gnosticismo, docetismo, montanismo, messianismo e etc)
uniram-se de maneira que hoje dificilmente podemos distingui-los, porém podemos
avaliar as repercussões que as divergentes cristologias estabeleceram no campo da
hermenêutica e que acabaram por ramificar-se em outras áreas.
Esses tipos de movimento heterodoxo que se associavam a tradição do discípulo
amado representavam um risco político à incipiente estrutura eclesiástica cristã, pois
ameaçava a autoridade do anúncio daquelas testemunhas que se consideram legítimas
portadoras da boa nova. Como no caso de Tertuliano que se converteu ao montanismo:
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
53
Propriamente e principalmente, a igreja em si é espírito, no qual há a
trindade de uma divindade: Pai, Filho e Espírito Santo. A igreja se
congrega conforme os planos do Senhor – uma igreja espiritual para
pessoas espirituais – não a igreja de alguns poucos bispos. De
puditicia (apud VASCONCELOS, P., 2002, pg 136).
Alguns trechos do Livro Secreto Segundo João (LSSJ) que é uma versão cristã
do mito gnóstico clássico podem ajudar a exemplificar estes embates. O Livro Secreto
foi encontrado nas escavações arqueológicas de Nag Hammadi em 1945 em língua
copta, mas é cópia do original grego. Os trechos aqui apresentados em português foram
copiados do livro Escrituras Gnósticas de Bentley Layton.
O LIVRO SECRETO SEGUNDO JOÃO
PERFEIÇÃO
A RAÇA INALTERAVEL
LSSJ 25,16 – 26,1.
E eu de minha parte, disse ao Salvador: Senhor, todas as almas serão
salvas e irão para a luz incontaminada? Ele respondeu e me disse: As
questões que surgiram em sua mente são importantes: de fato, é difícil
revelá-los a qualquer um, mas só aos que pertencem a raça inalterável,
sobre a qual o espírito de vida descerá e habitará com poder. Eles
alcançarão a salvação e se tornarão perfeitos. E eles se tornarão dignos
de grandezas. E lá eles serão purificados de toda imperfeição e das
angústias da maldade; estando ansioso por nada, exceto apenas pela
incorruptibilidade; meditando sobre isso, daí em diante, sem raiva,
inveja, má vontade, desejo ou insaciabilidade quanto à totalidade;
reprimidas por nada senão pela subsistente entidade da carne, que
vestem, aguardando o tempo em que serão visitados pelos seres que
levam embora.
INCULPABILIDADE
DOS PECADOS
DESTINO
LSSJ 28,6 – 28,31
Quando o primeiro governante soube que eles eram muitos superiores
a ele e que pensavam mais do que ele, tentou impedir sua reflexão; e
não compreendeu que eles lhe eram superiores em pensamento e que
ele não podia apoderar-se deles. Em companhia de suas autoridades,
isto é, de seus poderes, fez um plano. E, cada um por sua vez,
fornicaram com a sabedoria; e por eles, destino foi gerado como
amargura (?): este é o último e diverso cativeiro, que é de diversos
tipos, porque eles (as autoridades) diferem um do outro. E é difícil e
atormenta aquele ser com quem as deidades, anjos, demônios, e todas
as raças têm se associado até o presente dia. Pois de dentro desse
destino se manifestaram todas as impiedades, ações violentas,
blasfêmias e o cativeiro do esquecimento; falta de conhecimento; e
todos os preceitos opressivos, pecados opressivos e grandes medos. E
assim eles cegaram toda a criação, de modo que a deidade acima de
todos não pudesse ser reconhecida. E por causa do cativeiro do
esquecimento, seus pecados se tornaram ocultos (para eles); pois
foram atados com medidas, tempos e eras, desde que ele exerceu o
domínio sobre tudo.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
54
INFIDELIDADE
AS
LEIS
CRIAÇÃO DE EVA
LSSJ 22,21 – 23/ 22,32 – 23,1
E eu disse ao salvador: O que significa “sono profundo”? E ele disse:
Não é o que você ouviu que Moises escreveu: pois em seu Primeiro
Livro (i.e., Gênesis) ele disse que ele o mandou deitar-se; não, isso
significa antes, em suas percepções. (...) E ele (o governante) extraiu
dele uma porção de seu poder e realizou outro ato de modelagem na
forma de uma fêmea, segundo a imagem do pensamento posterior que
lhe fora revelado. E para a forma modelada de feminilidade ele trouxe
a porção que tirara do poder do ser humano – não “sua costela”, como
disse Moisés. Quadro 3: Retirado do livro Escritura Gnóstica.
Os fragmentos apresentados no quadro 3 fazem parte de uma versão alternativa
ao que foi proposto em 1 Jo. Hoje podemos afirmar que seu discurso não era
marginalizado e nem mesmo novo. Onde a carta questiona a pretensa perfeição dos
Anticristos, temos em oposição no LSSJ um grupo de eleitos denominados de raça
inalterável que conhecem o espírito de vida o qual lhes concede a perfeição ainda na
carne. E o Destino no LSSJ é o responsável pelo esquecimento da origem dos homens e,
conseqüentemente, não podem ser responsabilizados por seus pecados. Por fim, a
infidelidade as leis podem ser explicadas pela ruptura com tradição mosaica. Esta
infidelidade vemos expressa no último tópico do quadro 3 onde a narrativa da criação da
mulher é reinterpretada de forma que a versão atribuída a Moisés não contemple o ponto
de vista correto.
Por isso, entre os ortodoxos é difícil encontrar provas da utilização clara do
evangelho no segundo século da era comum.
Os autores que contribuem para o estabelecimento da futura
“ortodoxia” não o citam, evitam-no, embora recorra a 1 Jo. De acordo
com Eusébio de Cesaréia que viveu no século IV e é autor da
fundamental História eclesiástica, Papias de Hieropólis (em torno de
130) cita 1 Jo, mas não o evangelho: depois de tratar de Marcos e
Mateus, o historiador afirma: O próprio Papias usa os testemunhos
extraídos da primeira carta de João e da primeira carta de Pedro”. O
mesmo acontece com Policarpo (morto em 135), ainda mais
surpreendente pelo fato.de a tradição apresentá-lo como discípulo de
João (Tertuliano, Eusébio citando Irineu): (VASCONCELOS, P.,
2002, pg 137).
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
55
Além de não ser encontrado nos textos da patrística do segundo século outro
agravante para o evangelho de João seria atribuição de sua autoria a Cerinto 20
. Gaio um
presbítero de Roma é contra o livro do Apocalipse e contra o evangelho atribuindo-o a
este doceta.
Insisto em dizer que não estamos concluindo que os Eleitos Joaninos
correspondam a quaisquer destas vertentes. Mas como opositores de 1 Jo, eles têm em
comum com estas vertentes as disputas políticas e possivelmente algumas bases
hermenêuticas. Por isso trouxemos estas possibilidades interpretativas a fim de
compreendê-los como Eleitos e não como Anticristos. Sugerir ao menos uma
procedência semelhante para o universo cultural religioso destas heterodoxias significa
a possibilidade de contextualizar seu discurso.
20
Ver: BROWN, R., op. cit., pg 155.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
56
2.1.2 Outros embates
A partir da Cristologia outros embates acerca, por exemplo, da Ética e da
Escatologia se estabeleceram21
. Vejamos as comparações entre os três textos:
Evangelho de João Livro Secreto Segundo João Cartas Joaninas
É
t
i
c
a
Quem nele crê não é condenado,
mas quem não crê já está
condenado; porque não crê nome
do Filho único de Deus (Jo 3:
18). Em verdade, verdade vos
digo: quem ouve a minha
palavra e crê naquele que me
enviou tem a vida eterna e não
incorre na condenação, mas
passou da morte para a vida (Jo
5: 24). Se eu não viesse e não
lhes tivesse falado, não teriam
pecado; mas agora não há
desculpa par o seu pecado (Jo
15: 22). “Dou-vos um
mandamento novo: Amai-vos
uns aos outros. Como e vos
tenho amado, assim também vós
deveis amar-vos uns aos outros.
Nisto todos conhecerão que sois
meus discípulos, se vos amardes
uns aos outros.” “Se me amais
guardareis meus mandamentos.”
“Aquele que tem os meus
mandamentos e os guarda, esse é
que me ama. E aquele que me
ama será amado por meu pai, e
eu o amarei e manifestar-me-ei a
ele.” “Este é o meu
mandamento: amai-vos uns aos
outros com eu vos amo.”(Jo 13:
34-35; 14: 15 e 21; 15: 12).
E os que estão encarregados
da percepção são
Arkhendekta; e o que está
encarregado da recepção,
Deitharbathas; de reflexão.
Oummaa, de [harmonia
(com informação refletida)],
Askhiaram; de todos os
impulsos para agir,
Riaramnakhö. (17: 34; 18:
1). Agora, depois que Adão
conhecera a imagem de seu
próprio conhecimento
prévio, ele gerou a imagem
do filho do ser humano, e o
chamou Set, segundo a raça
nos reinos eternos (24:34;
25: 1).*
Se dissermos que não temos
pecado, enganamo-nos a nós
mesmos e a verdade não está
em nós. Se reconhecemos os
nossos pecados, (Deus aí está)
fiel e justo para nos perdoar os
pecados e para nos purificar de
toda iniqüidade. Se pensamos
não ter pecado, nos o
declaramos mentirosos e a sua
palavra não está em nós(1 Jo 1:
8-10). Aquele que diz conhecê-
lo e não guarda seus
mandamentos é mentiroso e a
verdade não está nele. Aquele,
porém, que guarda a sua
palavra, nele o amor de Deus é
verdadeiramente perfeito. É
assim que conhecemos se
estamos nele: aquele que afirma
permanecer nele deve também
vier como ele viveu (1 Jo 2:4-
6). Se alguém disser: “Amo a
Deus”, mas odeia seu irmão, é
mentiroso. Porque aquele que
não ama seu irmão, a quem vê,
é incapaz de amar a Deus, a
quem não vê. Temos de Deus
este mandamento: o que amar a
Deus, ame também a seu irmão
(1 Jo 4: 21).
Quadro 4: comparativo 1
21
BROWN, R. E., op. cit., 129-150.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
57
Evangelho de João Livro Secreto Segundo João Cartas Joaninas
E
s
c
a
t
o
l
o
g
i
a
Quem nele crê não é
condenado, mas quem não
crê já está condenado;
porque não crê nome do
Filho único de Deus (Jo 3:
18). Em verdade, verdade
vos digo: quem ouve a
minha palavra e crê naquele
que me enviou tem a vida
eterna e não incorre na
condenação, mas passou da
morte para a vida (Jo 5: 24).
Quem come a minha carne e
bebe o meu sangue tem a
vida eterna; e eu o
ressuscitarei no último dia(6:
54). Falou-lhe outra vez
Jesus: “Eu sou a luz do
mundo; aquele que me segue
não andará nas trevas, mas
terá a luz da vida”(8: 12).
Eles alcançarão a salvação e se
tornarão perfeitos. E eles se
tornarão digno de grandeza. E lá
eles serão purificados de toda
imperfeição e das angustias da
maldade; estando ansiosos por
nada, exceto apenas pela
incorruptibilidade; meditando
sobre iss, daí em diante, sem
raiva, inveja, má vontade,
desejo, ou insaciabilidade
quanto a totalidade; reprimidos
por nada senão pela subsistente
entidade da carne, que vestem,
aguardando o tempo em que
serão visitados pelos seres que
levam embora (25: 25-35; 26:
1). De minha parte, eu lhe contei
todas as coisas, de modo que
você pudesse escrevê-las e
transmiti-las secretamente
àqueles que são como você em
espírito. Pois esse é o mistério
da raça inalterável (31: 28-31).
“Se, porém, andamos na luz
como ele mesmo está na luz,
temos comunhão recíproca uns
com os outros, e o sangue de
Jesus Cristo, seu filho, nos
purifica de todo pecado”.
“Aquele, porém, que guarda a
sua palavra, nele o amor de
Deus é verdadeiramente
perfeito. É assim que
conhecemos se estamos nele:”
“Quem ama seu irmão
permanece na luz e não se
expõe a tropeçar”. “E agora,
filhinhos, permanecei nele, para
que, quando aparecer tenhamos
confiança e não sejamos
confundidos por ele, na sua
vinda”. “Caríssimos, desde
agora somos filhos de Deus,
mas não se manifestou ainda o
que havemos de ser. Sabemos
que, quando isto se manifestar,
seremos semelhantes a Deus,
porquanto o veremos com ele
é”. “Nisto é perfeito o amor:
que tenhamos confiança no dia
do julgamento, pois, como ele
é, assim também nós o somos
neste mundo”(1 Jo 1: 7; 2: 5; 2:
10 e 28; 3:2; 4: 17). Quadro 5: comparativo 2.
O desafio de resgatar a relação estabelecida entre Deus e os homens e
compreender que tipo de relação pôde se constituir na comunidade é uma tarefa árdua e
complexa. Há muitas contestações teóricas, lacunas nas documentações e diversas
possibilidades para desenvolver a pesquisa. E mesmo a metodologia apresenta-se, por
vezes limitada, mas isto não a impossibilita a pesquisa, no entanto, dificulta uma maior
precisão na análise dos dados obtidos.
Com concepções cristológicas tão diferenciadas seria inevitável que a conduta
cristã também terminasse por divergir e se tornasse alvo do presbítero (autor da carta)
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
58
que os acusa de não guardar os mandamentos, de não amar ao próximo e de
apresentarem-se como perfeitos, devido sua intimidade com Deus (quadro 4 - Ética).
A comunidade joanina rompe com a tradição do Templo e, conseqüentemente,
com esta sua postura ética que requer o cumprimento fiel da Lei. Sua nova verdade será
a “verdade de Jesus”. Mas o que significa isto?
O quarto evangelho é muito deficiente em ensino moral preciso,
comparado com os evangelhos sinópticos. Mateus sabe reunir os
ensinamentos éticos de Jesus no Sermão da Montanha, formulando
assim o código escatológico do Messias. Em João, porém, não se acha
tal coleção. Em Mt 7, 16 enfatiza-se o critério do comportamento:
“Pelos frutos os conhecereis”; em Jo 5, 15 esta linguagem de produzir
frutos é transformada em adesão a Jesus: “Aquele que permanece em
mim e eu nele produz muito fruto”. [...] Não se menciona em João
nenhum pecado específico de conduta, somente o grande pecado que é
recusar-se a crer em Jesus (8,24; 9,41). Especialmente interessante, se
refletimos em suas implicações, é a afirmação do Jesus joanino sobre
o mundo (15,22): “Se eu não tivesse vindo e não lhe tivesse falado,
não seriam culpados de pecado”. (Brown, 1999: 135-136).
A “verdade de Jesus” se apresenta no evangelho como algo que ainda está
ganhando forma, ajustando-se a realidade da composição especial da comunidade que
naquele momento procurava adequar suas diferenças enquanto abandonava,
gradativamente, parte da tradição judaica que se ligava ao Templo. Provavelmente por
isso o “ensino moral” referido logo acima é identificado como deficiente, mas por trás
desta deficiência pode estar a dificuldade em sintetizar as distintas concepções éticas
dos grupos que estavam na origem da comunidade joanina.
Quando este ajuste e esta adequação não foram mais possíveis a separação
tornou-se inevitável e a partir daí é bem provável que o novo caminho assumido pelos
“separatistas” seja aquele que encontramos no Livro Secreto. Por exemplo, o
desenvolvimento de uma nova concepção da criação do ser humano (descendentes do
Adão “animado”) poderia restabelecer o caminho ético que até então estava indefinido.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
59
Sendo assim o trecho retirado do Livro Secreto Segundo João e transcrito no quadro 4 –
Ética permitiria uma conexão entre as críticas do presbítero e o entendimento dos
seguidores do Livro Secreto sobre uma teoria ética.
O primeiro trecho transcrito para o quadro 4 – Ética descreve o final da
formação do “Adão animado”, portanto ainda sem corpo material, que após ter sido
completamente constituído pelo “elemento animando” ganha como uma espécie de
acabamento formado por elementos da ética estóica. Este Adão ao receber o poder de
Ialtabaöth (criador do Reino da Matéria) constitui-se em um ser perfeito com sabedoria,
percepção e sem corpo material. A ética está presente na essência do homem desde sua
criação e somente o “sono profundo” pode afastá-lo da conduta correta. Aquele que
conhece, ou seja, que está desperto para a verdade não permanece no erro.
No caso de Set ocorre algo bem parecido, pois ele é a origem da raça perfeita e
foi concebido no moldes dos “reinos eternos”. A estas declarações do Livro Secreto
somam-se as contestações à tradição de Moisés como visto no último item do quadro 3.
Abordo ainda uma derradeira objeção que é tratada no quadro 5 – Escatologia. O
autor da carta manifesta-se contra a crença na perfeição ainda neste mundo e na
salvação como algo já conquistado (Escatologia realizada). Em muitos trechos da
primeira carta o presbítero enfatiza que existem condições para a conquista da salvação
e da perfeição e se estas não forem atendidas os fiéis podem ser surpreendidos pela
vinda do Senhor.
No entanto, os gnósticos não esperam esta vinda, como também não se
submetiam a esses critérios e isto significava que os meio pelos quais se processassem a
salvação seriam diferentes daqueles propostos pelo autor de 1 Jo. Pois aqueles que
fossem salvos já estavam escolhidos através de um processo natural onde os
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
60
selecionados retornariam ao Pai da Totalidade porque de lá eles saíram. E verdade que
nem todos alcançariam a perfeição nesta vida material, mas se o espírito de vida
estivesse neles, eles seriam salvos por que fariam parte da raça “inalterável”.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
61
2.2. Preexistência na tradição joanina
Como acabamos de ver os embates acerca da compreensão da preexistência
estabelecidos no seio da comunidade joanina se desdobraram em movimentos religiosos
distintos. Para tentar entender o processo que desencadeou na crença da preexistência de
Jesus na tradição joanina é preciso ter claro que o estudo do cristianismo não pode ser
desvinculado do intricado ambiente do judaísmo do final do “período do segundo
templo” (516 a.e.c. – 70).
Por isso, não podemos limitar nosso estudo ao que podemos encontrar nos
escritos neotestamentários se queremos inserir “o desenvolvimento do pensamento
cristão original no quadro mais amplo do judaísmo do segundo templo. Dimensionando,
portanto, sua real inserção histórica.” (LEITE, 2009, pg 9).
Parte deste ambiente do judaísmo foi relatada neste trabalho quando expusemos
às diferentes perspectivas messiânicas do judaísmo através da teoria de Scardelai22
.
Agora retomaremos os pontos constituídos no primeiro capítulo deste trabalho a fim de
compreender como a peculiaridade da preexistência na tradição joanina está relacionada
à possível origem samaritana da comunidade, ao gnosticismo e a crença no messianismo
do Filho de José23. A possibilidade de estabelecer esta relação amplia o horizonte do
judaísmo do segundo Templo e da compreensão dos desdobramentos da tradição
joanina no período de sua ruptura.
Buscaremos apresentar a relação do Messias Ben José com o Taheb samaritano e
para tal citamos três premissas que servem de base doutrinal para a expectativa do Filho
de José:
22
SCARDELAI, D. op. cit., pg 20-25. 23
Existe uma proposta na qual os samaritanos, direta ou indiretamente, transmitiram a ideologia do Filho de José segundo J. A. Montgomery (apud, SCARDELAI, 1998, pg 67, nota 4).
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
62
A primeira, que procurou identificar o filho de José com a missão de
redimir Israel e resgatá-la do exílio, reunindo assim as tribos na terra
prometida. A segunda, reivindicadora de que esse tipo de ideal
messiânico teve sua gênese no norte de Israel, Galiléia, centro das
atividades dos líderes revoltosos, os zelotas. A terceira, ainda, que
propõe que foram os samaritanos aqueles que, direta ou indiretamente,
transmitiram os fundamentos ideológicos dessa doutrina aos judeus.
(SCARDELAI, D., 1998, pg 67).
Dentre as três premissas identificamos a primeira como correspondente a leitura
que Boismard faz do título de Rei24
e a última relacionada a forte influência do
pensamento samaritano no evangelho de João apontado pelo mesmo autor.
Existem publicações recentes que relacionam o Messias sofredor de Is 53 ao
Messias de Qumran25
conferindo-lhe anterioridade a versão cristã, ou mesmo um
messias Filho de José que seria o personagem bíblico Josué26
. Mas recentemente a
publicação de Ada Yardeni do Apocalipse de Gabriel em julho de 2008 resgata a
possibilidade de ligação do Messias Ben José com o Taheb samaritano.
O erudito Israel Knohl analisou a publicação de Yardeni e publicou o artigo The
Messias Son of Josheph que dá um novo rumo aos estudos do messianismo. Um
fundamental artigo publicado no New York Times (julho 6, 2008) descreveu a pesquisa
do erudito Israel Knohl da Hebrew University, que reivindica que “a Visão Gabriel”
fornece introspecções novas e importantes nos conceitos judaicos e cristãos acerca do
messias. Este artigo foi publicado mais detalhadamente em setembro/outubro 2008 na
Revista Bíblica de Arqueologia.
Knohl olha a história do messianismo judaico e cristão explorando suas
similaridades e diferenças. O fragmento do Mar Morto em pedra, como está sendo
chamado, abre um novo capítulo na história deste relacionamento, de acordo com autor.
24
Ver pg 35 deste trabalho. 25
Ver KNOHL, Israel. O Messias antes de Jesus. Rio de Janeiro; Imago, 2001. 26
Ver MITCHELL, David C. Rabbi dosa and the rabbis differ: Messiah bem Joseph in the Babylonian Talmud. In: the Review of Rabbinic Judaismo, Ancient, Medieval and Modern. Volume 8, 2005.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
63
Neste texto judaico pre-cristão27
encontra-se referências a dois conceitos
diferentes: um messias filho Davi e o outro filho de Joseph (Ephraim). O retorno do
messias Filho de Davi envolveria uma vitória militar. Certamente, o messianismo
davídico instituiria a era messiânica com o “dia da batalha”. O messias Filho de Davi é
um messias triunfante enquanto Ephraim, ou messias Filho de José é um tipo muito
diferente de messias e reflete um tipo novo de messianismo. Este tipo de messianismo
envolve sofrer e morre. Na “Revelação de Gabriel”, Knohl vê um messias que sofre,
morre e ressuscita.
Ao comparar a nova descoberta com o evangelho, Knohl afirma que o próprio
Jesus rejeita o conceito do filho militante do messias de Davi e que no fragmento do
rolo de Mar Morto em pedra, um arcanjo requisita a alguém se levantar dos mortos em
três dias28
tradição que seria reproduzida por Jesus.
Não queremos enveredar pelo cominho polêmico de Knohl, mas importantes
aspectos deste messianismo encontrado no “Apocalipse de Gabriel” (nome em
português) podem elucidar o perfil samaritano do Messias ben José que sugerimos
encontrar na tradição joanina.
Esta recente perspectiva conceitual de Knohl assemelha-se àquela que tem por
referência o cisma presente na literatura rabínica antiga entre o Filho de Davi e o Filho
de José indicando, sobretudo que Moisés também seria um protótipo de messias
(KLAUSNER, 1955 apud SCARDELAI, 1998, pg. 24, nota 7).
Como uma corrente expressiva e legítima da antiga esperança judaica,
a crença no filho de José, pode ter existido bem antes dos episódios
27
Ver a datação em YARDENI, ADA. 2008. A New Dead Sea Scroll in Stone? Bible-like Prophecy Was Mounted in a Wall 2,000 Years Ago. Biblical Archaeology Review, Diponível em: <http://www.bib-arch.org/archive.asp?PubID=BSBA&Volume=34&Issue=1&ArticleID=16&extraID=14> 28
Esta é a afirmativa mais polêmica de Knohl. É possível encontrar no site da revista (BAR) cartas enviadas por outros estudiosos que contestam as interpretações do autor: http://www.bib-arch.org/e-features/messiah-son-of-joseph.asp
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
64
históricos que o projetaram, por volta dos sécs. II e III da era cristã.
Existem provas através da literatura judaica. Em acréscimo à
complexidade do tema, o professor D. Flusser escreveu que „A crença
no messias filho de Davi e no messias filho de José já existia desde a
época de Judas Macabeu, em cujo período foi composta a Visão dos
Setentas Pastores, do livro de Enoque’. JUD. FL., p. 424, nota 124.
(apud SCARDELAI, 1998, pg. 67, nota 1)
Este aspecto pode ser sustentado como um dos elementos que deu base a
compilação do evangelho de João de maneira que um novo perfil messiânico na
comunidade joanina se fundamentasse também no ideal samaritano de messias.
Talvez o responsável direto por postular esta sugestão tenha sido o
estudioso sobre os samaritanos, J. A. Montegomery. Ele defende que é
perfeitamente razoável encontrar no messias samaritano um forte
vinculo com o messias filho de José. Ver sua obra The Samaritans
(new York, Ktav Publishin House, 1968), p. 243. (SCARDELAI, D.,
1998, pg 67 nota 4)
É possível que a tradição por trás das palavras do evangelho de João procurasse
congregar estas duas figuras messiânicas ao longo das camadas redacionais que
encontramos, mas com uma ressalva: a proeminência do Filho de Efraim sobre o Filho
de Davi.
Nas linhas 16 e 17 do “Apocalipse de Gabriel” o filho de Davi é colocado em
uma condição inferior ao filho de Efraim. Pois este e não aquele é fundamental no
emprego de um sinal ainda inexplicado, mas que remete Davi a uma posição
coadjuvante, isto é, como pedinte diante de Efraim. Por isso acreditamos na existência
de uma tradição que privilegie a Efraim.
Nos já analisamos este tipo de fundamentação bíblica (Ez 37,24) na tradição
joanina29
. Ela indica a união de todo o reino de Israel, ou seja, as Casas de Judá e a
Samaria (Efraim). É possível que o evangelho reproduza esta aspiração, mas projetando
o Filho de Efraim. Admitimos, então, que o ideal messiânico tivesse elasticidade
suficiente para abarcar esta configuração no contexto cristão da comunidade de João.
29
Ver página 35 deste trabalho.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
65
[...] o EvJn (Evangelho de João) 11,54 relata que Jesus permaneceu
três meses segundo sua cronologia, em aldeia chamada Efraim. No
NT (Novo Testamento) essa é a única vez e o único lugar em que se
recorre a esse nome [...] A razão histórica dada pelo Ev Jn é que
sacerdotes e fariseus (11,47) decidiram matá-lo (11,53). [...] A retirada
a Efraim geográfica, na redação do EvJn requer uma compreensão
teológica profundamente cristológica, enraizada em uma das
expectativas messiânicas daquele tempo, a do Messias ben/bar
Efraim/José (tradução nossa). (PIETRANTONIO, R., apud VIERA
LIMA JUNIOR, F.C., 2009, webartigos.com)
Sendo assim, a forte influencia do pensamento samaritano e a colocação da base
da tradição joanina na Samaria através da comparação das sinopses de Brown e
Boismard feita no capítulo anterior ligaria a comunidade joanina à perspectiva
messiânica do Filho de José confirmando os aspectos destacados no Doc. C..
Em nosso estudo detectamos esse messianismo primeiramente no Doc C., no
entanto, ele vai sofrendo alterações ao longo das demais redações (destacamos João II-
A) dando um aspecto transcendente ao reino messiânico de Jesus. Essa transcendência
nos leva de volta ao final do primeiro capítulo onde iríamos iniciar a análise dos títulos:
Sabedoria de Deus, Palavra de Deus e Filho de Deus que foram atribuídos a Jesus.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
66
2.3 Livros sapienciais e o Evangelho de João
Sabedoria de Deus, Palavra de Deus e Filho de Deus são títulos encontrados
apenas nas camadas mais recentes do evangelho de João. E dentre estes, Filho de Deus
não é revestido de um sentido transcendental no Antigo Testamento, pois significa
somente um tipo de adoção divina que implica proteção de Deus (BOISMARD e
LAMOUILLE, 1977, Tome III pg 52).
Já os outros dois títulos se constituem no evangelho de João a partir da exegese
da tradição veterotestamentária dos livros sapiências. Jesus é comparado a Sabedoria de
Deus enviada a terra.
... la Sagesse de Dieu envoyée sur la terre afin d‟enseigner aux
hommes comment vivre em accord avec la volonté de Dieu; beaucoup
mieux que Moïse, il est donc habilité à tenir le rôle du Prophète par
excellence, de celui qui parle à la place de Dieu. Comme la Sagesse,
Jésus est « sorti » de Dieu et venu dans le monde [...] Jean II-A utilise
le même procédé littéraire : il met sur les lévres de Jésus des parole
qui, dans la littérature sapientielle de l‟AT, sont prononcées par la
Sagesse ; Jésus s‟identifie donc à elle. (BOISMARD e LAMOUILLE,
1977, Tome III pg 52)30
Este é um importante aprofundamento da teologia de João introduzida pelo
redator de João II-A (8,42a; 6,35; 2, 9-10; 14,21). Esse mesmo tema encontramos na
estrutura clássica do mito gnóstico que vimos logo acima. Um ser preexistente que tem
por missão informar aos homens sua origem no Reino da luz. Esta informação é
denominada de gnosis e é ela que possibilita o retorno ao Princípio Primeiro de todas as
coisas. Este fato confirma a exterioridade deste tema ao ambiente cristão.
30
... a Sabedoria de Deus enviada sobre a terra a fim de informar aos homens como viver de acordo com a vontade de Deus; muito melhor que Moisés, ele é, por conseguinte, habilitado a ter o papel do Profeta por excelência, daquele que fala no lugar de Deus. Como a Sabedoria, Jesus “saiu” de Deus e veio ao mundo [...] João II-A utiliza o mesmo procedimento literário: ele coloca nos lábios de Jesus palavras da literatura sapiencial do A.T. que são pronunciadas pela Sabedoria, Jesus se identifica, por conseguinte, a ela. (tradução nossa)
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
67
O redator de João II-B também vai trabalhar com estes textos do A. T., mas trará
novos desenvolvimentos a este tema. Ele apresenta Jesus como Palavra de Deus
retomando um hino antigo que utiliza como Prólogo do Evangelho31
. Sendo assim, a
Palavra ou Sabedoria de Deus existem antes de toda a criação.
Este tipo de leitura feita pelos redatores finais de João sugere mais uma
especificidade a tradição joanina pelo seguinte fato: o cânon hebraico se subdivide em
Torá (Pentateuco), Livros Proféticos e Hagiográficos e no processo de formação deste a
compilação da terceira coleção (Hagiográficos) estava apenas em andamento quando as
outras duas coleções já haviam se completado32
. Lembramos que os livros sapiências do
A.T. estão entre os livros desta coleção. Segundo Sellin e Fohrer “A seleção definitiva e
mais ainda a distribuição dos livros do terceiro grupo só foram estabelecidas na época
posterior ao aparecimento do cristianismo”.(2007, pg 689). Isto seria, então,
evidenciado em Mt 5, 17 e At 28,23 pela expressão a Lei e os Profetas. Sendo assim,
podemos perceber uma abertura dos redatores finais de João ao material que naquele
período poderia ser considerado como extra canônico.
Sendo assim, embora a preexistência fosse uma idéia presente no contexto do
judaísmo por meio dos Provérbios de Salomão, este conceito ainda não havia sido
sedimentado no período do cristianismo. Os redatores finais do evangelho ousam
quando conferem a Jesus este conceito que seria por muito tempo rechaçado pela
ortodoxia da Igreja33
.
Estes dados fazem-nos compreender que os messianismos, o gnosticismo e os
cristianismos foram por muito tempo temas transversais que proporcionavam intensas
31
Ver Quadro 1. 32
Ver FOHRER G. & SELLIN E. 2007. Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo: Paulus, pg 681-730. 33
Ver Historia Eclesiástica I, 2, 8.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
68
disputas hermenêuticas as quais os textos que analisamos representam ínfima porção
deste processo. Assumimos nossa limitada tarefa com intuito de contribuir na
composição de parte das diversas interações que a dinâmica da existência humana pode
proporcionar.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
69
CAPÍTULO 3
3.1 CONCLUSÃO
Apresentar as diferentes interações no interior desta sociedade ajuda-nos a
romper com a visão homogeneizada que entende todo povo hebreu integrado em torno
da idéia de uma nação judaica. Transmitindo uma falsa percepção de unidade cultural,
religiosa e social.
Somente rompendo com esta visão é possível construir uma concepção mais
dinâmica desta sociedade na qual o gnosticismo, messianismos, judaísmos e
cristianismos tinham seu lugar como uma alternativa de conceber o mundo.
Definir a identidade dos Eleitos Joaninos e compreender seu processo de ruptura
através de uma análise baseada nos documentos e com suporte bibliográfico se
constituiu na busca por restabelecer a riqueza das trocas culturais daquela região. A
partir da influência estrangeira, da própria tradição judaica e das cisões no próprio povo
Hebreu podemos desvelar algumas características que compuseram o perfil da
comunidade joanina.
Segundo Elaine Pagels, em sua obra Adão, Eva e a Serpente cristãos ortodoxos
interpretavam a história do Gênesis, em particular, como história com uma moral, isto
é, consideravam Adão e Eva como verdadeiros personagens históricos, veneráveis
ancestrais de nossa raça (Pagels, 1992: 97). Com uma interpretação que Pagels vai
chamar de literal, os ortodoxos vão produzir através de seus líderes um discurso moral e
filosófico que procura estabelecer critérios para o casamento, para a procriação, a forma
de se alimentar e como viam as mulheres.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
70
Já a heterodoxia, os gnósticos, por exemplo, se propôs outro tipo de
interpretação a qual Pagels chama de Alegórica. Questionando a visão literal, buscavam
um “sentido mais profundo” (espiritual) para o mito. E não remetiam a uma história
moral. Segundo a autora eles diziam:
Vamos acreditar que Adão e Eva ouviram mesmo os passos de Deus
pisando as folhagens do jardim do Éden, como sugere o texto, ao dizer
que eles se esconderam ao ouvir Deus “que andava no jardim à hora
da brisa da tarde” (Gênesis 3:8)? Ou Deus mentiu ao alertar Adão e
Eva “mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás;
porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gênesis
2:17), embora eles tenham continuado a viver centena de anos? A
quem Deus falava ao dizer: “Façamos o homem à nossa imagem”
(Gênesis 1:26)? E por que Deus tentou afastar de Adão e Eva o
conhecimento que ele admite poderia torná-los “como um de nós”
(Gênesis 3;22)?(Pagels, 1992, pg 98)
Por isso sugeriam que a história jamais teve a intenção de ser entendida palavra
por palavra, mas sim como alegoria que remeteria a um sentido mais profundo. Este
tipo de abordagem não foi inventado pelos gnósticos. Professores judeus e pagãos já
haviam usado estes métodos várias gerações antes, informa Pagels. Entre eles temos
certos filósofos estóicos e o judeu Fílon de Alexandria, contemporâneo de Jesus.
Fílon, por exemplo, lê o livro do Gênesis como histórias com moral, mas
também a explica alegoricamente como contendo um sentido mais profundo.
Na sua criativa Interpretação alegórica, ele vê Adão e Eva como
representantes de dois elementos da natureza humana: Adão é a mente
(nous) o elemento mais nobre, racional e masculino, feito “à imagem
de Deus”, e Eva é o corpo ou sensação (aisthesis), o elemento
feminino, inferior, fonte de todas as paixões. (Pagels, 1992:99).
Neste caso a abordagem de Fílon assume um caráter filosófico que vincula a
idéia de natureza humana à uma essência que neste caso seria composta pela interação
de mente e sensação representados, respectivamente, na figura de Adão e Eva. Podemos
deduzir que em Fílon este modelo de interpretação alegórica alcança papéis previsíveis
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
71
acerca das categorias macho superior e fêmea inferior. Para Pagels este modelo
alegórico conduziu a “encontrar neles verdades mais profundas da filosofia natural”
(Pagels, 1992:99) servindo assim de base à interpretações gnósticas.
Temos assim dois modelos interpretativos (alegórico e funcionalista) que se
apresentavam como alternativa de produção de sentido para a existência humana neste
mundo. Alternativas estas que independiam do teor cristão da narrativa, pois sua
filosofia já era conhecida antes.
As diferentes recepções das tradições presentes no Pentateuco e de fora dele vão
ganhando configurações multifacetadas. No meio cristão essas interpretações logo
gerariam novos grupos sectários dentro do insurgente cristianismo. Como sugerimos
para a tradição joanina que representamos pelo discurso que encontramos no Livro
Secreto, em partes da primeira carta de João e que intitulamos Eleitos Joaninos.
Mas que tipo de eleição era esta? Em que se baseou esta “nova” perspectiva de
salvação? Através do modelo interpretativo alegórico buscou-se uma maior
profundidade na mensagem da Criação do Universo possibilitando uma nova
conformação do conteúdo.
Sendo assim, podemos dize que O Livro Secreto Segundo João caracteriza-se
pela narrativa mitológica de acontecimentos anteriores à criação do mundo que
encontramos no Gênesis. Dentre estes fatos, sem paralelo no Gênesis, Adão é criado à
imagem do Ser Humano Perfeito e existe fora da matéria. Após a criação do mundo sua
submissão à matéria é uma forma de dominação que impede que ele reconheça sua
perfeição. Pois o Grande Arconte, criador da matéria, temia que ele recuperasse sua
consciência e despertasse da sua condição de prisioneiro na matéria.
E o ser humano tornou-se visível por causa da sombra da luz que
existia dentro dele, e o seu pensar superava todos os que tinham feito.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
72
Quando eles olharam para cima, viram que o pensar dele era superior.
E junto com toda multidão de governantes e a multidão de anjos, eles
fizeram um plano. Tomando fogo, terra, e água, eles misturaram tudo
junto como os quatro ventos fogosos. E eles se fundiram um no outro,
e fez-se um grande tumulto. E eles o trouxeram para a sombra da
morte, a fim de realizar de novo o ato de modelar com terra, água,
fogo e o espírito que deriva da matéria - isto é, com a ignorância das
trevas, e o desejo, e o espírito de dissimulação deles. Essa é a caverna
da remodelação do corpo com o qual os salteadores vestiram o ser
humano, o cativeiro do esquecimento. E ele se tornou um ser humano
mortal. Ele que foi o primeiro a descer, e o primeiro a separar.
(Layton, 2002:52)34
Mas um dos seres (Sabedoria/Epinoia/Pensamento posterior) criado pela Fonte
que dá origem a todas as coisas no Reino da Luz buscando reabilitar-se de sua falta
(pois foi responsável pela perda do poder divino que originou o Reino da Matéria) foi
enviado a matéria a fim de ajudar Adão a recuperar-se de seu esquecimento. Este ser vai
se manifestar e proporcionar o despertar de Adão por meio da criação da mulher.
Agora o Homem é feito a imagem do Ser Humano Perfeito e a Mulher do
Pensamento Posterior (Sabedoria). Por isso são expulsos do Paraíso, ou seja, devido a
sua perfeição. O Grande Arconte sabendo que Eva guardava dentro de si um poder
superior ao dele tentou tomá-la por sua mulher a fim de tomar este poder. Mas o
Pensamento Posterior se retirou de Eva antes. No entanto, ela deu a luz a dois filhos:
Caim e Abel.
Mas Adão toma novamente Eva por sua mulher e esta tem um novo filho: Set,
conforme a raça nos reinos eternos. A ele foi enviado um espírito (alma) que
permanecerá com a posteridade de Set como o elemento capaz de ser despertado e salvo
no momento da descida do espírito santo.
34
A versão francesa também pode ser encontrada em L’apocryphon De Jean (BG, 2) in: BARC, Bernard [online] Disponível na Internet via WWW. URL: http://www.ftsr.ulaval.ca/bcnh/traductions/apocryph.asp?lng=. Arquivo capturado em 25 de setembro de 2006. (Ver anexo ao fim do capítulo).
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
73
Após o nascimento de Set o Grande Arconte os submete a um novo
esquecimento de maneira que a recuperação gradual, pelo divino, do poder que lhe
faltava, acontecerá à medida que as almas gnósticas são chamadas por um salvador e
retornam a deus.
Estes seriam os descendentes de Set na comunidade joanina a partir do que
encontramos no Livro Secreto Segundo João. Eles pertencem a raça inalterável e o
espírito descerá sobre eles fazendo com que alcancem a salvação e a perfeição.
Seguindo alguns critérios esta salvação ocorre de maneira diferenciada de
maneira que uns alcançarão a perfeição ainda na carne e outros não.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
74
SALVAÇÃO DAS ALMAS.
Almas Apócrifo de João
Salvação
Descendentes de
Set que alcançaram
a perfeição ainda no
corpo material e
recebera a visita do
espírito de vida.
...a raça inalterável35
sobre o qual o espírito de vida
descera e habitará com poder. Eles alcançarão a
salvação e se tornarão perfeitos. E eles se tornarão
dignos de grandezas (25: 24-26). Enfrentando todas as
coisas e suportando as coisas de modo que possam
terminar a luta e herda a vida eterna. (26: 3).
Salvação
Receberam a visita
do espírito de vida,
mas não
alcançaram a
perfeição ainda no
corpo material.
De fato, o poder descerá sobre cada um – pois sem ele
ninguém pode ficar de pé. E depois de serem gerados, se
o espírito de vida aumenta – porque o poder vem – ele
fortalece essa alma, e nada pode transvia-la para as
obras da maldade (26: 11-20). E pela visita do
incorruptível ela alcançará a salvação e será levada para
o repouso dos éons (26: 28).
Salvação
Os que não sabem a
quem pertencem ou
de onde foram
originados.
No caso desse outros, o espírito contrafeito aumentava
dentro deles enquanto se transviavam. E ele oprime a
alma, e a leva com artifícios para as obras de maldade, e
a lança no esquecimento. E depois que Lea sai, é
deixada a cargo das autoridades, que existem por causa
do governante. E eles atam-na com laços e a jogam na
prisão36
. E andam à roda com ela37
até que desperte de
seu esquecimento e tome conhecimento de si mesma. E
dessa maneira, quando ela se torna perfeita, alcança a
salvação.(26: 35; 27: 1-10)
Apóstatas
Aqueles que
adquiriram
conhecimento e
depois se desviaram
Serão levadas ao lugar para onde vão os anjos da
pobreza – é o lugar onde nenhum ato de arrependimento
é feito – elas serão guardadas até o dia em que aqueles
que pronunciaram blasfêmia contra o espírito serão
torturados e punidos com punição eterna. (27: 24-29) Quadro 6.
No quadro 6 podemos identificar uma hierarquia no reino dos céus onde cada
qual seria enviado a um lugar diferente conforme o seu mérito. O castigo será relegado
àqueles que conhecendo sua origem divina se desviaram de Deus. O que vemos no
último item do quadro 6 (Apóstatas) parece representar uma espécie de reclamação
acerca daqueles que tiveram conhecimento do ensinamentos mas desviaram-se da fé.
Não podemos dizer que tal reclamação se refira ao grupo representado pelo presbítero
35
Posteridade de Set. 36
Faz com que se reencarne em outro corpo material. 37
Ciclo de reencarnação.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
75
de 1 Jo, mas ao menos identifica que na tradição sob o Livro Secreto eles também se
consideram abandonados por crente que tiveram acesso a uma mesma tradição que a
deles.
O mito gnóstico de fundação do universo tem seu primeiro ato fora dos padrões
daquilo que era concebido no mundo judaico, não helenizado. Mas quando se volta a
criação do universo material estabelece muitos pontos de contatos, com inovações e
refutações frente à mensagem do Gênesis.
A Criação do Universo tem uma vaga semelhança com o que vemos em Gn 1: 1-
25, mas no Livro Secreto não há descrição de cada elemento criado na natureza. A
criação é descrita como “imagem dos éons originais” devido ao “poder dentro dele”. No
mais, todo o restante serve para estabelecer importantes contestações nos pontos de
contato como, por exemplo: A Criação do corpo material de Adão, A introdução no
Paraíso, A Árvore do conhecimento do Bem e do Mal, A Serpente, A Criação de Eva, A
Expulsão do Paraíso, O Nascimento de Caim e Abel, O Nascimento de Set, O Dilúvio e
a Corrupção da humanidade.
Colocar o universo material como criação de um produto imperfeito (Ialtabaöth),
gerado por um éon (Sabedoria) sem o consentimento de seu consorte, feito “de maneira
incorruptível”, mas incompleto, pois o governante não conhecia a totalidade é o
primeiro passo para uma nova interpretação do Gênesis. O único dado apresentado
sobre a pré-existência do universo é que “...o Espírito de Deus pairava sobre as águas”
(Gn 1: 2). O reino da luz ganha uma outra dimensão no Livro Secreto onde se
encontram caracteres que justificam os elementos da crença gnóstica.
A pré-existência do Ser Humano Perfeito em espírito, a Criação do Adão
animado e a presença da Sabedoria (pensamento posterior) no “corpo animado e
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
76
perceptível” de Adão antes de sua queda são subsídios que fomentam na crença gnóstica
o dualismo, a ascetismo, o sectarismo, definem a ética, a percepção do corpo como uma
prisão e o exercício da gnose como um movimento de retorno a origem.
A partir da projeção do protótipo do Ser Humano perfeito no reino das trevas é
que se inicia a criação do Adão animado, conforme a imagem refletida que as
autoridades que habitavam com Ialtabaöth tinham visto. Esta criação ainda sem corpo
material, embora chamado “animado”, paradoxalmente, existiu muito tempo inativo e
imóvel. A substância que compusera os membros do Adão animado foram regularizadas
como um corpo, mas sem matéria, sendo, por fim constituído de atributos como
recepção, reflexão, impulso para ação e percepção que são utilizados, segundo Layton
(1987: 49), no jargão da ética estóica. Então quando a Sabedoria (éon) quis recuperar o
poder que perdeu para o governante, logo após tê-lo lançado para fora de si, pediu a
autorização e interseção do Pensamento Anterior que enviou cinco luminares ao
encontro do Governante. Eles aconselharam-no a colocar um pouco de seu poder no
Adão animado e o poder deixou-o e entrou no corpo de Adão, ainda sem matéria.
Este é o produto final, um ser perfeito, sem matéria, feito a imagem do Ser
Humano perfeito e que provocou a inveja das autoridades do governante, pois ele estava
desprovido de imperfeição e sua inteligência era superior. Por isso lançaram-no a parte
mais baixa da matéria onde foi auxiliado pelo pensamento posterior que o despertou a
respeito de sua queda e do meio de ascender.
A partir deste ponto está lançada a base para uma nova leitura do Gênesis. São
vários paralelos com contestações formidáveis que expressam verdadeiros embates
entre dois modos de vida alternativos. Por exemplo, para o Gênesis o corpo material
representa uma obra da criação de Deus feito a sua imagem e semelhança e dotado com
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
77
sopro de vida, enquanto no Livro Secreto ele representa uma prisão para o Adão
animado que é perfeito e superior a seu próprio criador.
Caim e Abel representam a ascendência dos não-gnósticos e Set a ascendência
dos gnósticos. Os descendentes de Set teriam sua salvação garantida não fosse a ação do
Destino e a ação do Espírito de Dissimulação provocando o esquecimento.
A corrupção da humanidade e o dilúvio ocorrem em ordem invertida em cada
caso, pois se no Gênesis o dilúvio ocorre porque o criador se arrependeu de sua criação
que se corrompeu, no Livro Secreto o dilúvio ocorre como uma tentativa do governante
em acabar com a posteridade de Set que é a “raça perfeita” ou “raça inalterável”.
Diante da superioridade da posteridade de Set, Ialtabaöth se arrependeu de tudo
o que viera a existir por sua causa e provocou um dilúvio. Mas o pensamento anterior
instruiu a Noé e ele pregou a toda posteridade, isto é, aos descendentes de Set, e desta
forma não só Noé, mas muitas pessoas da raça inalterável se esconderam em uma
nuvem luminosa e salvaram-se através do poder absoluto do ser que pertencia a luz.
Então como a “raça perfeita” se corrompeu e esqueceu sua origem? Ialtabaöth
não desistiu e lançou mão de mais um plano para suscitar uma posteridade para si como
um conforto. Enviou seus anjos as filhas do gênero humano para tomá-las. Em principio
não teve sucesso, por isso seus anjos, após nova reunião fizeram um espírito de
dissimulação à imagem do espírito que descera e assim iriam macular as almas
enchendo-as com o espírito das trevas e com maldade. Assim seduziram as pessoas com
grandes ansiedades desencaminhando-as para muitos erros. Como conseqüência o
gênero humano envelheceu sem descanso, sem descobrir a verdade, geraram filhos das
trevas e a criação ficou escravizada, desde a fundação até o tempo presente.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
78
Deste modo estava novamente divida a humanidade e estabelecido os critérios
de seleção para pertencer ao círculo dos escolhidos do Senhor. Esta divisão e seleção
baseiam os outros critérios presentes no Livro Secreto (quadro 6).
O mito de fundação do universo que é encontrado no Livro Secreto é uma das
variadas formas do mito gnóstico clássico que pode ser encontrado com algumas
variações no Evangelho Egípcio e na narrativa de Irineu de Lião sobre Saturnino, por
exemplo (LAYTON, 1987: 14).
Provavelmente alimentou-se de interpretações platônicas do mito da criação
presente no Timeu de Platão associado ao Livro do Gênesis permeado pela perspectiva
gnóstica. Este tipo de associação é muito mais antiga que a versão do Livro Secreto
Segundo João. No período de Fílon (30 a.C. – 45) associações deste tipo eram populares
entre os judeus cultos da Alexandria.
Fílon e seus colegas tentaram mostrar que o Timeu dizia
substancialmente a mesma coisa que os primeiros capítulos do
Gênesis; isso poder ser visto no tratado de Fílon sobre a criação do
mundo(LAYTON, 1987: 16).
O levantamento de dados que efetivamos até aqui nos conduz a afirmar que
nosso objeto de pesquisa (os Eleitos Joaninos) é um segmento originário da comunidade
do discípulo amado que após um período de convivência comunitária rompeu com parte
dessa tradição. Os textos que avaliamos possibilitam distinguir um fator preponderante
na ruptura da comunidade: o Messianismo. Pois este fator se constituiu por meio de um
complexo processo de interação cultural o qual proporcionou a articulação de múltiplas
perspectivas acerca da libertação do povo Hebreu. Por causa dessa diversidade é que foi
possível identificar tantas esperanças messiânicas que por vezes soavam divergentes e
em outras complementares. A isso se soma o caráter gnóstico, anterior e exterior ao
cristianismo, que possibilitou uma nova leitura do messianismo: a Preexistência.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
79
Compreendemos que este aspecto tão peculiar à tradição joanina se deve ao fato
de sua origem samaritana, pois embora seu messianismo (TAHEB) não contemple a
divindade ou a preexistência avaliamos que o caráter de um messias Filho de José
proeminente pode ter facilitado a ruptura com a visão que privilegiava o messianismo
davídico. Isso significar dizer que a possibilidade de uma reintegração dos reinos de
Judá e Israel sob o Messias ben José pode ter alçado esta expectativa a uma nova
categoria que se não estava descomprometida com messianismo davídico ao menos
procurou subjugá-lo.
No entanto, o advento desta nova categoria de base gnóstica remeteu a existência
e o reino messiânicos ao patamar transcendental. Esta transcendentalidade não surge ao
acaso, pois ela cabe de maneira justa ao perfil deste grupo que se considera uma raça
inalterável e que nós resolvemos intitular de Eleitos.
Seletos por natureza, desprovidos de culpa e, conseqüentemente, perfeitos; a
esses atributos adicionamos sua provável riqueza material (1 Jo 2, 15-17) e a crença
gnóstica de que o homem pode se salvar graças a um conhecimento (gnosis) secreto e
pessoal. Para coroar estes aspectos de cunho elitista os Eleitos possuíam uma
escatologia realizada, ou seja, não esperavam uma era messiânica e nem um salvador.
Parece que esta vertente cristã já se sentia contemplada ou ao menos, satisfeita com sua
condição de existência.
Espero que a busca pela clareza e objetividade não tenham engessado a dinâmica
da hermenêutica do grupo. Pois através dos procedimentos adotados procuramos
interligar fatores que pudessem oferecer outra forma de explicação para a luta pela
liberdade dos povos que passaram tantos séculos sob o jugo alheio e mais
especificamente daqueles que se colocaram sob a tradição do discípulo amado.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
80
Entre estes fatores colocaria, por exemplo: o elevado intercâmbio cultural, a
gnosticismo, os judaísmos, o helenismo, os longos períodos de dominação política e
militar e o advento do cristianismo com suas várias vertentes. No cerne de todo este
conjunto de fatores está o agente humano que interfere e sofre interferência, que age e
reage procurando se articular entre os seus em conformidade com incontáveis elementos
dos quais muitos não podemos acessar por meio de fontes documentais, mas que
acabaram fazendo parte de suas vidas e discursos.
Nesta perspectiva procurei conectar de forma triangular os dados contidos no
Livro Secreto, ao qual se atribui a autoria a João filho de Zebedeu ou João Evangelista,
aos judaísmos que se representaram nesta pesquisa e a comunidade joanina representada
no Evangelho e na Primeira Carta.
Os seguidores do LSSJ mostram-se em uma tradição extremamente diferenciada
da tradição conhecida nos dias de hoje pelo cristianismo, mas a tentativa de esclarecer
esta diferenciação introduziu-nos em um universo multiforme em sua relação com o
poder divino constituído.
Existem muitas dessas relações que ainda não nos são claras e não foram
esgotadas, esperamos ter ao menos arranhado a superfície de seus aspectos ao menos
naquelas em que nos propusemos. Ficamos felizes pelo fato de constatar a
multiplicidade destas relações, nas quais muitas delas se deram no interior do que se
pensava ser uma única crença (judaísmo, cristianismo). O grau de articulação que pode
se dar entre o homem e o poder estabelecido; seja este divino, político ou militar,
adquire infinitas possibilidades para que se renove a compleição de cada grupo.
O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem o
poder. A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a
múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder.
Cada sociedade tem seu regime, sua “política geral” de verdade: isto
é, os tipos de discursos que ela escolhe e faz funcionar como
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
81
verdadeiros, os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir
enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona a
obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o
que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 1969, pg 12)
Assim compreendemos cada vertente, cada esperança messiânica, cada lugar de
falar, seus supostos autores e a função de cada autoria. Procuramos colocar cada
discurso em condição de igualdade a fim de que pudéssemos avaliar como se produziu
estes “efeitos regulamentados de poder”. Esperamos ter deixado claro como se deram as
escolhas destas verdades e seus funcionamentos e o gradativo estabelecimento
institucional daquilo que devia funcionar como verdadeiro. Pois à medida que se
procurou distinguir aquilo que era canônico do não-canônico, nada mais se fez do que
interditar outras possibilidades de discursos. Esperamos ter contribuído para ampliar
estas restrições, como também, remetê-las ao vasto campo das possibilidades de escolha
que cada sociedade constitui.
Por isso alguns pontos se tornaram essenciais nesta pesquisa como, por exemplo:
os messianismos, o gnosticismo e sua importância histórica e historiográfica. Como
também, a ruptura com a visão homogeneizada da sociedade judaica a fim de se pudesse
fazer jus a sua complexa interatividade e reconhecer suas disputas internas
representadas no silêncio ou na contestação da documentação.
Através destes passos espero ter contribuído aproximando ao menos parte
daquela realidade à nossa. Afinal a salvação, a libertação, a busca da melhor conduta
ética estão presentes também em nosso cotidiano. Na Judéia onde a tradição pôde se
construir mesmo no período de dominação estrangeira não se aguardou a conquista da
liberdade política para procurar exercê-la, pois o exercício da liberdade se deu prestando
culto a Javé no Templo ao mesmo tempo em que se obedecia a dominação pagã
estrangeira. Mas é possível que nas demais áreas da Palestina a impossibilidade de
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
82
conquistar a tão sonhada liberdade política associada à ausência de uma tradição, de um
Templo e do elevado nível de influência cultural externa tenha conduzido a uma nova
percepção de liberdade e salvação e que pôde ser constatada por meio do LSSJ.
O elevado nível de transcendência que caracterizou o gnosticismo permitiu que
acreditassem que a alma continuasse seu exercício em busca da salvação e da liberdade,
embora o corpo material estivesse submetido à dominação.
OS ELEITOS JOANINOS Antonio Carlos Higino da Silva
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