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Antnio Francisco Dantas Barbosa
dezembro de 2013
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3
Tempos de Festa em Ponte de Lima (Sculos XVII-XIX)
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los
XV
II-X
IX)
Universidade do MinhoInstituto de Cincias Sociais
Tese de Doutoramento em HistriaEspecialidade em Idade Moderna
Trabalho realizado sob a orientao da Professora Doutora Maria Marta Lobo de Arajo
Antnio Francisco Dantas Barbosa
dezembro de 2013
Tempos de Festa em Ponte de Lima (Sculos XVII-XIX)
Universidade do MinhoInstituto de Cincias Sociais
iii
AGRADECIMENTOS
O longo percurso que este trabalho de investigao implicou, proporcionou-nos momentos de
grande ansiedade e solido. Contudo, medida que se iam ultrapassando determinadas etapas os
sentimentos de alegria e de realizao pessoal suplantavam as dificuldades com as quais nos
confrontamos.
No entanto, para a prossecuo e concretizao desta dissertao no bastou o nosso
empenho, perseverana, disponibilidade e prazer, tornou-se indispensvel o contributo de instituies e
de pessoas que puseram ao nosso dispor todos os meios importantes para alcanar este objetivo.
Neste mbito, uma merecida referncia Professora Doutora Marta Lobo de Arajo que como
orientadora pautou o nosso trabalho por rigor, exigncia e recomendaes de sublinhada importncia.
Ao longo desta jornada foi determinante a sua dimenso humana ao expressar incansavelmente toda a
disponibilidade, encorajamento e boa disposio. Por estes motivos, e pelo que aprendemos, mais
uma vez prestamos-lhe o nosso agradecimento.
Ao Centro de Investigao Transdiciplinar Espao Cultura e Memria nomeadamente ao senhor
Dr Eurico deixamos uma palavra de agradecimento pela abertura que demonstrou em colaborar na
representao cartogrfica do concelho de Ponte de Lima.
camara municipal de Ponte de Lima por ter demonstrado toda a amabilidade ao publicar
alguns dos nossos trabalhos realizados no mbito deste programa doutoral.
Agradecemos ainda ao senhor ex-vereador da cultura da cmara municipal de Ponte de Lima
Dr. Franclim Sousa pela simpatia e recetividade que sempre demonstrou s nossas solicitaes e por
nos ter facultado a investigao do acervo documental presente no arquivo do municipal.
O nosso reconhecimento e gratido dirigem-se ainda ao monsenhor Jos de Sousa que sempre
se mostrou solcito e disponvel em colocar ao nosso alcance fontes documentais necessrias para o
enriquecimento deste trabalho.
Agradecemos senhora diretora do arquivo municipal de Ponte de Lima Dr Cristiana Freitas
por nos receber com toda a simpatia e mostrar sempre disponibilidade na concesso de consulta de
documentos. Estendo o nosso agradecimento amiga Eduarda Varajo que nas longas tardes
passadas no arquivo nos presenteava com a sua afabilidade, boa disposio e apoio. Tambm no
esquecemos a solicitude do restante corpo de funcionrios desse arquivo.
Ao Dr Jos Dantas pela disponibilidade com que sempre acedeu aos nossos pedidos e pelas
informaes prestadas.
iv
Queremos ainda agradecer s funcionrias da biblioteca municipal de Ponte de Lima,
sobretudo amiga Jlia Carvalho pela preocupao demonstrada em colocar ao nosso dispor toda a
bibliografia encontrada e de interesse para este estudo.
devida ainda uma palavra de apreo Maria Lus de Antas de Barros pelo desenho
esquemtico da procisso de Cinzas.
amiga Madalena Alves um grande reconhecimento pela cooperao que lhe solicitamos.
Estaremos sempre gratos ao Manuel Varela e Antnio Jorge Fernandes pela prestabilidade
demonstrada ao colocar nossa disposio as fotografias que integram este estudo.
Agradecemos aos amigos Alexandra Silva, Nuno Gomes, Joo Santos e Paulo Bernardes pelo
contributo na aquisio de bibliografia indispensvel a este trabalho.
Estendo ainda o nosso reconhecimento Odete e Sofia pelo grande apoio e troca de ideias que
tivemos ao longo desta etapa que de algum modo foram encorajadoras para que se concretizasse esta
tarefa.
Manifesto o nosso agradecimento Alexandra Esteves e ao Ricardo Silva pela abertura e
prestabilidade reveladas.
A todos os amigos e familiares pelas palavras de conforto e de estmulo o nosso muito
obrigado.
Gabriela pelo acompanhamento e disponibilidade em todas as passagens feitas pelos
arquivos e bibliotecas.
Aos meus pais que sempre apoiaram e impulsionaram o meu percurso acadmico.
Aos meus sobrinhos Lusa e Loureno que proporcionaram momentos de descontrao ao
longo da feitura deste trabalho.
v
memria do meu av que, como impulsionador da Vaca das Cordas, me incutiu o gosto
pelas festividades limianas.
vi
vii
TEMPOS DE FESTA EM PONTE DE LIMA (SCULOS XVII-XIX)
RESUMO
O objeto de estudo deste trabalho focaliza-se na caraterizao e anlise das festividades
ocorridas em Ponte de Lima entre a segunda metade do sculo XVII e primeira metade de oitocentos.
Neste sentido, ao propormo-nos compreender todas estas manifestaes de jbilo, catarse e
anamnese, centramo-nos na Matriz, na igreja dos terceiros de So Francisco de Ponte de Lima e no
municpio da vila como principais ncleos promotores das solenidades festivas que quebravam a rotina
quotidiana dos limianos no perodo em estudo.
A igreja da vila albergava no seu interior uma variedade de instituies confraternais, que para
alm de a dotarem de um rico patrimnio artstico e cultural a transformavam num palco para a
atuao de muitas manifestaes festivas. O culto da Virgem Maria constitua uma sublinhada parte
destas festas sob vrias invocaes como a Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora da Expectao,
Nossa Senhora da Assuno e Nossa Senhora do Carmo. Embora, algumas destas festividades se
ancorassem somente em manifestaes puramente devocionais arredando dos seus programas a
componente ldica-profana, outras aliavam o sagrado ao profano. As crenas do povo, imbudas de
rituais e gestos, tinham nesses momentos festivos um peso significativo dando-lhes uma maior
consistncia e vitalidade.
No menos relevante era a igreja dos terceiros de So Francisco que projetava para o seu
exterior, e semelhana da Matriz, diversas manifestaes festivas, como a procisso de Cinzas que
abria o perodo quaresmal, momento de grande simbolismo para os devotos catlicos. Para a
organizao deste prstito, os mesrios reuniam todos os esforos para que esta ocasio brilhasse e
no tivesse menos visibilidade que as restantes festas organizadas pelas outras instituies. Mas,
teriam os terceiros da vila outras intenes com esta ocasio festiva? A resposta a esta questo foi
tambm esclarecida ao longo deste trabalho.
O municpio de Ponte de Lima preocupava-se e responsabilizava-se pela organizao da festa
do Corpus Christi, que, de acordo com o calendrio lunar, inseria-se no conjunto de festividades com
data mvel. Esta ocasio engrandecia a vila ao culminar com a magnificente e esplendorosa procisso
que servia de paradigma a todas as outras. Embora a sua realizao tivesse a edilidade e a igreja da
vila como principais impulsionadoras, todas as associaes de mesteres, confrarias e particulares
viii
davam o seu contributo. Desta forma, este prstito espelhava a realidade quotidiana limiana, as
crenas das suas gentes, a vida social, poltica, costumes e tradies.
No entanto, no eram somente estas festas realizadas em consonncia com o ciclo das
estaes do ano que transformavam a vila alto-minhota, tambm as ligadas ao ciclo biolgico da
famlia reinante: nascimentos, casamentos, mortes, bem como as de carter poltico, visveis na
primeira metade do sculo XIX proporcionavam tempos de regozijo aos habitantes de Ponte de Lima.
Era nestes trs espaos principais que se exteriorizava este caleidoscpio de festas, embora
autnomos uns dos outros, conectavam-se nestas ocasies para poderem dar o brilho que pretendiam
s suas festividades. A cmara da vila como intermediria entre o poder central e os seus muncipes
desempenhava nestes momentos um papel norteador e controlador da sociedade limiana. Estas festas
no s legitimavam o poder rgio e local, mas tambm funcionavam como ocasies para os mais
ambiciosos afirmarem os seus poderes e interesses.
Estas comemoraes festivas, que envolviam a sociedade como um todo, foram ao longo do
perodo em estudo alvo de alteraes, provocadas pela nova conjuntura poltica e social sentida
sobretudo nos finais do sculo XVIII e primeira metade de oitocentos.
ix
ABSTRACT
The object of study of this work focus on the characterization and analyzis of the festivities
taking place in Ponte de Lima between the second half of the 17th century and the first half of the 18th
century.Therefore, trying to understand all these expressions of joy, catharsis, and anamnesis, we focus
on the Mother Church, on Igreja dos Terceiros de So Francisco of Ponte de Lima, and at the village
municipality as promoters of these solemn festivities, which broke the daily routine of the people from
Ponte de Lima, in the study period.
In the village church there was a great variety of brotherhood associations that not only
provided it with a great artistic and cultural heritage, but also transformed it into a stage for the
performance of many festive celebrations.The cult of Virgin Mary was an important part of these
festivities worshiping Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora da Expectao, Nossa Senhora da
Assuno and Nossa Senhora do Carmo. Although some of these festivities were only attached to
merely devotional practices, excluding fun and profane activities, others joined the sacred and the
profane. The peoples beliefs, full of rituals and gestures, had at those festive occasions a significant
role with a greater stability and vitality
Not less important was Igreja dos Terceiros de So Francisco that, just like the Mother Church,
organized several festivities such as Procisso de Cinzas, which started the Lenten Period, a moment of
great symbolism for the Catholics.To achieve this purpose the members of the institution stepped up
efforts to make this event brighten up and to have such a great visibility as the other festivities
organized by the other institutions. But could the members of Ordem Terceira of Ponte de Lima have
other purposes making these festive celebrations? The answer to this issue has also been enlightened
throughout this work.
Ponte de Lima carried about and was responsible for Corpus Christi that, according to the
lunar calendar, made part of the group of festivities with not fixed starting date. This event praised the
village with the magnificent and splendid procession, what was an example for all the others. Althought
it had the municipality and the village church as the main driving forces, all the craftsmen guilds,
brotherhoods and individuals made their contribution too. This way, this procession mirrored the
everyday reality of Ponte de Lima, the people`s beliefs and also the social and political life, as well as
the customs and traditions.
However, not only these festivities, taking place according to the Seasons, transformed this Alto-
Minho village. Also those connected to the biological cycle of the main family: births, weddings, deaths,
x
as well as those of political interest, which were visible in the first half of the 19th century, provided
great moments of joy to the inhabitants of Ponte de Lima.
It was in these three different places that this great diversity of festivities was expressed.
Althought being independent from one another, they joined together during these moments to make
their festivities glamorous.
The village city hall, as a means of communication between the authorities and the citizens,
played a leading and controlling role of Ponte de Lima society. These festivals not only gave legal force
to the royal and the local power, but were also a good moment for the most ambitious to assert their
power and interests. These celebrations, which involved the whole society, were during this study
period, a target of changes made by the new political and social situation, mainly in the late 18th
century and the first half of the 19th century.
xi
NDICE
Agradecimentos III
Resumo VII
ndice XI
Lista de Figuras XVII
Lista de Grficos XIX
Lista de Quadros
Lista de Mapas
XXI
XXIII
Abreviaturas XXV
Introduo 1
Captulo I- A festa e a sociedade
1. A festa e a sua importncia na vida das comunidades 15
1.1. A festa na religiosidade popular 18
1.2. O poder da festa 23
1.3. As festas concelhias 27
1.4. O tempo e o lugar da festa 29
Captulo II- As principais festas religiosas limianas
1. A Quaresma 39
1.1. A Via Sacra 43
1.2. As Quarenta Horas 46
2. A procisso de Cinzas
2.1. A preparao da procisso
2.2. A composio da procisso
56
63
102
xii
3. A procisso dos Passos 140
4. A Semana Santa 144
Capitulo III- As festas do Corpo de Deus
1. Origem e evoluo 213
2. Contributo das instituies confraternais 222
3. A participao dos mesteres 236
3.1. O drago e a serpe 243
3.2. As danas no Corpo de Deus 246
3.2.1. A mourisca 250
3.2.2. As plas 255
3.3. O carro dos ramos e das ervas 259
4. A teatralizao na procisso do Corpo de Deus 266
4.1. Os constrangimentos da procisso 273
5. So Jorge e o seu estado 284
6. A imagem de So Cristvo 288
7. A participao dos clrigos na procisso 292
8. As obras para a festividade 294
9. A limpeza para a festa 297
9.1. A decorao exterior 305
9.2. A decorao da igreja Matriz 310
9.3. A decorao efmera 313
10. A festa e a pausa no quotidiano 316
11. Os sons na festividadedo Corpo de Deus 318
12. O comrcio e a festa 322
xiii
13. O itinerrio do Corpus Christie a sua composio e organizao 325
13.1. A ocorrncia de discrdias 330
13.2. O plio 338
14. As corridas de touros e sua origem 342
14.1. A corrida corda
348
14.2. O espao para as corridas e os marchantes mar
353
Captulo IV- As festas promovidas pelas confrarias
1. A festa de Nossa Senhora da Dores
369
1.1. As esmolas
375
1.2. Os gastos com os festejos
391
1.3. A preparao da imagem 394
1.4. A feira
401
1.5. As barracas e a iluminao da festa
406
1.6. O fogo de artifcio e as fogueiras
410
1.7. A msica e as manifestaes teatrais
417
1.8. A sacralizao da festa 418
2. A festa de Nossa Senhora do Rosrio 422
3. A festa de Nossa Senhora do Carmo 435
3.1.1. A oferta dos escapulrios 441
3.1.2. A devoo
3.1.3. Os preparativos
444 451
3.1.4. O altar 453
3.1.5. A compostura dos irmos do Carmo nas cerimnias pblicas 459
3.1.6. Os custos da festa 461
xiv
4. A festividade de Nossa Senhora da Guia 465
4.1. Prover o espao sagrado 477
4.2. Alterao do dia da festividade 480
5. A festa de Nossa Senhora da Expectao 482
6. A festa de Nossa Senhora a Grande 497
6.1. A anexao da irmandade de So Cristvo 501
6.2. As tochas 504
7. As festas cristolgicas 506
7.1. O Esprito Santo 506
7.1.1. As missas do Giro 507
7.1.2. Os cabidos gerais 511
7.1.3. O espao e as cerimnias 517
8. A festa ao Santssimo Sacramento 522
8.1. A tribuna 524
8.2. Os cortinados 526
8.3. As velas de sebo 529
8.4. A festa 532
9. A festa de So Lcio 541
Captulo V- Reflexos da festa real em Ponte de Lima
1. Os nascimentos 547
2. Os Aniversrios 563
2.1. O aniversrio e a dedicao rainha Dona Maria II (1818-1853) 565
2.1.1 A alterao festiva do aniversrio 570
2.1.2. Os convidados para o aniversrio da rainha 573
xv
2.2. O aniversrio de D. Fernando Saxe-Cobourg-Gota (1816-1885) 575
3. Os gastos com os aniversrios 576
4. Os casamentos reais 579
5. As exquias reais 587
5.1. Entre a chegada da notcia e a ao do poder local 589
5.2. Os atos fnebres de D. Joo V 593
5.3. A Quebra dos Escudos 598
5.4. As exquias das rainhas e infantas 602
6. As obras para as exquias 605
7. Os gastos com as cerimnias fnebres 607
8. Outras comemoraes 610
8.1. A coroao de D. Jos I 611
8.2. Os festejos do aniversrio da revoluo de 1820 613
8.3. A saudao ao rei D. Joo VI 617
8.4. A chegada de D. Miguel 619
8.5. A comemorao da restaurao da Carta Constitucional 621
Captulo VI- O repique das festas
1. Os sinos e os conflitos 627
2. Os toques 635
3. As despesas com os sinos 643
Concluso
649
Fontes Manuscritas
661
Fontes impressas 669
xvi
Bibliografia
673
Glossrio
729
xvii
LISTA DE FIGURAS
CAPTULO I
Figura 1
Figura 2
Figura 3
Igreja Matriz de Ponte de Lima
Vista panormica do areal de Ponte de Lima
Paos do Concelho de Ponte de Lima
20
34
35
CAPTULO II
Figura 1 Esquema da procisso de Cinzas 1789 107
Figura 2 Imagem de roca (Museu dos Terceiros de Ponte de Lima) 125
Figura 3 Imagem de roca (Museu dos Terceiros de Ponte de Lima) 125
Figura 4 Imagem de roca (Museu dos Terceiros de Ponte de Lima) 125
Figura 5 Imagem de roca (Museu dos Terceiros de Ponte de Lima) 125
Figura 6 Imagem de roca (Museu dos Terceiros de Ponte de Lima) 126
Figura 7 Imagem de roca (Museu dos Terceiros de Ponte de Lima 126
Figura 8 Retbulo barroco do altar-mor da igreja dos terceiros de Ponte de Lima 159
CAPTULO III
Figura 1 Contracapa do livro dos acrdos da cmara municipal de Ponte de
Lima, 1735
238
xviii
CAPTULO IV
Figura 1
Imagem de Nossa Senhora das Dores da igreja dos terceiros de Ponte de
Lima
374
Figura 2
Contracapa do livro dos estatutos reformados de Nossa Senhora do
Rosrio, 1831
431
Figura 3
Contracapa do livro dos estatutos reformados da confraria de Nossa
Senhora do Carmo de 1818
437
Figura 4
Capela de Nossa Senhora da Guia
466
Figura 5 Figura 6
Imagem de Nossa Senhora da Guia contemplada nos estatutos de 1753
Livro dos estatutos da confraria de Nossa Senhora da Guia
468
470
CAPTULO VI
Figura 1 Torreo da igreja dos terceiros de So Francisco de Ponte de Lima 648
xix
LISTA DE GRFICOS
CAPTULO II
Grfico 1 Despesa com o legado das Quarenta Horas (1844-1869) 51
Grfico 2 Representao das despesas com a procisso de Cinzas (1741-1763) 138
Grfico 3 Despesas feitas pela confraria do Santssimo Sacramento com
armao, revistentes, msica, (sculos XVIII-XIX)
178
Grfico 4
Despesas com o beberete na confraria do Santssimo Sacramento
(1828-1851)
181
Grfico 5
Gastos da confraria do Santssimo Sacramento com a Semana Santa
(1798-1854)
198
CAPTULO IV
Grfico 1 Tipologia de esmolas oferecidas a Nossa Senhora das Dores (1820-
1851)
376
Grfico 2 Valor das esmolas em dinheiro atribudas nos trs dias de festa (1825-
1854)
379
Grfico 3 Percentagem de esmolas em dinheiro oferecidas pelas diferentes
instituies (1853-1854)
381
Grfico 4 Percentagem de esmolas em dinheiro oferecidas pelas diferentes
instituies (1855-1856)
382
Grfico 5 Percentagem de esmolas em dinheiro oferecidas pelas diferentes
instituies (1861-1862)
383
Grfico 6 Contributo anual de esmolas dado pelas irmandades para a festa
(1851-1865)
384
xx
Grfico 7 Despesa com a festividade de Nossa Senhora das Dores (1820-1855) 391
Grfico 8 Despesas efetuadas com o fogo de artifcio pelas confrarias de Nossa
Senhora das Dores e do Santssimo Sacramento (1822-1859)
411
Grfico 9
Despesas com bentinhos/escapulrios (1823-1852)
420
Grfico 10 Despesas com os rosrios (1778-1809) 431
Grfico 11 Gastos com as festividades de Santa Teresa e de Senhora da
Expectao (1795-1809)
491
Grfico 12
Gastos com a festa de So Francisco Xavier (1840-1848)
494
CAPTULO VI
Grfico 1 Gastos da confraria de Nossa Senhora da Expectao com os sinos
(1795-1809)
645
xxi
LISTA DE QUADROS
Captulo I
Quadro 1 Festas limianas realizadas anualmente entre o sculo XVIII e primeira
metade do XIX
30
Captulo II
Quadro 1 Representao dos gastos da cera nas despesas totais da Ordem Terceira
(1741-1811)
79
Quadro 2
Quadro 3
Imagens dos santos que figuravam na procisso de Cinzas da Ordem
Terceira limiana (1789)
Dias celebrados pela confraria do Santssimo Sacramento na Semana
Santa (1791-1847)
106
185
Captulo III
Quadro 1 Rendimentos da confraria de Nossa Senhora a Grande com o aluguer da
cera a festa de Corpus Christi (1843-1853)
226
Quadro 2 Verbas municipais atribudas s festividades (1842-1848) 231
Quadro 3 Quadros que integravam a procisso do Corpo de Deus (1735) 240
Quadro 4 Multas por incumprimento de obrigaes na procisso do Corpus Christi
(1735)
242
Quadro 5 Distribuio de tarefas por algumas freguesias do concelho (1837-1848) 265
Quadro 6 Distribuio da limpeza por freguesias (1722) 298
Captulo IV
Quadro 1 Valores despendidos com material e confeo dos escapulrios (1769-
1850)
442
xxii
Quadro 2 Representao dos gastos da festividade nas despesas totais da
irmandade de Nossa Senhora do Carmo (1842-1852)
463
Quadro 3 Festividades promovidas pela confraria de Nossa Senhora da Expectao
(1742)
483
Quadro 4 Gastos com as festividades de Santa Teresa e de Nossa Senhora da
Expectao (1840-1847)
492
Quadro 5 Rendimentos obtidos com o aluguer das tochas (1843-1844) 505
Quadro 6 Nmero de velas de sebo distribudas e seu custo (1790-1798) 529
Captulo V
Quadro 1 Data dos aniversrios de D. Joo VI, D. Miguel, Dona Maria II e D.
Fernando
563
Quadro 2 Datas do falecimento de algumas figuras reais 588
xxiii
LISTA DE MAPAS Mapa 1 Concelho de Ponte de Lima 3 Mapa 2 Distribuio das freguesias pelo concelho de Ponte de Lima 300
xxiv
xxv
ABREVIATURAS
AMPL Arquivo Municipal de Ponte de Lima
ADB Arquivo Distrital de Braga
APSMAPL Arquivo da Parquia de Santa Maria dos Anjos de Ponte de Lima
ANTT
BNP
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Biblioteca Nacional de Portugal
xxvi
INTRODUO
2
3
A vila de Ponte de Lima, situada a noroeste do territrio portugus, regio do Alto-Minho,
encontra-se geograficamente bem posicionada tal como o mapa demonstra.
Mapa 1: Localizao geogrfica do concelho de Ponte de Lima.
De razes profundamente medievais, evidenciou ao longo do Perodo Moderno, traos de um
mundo ruralizado combinado com um tnue carter urbanstico1. Deste modo, se a agricultura ocupava
alguns dos seus habitantes no menos verdade que o comrcio local era animado pelos diversos
grupos de mesteres e mercadores que se expandiam pelas poucas ruas que existiam nesta localidade.
O quotidiano que pulsava entre estas atividades era frequentemente interrompido pela pluralidade e
diversidade de festas que preenchiam o calendrio festivo limiano. Nesta localidade existiam vrios
ncleos a partir dos quais emergiam diversas cerimnias festivas uns de grande expressividade como a 1 Acerca da antiguidade desta vila diz-se que por experimentar repetidos combates foi frequentemente alvo de destruies, porm [] sempre triunfou
gloriosa, e logo no principio da Monarchia Lusitana a madou reedificar a Rainha D. Thereza, Me do venervel Rei D. Affonso Henriques no anno de 1125,
dando-lhe foral com grandes privilegios, os quaes lhe confirmou o Senhor Rei D. Affonso 2 [] . AMPL, Fundo documental da Ordem Terceira de So
Francisco de Ponte de Lima, Copia dos Estatutos da Ordem Terceira, 1874, fl. 20.
4
Matriz, a Ordem Terceira de So Francisco, a cmara e outros com menos visibilidade como as
capelas de Nossa Senhora da Guia e de Nossa Senhora do Rosrio.
A igreja Matriz, smbolo do principal centro religioso da vila acolhia vrias instituies
confraternais que independentemente do seu poder econmico gostavam de expressar os seus
sentimentos de piedade atravs de festas que dedicavam sua imagem sagrada. Funcionava como um
ncleo promotor de grande parte dos festejos realizados nesta localidade.
No entanto, o espao da Matriz no era o nico a ritmar a vila com estas demonstraes de
jbilo, a igreja da Ordem Terceira de So Francisco localizada num ponto mais distante daquela e
contgua ao convento de Santo Antnio, do qual foi conquistando autonomia, tambm se abria ao
pblico em momentos de grande solenidade.
No sculo XX, com o nascimento da Histria Nova, assistimos a um alargamento do seu
campo de estudo que ultrapassa o conhecimento dos meros factos polticos ligados vida dos grandes
dirigentes. Deste modo, vemos emergir uma multiplicidade de temas que at ento no eram
suscetveis de objeto de anlise por parte dos investigadores. Estamos perante uma Histria
Totalizante onde todos os aspetos da vida do homem em sociedade so alvo de interesse, pesquisa e
reflexo por parte de quem tem como profisso fazer Histria. Uma das temticas que ganhou espao
na investigao foram as festas e as sociabilidades que lhes so inerentes.
O nosso trabalho pretende ser mais um contributo para o estudo da festa, tema que tem
suscitado muita ateno por parte da historiografia nacional e estrangeira, pois para alm de
representar momentos de jbilo, catarse, anamnese, incorpora variados aspetos da realidade social,
econmica, religiosa, poltica e cultural. Neste sentido, buscamos aportaes de diferentes campos,
com particular realce para a religio, sociologia, antropologia, etnologia e geografia, designadas por
Fernand Braudel cincias do homem2.
nosso propsito analisar as manifestaes festivas promovidas na vila de Ponte de Lima,
dando particular destaque romaria, feira, arraial, conjugadas com procisses, sermes, missas
cantadas, confisses e comunhes.
As coordenadas temporais que abrangem este estudo compreendem a segunda metade do
sculo XVII e a primeira do sculo XIX. Julgamos pertinente fazer uma pesquisa com um intervalo de
tempo mais expressivo que nos permitisse analisar as mudanas ocorridas nas manifestaes festivas
ao longo deste perodo, mais particularmente na transio da modernidade para a Idade
Contempornea. Por esta razo, ao trabalharmos as festividades numa perspetiva de longa durao foi-
2 Braudel, Fernand, Histria e Cincias Sociais, 5 ed., Lisboa, Editoria Presena, 1986, p. 136.
5
nos possvel acompanhar o percurso de algumas destas manifestaes desde os seus momentos mais
pujantes at sofrerem mutaes na primeira metade oitocentista.
O motivo que nos levou a tomar como ponto de partida a segunda metade seiscentista explica-se
pela inexistncia de fontes sequenciais antes deste perodo.
Por outro lado, a anlise de muitas das cerimnias festivas que atraam os fiis vindos das
vrias localidades do concelho, no podia dissociar-se das associaes confraternais implantadas na
vila que floresceram, na sua maioria, a partir da primeira metade do sculo XVII. No entanto, por
questes de temporalidade algumas destas confrarias, como a do Nosso Senhor dos Passos, Nossa
Senhora da Lapa, So Joo Batista, Nossa Senhora das Almas, Nossa Senhora da Agonia, Santssimo
Corao de Jesus e de Nossa Senhora da Conceio no foram analisadas por terem fundao
posterior a 1850, saindo fora do nosso arco temporal.
Tambm, no procedemos ao estudo dos festejos promovidos pela Misericrdia de Ponte de
Lima, por j terem sido tratados no mbito da histria desta instituio.
O convento de Santo Antnio da mesma localidade, tambm no fez parte do objeto de estudo
deste trabalho uma vez que as abundantes informaes recolhidas no mbito das instituies em
anlise dispensaram a recolha de dados acerca de outros espaos institucionais.
As cerimnias estudadas no deixaram atravs da sua organizao e realizao transparecer a
mentalidade que vigorava na poca. O estilo barroco ao servio da Igreja, e muito apreciado no perodo
joanino, evidenciou-se nas festividades realizadas nesta vila limiana. A sua exuberncia esttica,
magnificncia e artificialismos de cores, formas e luzes compraziam o povo espetador. Todo este
imaginrio concebido num contexto barroco tornava-se til para a assimilao da doutrina catlica,
tendo a Igreja um papel de destaque neste propsito. A festividade do Corpo de Deus era uma das
muitas ocasies onde o maravilhoso, a pompa e a grandeza prendiam os fiis que nela participavam.
Estas manifestaes festivas eram de fundamental importncia para as comunidades de
crentes que se reviam na sua confraria enquanto clula de base para a salvao da sua alma, mas
tambm mecanismo de proteo e ajuda em hora de aflio.
Estudar a festa em Ponte de Lima implicou estudar a religiosidade popular. O povo limiano
expressava o que lhe ia na alma munindo-se de rituais, de smbolos, comportamentos e gestos que
lhes permitiam uma aproximao e um contacto mais estreito com o seu santo devoto. Contudo, a
Igreja se, por vezes, tentou cercear algumas manifestaes da religiosidade popular, em outras
ocasies soube conviver com elas colocando-as ao seu servio. Por esta razo, estas duas dimenses
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mantinham-se indissociveis conferindo uma maior consistncia a estas manifestaes cultuais
ancoradas nas festas.
Face s informaes que as fontes documentais compulsadas nos proporcionaram,
procedemos a um estudo analtico das mesmas procurando, sempre que oportuno, recorrer a
comparaes de festividades da mesma natureza em localidades nacionais e estrangeiras. A
bibliografia consultada possibilitou encontrar analogias e diferenas no s na estrutura das festas,
mas tambm no modo como eram operacionalizadas, o que nos proporcionou ainda colmatar algumas
falhas de informao.
O percurso exigido por este trabalho de investigao no foi fcil, pois as fontes pesquisadas
para alm da diversidade de informao que nos transmitiam, apresentavam um extenso e disperso
volume de dados que implicou um grande cuidado e rigor na sua seleo. Outra dificuldade com que
nos deparamos prendeu-se com a existncia de lacunas apresentadas por alguns registos, o que nos
impedia de obter, por vezes, uma ideia sequencial do fenmeno em observao. Acresce-se ainda a
estes entraves o prprio estado de conservao de alguns documentos. A documentao que tivemos
ao nosso dispor para tratarmos analiticamente as festas centrou-se em grande parte no arquivo
Municipal de Ponte de Lima. No entanto, o recurso aos arquivos da igreja Paroquial de Santa Maria dos
Anjos de Ponte de Lima, distrital de Braga e da Torre do Tombo, foi importante para a
complementaridade de alguma informao que se nos apresentava pouco esclarecedora.
A diversidade de elementos que esta temtica acarreta exigiu-nos uma consulta aprofundada
dos fundos das confrarias, da Ordem Terceira de So Francisco e da cmara municipal de Ponte de
Lima.
As cerimnias realizadas de forma cclica, que suspendiam a monotonia diria desta
comunidade alto-minhota, sofreram abalos na sua estrutura organizativa, ao longo do perodo em
estudo, provocados pelas diversas conjunturas econmicas, polticas e sociais. As reformas
pombalinas, os ideais fisiocratas, as invases francesas, o governo do reino nas mos do Conselho de
Regncia, at ao conturbado perodo constitucionalista, apresentaram-se como causas geradoras deste
progressivo e inevitvel declive da festa na sociedade. No entanto, o perodo antecedente a estas
contnuas mudanas orientou-se por brilhantes e majestosas festividades, imbudas de luz, cor, som e
movimento. O povo encantava-se com estes momentos marcados por uma esttica barroca que se
repercutia nas decoraes sumptuosas das igrejas, ruas e na realizao de procisses pomposas e de
outros cerimoniais religiosos. Os bailes, msica e as diversas atividades ldicas que preenchiam os
programas destas festas tambm no deixavam de causar impactos sensoriais no pblico espetador.
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O concelho de Ponte de Lima assumia traos marcadamente rurais, com uma populao
profundamente ligada ao sagrado, materializado nas igrejas, capelas e ermidas disseminadas pelo
seu espao territorial. Todavia, era na igreja Matriz da vila onde se encontrava o maior ncleo de
confrarias que proporcionava a este espao as condies necessrias para a maioria das festas
promovidas. Assim, procuramos surpreender estas associaes quando se abriam ao exterior, em
momentos de grandeza e pujana, concretizando programas ambiciosos de festas. A grande parte
delas aliava sua componente religiosa atividades ldico-profanas, que ao engrandecerem e
enriquecerem os seus programas, atraam um grande nmero de devotos. Existia como que uma
necessidade por parte dos fiis, aps cumprirem as suas promessas no dia da festa do santo devoto,
de proferirem as suas oraes, de participarem na missa, sermo e procisso, procurarem divertir-se
para manifestarem a sua alegria. As festas serviam tambm como vlvulas de escape para aliviar
tenses de um quotidiano, por vezes, muito adverso. A msica, as danas, os bailes, as touradas, os
desfiles, o fogo de artifcio, as iluminaes e a arquitetura efmera so manifestaes profanas por ns
analisados.
A festa comportava, deste modo, dois momentos aparentemente paradoxais mas
complementares em que o povo fazia questo de participar. Os elementos ldicos da festa expressam
de igual forma a identidade cultural, histrica e patrimonial da comunidade limiana. So os traos
caraterizadores de uma comunidade com caratersticas rurais. Foi nossa inteno compreender o
impacto de todos estes elementos no seio da sociedade limiana, a forma como se incorporavam e se
operacionalizavam para cativar o pblico espetador.
A realizao das festas promovia sociabilidades, coeso grupal e simultaneamente momentos de
recolhimento, de manifestao de f e de convvio. Eram tambm ocasies mpares de representao:
as ruas engalanavam-se, as igrejas ornamentavam-se e atapetavam-se de ervas cheirosas, os homens
vestiam os seus melhores fatos, as mulheres adornavam-se com o seu ouro, caminhando todos um
quotidiano ritmado pela festa.
Deslumbrantes pelo brilho que faziam chegar, estes momentos de grandeza e espectacularidade
no abarcam a totalidade das festas. escala micro eram realizadas muitas festas que no apenas
agregavam os membros das associaes que as promoviam, mas tambm muitos outros que a eles se
associavam em tempo de festa.
As confrarias promoviam muitas festas ao longo do ano, proporcionando momentos intensos de
vivncia grupal. A estas realizaes juntavam-se outras promovidas pelo poder local. O municpio
assumia-se no apenas como regulador da vida de uma comunidade mais alargada, mas tambm
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como patrocinador de momentos de representao de poder dos grupos de ofcios, associando-os ao
calendrio religioso.
As festividades limianas nunca foram trabalhadas na longa durao. Os poucos estudos que as
abordam dedicam-lhe espaos muito limitados, no as assumindo enquanto patamares de f,
sociabilidade, convvio, poder e integrao que preenchiam a vida da comunidade e lhes proporcionava
visibilidade e poder.
As festas por ns estudadas assumem no calendrio duas realidades distintas quanto sua
realizao: as estipuladas no calendrio litrgico que podem assumir um carter mvel, condicionadas
pelo calendrio lunar, e neste mbito enquadram-se as desenvolvidas no perodo quaresmal, iniciado
com a procisso de Cinzas e concludo com a semana da Pscoa. Inseridas no ciclo posterior
destacam-se o Corpo de Cristo e o Esprito Santo coincidentes com a estao da primavera. Como
festas fixas vislumbraram-se as festas de invocao Virgem, ao Santssimo Sacramento e aos santos.
Contudo, constatamos que nem sempre o seu carter imvel era cumprido, j que por variados
condicionalismos as mesmas realizavam-se noutras ocasies. Para alm destas festividades, outras
constituram objeto de estudo como as relacionadas com acontecimentos politicamente significativos e
com o ciclo vital da famlia reinante: nascimentos, aniversrios, casamentos e mortes.
Como principais promotores destas festividades apresentavam-se as confrarias cujos membros
reuniam todos os esforos para a edificao destes momentos, nos quais se partilhava o fervor
religioso, a venerao das entidades divinas e a alegria de interagir com os outros. A instituio
camarria, principal impulsionadora do Corpus Christi, atribua aos dignitrios da Matriz da vila a
preparao da componente religiosa. Ainda sobre a responsabilidade da edilidade limiana organizavam-
se as festas ligadas famlia reinante e as de cariz mais poltico. A Ordem Terceira de So Francisco
incrementava as suas festividades autonomamente, contando com o apoio, quando necessrio, das
confrarias locais.
Este trabalho estrutura-se em seis captulos. O primeiro analisa o impacto das festas no seio da
vida quotidiana das comunidades e a forma como o pblico se envolvia nesse ambiente ferico. Tendo
em ateno que a natureza religiosa estava sempre presente nestes festejos no deixamos de estudar
a religiosidade alimentada pelo povo e sua inter-relao com a religiosidade oficial. Salientamos ainda
nesta primeira parte a importncia das festividades como ocaises oportunas de afirmao e
legitimao do poder local ao apresentarem-se como meio de persuaso no faltando o brilho, a
grandeza e todos os seus artificialismos.
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No captulo subsequente abordamos as festividades enquadradas no ciclo quaresmal, tais como
as cerimnias da Via Sacra e das Quarenta Horas. A nossa anlise debrua-se sobre a ao dos
irmos da Ordem Terceira de So Francisco que promoviam a Via Sacra todas as sextas-feiras da
Quaresma, perodo que tambm representava para todos os fiis uma preparao espiritual com vista
comunho do grande dia assinalado pela Ressureio de Cristo. No menos relevante era a
celebrao do ritual devocional das Quarenta Horas, organizado pela mesma instituio. De igual
forma, na Matriz o mesmo ritual religioso ficava sob a organizao dos chamados devotos das
Quarenta Horas que se socorriam das esmolas dadas por algumas confrarias, bem como dos
peditrios que efetuavam pelas portas dos moradores da vila para este fim. A partir de 1841 a
confraria de Nossa Senhora a Grande integrou tambm no seu programa de celebraes festivas a
realizao das Quarenta Horas. Todavia, era com a procisso de Cinzas que os irmos terceiros
abriam as festividades religiosas da Quaresma. Esta celebrao processional que se apresentava ao
pblico se, por um lado, tinha um forte simbolismo para a Ordem ao abrir um longo perodo de
penitncia e de expurgao dos pecados, por outro dotava-a de prestgio e importncia numa
sociedade onde elementos desta natureza tinham grande peso. Deste modo, reuniam-se grandes
esforos para que tudo decorresse conforme o estabelecido em reunies de Mesa.
Embora as fontes no nos fornecessem informaes suficientes sobre a Procisso dos Passos,
parece-nos que esta tradio no tinha a mesma projeo de noutras localidades do Alto-Minho.
Todavia, algumas confrarias como a do Divino Esprito Santo faziam questo de fornecer donativos para
que este ritual fosse realizado por alguns devotos.
Conclumos este captulo com uma anlise sobre as festividades que caraterizam a Semana
Santa em Ponte de Lima, promovida em parte pela confraria do Santssimo Sacramento. Fruto desta
celebrao, o espao interior da Matriz transfigurava-se, adquirindo cenrios especficos para o dia em
que se comemorava. O dia apotetico era o domingo de Pscoa, que expressava o regozijo pela
Ressureio de Jesus Cristo.
No captulo terceiro abordamos de forma minuciosa o cerimonial que envolvia a festividade de
Corpus Christi que, comparada com as restantes festas promovidas na vila se destacava pela sua
grandiosidade e magnificncia. Talvez esta fosse uma das razes, entre outras, que levasse as
cmaras a serem as suas principais promotoras. O interesse comum que todas estas instituies
pareciam cultivar e que discretamente aparecia camuflado pelos artificialismos apresentados pela festa
era o prestgio social e poltico. Atesta esta afirmao a emergncia de vrios conflitos existentes entre
as irmandades e outras instituies que participavam nesta procisso consagrada ao corpo eucarstico.
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Uma teia de interesses subjazia ocupao de lugares neste desfile. Foi seguramente durante o
barroco que estes festejos tiveram mais impacto na vila de Ponte de Lima. O luxo, a glria, a fantasia
materializados em ornamentaes faustosas no se desligavam do programa festivo, organizado pelos
vereadores camarrios e pelos membros do clero durante o Perodo Moderno. A teatralidade constitua
outro aspeto importante e enriquecedor do cortejo processional do Corpus Christi, servindo ainda
para dominar e instruir um pblico que acarretava consigo as amarguras que o Antigo Regime lhes
imprimia.
A estrutura processional desta festa abrangia duas dimenses: a sagrada e a profana. A primeira
seguindo os cnones da Igreja procurava impressionar os fiis e convert-los cada vez mais ao
catolicismo, a segunda caraterizava-se pelos mltiplos e divertidos quadros compostos pelos variados
misteres que existiam na vila limiana. No faltava alegria, risos e regozijo coletivo provocados
propositadamente pelo poder institudo. Intentava-se nesta sociedade profundamente estratificada criar
uma vlvula de escape que se abria em determinadas ocasies para manter o equilbrio e
estabilidade entre as ordens sociais, de forma a que o poder do Antigo Regime no sofresse ruturas e
se mantivesse fortalecido e com vigor. A festa com a sua cor, som e luz envolvia todo o homem
moderno numa iluso momentnea e efmera, mas suficiente para o motivar novamente para a rotina
diria.
Esta festividade em Ponte de Lima iniciava-se no dia anterior com um espetculo tauromquico
anunciador do dia de Corpus Christi. Desta forma, procuramos averiguar todos os mecanismos que
nesta festividade eram capazes de manter a sociedade limiana sob o jugo de um poder que os onerava
ao pagamento de vrios impostos e multas mesmo para quem no queria participar na sua procisso.
Apesar desta celebrao se praticar em muitas localidades do pas, revelamos que em Ponte de Lima
assumia contornos especficos, condicionados pelos seus hbitos culturais, histricos e etnogrficos
identitrios de um povo. Condicionada pelas transformaes ocorridas nos finais do Antigo Regime, a
perda progressiva do sentimento e prtica religiosa transformou este prstito num desfile mais simples,
menos sumptuoso e desprovido do brilhantismo que o caraterizava nos tempos ureos.
No captulo quarto avaliamos as festividades promovidas pelas confrarias de Ponte de Lima.
Por outro lado, intentmos, sempre que os dados fornecidos pelas fontes documentais permitiram,
determinar as conexes existentes entre estes espaos confraternais, bem como avaliar os momentos
em que estas adquiriam maior relevo, identificando os motivos que as impulsionavam a isso, mesmo
sabendo que algumas no mantinham relaes estveis. Procuraremos ainda demonstrar a relao de
convivialidade existente no s entre as instituies alocadas na Matriz, mas tambm entre aquelas e
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as sediadas em capelas exteriores igreja como as de Nossa Senhora das Dores sediada extramuros
da vila e de Nossa Senhora do Rosrio alocada ao p da ponte.
Neste captulo, e atendendo abundncia de fontes sobre a confraria de Nossa Senhora das
Dores e ao seu lugar no calendrio festivo local, procedemos a uma explorao mais exaustiva desta
festividade. Estudaremos o tipo de esmolas por si recebidas, o seu poder econmico e os meios a que
a confraria recorria para manter a sua festa com vitalidade, mesmo aps a implantao do Liberalismo.
Para um melhor enquadramento desta festa religiosa abordaremos as crenas e rituais populares a ela
inerentes, to caratersticos do meio rural.
Procuramos ainda compreender os elementos que compunham a festa e quais geravam mais
despesas, apesar de nem sempre os livros de receita e despesa permitirem analisar essa informao
como desejvamos. No raras vezes, aconteceu, os livros das contas gerais apresentarem as despesas
efetuadas com as festividades agregadas a outros gastos tornando-se impossvel proceder sua
destrina, o que algumas vezes nos dificultou a obteno de informaes mais precisas acerca dos
desembolsos feito para alguns destes momentos. Para uma melhor interpretao e esclarecimento
destes investimentos feitos com as festas procedemos ao recurso de grficos apresentados em anos
administrativos uma vez que as fontes compulsadas o exigiram.
Focalizamos a nossa anlise nos momentos do ciclo vital da Casa Real, nascimentos,
casamentos, aniversrios e morte no captulo quinto. nosso objetivo determinar a importncia destes
festejos para a sociedade local, saber de que forma as pessoas os recebiam e como demonstravam a
sua fidelidade ao poder institudo.
A morte do soberano era o momento que se revestia de maior teatralizao e simbolismo, no
entanto todas estas ocasies eram preparadas com cuidado pelo poder local. Acrescia-se ainda a estes
momentos de jbilo, outras festividades cuja natureza estava tambm imbuda de simbolismo poltico.
Procuraremos contextualizar os momentos politicamente significativos e vividos na primeira metade do
sculo XIX com o tipo de festejos que se promoveram.
No ltimo captulo trataremos da importncia que os sinos representavam no quotidiano da
populao da vila mas tambm aquando das festividades. As prprias fontes conduzem-nos a um
quotidiano igualmente marcado pela conflitualidade, tendo os sinos de permeio. Confrarias, Ordem
Terceira e convento de Santo Antnio litigaram por causa dos sinos.
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Captulo I A FESTA E A SOCIEDADE
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1.A festa e a sua importncia na vida das comunidades
A festa como ato agregador, evocando um acontecimento em torno do culto dos santos e da
Virgem, ou mesmo de uma comemorao poltica integrava representaes, imagens, objetos,
ornamentos, comida, danas, msica, entre outros. Estas atividades de jbilo que proporcionavam
espetculos e emoes profundas no Homem moderno e contemporneo apresentavam um carter
simblico. A festa simbolizao1.
Enquanto ocasies geradoras de entusiasmo, alegria, barulho, liberdade e excessos, as festas
cadenciavam o ritmo de vida das populaes, constituindo, ao mesmo tempo, um ponto de encontro
de geraes e da comunidade2.
Na regio do Alto-Minho estes momentos de regozijo e catrticos proliferaram ao longo dos
tempos3. Embora a maioria tivesse uma feio marcadamente religiosa e devocional, as festas
significavam tambm, divertimento e animao com desfiles, msica, cantares, danas, bailes, fogo de
artificio e iluminaes, elementos incorporados num espao cnico criado para a ocasio. O nmero de
festividades era de tal ordem significativo que muitos fisiocratas viam nestes momentos um prejuzo
para a economia da regio, o que impedia o seu florescimento ao desviarem os camponeses das suas
tarefas agrcolas4. Apesar das crticas destes tericos, elas resistiram e no deixavam de ser marcantes
na promoo do convvio e sociabilidade das populaes.
Se por um lado, as pessoas se deslocavam festa movidas pela f, agradecendo ou implorando
divindade a concesso de alguma graa, por outro vinham para encontrar os amigos, para
conviverem e se divertirem. Reforavam-se as amizades, recuperavam-se outras ou conheciam-se
novas pessoas. Todavia, os encontros motivados pelas festividades, ao envolverem um volumoso
nmero de pessoas criavam ocasies propcias para conflitos, desacatos e outro tipo de desordens.
Seguramente que o nmero de pessoas no justificava por si s estes embaraosos episdios, pois a
festa como tempo de abundncia, de excesso, de exagero envolvia as multides em grandes frenesins
1 A respeito da festa, espetculo e poltica confira-se Segalen, Martine, Ritos e Rituais, Mem Martins, Publicaes Europa Amrica, 2000, p. 73.
2 Para este tema confira-se Lima, Jos da Silva, Festas, in Azevedo, Carlos Moreira (Dir.), Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal, Lisboa, Crculo de
Leitores, 2000, p. 252.
3 Sobre as festas do Alto-Minho atente-se em Crespo, Jos, Romarias do Alto-Minho, in Cadernos Vianenses, Tomo II, Viana do Castelo, Cmara
Municipal de Viana do Castelo, 1979, pp. 181-186.
4 As festas constituram um alvo de crticas por parte dos fisiocratas. Leia-se Bezerra, Manuel Gomes de Lima, Os Estrangeiros no Lima, vol. II, Edio fac-
similada, Viana do Castelo, Cmara Municipal de Viana do Castelo, 1992, p. 10. Ainda sobre a vida, obra e ideias deste mdico e acadmico limiano
consulte-se Pereira, Jos Esteves, O pensamento econmico de Manuel Gomes de Lima Bezerra, in Cadernos Vianenses, tomo 18,1995, pp. 193-203.
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que culminavam, por vezes, em acesos conflitos5. A forte componente ldica da festa dava impulso
libertao de emoes, tenses e pulses o que fazia dela um lugar catrtico6. Nos meses de vero a
grande convivncia em espao abertos como a rua, festas e romarias proporcionavam muitos
desacatos. No Porto, na segunda metade do sculo XVIII e nestas ocasies que fervilhavam de
festividades exigia-se uma grande interveno das autoridades, j que as ruturas emocionais e
comportamentais aquando destas reunies de gente ocorriam com mais facilidade7.
Todavia, no podemos esquecer que os espaos festivos tambm propiciavam o negcio,
sobretudo no que tocava venda dos produtos caratersticos da regio onde a festividade se
desenrolava. Em Ponte de Lima, aos trs dias de festividade que honravam Nossa Senhora das Dores
associaram-se a partir de 1826, e por proviso de D. Pedro IV, as chamadas feiras francas.
Constituam uma forma de animarem a economia local ao possibilitarem a venda e troca de produtos
da terra, animais, alfaias agrcolas e artesanato, ao mesmo tempo que se confraternizava8. No
obstante, estas no ficavam imunes de rixas e tumultos que podiam ter repercusses negativas ao
afastarem os vendedores e fregueses9. Mas, se estes negcios podiam ser encarados como uma mais
valia para a confraria promotora da festividade, o lado menos positivo tambm podia vislumbrar-se na
medida em que as peregrinaes e outras demonstraes de religiosidade metamorfoseavam-se em
feiras10. Estas passaram ao longo dos tempos a associarem-se com frequncia ao culto dos santos e
padroeiros dos concelhos, assumindo grandes dimenses e aparncias diferentes daquelas que se
realizavam semanalmente ou quinzenalmente11. certo que no sculo XIX, a festa de Nossa Senhora
das Dores saiu reforada com estas atividades mercantis, no entanto os membros que a promoviam
foram mais longe ao apostarem e investirem na diversificao e crescimento de manifestaes
5 Para este assunto leia-se Lima, Jos da Silva, Festas, in Azevedo, Carlos Moreira (Dir.), Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal, p. 252.
6 Consulte-se a este respeito Lima, Jos da Silva, A Festa e a Festa Vianense, p. 175.
7 A este propsito leia-se Ribeiro, Ana Sofia Vieira, Convvios difceis: viver, sentir, pensar a violncia no Porto de setecentos. (1750-1772), Porto, Faculdade
de Letras da Universidade do Porto, 2008, Tese de Mestrado policopiada.
8 As feiras locais para alm das trocas econmicas que promoviam constituam ainda momentos de sociabilidade propensos ao intercmbio de bens
imateriais como emoes, jogos, saberes, aprendizagens, notcias variadas, entre outros. Sobre este assunto consulte-se Saavedra, Pegerto, La
consolidacin de las ferias como fiestas profanas en la Galicia de los siglos XVIII y XIX, in Nez Rodrguez (coord.), El Rostro y el Discurso de la Fiesta,
Santiago de Compostela, Universidade, Servicio de Publicaciones e Intercambio Cientifico, 1994, p. 287.
9 Sobre as feiras locais consulte-se o trabalho de Esteves, Alexandra, Entre o crime e a cadeia: violncia e marginalidade no Alto Minho (1732-1870), vol. I,
Braga, Universidade do Minho, 2010, p. 231, tese de Doutoramento policopiada.
10 D. Jos de Bragana (1756-1789) impediu as rebuadeiras de comercializarem, durante o perodo penitencial praticado na Quaresma, junto dos locais
onde se solenizasse o ritual do Lausperene. Procurava, desta forma, impedir que o barulho provocado aquando da venda dos doces transtornasse este
ritual sagrado. Consulte Soares, Maria Ivone da Paz, E a sombra se fez verbo Quotidiano feminino setecentista por Braga, Braga, Associao Comercial
de Braga, 2009, p. 111.
11 A este propsito consulte-se Lima, Jos da Silva, A feira e a festa, in Cadernos do Noroeste- Minho terras e gente, n 1, Braga, Universidade do Minho,
1986, p. 147.
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profanas, permitindo que estes dias de grande solenidade adquirissem mais solidez e resistncia num
perodo de secularizao como foi a centria oitocentista. Este fenmeno pode ajudar a explicar o facto
de estes festejos serem atualmente um dos maiores arraiais do Alto-Minho, onde a atmosfera ldico-
profana constrange a componente religiosa. Por outro lado, proporcionou confraria demarcar-se das
restantes da vila ao situar-se na dianteira de todas as festividades do concelho, que progressivamente
iam perdendo a sua expressividade. Esta realidade vislumbrou-se na festa de Nossa Senhora da Agonia
em Viana do Castelo, que a partir da segunda metade do sculo XIX apresentou uma expanso profusa
de elementos profanos incorporados no seu programa e que rivalizaram com o sagrado12.
A festa como expresso de uma comunidade exige organizao, envolvendo vrias pessoas
necessrias satisfao das necessidades logsticas, mas tambm para o estabelecimento de
contactos importantes para o seu sucesso13. Este fenmeno pautado por relaes de sociabilidade era
intenso em Ponte de Lima se atendermos a que a vila estava coberta de associaes confraternais e de
outras instituies que para alm dos objetivos espirituais e caritativos centravam-se no culto de uma
divindade protetora que a agraciavam com uma festividade. Os confrades encontravam nestas
associaes um espao de reforo de identidades, de estreitamento de laos profissionais ou grupais e
de promoo de estatuto social14. No entanto, entre os membros das vrias confrarias e outras
instituies tambm se estreitavam as relaes, no somente com as sediadas na Matriz da vila, mas
ainda com as que tinham capela prpria. Esta inter-relao era promovida sobretudo aquando da
proximidade das festividades e traduzia-se particularmente em pedidos de emprstimos de alfaias
litrgicas, paramentaria e de cortinados. Os mesrios das vrias instituies procuravam abrilhantar os
seus festejos principais com o maior brilho possvel. Os livros de termos fornecem-nos informaes das
mltiplas reunies convocadas antes das festas tendo como tnica principal a festa do santo ou santa
da sua devoo. Segundo Marta Lobo a festa preparava-se para ser vista e fruda pelos devotos,
tornando-se durante o barroco num espetculo grandioso para ser observado15.
Os mesmos procedimentos eram ponderados anualmente pelos promotores e membros das
instituies confraternais e outras, que se reuniam propositadamente com o intuito de organizar estes
12 Contemplavam-se elementos ldicos, etnogrficos e econmico-sociais, que se tornaram no principal motivo para as populaes se deslocarem festa.
Leia-se Costa, Rui Afonso, Costa, Hamilton, Tendncias da piedade popular: os modelos de secularizao e de clericalizao, in Cadernos Vianenses, n
29, Viana do Castelo, Cmara Municipal de Viana do Castelo, 2001, p. 118.
13 A este propsito veja-se Martin Demtrio, E. Brisset, La rebeldia festiva Historias de fiestas ibricas, Girona, Luces de Gbilo, 2009, p. 47.
14 As confrarias eram ainda crculos de poder, bem como lugares de integrao socio-poltica. Sobre este tema consulte-se Arajo, Maria Marta Lobo de, A
confraria de Nossa Senhora de Porto de Ave: um itinerrio sobre a religiosidade popular no Baixo Minho, Braga, confraria de Nossa Senhora de Porto de
Ave, 2006, p. 22.
15 Sobre as festas e romarias atente-se no trabalho de Arajo, Maria Marta Lobo de, A confraria de Nossa Senhora de Porto de Ave: um itinerrio sobre a
religiosidade popular no Baixo Minho, p. 232.
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grandes dias. O cuidado e empenho colocados nesses momentos conferiam tambm vitalidade s
instituies promotoras, razo que levava os seus gestores a procederem a grandes investimentos.
Nesta pluralidade de festividades no podemos esquecer aquelas, que apesar de no estarem
contempladas no calendrio litrgico e que para alm de animarem a corte, tambm divertiam a
populao de Ponte de Lima. Falamos dos faustos acontecimentos ligados s famlias reinantes:
nascimentos, batismos, casamentos, mortes, entre outras. Os sentimentos de alegria surgiam quase
como uma obrigao se atendermos que toda a correspondncia enviada da capital para as localidades
do reino impunha a forma como a ritualizao do fenmeno festivo devia ser organizada16.
Nas festas religiosas e civis todos os segmentos da sociedade participavam, ningum se exclua,
desde os menos favorecidos at aos mais prestigiados. Com papis diferentes e mais ou menos ativos
eram mobilizados neste processo, uns na qualidade de atores principais, outros como secundrios e
ainda o pblico assistente alegre e ruidoso. A festa um espao de todos, um fenmeno social
total, engloba vrias geraes cuja participao se adequa aos interesses e motivaes de cada uma
delas17.
1.1.A festa na religiosidade popular
A intensa e fervorosa religiosidade do povo limiano dotou a vila e seu termo de um rico e variado
patrimnio artstico e arquitetnico traduzido na proliferao de cruzeiros, vias sacras, nichos e
alminhas, bem como de capelas e igrejas18. Contudo, estas manifestaes de f no se restringiram
somente queles meios, pois as festividades em honra dos santos e santas de sua devoo no
deixaram de fervilhar por todos os lugares do concelho. Festejava-se Deus e os seus santos protetores.
Os rituais, smbolos e comportamentos destes devotos expressavam-se nesses momentos
festivos e de grande religiosidade assinalados com sermes, missas e procisses. O sagrado nunca se
manifesta no seu estado puro, mas sim atravs de elementos que o ultrapassam como os ritos,
16 A este propsito consulte-se Lopes, Antnio, Guinot, Paulo, Os tempos de festa: elementos para uma definio, caraterizao e calendrio da Festa na
primeira metade do sculo XVII, in Actas do VIII Congresso Internacional A Festa, vol. I, Lisboa, Universitria Editora, 1992, p. 369.
17 Em relao a este assunto veja-se Lima, Jos da Silva, Deus, No tenho nada contra socialidades e eclesialidade no destino do Alto-Minho, Porto,
Universidade Catlica Portuguesa, 1994, p. 305.
18 Sobre esta temtica consulte-se o trabalho de Almeida, Carlos A. Brochado; Gonalves, Mrio Carlos Sousa; B. de Almeida, Ana Paula Azevedo Ramos,
F e religiosidade popular em Ponte de Lima: cruzeiros, vias sacras, nichos e alminhas, Ponte de Lima, Municpio de Ponte de Lima, 2013, pp. 11-32.
19
mitos, objetos, smbolos, formas divinas, homens, plantas e lugares19. Esta localidade, tal como outras
do Minho evidenciam ainda hoje marcas do religioso assente no entusiasmo e encanto que estas
populaes expressam pela festa e pela reunio de grandes massas20. Quanto mais rural e prximo da
terra-me mais o povo tem necessidade da festa e da religio, para se diverir e conviver21. O povo com
o seu carter espontneo e simples, ao participar nos festejos, articula o profano com o sagrado de
forma harmoniosa, ignorando-se a linha que os reparte.
Ponte de Lima transfigurava-se nestes momentos. Era na Matriz que muitas festas comeavam e
acabavam (ver figura 1). Este local surge assim como centro catalisador da populao e dinamizador
de sociabilidades. Porm, outras instituies com capelas e igrejas prprias espalhadas pela vila
atraam os devotos sobretudo em tempos de festa.
O culto pblico praticado com grande devoo e f movia, nestas ocasies festivas, os devotos
para o interior dos templos, funcionando como retiro espiritual, onde procuravam aproximar-se da
divindade para a reverenciar e presente-la com esmolas sobretudo em dinheiro. Com menos
frequncia doavam-se produtos do campo, roupas, ouro e outros objetos, atendendo s possibilidades
econmicas de cada doador. Orava-se, faziam-se pedidos e cumpriam-se promessas, humanizava-se o
divino para t-lo mais prximo e para melhor alcanar as suas mercs22. O povo no s se apegava s
imagens mas ainda aos objetos que com elas esto relacionados, exteriorizando a f com sacrifcios,
apresentao de ex-votos e ofertas como forma de agradecimento e pagamento das promessas
feitas.
A imagem do santo invocado na festa funcionava como centro de ateno dos fiis. Era nela que
confiavam. O sagrado convertia-se numa representao humana que irradiava conforto, segurana,
capaz de acalmar algumas das suas inquietudes23. A viso funcionava nestes momentos como o
sentido mais privilegiado para se alcanar o divino24.
19 Sobre o sagrado e profano atente-se em Pereira, Lgia, O sagrado e profano, in Azevedo, Carlos Moreira (Dir.), Dicionrio de Histria Religiosa de
Portugal, p. 148,
20 Sobre o Religioso e as romarias leia-se Lima, Jos da Silva, Identidade, cultura e cristianismo em Viana, Hoje, in Cadernos Vianenses, tomo XV, Viana
do Castelo, Cmara Municipal de Viana do Castelo, 1991, p. 180.
21 Segundo Geraldo Dias, entre os elementos constitutivos de uma festa ou romaria existe a igreja ou capela locais onde se venera a imagem milagrosa do
santo, a romagem, o romeiro, vestido de festa que vai agradecer ou suplicar a promessa. Consulte-se Dias, Geraldo J. A Coelho, Religiosidade Popular e
Devoo das gentes do mar em Esposende, in Portugalia, vols XVII-XVIII, 1996/1997, pp. 250-251.
22 Sobre este assunto consulte-se Lima, Jos da Silva, A Religiosidade popular, in Azevedo, Carlos Moreira (Dir.), Dicionrio de Histria Religiosa de
Portugal, p. 109.
23 Os santos aproximam o sagrado dos homens, resultando numa relao de familiaridade que alguns devotos tm com aqueles. Leia-se Barroso, Paulo,
Romarias de Guimares: patrimnio simblico, religioso e popular, Guimares, Universidade do Minho, 2004, p. 53.
24 Este poder que as imagens tinham sobre os devotos constitui uma das preocupaes dos reformadores protestantes que pretendiam valorizar a palavra.
Confira-se Muir, Edward, Fiesta Y Rito en la Europa Moderna, Madrid, Editorial Complutense, 1997, pp. 242, 244.
20
Figura 1: Igreja Matriz de Ponte de Lima.
21
Os devotos procuravam, deste modo, que os santos intercedessem por eles junto de Deus, j
que segundo a doutrina da Igreja so eles os intermedirios entre o Homem e o Criador25. O temor face
s foras poderosas que transcendem o ser humano conduz reverncia, ao respeito e ao
entendimento do sagrado como algo de inatingvel e distinto. Desta postura do ser humano face ao
divino emergem os sacrifcios, exerccios ascticos e de orao, com a inteno de se fazerem splicas
nos momentos de maior aflio e perigo. O homem entusiasmado por estas foras misteriosas e ao
pretender comungar com Deus, promove o culto como forma de adorao e de ao de graas26.
As prticas cultuais engrandeciam-se com as festas de invocao Virgem e aos santos. Nestas
expresses de devoo demonstrava-se fidelidade, emoo e sensibilidade vividas de forma coletiva e
capazes de identificar a cultura e rituais de um povo. Neste sentido, so estas formas de demonstrao
pblica em torno de um mesmo objeto e marcadas pelos mesmos gestos e mesmas palavras que
mantm as sociedades coesas27. Esta religiosidade popular no atua isoladamente na festa, ela
imbrica-se e inter-relaciona-se com a religio oficial catlica28.
Se algumas instituies impulsionadoras dos festejos integravam na sua programao atividades
meramente religiosas, outras aliavam componente sagrada a profana. A festa minhota ainda nos dias
de hoje comporta estas duas vertentes, bem como a igreja e o arraial. Desta forma, as entidades
religiosas incumbiam-se da organizao de todos os rituais litrgicos, enquanto os seculares tratavam
dos programas mais ldicos e de maior diverso.
As procisses constituam o momento apotetico das festas religiosas e, ao mesmo tempo, uma
forma do sagrado ir ao encontro das populaes29. Os prstitos religiosos permitiam um contacto
coletivo com o sagrado30. O espao pblico adquiria significado e santificava-se ao ser percorrido pelos
santos encimados em andores bem ornamentados, por anjos, figuras bblicas e pelo plio a proteger a
sagrada hstia, junto do qual se dispunham as figuras de maior prestgio e autoridade das
localidades. Estes prstitos contemplavam ainda as bandeiras das confrarias, transportadas por
25 Para este assunto veja-se Herrero Prez, Nieves, A relixiosidade coti: Deus e os santos, in Rodrguez Iglesias, Francisco (ed.), Relixin, Crenzas,
Festas, Corua, Hrcules de Ediciones, 1999, p. 53.
26 A estreita relao entre o temor e a admirao so os elementos estruturadores da religiosidade enquanto fundamento de todo o sistema religioso. A este
respeito leia-se Dias, Geraldo, J. A Coelho, Religiosidade Popular e Devoo das gentes do mar em Esposende, p. 246.
27 Para esta matria atente-se em Muir, Edward, Fiesta Y Rito en la Europa Moderna, p. XIII.
28 Leia-se Silva, Manuel Carlos, A festa: um ritual de nivelamento ou de diferenciao social?, in Cadernos do Noroeste, vol. 9 (2), 1996, p. 86.
29 Consulte-se Maldonado, Lus, Introduccin a la religiosidade popular, Santander, Editorial Sal Tarrae, 1985, p. 172.
30 Outra modalidade de contacto com o sagrado o individual onde se reverencia a divindade, com gestos e oferendas. Sobre este assunto leia-se Sanchis,
Pierre, Ambiguidade e ambivalncia do fenmeno popular: a propsito das romarias portuguesas, in Cadernos do Noroeste- Minho terras e gente, n 1,
Braga, Universidade do Minho, 1986, p. 134.
22
membros trajados para a ocasio, cruzes e procos vindos das vrias freguesias31. As constituies
sinodais do arcebispado de Braga de 1697 exigiam rigor relativamente organizao das procisses
solenes, aplicando multas a quem no transportasse as cruzes das freguesias nessas alturas e no se
apresentasse devidamente paramentado32.
Estes desfiles processionais reforaram-se e floresceram a partir da reforma de Trento,
constituindo uma estratgia da prpria Igreja para expressar a adeso das comunidades33. certo que
as associaes confraternais edificadas ou reabilitadas, nos finais do sculo XVI, institucionalizaram e
rejuvenesceram o ritual catlico ao promoverem procisses com certa regularidade.
Os sermes celebrados nas ocasies festivas tambm enriqueciam o programa religioso e para
estes selecionavam-se os melhores pregadores dotados de maior eloquncia para impressionar e
doutrinar os devotos. O plpito desde sempre representou um veculo de poder e de domnio poltico,
religioso e social sobre a populao catlica34. Num perodo onde a cultura se assumia como
predominantemente oral, os pregadores constituam o veculo transmissor de ideias e at de
mensagens polticas35.
As populaes no eram atradas somente pelas celebraes litrgicas, mas tambm pela outra
parte dos festejos: msica, bailes, fogo de artifcio, jogos, teatros e corridas de touros, elementos que
provocavam nas autoridades eclesisticas atitudes de contestao e indignao36. Estas diverses
tinham o poder de concentrar um grande nmero de pessoas que encontravam aqui momentos de
31 Segundo Miguel Lemos a procisso era um desfile compassado por membros da Igreja, membros das irmandades, com andores de imagens de santos
ou do Homem Deus e sua Me. Veja-se Lemos, Miguel Roque dos Reis, Procisses, in O Commercio do Lima, n 207, Ponte de Lima, 1879, pp. 1-2.
32 Constituioens Sinodais do arcebispado de Braga ordenadas no anno de 1639 pelo Illustrissimo Senhor Arcebispo D. Sebastio de Matos Noronha E
mandadas imprimir a primeira vez pelo Illustrissimo Senhor D. Joo de Sousa Arcebispo & Senhor de Braga, Primaz das Espanhas do Conselho de sua
magestade e seu sumiller da cortina, Lisboa, Officina de Miguel Deslandes, 1697, p. 73.
33 Muitas foram as prticas rituais catlicas criticadas pelos protestantes. As procisses litrgicas no escaparam, bem como os sacramentos e as missas
votivas. Por tal razo, os catlicos como resposta reafirmaram e reforaram o valor de tais rituais. Sobre esta matria confira-se Muir, Edward, Fiesta Y Rito
en la Europa Moderna, Madrid, pp. 260-261.
34 Para esta matria confira-se Mran, Manuel; Andrs Gallego, Jos, O pregador, in Rosario Villari (Dir.), O homem barroco, Lisboa, Editorial Presena,
1994, pp. 125-127.
35 A formao do clero secular no Antigo Regime era uma prioridade da Igreja, pois os seus membros estavam muito mal preparados para doutrinar os
fiis. Deste modo, a instruo de ensinamentos litrgicos, de moral e teologia integrava um conjunto de conhecimentos que os mesmos deviam adquirir.
Sobre este assunto consulte-se Gouveia, Antnio Cames, Enquadramento ps-tridentino e as vivncias do religioso, in Mattoso, Jos (dir.), Histria de
Portugal, vol. IV, Lisboa, 1993, pp. 293-295.
36 Sobre este assunto leia-se Rodrigues, Ana Maria S. A., Contributo para o estudo das Festas na Idade Mdia portuguesa, in Cadernos do Noroeste, vol.
9 (2), 1996, p. 111.
23
evaso e at de excesso que lhes prendiam e dominavam os sentidos37. A msica estava presente em
todas estas manifestaes religiosas e profanas investindo-as de grandiosidade38.
Era precisamente nestas ocasies festivas que emergiam as divergncias entre a religio popular
e oficial controladora dos dogmas e ritos. Uma imagem ou procisso podiam, por vezes, estar na base
destes afrontamentos, onde o folclrico e o naturalista tidos como pagos eram combatidos pelos
membros da Igreja39.
1.2.O poder da festa
Tanto as festas contempladas no calendrio litrgico como as inerentes s famlias reinantes
para alm de romperem com o dia-a-dia das populaes tinham ainda em comum a demonstrao de
poder. A monitorizao deste poder partia dos monarcas reinantes, que atravs de instituies como a
Igreja, procuravam manter o povo sob o seu domnio de forma ordeira acatando pacificamente todas as
obrigaes que lhe eram impostas. Para isso, esperava que os agentes eclesisticos enquadrassem os
fiis numa vivncia norteada pela obedincia, pelos princpios religiosos e respeito pelo poder40. Neste
sentido, exitiram vrias estratgias para a operacionalizao dessa inteno, entre as quais as
festividades que se realizavam ao longo do ano que implicitamente transmitiam ao povo mensagens
que visavam enquadr-lo numa sociedade marcada pela fidelidade a Deus e ao rei. Contudo, no Antigo
Regime no deixaram de eclodir tenses sociais sob a forma de motim resultantes de vrios fatores
que afetavam as necessidades bsicas da populao. Mas se estas revoltas irrompiam, tambm
37 Segundo Maria Ivone Soares a mulher setecentista era quem mais almejava ser vista e ver o que no conseguia pelo recolhimento e isolamento a que
estava submetida. Todavia, desejava mais para alm das atividades religiosas, ambicionava os fogos-de-artifcio, cavalhadas, romarias, teatros, danas e
msica. A este propsito consulte-se o trabalho de Soares, Maria Ivone da Paz, E a sombra se fez verbo Quotidiano feminino setecentista por Braga, p
p. 100-101.
38 Sobre esta matria consulte-se Casco, Rui, Vida quotidiana e sociabilidade, in Mattoso, Jos (dir.), Histria de Portugal, vol. V, Lisboa, Crculo de
Leitores, 1993, p. 525.
39 Neste contexto, tambm certo que existe uma interpenetrao de festas e celebraes pr-crists e judaicas. A Pscoa, festa dos lavradores e
pastores, Pentecostes, festas das colheitas. O natal e o carnaval, festas ligadas ao ciclo da natureza e consideradas pags foram tambm catequizadas
pelo cristianismo. Sobre este assunto consulte-se Dias, Geraldo J. A Coelho, Religiosidade Popular e Devoo das gentes do mar em Esposende, p.
247.
40 A prtica da desobriga constitua uma forma de enquadramento dos fiis onde pela Pscoa anotavam-se aqueles que se submetiam ao sacramento da
penitncia, confisso e comunho. Atente-se em Gouveia, Antnio Cames, Enquadramento ps-tridentino e as vivncias do religioso, in Mattoso, Jos
(dir.), Histria de Portugal, vol. IV, pp. 291-292.
24
desapareciam, bastava apresena da hstia ou de uma relquia para os revoltosos se constrangerem
perante o sagrado41.
As associaes confraternais que se alastraram por todo o pas, aps Trento foram grandes
organizadoras e promotoras destes festejos em homenagem ao seu padroeiro(a), contando com o
apoio da Igreja que beneficiava delas para avolumar o nmero de fiis. Para alm das suas funes
que perpassavam as vertentes religiosa e sociabilidade, dependendo da instituio promotora, as
mesmas procuravam afirmar o seu poder42. Uma das ocasies mais propensas para a sua afirmao
eram as celebraes de jbilo em honra dos seus santos. Estas eram de tal ordem significativas que as
mais de duas dezenas de confrarias da vila limiana e outras associaes como a Ordem Terceira,
convento de Santo Antnio e Misericrdia integravam nos seus estatutos a forma como a festa principal
devia ser organizada e preparada.
Nestes espaos de sociabilidade confraternal todos os esforos se conjugavam para que os
festejos nunca fossem inferiores aos promovidos pelas Mesas antecedentes. Primava-se pela grandeza,
decncia e brilho, armas importantes para concentrar um grande nmero de devotos em torno do
santo ou da Virgem. Os investimentos nestas alturas eram para algumas destas associaes bastante
elevados, contudo havia que demonstrar ao pblico a solidez econmica da confraria e dos seus
associados. Estes momentos podiam ainda ser ideais para a coleta de esmolas, principalmente quando
sua festividade aliavam feiras.
Muitas associaes sobreviviam custa da sua festa anual. Casos houve em que quando a
deixaram de a realizar, a instituio decau e chegou mesmo a extinguir-se. Este facto ocorreu com a
confraria de Nossa Senhora da Piedade de Viana do Castelo nos incios do sculo XIX43.
Manter a vitalidade dos festejos constitua uma mais valia para as instituies, tal como j vimos,
todavia e grande parte das vezes, por questes de poder, as relaes de conflitualidade acendiam-se
entre membros da mesma confraria ou entre estes e outras irmandades. Os desfiles processionais
eram, por assim dizer, as ocasies mais propcias a estes relacionamentos inquietantes o que, por
vezes, se transformavam em grandes escndalos junto das igrejas de onde saam. No Perodo Moderno
este fenmeno no deixava de ser comum ao tratar-se de uma sociedade estritamente hierarquizada
41 Sobre este assunto veja-se Hespanha, Antnio Manuel, A resistncia de poderes, in Mattoso, Jos (dir.), Histria de Portugal, vol IV, pp. 451-452.
42 Consulte-se Penteado, Pedro, Confrarias, in Azevedo, Carlos Moreira (Dir.), Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal, pp. 459-462.
43 A este propsito veja-se Loureiro, Jos Carlos de Magalhes, As confrarias vianenses no sculo XIX: da evoluo nos ingressos emergncia de novas
formas de sociabilidade religiosa, in Cadernos Vianenses, Tomo 31, Viana do Castelo, Cmara Municipal de Viana do Castelo, 2002, p. 152.
25
onde a glria e a fama se consideravam valores importantes44. Tratava-se de competir pelos lugares
mais proeminentes que, por norma, eram aqueles que se encontravam junto ao plio. Compreendia-se
este estado de tenso por parte dos membros destas associaes j que esperavam um ano para mais
uma vez serem vistos pelo pblico e se apresentarem num desfile juntamente com outras
individualidades polticas e sociais que percorriam as ruas da vila junto de imagens e objetos sagrados.
Os membros da Ordem Terceira de So Francisco de Ponte de Lima comemoravam a abertura
do ciclo pascal na quarta-feira de Cinzas, perodo que dava incio a um conjunto de rituais marcados
pela orao, penitncia, jejum e abstinncia. A particularidade deste dia residia na realizao da
chamada procisso de Cinzas, momento importante pela sua solenidade e elevao religiosa45. Por esta
razo, no se estranhava que os membros desta instituio preparassem ao pormenor este desfile
onde imagens de Jesus, da Virgem, santas e santos intercalados por anjos percorriam as ruas da vila.
Mas se esta procisso de penitncia expressava efusivas manifestaes de f e devoo de quem nela
desfilava, tambm evidenciava o poder e prestgio de muitos irmos terceiros. Imbudos de sentimentos
religiosos, mas tambm de representao social, muitos presentes tinham como objetivo primeiro
afirmar a sua autoridade e posio na sociedade, o que, por vezes, geravam-se desentendimentos
entre os participantes.
de realar que esta instituio por si s promovia vrias festividades, destacando-se entre elas,
a procisso de Cinzas. Desta maneira, para brilhar na organizao e apresentao destas cerimnias
era muito enrgica na promoo de reunies de preparao dos festejos, na recolha de esmolas dadas
pelos irmos e devotos e nos pedidos de emprstimos de paramentaria e alfaias das confrarias
sediadas na Matriz. As instituies da Matriz funcionavam de forma independente mas, em ocasies
festivas, todas colaboravam como se de uma nica associao confraternal se tratasse. As festas
seriam tambm para medir foras entre as instituies da vila. Este jogo de foras impulsionava todas
estas entidades a investirem de forma grandiosa na sua festa religiosa principal. O Corpo de Deus, da
iniciativa da cmara local, as cerimnias da quinta feira maior da Misericrdia, a festa de Nossa
Senhora das Dores da confraria do mesmo nome, bem como as cerimnias da Semana Santa do
Santssimo Sacramento eram disso um exemplo.
44 Leia-se Weller, Thomas, Poder poltico poder simblico: el cereminonial diplomtico y los lmites del poder durante el siglo de oro Espaol, in Arellano,
Ignacio; Strosetzki, Christoph, Williamson, Edwin,(Eds), Autoridad y Poder en el siglo de Oro, s.l., Universidad de Navarra, 2009, p. 215.
45 A festa religiosa e o tempo litrgico representam a reatualizao de um evento sagrado que teve lugar num passado mtico, no comeo. Participar
religiosamente de uma festa implica a sada da durao temporal ordinria e a reintegrao do tempo mtico reatualizado pela prpria festa. Em cada
festa peridica reencontra-se o mesmo tempo sagrado que se manifesta na festa do ano anterior ou na festa de um passado mais distante. Eliade, Mircea,
O Sagrado e o Profano, Lisboa, Edio Livros do Brasil, 1999, pp. 81-82.
26
Esta ltima confraria investia de forma expressiva nos rituais que se desenrolavam na ltima
semana da Quaresma. O domingo da Ressureio constitua, pelo significado que transportava, um dia
grande de festa para todos os catlicos. Por isso, os devotos de forma coletiva e aps um longo perodo
de preparao espiritual, no abdicavam da comunho do corpo de Deus com grande exultao. A
procisso realizada procurava ser o mais fiel e completa s descries da Bblia, todavia outras
personagens a integravam como os polticos locais, nobres e corpo de militares vindos especialmente
de Viana. O poder desfilava na procisso e, se por um lado, era exibido, por outro procurava-se refor-
lo face a um pblico resignado ordem estabelecida.
Estes desfiles estabeleciam, tal como outros, relaes de poder e procuravam demonstrar aos
que a eles assistiam a importncia de submisso queles que ostentavam a autoridade46. A expresso
mais evidente de fora que aparecia nas procisses representava-se por este corpo de militares.
Questes de precedncia eram sempre motivos de mal estar, porque no se tolerava ser
ultrapassado em termos de poder. Se por um lado, a festa tinha a capacidade de agregar pessoas e de
prestar honra ao homenageado, por outro conferia poder e dava visibilidade sua ostentao.
Empunhar uma bandeira, uma tocha, desfilar ao lado do plio ou em local de manifesta visibilidade
significava prestgio e capitalizava poder. S os mais honrados e prestigiados cumpriam determinadas
funes nas festas, por isso os seus lugares eram respeitados e cuidadosamente indicados nos
estatutos das confrarias. Por outro lado, desfilar com bons paramentos, dignas alfaias litrgicas e com
traje adequados ao momento engrandeciam a instituio a que se pertencia. Como a maioria das
festas em Ponte de Lima eram de cariz religioso, elas serviam para disputar poder entre as entidades
promotoras e, no raras vezes, no interior de cada uma delas. O outro lado da questo prende-se com
a rivalidade existente entre as confrarias e o uso da festa como arma de arremeo. Como extravasava
para a rua, a festa tinha o poder de seduo. Em primeiro lugar, no interior do templo e depois no
exterior. Era devido ao seu poder de agregao e fascnio que todos os pormenores eram cuidados:
limpava-se, varria-se, aplanavam-se e consertavam-se caminhos.
Esta multiplicidade de festividades de carter religioso espelhava o poder e influncia que a
Igreja exercia sobre as populaes, todavia, a sua situao privilegiada na poca moderna era vista
com apreenso por parte da coroa que procurou cerce-la de diversas formas47. Desta maneira, a
46 A este propsito consulte-se Muir, Edward, Fiesta Y Rito en la Europa Moderna, p. 299.
47 O beneplcito e a prerrogativa de regia protectio, direito de padroado que conferia coroa a funo de apresentar mltiplas dignidades
ecelesisticas, bem como as interdies que impemdiam sobre a Igreja como a proibio de adquirir bens de raz eram entre outros, os meios usados pela
coroa para reduzir o poder daquela instituio. Sobre este assunto veja-se Hespanha, Antnio Manuel, O poder eclesistico. Aspectos institucionais, in
Mattoso, Jos (dir.), Histria de Portugal, vol. IV, p. 287.
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prpria Igreja e instituies onde a mesma estava presente como os espaos confraternais foram
perdendo a sua robustez afetando a realizao das manifestaes festivas.
1.3.As festas concelhias
A festividade do Corpo de Deus proposta e divulgada pela Igreja rapidamente passou para a
incumbncia das autoridades civis que atravs de disposies regulamentares a prepararam e
organizaram sem que nada faltasse. Esta celebrao do Corpus Christi, quinta feira seguinte ao
Pentecostes, constitua uma festa com realce em todas as municipalidades, assumindo em Ponte de
Lima particular caraterstica pelo facto de estar associada a uma corrida de touros corda conhecida
por Vaca das Cordas, realizada nas suas vsperas.
Todavia, as festas org