64
POEMAS ESCOLHIDOS ANTONIO h/ GEDEAO ANTOLOGIA ORGANIZADA PELO AU7'OR

Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

  • Upload
    ritacmc

  • View
    493

  • Download
    26

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

POEMAS ESCOLHIDOS

ANTONIO h/

GEDEAO ANTOLOGIA ORGANIZADA PELO AU7'OR

Page 2: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Índice

Copyright O 1996

EDIÇÕES JOÃO S Á DA COSTA, LDA.

Av Brasil, 118, 3.' esq., 1700 Lisboa

Tei (01) 8400428 Fax (01) 840 1056

Todos os direitos reservados de harmonia

com as disposições legais

1.' edição Março de 1997

2." ediqáo Maio de 1997

3.' edição Setembro de 1997

4 ." edição Março de 1998

Direcsão gráfica e capa

joÃo MACHADO

Distribuidor para Livrarias em Portugal

LIVRARIA FIGUEIRINHAS

Rua do Almada, 47, 4050 Porto (Fax 02 - 32 5907)

Rua da Prata, 208, 2.', 1100 Lisboa (Fax 01 -8879639)

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida

por qualquer processo, incluindo fotocópia, xerocópia

ou gravaçáo sem autorização prévia e escrita do editor.

Pré-Impressão

Loja das Ideias

Impressão

Tipografia Guerra, Viseu

Printed in Portugal

Depósito Legal n.' 122 141198

ISBN 972-9230-46-3

De "Movimento Perpétuo" (1956) Homem Impressão digital Pulsação da treva Cabeçudos e gigantones Estrela da manhã Pedra filosofa1 Tudo é foi Teatro óptico Que de mim? A estrada Balão esvaziado t Vento no rosto

De "Teatro do Mundo" (1958) Fala do homem nascido Ode metálica Poema do homem só Poema de pedra lioz Minha aldeia Rosa branca ao peito Lágrimas tudo Calçada de Carriche Poema do homem-rã Poema da malta das naus Dez réis de esperança Ponto de orvalho

De "Máquina de Fogo" (1961) Amador sem coisa amada Dia de Natal

Page 3: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

I ' , . ? > L < > I h , < I C , < . A i , , " , , , " G r d C d "

Lágrima de preta Como será estar contente? Máquina do mundo A um ti que eu inventei Poema da auto-estrada Flor de baunilha Poema épico Saudades da terra Suspensão coloidal

De "Linhas de Força"(1967) Poema do coração Poema do alvorecer Poema da noite plácida Lição sobre a água Poema do fecho éclair A adolescente Poema para Galileo Poema da buganvília Mãezinha Poema da flor proibida Canqão do oboé Memória sobre os teus olhos Poema da morte na estrada Poema dos passarinhos antigos Poema da terra adubada Os amantes liquefeitos Poema da morte aparente Poema de me chamar António

De "Poemas Póstumos" (1983) Poema do adeus Poema do cão ao entardecer Poema das coisas belas

Poema do tio-avô materno Poema das coisas Poema do amor fóssil Poema do estrangeiro Poema da menina do higroscópio Poema do ser inóspito Poema dos olhos na ribeira Poema da volta pelo bairro Poema do alquimista Poema da memória Poema da eterna presença Poema das folhas secas de plátano Poema do futuro

De "Novos Poemas Póstumos" (1990) Poema das árvores Poema dos textos Poema de Domingo Poema de ser natural Poema da praça pública Poema da mulher dos cabelos brancos Poema da erva fresca Poema de Alfarrobeira Poema do instante Poema da camisinha de algodão Poema da flor no seu vaso Poema dos braços nus das mulheres Poema da minha natureza Poema dos olhos fechados Poema do gato Poema do homem novo Poema de andar a roda

Page 4: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Homem

Inútil definir este animal aflito. Nem palavras, nem cinzéis, nem acordes, nem pincéis são gargantas deste grito. Universo em expansão. Pincelada de zarcão i

desde mais infinito a menos infinito.

Impressão digital

Os meus olhos são uns olhos, E é com esses olhos uns que eu vejo no mundo escolhos onde outros, com outros olhos, não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos diz flores. De tudo o mesmo se diz. Onde uns vêem luto e dores

Page 5: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

uns outros descobrem cores do mais formoso matiz.

Nas ruas ou nas estradas onde passa tanta gente, uns vêem pedras pisadas, mas outros, gnomos e fadas num halo resplandecente.

Inútil seguir vizinhos, querer ser depois ou ser antes. Cada um é seus caminhos. Onde Sancho vê moinhos D.Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos. Vê gigantes? São gigantes.

i@

Pulsação da treva

Fundiu-se a roda do Sol entre os cedros afiiados. Desfez-se em azuis rosados, tinturas de tornesol.

Agora, solenemente, como um corpo que se enterra, ao som de um sino plangente descea noite sobre a terra.

Campânula asfixiante. Circula um terror nas veias. Zumbem estrelas em colmeias num céu alheio e distante.

Numa dormência de cova, suspensa em leite de Lua, toda a vida se renova e a guerra se continua.

Nas marés do protoplasma flui, reflui, perene e forte. Espreita as pegadas da morte, persegue-a como um fantasma.

Cega e surda, impenetrável, i lateja, na treva urdida, essa coisa inevitável que é a vida.

Cabeçudos e gigantones

Tua certeza eleva-se e recorta-se no céu como um guindaste. Hirta, metálica, adstringente e fria, como a encontraste?

Se eu devesse guardar-te respeito por teres [ um sorriso amável,

11

Page 6: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

por serem castanhos os teus olhos ou por pisares [ o chão de certa maneira,

então respeitaria também a tua certeza inabalável e dela te pediria um farrapo para o arvorar

[ em minha bandeira.

Faz-me pena a tua certeza como se tivesses sofrido [ um acidente,

como se te visse estendido num leito, impossibilitado [ de te mexeres.

Em tua certeza, cadeira de rodas, fazes-te conduzir [ piedosamente,

e os caminhos passam por ti sem tu passares por [ eles, e sem os veres.

Embrulhado na tua certeza, de rosto voltado para a [ parede,

adormeces sorrindo enquanto a vida, aos borbotões, [ exulta.

Foguete de lágrimas, meandros sem rectas, catapulta, veio de água que afoga e nunca mata a sede.

Estrela da manhã

Numa qualquer manhã, um qualquer ser, vindo de qualquer pai, acorda e vai. Vai. Como se cumprisse um dever.

Nas incógnitas mãos transporta os nossos gestos; nas inquietas pupilas fermenta o nosso olhar. E em seu impessoal desejo latejam todos os restos de quantos desejos ficaram antes por desejar.

Abre os olhos e vai.

Vai descobrir as velas dos moinhos e as rodas que os eixos movem, o tear que tece os linhos, a espuma roxa dos vinhos, incêndio na face jovem.

Cego, vê, de olhos abertos. Sozinho, a multidão vai com ele. Bagas de instintos despertos i

ressumam-lhe a flor da pele. t

Vai, belo monstro. Arranca as florestas com os dentes. Imprime na areia branca teus voluntariosos pés incandescentes.

Vai.

Segue o teu meridiano, esse, o que divide ao meio teus hemisférios cerebrais; o plano de barro que nunca endurece, onde a memória da espécie grava os sonos imortais.

Vai.

Page 7: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Lábios húmidos do amor da manhã, polpas de cereja. Desdobra-te e beija em ti mesmo a carne sã.

Vai.

A tua cega passagem a convulsão da folhagem diz aos ecos "tem que ser"; o mar que rola e se agita, toda a música infinita, tudo grita "tem que ser".

Cerra os dentes, alma aflita. Tudo grita "tem que ser".

Pedra filosofa1

Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso em serenos sobressaltos,

como estes pinheiros altos que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel, arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral, contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, que é retorta de alquimista, mapa do mundo distante, rosa-dos-ventos, Infante, caravela quinhentista, que é Cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora, cisão do átomo, radar, ultra-som, televisão,

Page 8: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

I ' < , < . ! , , ' , . \ I : r ' < > I h , d , , A . A , , " G r d e ' i o

desembarque em foguetão na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida. Que sempre que um homem sonha o mundo pula'e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança.

Tudo é foi

Fecho os olhos por instantes. Abro os olhos novamente. Neste abrir e fechar de olhos já todo o mundo é diferente.

Já outro ar me rodeia; outros lábios o respiram; outros aléns se tingiram de outro Sol que os incendeia.

Outras árvores se floriram; outro vento as despenteia; outras ondas invadiram outros recantos de areia.

~ o m e n t o , tempo esgotado, fluidez sem transparência.

16

Presença, espectro da ausência, cadáver desenterrado.

Combustão perene e fria. Corpo que a arder arrefece. Incandescência sombria. Tudo é foi. Nada acontece.

Teatro óptico

Invoco, nos longes, a minha rLsença impossível. Os longes são permanentes.

R Lá, onde a beleza reside, deliquescentes azuis, sóis e luares, são permanência intangível.

Lá. Ser incluso pormenor naquela bruma, esboçado apenas como um desenho por acabar. Ser lá, presente como aqui: uma como nenhuma distância entre o meu ser aqui e o meu estar lá.

Ir-me além, naquele cerro a ascender-se. Ver-me daqui a subi-lo. Pergantar-me "o que é aquilo?", imperceptível mexer-se.

Eucaliptos, casas, montes, águas, pedras, horizontes, coisas finitas em si.

Page 9: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Outeiros, vales, caminhos, sebes, rochedos, moinhos ... Tudo no mundo. E eu daqui.

Que de mim?

Em quê de mim, as diferentes coisas que vejo, me tocam? Em quê de ser eu provocam excitações tão frementes?

Que coisa de mim se enleia, que permanência me afirma, que sentido faz sentir-ma no espaço que me rodeia?

Que linhas de força estranha me prolongam na paisagem, me tornam, à sua imagem, mar ou céu, vale ou montanha?

Que fluidez dissolvente os meus olhos humedece quando o Sol desaparece nas angústias do poente?

Que de mim também se afoga nesse horizonte distante, murmúrio de agonizante

18 que em tons roxos se interroga?

Que de mim chove na chuva, e se abre nos tons da aurora? Que de mim nas flores se inflora e nas tardes se enviúva?

Ó estrelas do céu sem fim! Ó vagas do mar sem fundo! Será tudo mesmo assim? Eu e vós, partes do mundo? Ou o mundo, parte de mim?

A estrada

Os homens, esquecidos do que não se esquece, passam distraídos como se nada acontecesse.

Dos grupos de esquina escapam-se risadas. São sonhos pintados de purpurina. Histórias obscenas de fadas.

Nas palavras que entretêm nem um suspiro transparece. E vão, e vêm, como se nada acontecesse.

Dedos que em assombros se enclavinham,

Page 10: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

poisam, esquecidos, nos ombros que os adivinham.

Os lábios secos, amarelecidos por ventos de rancor, esquecidos, enunciam teoremas de amor.

Pomo da estrada que amadurece. Como se nada acontecesse.

Balão esvaziado

Cansei os braços a pendurar estrelas no céu. Destino dos fados lassos. Tudo termina em cansaços braços e estrelas e eu.

A vida flui (parece) como um novelo que se [ desenrola,

como um leque silencioso que se abre, enquanto, no ovo, um rumor se encaracola, se encaracola e desencaracola,

até quando, num repente, se dispara, incandescente, como na dança do sabre.

Ó delírio de sentir, doença de interrogar, febre do nunca atingir! Temperatura de partir na esteira do insaciar.

Rescendem húmus as ancas, terras morenas e brancas, campo do jogo androceu. Afrouxam os braços lassos. Tudo termina em cansaços, 1

terras i e braços e eu.

Estrelas, pântanos, abismos, patamares da mesma escada, dedos da mesma aliança. Tudo morre em tédio e em nada. Tudo maça. Tudo enfada. Tudo pesa. Tudo cansa.

Page 11: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Vento no rosto

A hora em que as tardes descem, noite aspergindo nos ares, as coisas familiares noutras formas acontecem.

As arestas emudecem. Abrem-se as flores nos olhares. Em perspectivas lunares lixo e pedras resplandecem.

Silêncios, perfis de lagos, escorrem cortinas de afagos, malhas tecidas de engodos.

Apetece acreditar, ter esperanças, confiar, amar a tudo e a todos.

Fala do homem nascido

(Chega a boca da cena, e diz:)

.Venho da terra assombrada, '

do ventre da minha mãe; não pretendo roubar nada nem fazer mal a ninguém.

Só quero o que me é devido por me trazerem aqui, que eu nem sequer fui ouvido no acto de que nasci.

Trago boca para comer e olhos para desejar. Com licença, quero passar, tenho pressa de viver. Com licença!Com licença! Que a vida é agua a correr. Venho do fundo do tempo; não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada solta o pano rumo ao norte; meu desejo é passaporte para a fronteira fechada. Não há ventos que não prestem nem marés que não convenham, nem forças que me molestem, correntes que me detenham.

Quero eu e a Natureza, que a Natureza sou eu, e as forças da Natureza nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença! Que a barca se faz ao mar. Não há poder que me vença. Mesmo morto hei-de passar. Com licença! Com licença! Com rumo à estrela polar.

Page 12: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Ode metálica

Com aparências de brisa um vento de tempestade algures se individualiza: larga a semente precisa e esvai-se na eternidade.

Se vem do sul ou do norte, se vem de leste ou de oeste, não é cuidado que importe. É um vento, um vento forte que sopra no mundo agreste.

Abrem-se os lábios da Terra num cio desesperado, e a semente que se enterra desabrocha em flores de guerra e em flores de paz, lado a lado.

Irrompem do solo bruto as sequóias de cimento, maranha de ferrqhirsuto como um esqueleto incorrupto coberto de pó cinzento.

Inflorescências de cobre de longos cabelos ruivos que o fogo do Sol descobre; como folha que se dobre soltam metálicos uivos.

Carpelos e estames de aço, de longas, brunidas hastes, articulam-se em abraço. Rasgam os ventres e o espaço escavadoras e guindastes.

Densas corolas macias, enormes como turbinas, mudam as noites em dias, sobre as garupas esguias de mil cavalos sem crinas.

Num impulso rectilíneo jorram línguas de petróleo como um tecido sanguíneo. Em pistilos de alumínio i gotejam lágrimas de óleo.

Bailemos, homens, bailemos. Com festões engrinaldemos as mãos que forjam metais. Nossos troncos reluzentes à luz dos fornos candentes como bronzes triunfais. Bailemos, homens, bailemos.

E a plenos pulmões gritemos a sinfonia estridente das bigornas dos ferreiros, das chapas dos caldeireiros, das limas dos limadores, dos maços dos batedores, das serras dos serralheiros, das tenazes dos fogueiros, das correias dos motores,

Page 13: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

das brocas dos brocadores, dos cadinhos dos forneiros, das pinças dos caldeadores, todos, a uma, bailemos, frenéticos tangedores, troncos nus e reluzentes a luz dos fornos candentes, orquídeas de furta-cores, rubros vermelhos e brancos, bailemos todos, bailemos '

como doidos saltimbancos, bailemos e entoemos, a plenos pulmões berremos sinfonias estridentes, chispemos, esparrinhemos centelhas incandescentes, e em girândola elevemos nossos rostos como tochas, nossos braços como asas, filhos da escória e das rochas, irmãos do fogo e das brasas.

Poema do homem só

Sós, irremediavelmente sós, como um astro perdido que arrefece. Todos passam por nós e ninguém nos conhece.

Os que passam e os que ficam. Todos se desconhecem. Os astros não se explicam: arrefecem.

Nesta envolvente solidão compacta, quer se grite ou não se grite, nenhum dar-se de dentro se refracta, nenhum ser nós se transmite.

Quem sente o meu sentimento sou eu só, e mais ninguém. Quem sofre o meu sofrimento sou eu só, e mais ninguém. Quem estremece este meu estremecimento sou eu só, e mais ninguém. i

Dão-se os lábios, dão-se os braços, dão-se os olhos, dão-se os dedos, bocetas de mil segredos dão-se em pasmados compassos; dão-se as noites, dão-se os dias, dão-se aflitivas esmoias, abrem-se e dão-se as corolas breves das carnes macias; dão-se os nervos, dá-se a vida, dá-se o sangue gota a gota, como uma braçada rota dá-se tudo e nada fica.

Mas este íntimo secreto que no silêncio concentro, este oferecer-se de dentro num esgotamento completo, este ser-se sem disfarce,

Page 14: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

virgem de mal e de bem, este dar-se, este entregar-se, descobrir-se e desflorar-se, é nosso, de mais ninguém.

Poema de pedra lioz

Álvaro Góis, Rui Mamede, filhos de António Brandão, naturais de Cantanhede, pedreiros de profissão, de sombrias cataduras como bisontes lendários, modelam ternas figuras na brutidão dos calcários.

Ali, no esconso recanto, só o túmulo, e mais nada, suspenso no roxo pranto de uma fresta geminada. Mas no silêncio da nave, como um cinzel que batuca, soa sempre um truca ... truca ... lento, pausado, suave, truca,truca,truca,truca, sob a abóbada romântica, como um cinzel que batuca numa insistência satânica:

Álvaro Góis, Rui Mamede, filhos de António Brandão, naturais de Cantanhede, ambos vivos ali estão, truca,truca,truca,truca, vestidos de surrobeco e acocorados no chão, truca,truca,truca,truca.

No friso, largo de um palmo, que dá volta a toda a arca, um Cristo, de gesto calmo, i assiste ao chegar da barca. Homens de vária feição, barrigudos e contentes, mostram, no riso dos dentes, o gozo da salvação. Anjinhos de longas vestes, e cabelo aos caracóis, tocam pífaros celestes, entre cometas e sóis. Mulheres e homens, sem paz, esgazeados de remorsos, desistem de fazer esforços, entregam-se a Satanás.

Fixando a pedra, mirando-a, quanto mais o olhar se educa, mais se entende o truca ... truca ... que enche a nave, transbordando-a,

Page 15: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

No desmedido caixão, grande senhor ali jaz. Pupilo de Satanás? Alma pura de eleição? Dom Afonso ou D.João? Para o caso tanto faz.

Minha Aldeia

Minha aldeia é todo o mundo. Todo o.mundo me pertence. Aqui me encontro e confundo com gente de todo o mundo que a todo o mundo pertence.

Bate o sol na minha aldeia com várias inclinações. Ângulo novo, nova ideia; outros graus, outras razões. Que os homens da minha aldeia são centenas de milhões.

Os homens da minha aldeia divergem por natureza. O mesmo sonho os separa, a mesma fria certeza

30 os afasta e desampara,

rumorejante seara onde se odeia em beleza.

Os homens da minha aldeia formigam raivosamente com os pés colados ao chão. Nessa prisão permanente cada qual é seu irmão. Valências de fora e dentro ligam tudo ao mesmo centro numa inquebrável cadeia. Longas raízes que emergem, todos os homens convergem no centro da minha aldeia.

Teu corpinho adolescente cheira a princípio do [ mundo.

Ainda está por soprar a brisa que há-de agitar a tua [ seara.

Ainda está por romper a seara que há-de rasgar o [ teu solo fecundo.

Ainda está por arrotear o solo que há-de sorver a [ água clara.

Ainda está por ascender a nuvem que há-de chover [ a tua chuva.

Ainda está por arder o sol que há-de evaporar a [ água da tua nuvem.

Page 16: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Mas tudo te espera desde o princípio do mundo: a doce brisa, a verde seara, o solo fecundo. Tudo te espera desde o princípio de tudo: a água clara, a fofa nuvem, o sol agudo.

Tu sabes, tu sabes tudo. Tu és como a doce brisa, a verde seara e o solo

[ fecundo que sabem tudo desde o princípio do mundo. Tu és como a água clara, a fofa nuvem e o sol agudo que desde o princípio do mundo sabem tudo.

O teu cabelo sabe que há-de crescer e que há-de ser louro. As tuas lágrimas sabem que hão-de correr nas horas de choro. Os teus peitos sabem que hão-de estremecer no dia do riso. O teu rosto sabe que há-de enrubescer quando for preciso.

Quando te sentires perdida fecha os olhos e sorri. Não tenhas medo da Vida que a Vida vive por si.

Tu és como a doce brisa, a verde seara e o solo [ fecundo

que sabem tudo desde o princípio do mundo. Tu és como a água clara, a fofa nuvem e o sol agudo. A tua inocência sabe tudo.

Lágrimas tudo

Só de pensar amor, como se o procurasse, encheram-se-me os olhos de humidade. Exactamente os mesmos olhos, a mesma fonte,

[ se buscasse fitá-los na outra face, do ódio, da violência, da impiedade.

Porquê, lágrimas tudo?

Faz chorar o menino quando nasce, e o homem quando morre. E a desumana voz que grita: Faça! - e faz-se, e a outra, a que nos fala, e em dóce tom discorre. E as equações diferenciais do dsPaço, e os três metros quadrados de uma cela. E a truculenta família do palhaço, e a fétida ninhada da cadela. E as aguarelas frescas da manhã, e o lápis de carvão da sombra traiçoeira. E os burgueses do Rodin, e os robertos da feira, e a Capela Sistina, e os bonecos de barro de Barcelos, e a menina de vidro, opalescente e fina, e a velha bruxa de excrementos nos cabelos.

Tudo, lágrimas tudo. Porquê, lágrimas tudo?

Page 17: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Calçada de Clarriche

Luísa sobe, sobe a calçada, sobe e não pode que vai cansada. Sobe, Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.

Saiu de casa de madrugada; regressa a casa é já noite fechada. Na mão grosseira, de pele queimada, leva a lancheira desengonçada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.

Luísa é nova, desenxovalhada, tem perna gorda, bem torneada. Ferve-lhe o sangue de afogueada; saltam-lhe os peitos na caminhada. Anda Luísa, Luísa sobe,

sobe que sobe, sobe a calçada.

Passam magalas, rapaziada, palpam-lhe as coxas, não dá por nada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe: sobe a calçada.

Chegou a casa não disse nada. Pegou na filha, 1

deu-lhe a mamada; i

bebeu da sopa numa golada; lavou a loiça, varreu a escada; deu jeito à casa desarranjada; coseu a roupa já remendada; despiu-se à pressa, desinteressàda; caiu na cama de uma assentada; chegou o homem, viu-a deitada; serviu-se dela, não deu por nada. Anda Luísa, Luísa sobe.

Page 18: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

sobe que sobe, sobe a calçada.

Na manhã débil, sem alvorada, salta da cama, desembestada; puxa da filha, dá-lhe a mamada; veste-se à pressa, desengonçada; anda, ciranda, desaustinada; range o soalho a cada passada; salta para a rua, corre açodada, galga o passeio, desce a calçada, chega à oficina à hora marcada, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga; toca a sineta na hora aprazada, corre à cantina, volta à toada, puxa que puxa, larga que larga,

puxa que puxa, larga que larga, puxa que puxa, larga que larga. Regressa a casa é já noite fechada. Luísa arqueja pela calçada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada, sobe que sobe, sobe a calçada. Anda Luísa, Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada.

Sou feliz por ter nascido no tempo dos homens-rãs que descem ao mar perdido na doçura das manhãs. Mergulham, imponderáveis, por entre as águas tranquilas,

Page 19: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

enquanto singram, em filas, peixinhos de cores amáveis. Vão e vêm, serpenteiam, em compassos de "ballet". Seus lentos gestos penteiam madeixas que ninguém vê.

Oh que insólita beleza! Festivo arraial submerso. Poema em líquido verso. Biombo de arte chinesa. No colóquio voluptuoso dessa alegria pagã, babam-se os olhos de gozo na máscara do homem-rã.

Suspensas e sonolentas, rendas de bilros voláteis, esboçam-se as formas contrácteis das medusas nevoentas. Num breve torpor elástico, como dobras de sanefas, estremecem as acalefas e as alforrecas de plástico.

Com barbatanas calçadas e pulmões a tiracolo, roçam-se os homens no solo sob um céu de águas paradas.

Passam por entre as lisonjas das anémonas purpúreas, por entre corais e esponjas, hipocampos e holotúrias.

Sob o luminoso feixe correm de um lado para outro, montam no lombo de um peixe como no dorso de um potro.

Onde as sereias de espuma? Tritões escorrendo babugem? E os monstros cor de ferrugem rolando trovões na bruma?

Eu sou o homem. O Homem. Desço ao mar e subo ao céu. Não há temores que me domem. É tudo meu, tudo meu.

Poema da 111alta das naus

Lancei ao mar um madeiro, espetei-lhe um pau e um lençol. Com palpite marinheiro medi a altura do Sol.

Deu-me o vento de feição, levou-me ao cabo do mundo, pelote de vagabundo, rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas, pasmei na orla das praias,

Page 20: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

arreneguei, roguei pragas, mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pêlo hirsuto, tive o corpo em chagas vivas, estalaram-me as gengivas, apodreci de escorbuto.

Com a mão esquerda benzi-me, com a direita esganei. Mil vezes no chão, bati-me, outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres ecoou nas sete partidas. Fundei cidades e vidas, rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva, alambique de suores. Estendi na areia e na-relva mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo a que outros chamaram seu, mas quem mergulhou no fundo do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente. Provo-me e saibo-me a sal. Não se nasce impunemente nas praias de Portugal.

Dez réis de esperança

Se não fosse esta certeza que nem sei de onde me vem, não comia, nem bebia, nem falava com ninguém. Acocorava-me a um canto, no mais escuro que houvesse, punha os joelhos à boca e viesse o que viesse. Não fossem os olhos grandes do ingénuo adolescente, a chuva das penas brancas a cair impertinente, I

aquele incógnito rosto, i pintado em tons de aguarela, que sonha no frio encosto da vidraça da janela, não fosse a imensa piedade dos homens que não cresceram, que ouviram, viram, ouviram, viram, e não perceberam, essas máscaras selectas, antologia do espanto, flores sem caule, flutuando no pranto do desencanto, se não fosse a fome e a sede dessa humanidade exangue, roía as unhas e os dedos até os fazer em sangue.

Page 21: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Ponto de orvalho

/ > ,, ,. ,>I <, \ / \ , / 1 , / <, \ . 4 3, , ,i , , , <, <. i1 '. <r ( 8

Nem se chega a saber como um inusitado sorriso, um volver de olhos doentes, um caminhar indeciso e cego por entre as gentes, chamam a si, aglutinam, essa dor que anda suspensa ( e é dor de toda a maneira) como o vapor se condensa sobre núcleos de poeira. É essa angústia latente boiando no ar parado como um trovão iminente, que em muda voz se pressente num simples olhar trocado. Essa angústia universal, esse humano desespero, revela-se num sinal, numa ferida natural que rói com lento exagero. Não deita sangue nem pus, não se mede nem se pesa, não diz, não chora, não reza, não se explica nem traduz. A gente chega, respira, olha, sorri, cumprimenta, fala do frio que apoquenta ou do suor que transpira, e pronto, sem saber como, inútil, seco, vazio, cai na penumbra do rio, emerge, bóia, soçobra,

1' o C ' rir 'i 1 I 1 , </ < . A r , r <i i, , o <, r. r1 <. < I o

I - fácil e desinteressado como um papel que se dobra por onde já foi dobrado.

Amador sem coisa amada

Resolvi andar na rua com os olhos postos no chão. Quem me quiser que me chame ou que me toque com a mão.

Quando a angústia embaciar de tédio os olhos vidrados, olharei para os prédios altos, para as telhas dos telhados.

Amador sem coisa amada, aprendiz colegial. Sou amador da existência, não.chego a profissional.

Dia de Natal

Hoje é dia de ser bom. É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,

Page 22: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

de falar e de ouvir com mavioso tom, de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros - coitadinhos - nos [ que padecem,

de lhes darmos coragem para poderem continuar a [ aceitar a sua miséria,

de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não [ merecem,

de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e [ tão séria.

Comove tanta fraternidade universal. É só abrir o rádio e logo um coro de anjos, como se de anjos fosse, numa toada doce, de violas e banjos, entoa gravemente um hino ao Criador. E mal se extinguem os clamores plangentes, a voz do locutor anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu e as vozes crescem num fervor patético. (Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o

[ Menino Jesus nasceu? Não seja estúpido! Compre imediatamente um

[ relógio de pulso antimagnético.) Torna-se difícil caminhar nas preciosasrúas. Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos,

[ esfuziante. Todos participam nas alegrias dos outros como se

[ fossem suas e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que

[ passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates, com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa

[ dinâmica, cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de

[ quilovates, as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro

[ e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito, ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores. É como se tudo aquilo nos dissesse directamente

[ respeito, como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de

[ bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do i ,[ arruamento.

Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar- [ -se no ar.

E a gente, mesmo sem querer, entra no [ estabelecimento

e compra - louvado seja o Senhor! - o que nunca [ tinha pensado comprar.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena. Naquela véspera santa a sua comoção é tanta, tanta, tanta, que nem dorme serena.

Cada menino abre um olhinho na noite incerta para ver se a aurora já está desperta.

Page 23: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

De manhgzinha salta da cama, corre à cozinha mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza da matutina luz aguarda-o a surpresa do Menino Jesus.

Jesus, o doce Jesus, o mesmo que nasceu na manjedoura, veio pôr no sapatinho do Pedrinho uma metralhadora.

Que alegria reinou naquela casa em todo o santo dia! O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das

[ portas, fuzilava tudo com devastadoras rajadas e obrigava as criadas a caírem no chão como se fossem mòrtas: i

tá-tá-tá-ta-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está! E fazia-as erguer para de novo matá-las. E até mesmo a mamã e o sisudo papá fingiam que caíam crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal, dia de Amor, de Paz, de Felicidade, de Sonhos e Venturas. É dia de Natal. Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. Glória a Deus nas Alturas.

Lágrima cle preta

Encontrei uma preta que estava a chorar, I

pedi-lhe uma lágrima i para a analisar.

Recolhi a lágrima com todo o cuidado num tubo de ensaio bem esterilizado.

Olhei-a de um lado, do outro e de frente: tinha um ar de gota muito transparente.

Mandei vir os ácidos, as bases e os sais, as drogas usadas em casos que tais.

Page 24: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Ensaiei a frio, experimentei ao lume, de todas as vezes deu-me o que é costume:

nem sinais de negro, nem vestígios de ódio. Água (quase tudo) e cloreto de sódio.

Como será estar c011 tente?

Como será estar contente? Lançar os olhos em volta, moderado e complacente, e tratar com toda a gente sem tristeza nem revolta? Sentir-se um homem feliz, satisfeito com o que sente, com o que pensa e com o que diz? Como será estar contente?

Deve haver qualquer mecânica, qualquer retesada mola que se solta e desenrola no próprio instante preciso, para que um homem de carne, de olhos pregados no rosto, possa olhar e rir com gosto sem estranhar o som do riso.

I' i i '. i,, <i . 1. \ < ,, I h i ' I ,, i . .., i, I ,, i, , <, c, '. ,I <. <i i ,

Na minha tosca engrenagem, de ferrugenta sucata, há qualquer mola de lata que não se distende bem, qualquer dessorada glândula ou nervo que não se enfeixa, qualquer coisa que não deixa deflagrar essa girândola de timbres que o riso tem.

Não ter riso e não ter casa, nem dinheiro nem saúde, não se conta por virtude que a miséria é ferro em brasa.

Mas ter casa, ter dinheiro, ter saúde e não ter riso, i

flagelar-se o dia inteiro como se o sangrar primeiro fosse um tormento preciso, tê-lo sempre forte e vivo, espantado a todo o momento, isso sim, será motivo de grande contentamento.

Máquina do inundo

O Universo é feito essencialmente de coisa [ nenhuma.

. Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea. 49

Page 25: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Espaço vazio, em suma. 0 resto. é a matéria.

Daí, que este arrepio, este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo, esta fresta de nada aberta no vazio, deve ser um intervalo.

A um ti que e u inventei

Pensar em ti é coisa delicada. É um diluir de tinta espessa e farta e o passá-la em finíssima aguada com um pincel de marta.

Um pesar grãos de nada em mínima balança, um armar de arames cauteloso e atento, um proteger a chama contra o vento, pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura, um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça, um planar de gaivota como um lábio a sorrir.

Penso em ti com tamanha ternura como se fosses vidro ou película de Ioiça que apenas com o pensar te pudesses partir.

Poema da auto-estrada

Voando vai para a praia Leonor na estrada preta. Vai na brasa, de lambreta.

Leva calções de pirata, vermelho de alizarina, modelando a coxa fina de impaciente nervura. Como guache lustroso, amarelo de indantreno, blusinha de terileno desfraldada na cintura.

I

Fuge, fuge, Leonoreta. i Vai na brasa. de lambreta.

Agarrada ao companheiro na volúpia da escapada pincha no banco traseiro em cada volta da estrada. Grita de medo fingido, que o receio não é com ela, mas por amor e cautela abraça-o pela cintura. Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem corta a lambreta afiada, engole as bermas da estrada e a rumorosa folhagem. Urrando, estremece a terra, bramir de rinoceronte,

Page 26: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

enfia pelo horizonte como um punhal que se enterra. Tudo foge à sua volta, O céu, as nuvens, as casas, e com os bramidos que solta lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos já nem percebe, Leonor,

. se o que lhe chega aos ouvidos são ecos de amor perdidos se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta. Vai na brasa, de lambreta.

Flor de baunilha

Hoje, os olhos fundos do meu pensamento são [ negros como o alcatrão,

e o morno palpitar da sua carne um malicioso [ levedar de canela.

Neste momento, enquanto alguns milhões de [ homens fossam na conquista do seu pão,

estou eu pensando nela.

É uma espécie de orquídea sarmentosa, um récipe de mel, de resinas e hormonas, vaso de sílex, boceta especiosa, cântaro de água. taleigo de azeitonas.

Quando ergue as pálpebras é como se de repente o [ galo do campanário cantasse,

é como se o vento arrebatasse o muro e libertasse a [ paisagem cativa.

Seus grandes imensos olhos redondos, botões de [ obsidiana à flor da face,

firmam-se-me, ofegantes e estáticos, como sardões [ em expectativa.

Na noite cerrada dos seus cabelos acasalam-se os [ pirilampos,

e os sapos dedilham os sistros, assolapados nos [ lameiros.

No côncavo das minhas mãos, vaza e molda o [ silêncio nocturno dos campos,

e a sua cabeça no meu ombro é o bàrco escondido [ kntre os salgueiros.

Sua carne cheirosa, fofa e tépida como a terra [ estrumada,

aceita, na intimidade dos' poros, a semente brunida [ que acordará em pão.

Ah! É verdade! O pão! Os homens que não têm pão! As mulheres dos homens que não têm pão! Os filhos dos homens que não têm pão!

Baixa as pálpebras, flor de baunilha.

Page 27: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Poen~a épico

O rapagão da camisola vermelha sacode a melena [ da testa

e retesa os braços num bocejo como um jovem leão [ voluptuoso.

Dorme a sesta o involuntário ocioso.

A filha do alfaiate atirou a tesoura e o dedal pela [ janela

e sumiu-se na noite escura do mundo. Quis respirar mais fundo e isso de ser coitada é lá com ela.

O homem da barba por fazer conta os filhos e as [ moedas

e balbucia qualquer coisa num tom inexpressivo e [ roufenho.

Súbito chamejam-lhe os olhos como labaredas: -Eu já venho!

O da face doente, o que sofre por tudo e por nada, sem querer, abana a cabeça negativamente: - Isto não pode ser! Isto não pode ser!

Sentados as soleiras das portas, mordendo a língua na tarefa inglória, com letras gordas e por linhas tortas vão redigindo a História.

Saudades da terra

Uns olhos que me olharam com demora, não sei se por amor se caridade, fizeram-me pensar na morte, e na saudade que eu sentiria se morresse agora.

E pensei que da vida não teria nem saudade nem pena de a perder, mas que em meus olhos mortos guardaria certas imagens do que pude.ver.

Gostei muito da luz. Gostei de vê-la de todas as maneiras, !

da luz do pirilampo a fria luz da estrela, do fogo dos incêndios a chama das fogueiras. Gostei muito de a ver quando cintila na face de um cristal, quando trespassa, em lâmina tranquila, a poeirenta névoa de um pinhal, quando salta, nas águas, em contorções de cobra, desfeita em pedrarias de lapidado ceptro, quando incide num prisma e se desdobra nas sete cores do espectro.

Também gostei do mar. Gostei de vê-lo em fúria quando galga lambendo o dorso dos navios, quando afaga em blandícias de cândida luxúria a pele morna da areia toda eriçada de calafrios.

E também gostei muito do Jardim da Estrela com os velhos sentados nos bancos ao sol

Page 28: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

e a mãe da pequenita a aconchegá-la no carrinho e a [ adormecê-la

e as meninas a correrem atrás das pombas e os [meninos a jogarem ao futebol.

A porta do Jardim, no inverno, ao entardecer, a hora em que as árvores começam a tomar formas

[ estranhas, gostei muito de ver erguer-se a névoa azul do fumo das castanhas.

Também gostei de ver, na rua, os pares de namorados que se julgam sozinhos no meio de toda a gente, e se amam com os dedos aflitos,entrecruzados, de olhos postos nos olhos, angustiadamente.

E gostei de ver as laranjas em montes, nos mercados, e as mulheres a depenarem galinhas e a proferirem

[ palavras grosseiras, e os homens a aguentarem e a travarem os grandes

[ camiões pesados, e os gatos a miarem e a roçarem-se nas pernas das

[ peixeiras.

Mas ... saudade, saudade propriamente, essa tenaz que aperta o coração e deixa na garganta um travo adstringente, essa, não.

Saudade, se a tivesse, só de Aquela que nas flores se anunciou, se uma saudade alguém pudesse tê-la do que não se passou.

De Aquela que morreu antes de eu ter nascido, ou estará por nascer - quem sabe? - ou talvez

[ ande nalgum atalho deste mundo grande para lá dos confins do horizonte perdido.

Triste de quem não tem, na hora que se esfuma, saudades de ninguém nem de coisa nenhuma.

Suspci~são coloidal

Penso no ser poeta, e andar disperso na voz de quem a não tem; no pouco que há de mim em cada verso, no muito que há de tudo e de ninguém.

Anda o cego a tocar La Violetera, e eu a vê-lo, e a cegar; e a pobre da mulher esfregando e pondo a cera, e eu a vê-la, e a esfregar.

Que riso perto, que aflição distante, que ínfima débil, breve coisa nada, iça, ao fundo, esta draga carburante, rasga, revolve e asfalta a subterrânea estrada?

Postulados e leis e lemas e teoremas, 'tudo o que afirma e jura e diz que sim,

Page 29: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

teorias, doutrinas e sistemas, tudo se escapa ao autor dos meus poemas. A ele, e a mim.

Poeiiia do coração

Eu queria que o Amor estivesse realmente no [ coração,

e também a Bondade, e a Sinceridade, e tudo, e tudo o mais, tudo estivesse realmente no

[ coração. Então poderia dizer-vos: "Meus amados irmãos, falo-vos do coração", ou então: "com o coração nas mãos."

Mas o meu coração é como o dos compêndios. Tem duas válvulas (a tricúspida e a mitral) e os seus compartimentos (duas aurículas e dois

[ ventrículos). O sangue ao circular contrai-os e distende-os segundo a obrigação das leis dos movimentos.

Por vezes acontece ver-se um.homem, sem querer, com os lábios

[ apertados, e uma lâmina baça e agreste, que endurece a luz dos olhos em bise1 cortados.

Parece então que o coração estremece. Mas não. Sabe-se, e muito bem, com fundamento prático, que esse vento que sopra e que ateia os incêndios, é coisa do simpático. Vem tudo nos compêndios.

Então, meninos! Vamos à lição! Em quantas partes se divide o coração?

Poeina do alvorecer i

Na ribalta do horizonte adivinha-se o hálito da manhã.

Uma luz de estanho, álgida e polida, embaciada como um espelho antigo, ampara a cidade suspensa, diluída na bruma, e adormecida consigo.

As ruas longas e estreitas, silenciosas e vazias, [ parecem

os longos e silenciosos corredores dos museus, de [ madrugada,

à hora em que as figuras das telas baixam os olhos e [ adormecem,

quando as madonas sorrindo baixam os olhos e [ adormecem

59

Page 30: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

nos longos e silenciosos corredores dos museus, de [ madrugada,

quando os cardeais vermelhos e os anjos da Anunciação prostrados de joelhos baixam os olhos e adormecem nos longos e silenciosos corredores dos museus, de

[ madrugada, a hora em que os reis montados em nédios cavalos baixam os olhos e adormecem, e os guardas dos museus apalpam as chaves debaixo

[ do travesseiro e adormecem.

A luz de estanho, álgida e polida, escanhoa as fachadas dos prédios como lâmina de

[ navalha. Peganhenta e baça, escorre, na humidade das ruas

[ reflectida, como um óleo viscoso que lentamente se espalha.

É a hora em que os cães revolvem o lixo dos [ caixotes nos passeios.

A hora em que a rapariga na cama se espreguiça a [ luz velada da cortina

e ele, com os dedos ensonados, lhe acaricia os seios.

Hora de estanho, em que os condenados atravessam [ o pátio da prisão a caminho da guilhotina.

Poema da noite plácida

A multidão em fúria passeia placidamente nas ruas da cidade, de mente plácida, plácida mente, enquanto os homens que orientam placidamente a multidão em fúria que placidamente passeia nas ruas da cidade, procuram furiosamente as soluções plácidas que orientarão a multidão em fúria que, placidamente, passeia nas ruas da cidade, de mente plácida, plácida mente, i e os sábios buscam furiosamente - as fórmulas plácidas que, placidamente, resolverão as dificuldades da multidão em fúria que passeia nas ruas da cidade de mente plácida, plácida mente, e todos, todos em suma, placidamente, procuram furiosamente, de todas as formas plácidas, atender às inquietações e aos anseios plácidos da multidão em fúria que, placidamente, passeia nas ruas da cidade, e placidamente se assenta nos plácidos bancos das

[ avenidas, bebendo o ar plácído da noite, e esperando, placidamente,

Page 31: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

as soluções plácidas para os seus anseios e inquietações furiosas.

Lição sobre a água

Este líquido é água. Quando pura é inodora, insípida e incolor. Reduzida a vapor, sob tensão e alta temperatura, move os êmbolos das máquinas que, por isso, se denominam máquinas de vapor.

É um bom dissolvente. Embora com excepções mas de um modo geral, dissolve tudo bem, ácidos, bases e sais. Congela a zero graus centesimais e ferve a 100, quando à pressão normal.

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão, sob um luar gomoso e branco de camélia, apareceu a boiar o cadáver de Ofélia com um nenúfar na mão.

Filipe I1 tinha um colar de oiro, tinha um colar de oiro com pedras rubis. Cingia a cintura com cinto de coiro, com fivela de oiro, olho de perdiz.

Comia num prato de prata lavrada girafa trufada, rissóis de serpente. O copo era um gomo que em flor desabrocha, I

de cristal de rocha \ do mais transparente.

Andava nas salas forradas de Arrás, com panos por cima, pela frente e por trás. Tapetes flamengos, combates de galos, alões e podengos, falcões e cavalos.

Dormia na cama de prata maciça com dossel de Ihama de franja roliça. Na mesa do canto vermelho damasco, e a tíbia de um santo guardada num frasco.

Page 32: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

1 , ,, <. i,, < r . I: \ < o I I, i <I i, \ . i 2, , i 1, f ,, <. <. <I L . " (1

Foi dono da Terra, foi senhor do Mundo, nada lhe faltava Filipe Segundo.

Tinha oiro e prata, pedras nunca vistas, safiras, topázios, rubis, ametistas. Tinha tudo, tudo, sem peso nem conta, bragas de veludo, peliças de lontra. Um homem tão grande tem tudo o que quer.

O que ele não tinha era um fecho éclair.

A adolescente

Sábia, funcional, eficiente como os modelos didácticos despojados de enfeite, passa na rua a adolescente cheirando a leite.

Caminha soberana e enfática como as aves egípcias disfarçando no andar a lava que referve.

Vai orgulhosa por transportar no peito duas cristas [ reptícias,

e do resto, que pressente, mas ainda não sabe ao [ certo para que serve.

Contraídos os lábios na insinuação da sede, o olhar inquieto e duro ressumando violência, as narinas fremindo como as guelras dos peixes

[ apanhados na rede.

Eis a mimosa flor da adolescência.

1

Poema para Galileo i

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano, aquele teu retrato que toda a gente conhece, em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce sobre um modesto cabeção de pano. Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha

[ Florença. (Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício. Disse Galeria dos Ofícios.) Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da

[ requintada Florença. Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza

[ della Signoria ... Eu sei ... Eu sei ... As margens doces do Arno às horas pardas da

[ melancolia. Ai que saudade, Galileo Galilei! 65

Page 33: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Olha. Sabes? Lá em Florença está guardado um dedo da tua mão direita num

[ relicário. Palavra de honra que está! As voltas que o mundo dá! Se calhar até há gente que pensa que entraste no calendário.

Eu queria agradecer-te, Galileo, a inteligência das coisas que me deste. Eu, e quantos milhões de homens como eu a quem tu esclareceste, ia jurar - que disparate, Galileo! - e jurava a pés juntos e apostava a cabeça sem a menor hesitação - que os corpos caem tanto mais depressa quanto mais pesados são.

Pois não é evidente, Galileo? Quem acredita que um penedo caia com a mesma rapidez que um botão de camisa ou

[ que um seixo da praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo, daquela cena em que tu estavas sentado num

[ escabelo e tinhas a tua frente um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de

[ cape10 a olharem-te severamente.

Estavam todos a ralhar contigo, que parecia impossível que um homem da tua idade e da tua condição, se estivesse tornando num perigo para a Humanidade e para a Civilização. Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio

mordiscavas os lábios, e percorrias, cheio de piedade, os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites e [ das estrelas,

desceram lá das suas alturas e pisaram, como aves aturdidas - parece-me que

[ estou a vê-las -, nas faces grávidas daquelas reverendíssimas

(criaturas.

E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, [ que era tudo tal qual

conforme suas eminências desejavam, e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal e que os astros bailavam e entoavam a meia-noite louvores a harmonia universal. E juraste que nunca mais repetirias nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu

[ pensamento, livre e calma, aquelas abomináveis heresias que ensinavas e escrevias para eterna perdição da tua alma. Ai, Galileo! Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores

[ deste pequeno mundo, que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões

[ de braços, 67

Page 34: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

andavam a correr e a rolar pelos espaços a razão de trinta quilómetros por segundo. Tu é que sabias, Galileo Galilei. Por isso eram teus olhos misericordiosos, por isso era teu coração cheio de piedade, piedade pelos homens que não precisam de sofrer,

[ homens ditosos a quem Deus dispensou de buscar a verdade. Por isso estoicamente, mansamente, resististe a todas as torturas, a todas as angústias, a todos os contratempos, enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas, foram caindo, caindo, caindo, caindo, caindo sempre, e sempre, ininterruptamente, na razão directa dos quadrados dos tempos.

((6

Poema da buganvília

Mas antes desse dia há-de secar a buganvília e o varredor há-de levar as flores secas para o

[ monturo.

Depois cairá o muro. E como o tempo passa mesmo contra vontade, também há-de acabar a Calçada da Graça e o resto da cidade.

Então, quando nada restar, nem o pó de um sorriso que é o mais lev'e de tudo que se pode supor, será esse o momento de o poema ser flor, mas já não é preciso.

Mãezinha

A terra de meu pai era pequena e os transportes difíceis. Não havia comboios, nem automóveis, nem aviões,

[ nem mísseis.

Corria branda a noite e a vida era serena.

Segundo informação, concreta e exacta, Algum dia o poema será a buganvília dos boletins oficiais, pendente deste muro da Calçada da Graça. viviam lá na terra, a essa data, Produz uma semente que faz esquecer os jornais, o 3023 mulheres, das quais

[ emprego e a famíiia, 45 por cento eram de tenra idade, e além disso tudo atapeta o passeio alegrando quem chamando tenra idade

5 que vai desde o berço até à puberdade.

. . . . . .

Page 35: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

28 por cento das restantes eram senhoras, daquelas senhoras que sóhavia

[ dantes. Umas, viúvas, que nunca mais (oh! Nunca mais!)

[ tinham sequer sorrido desde o dia da morte do extremoso marido; outras, senhoras casadas, mães de filhos ... (De resto, as senhoras casadas, pelas suas próprias condições, não têm que ser consideradas nestas considerações.)

Das outras, 10 por cento, eram meninas casadoiras, seriíssimas, discretas, mas que, por temperamento, ou por outras razões mais ou menos secretas, não se inclinavam para o casamento.

Além destas meninas havia, salvo erro, 32, que à meiga luz das horas vespertinas se punham a bordar por detrás das cortinas espreitando, de revés, quem passava nas ruas.

Dessas havia 9 que moravam em prédios baixos como então havia, um aqui, outro além, mas que todos ficavam no troço habitual que meu pai percorria, tranquilamente, no maior sossego, às horas em que entrava e saía do emprego.

Dessas 9 excelentes raparigas uma fugiu com o criado da lavoura; 5 morreram novas, de bexigas; outra, que veio a ser grande senhora,

teve as suas fraquezas mas casou-se e foi condessa por real mercê; outra suicidou-se não se sabe porquê.

A que sobeja chamava-se Rosinha. Foi essa a que meu pai levou à igreja. Foi a minha mãezinha.

Poema da flor proibida I

i Por detrás de cada flor há um homem de chapéu de coco e sobrolho

[ carregado.

Podia estar à frente ou estar ao lado, mas não, está colocado exactamente por detrás da flor. Também não está escondido nem dissimulado, está dignamente especado por detrás da flor.

Abro as narinas para respirar o perfume da flor, não de repente (é claro) mas devagar, a pouco e pouco, com os olhos postos no chapéu de coco.

Page 36: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Ele ama-me. Defende-me com os seus carinhos, protege-me com o seu amor. Ele sabe que a flor pode ter espinhos, ou tem mesmo, ou já teve, OU pode vir a ter, e fica triste se me vê sofrer.

Transmito um pensamento à flor sem mover a cabeça e sem olhar. De repente, como um cão cínico arreganho o dente e engulo-a sem mastigar.

Habita no meu sangue como um solo de oboé. Inexistente e imaginada é toda feita de nada mas necessária como o ar que não se vê.

Com os pés alados das semicolcheias que extravasam da pauta, baila no estrado olímpico das veias, descontraída, turbulenta, incauta.

Oiço-a acordado e sinto-a adormecido nas ondas largas que no sangue vão como o transístor que se encosta ao ouvido e apenas ouve quem o tem na mão.

Meiliória sobre os teus olhos

Magníficos como os jactos que aguardam no aeroporto o

[ iminente sinal da partida, seus grandes olhos imensos escorvam, impacientes,

[ o subsolo da imagem pressentida.

Perfurantes como as brocas dos mineiros, pontas de aço-vanádio que o rubro alcançam sem perder o gume, um fogo o olhar o queima, um mar invade-o, um lume feito de água, água de lume.

I Súbito, seus grandes olhos imensqs descolam e [ levantam voo.

Ei-10s que sobem. Seu movimento é como se apenas as coisas deles se

[ afastassem, é como se move o tempo, sem agravo nem estrago, como boiam as folhas na dormência do lago, como bate o coração do homem enterrado no chão. Na estática subida a que se entregam são o próprio silêncio em que navegam, são a curva do espaço, a quarta dimensão.

Cá em baixo, onde as superfícies se avaliam multiplicando pi por érre dois, um formigueiro de bois desenha na planície coloridos talhões. Cumprem-se as sementeiras.

Page 37: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

I ' , , <, iii ri i k 1 I ,, \ . .I i r i <i i, i i , c; i. <I <. 'i <,

As cores são as bandeiras; os regos, os limites das nações.

Um rabiar de células, cultura de bactérias num capacete de aço, ziguezagueiam, obstinadas como libélulas, num charco de sargaço.

Entretanto, seus grandes olhos imensos olham, e olhando, no desígnio frontal que não hesita nem disfarça, com linhas de olhos vão bordando a talagarça. Sento-me à secretária, preparo-a, limpo-a, esfrego-a na aflita busca do mais puro espaço, e com o esquadro e a régua, o lápis e o compasso, construo os olhos d7Ela. Deliberada e escrupulosamente ergue-se a construção de arquitectura mansa, quase cinicamente, como quem premedita uma vingança.

(Aliás o engano, a ilusão, a mentira, a falsidade, o perjúrio, a invenção, tudo, em Amor, é verdade.)

Eis os mais lindos olhos deste mundo. O Amor os fez. Proas de galeões de velas pandas, meninas a correr que chegam as varandas olhando o mundo pela primeira vez.

Dou-lhes uns toques nas íris, um tempero na plácida inocência, um miligrama de cianeto, morte sem desespero, acicate da humana permanência. Sobre o fundo sombrio um tom de folha seca de plátano, uns veios de clorofila, mancha irisada em redor da pupila, óleo vertido no asfalto da estrada.

Encosto o rosto as mãos, e embevecido contemplo a construção de linhas, e finjo-me esquecido como se não soubesse que são minhas. Como se não soubesse

I

comovo-me e entrego-me no sorfiso total.

1 Construo o meu real conforme me apetece.

Na berma da estrada, nuns quinhentos metros, estão quinhentos mortos com os olhos abertos.

I A morte, num sopro, colheu-os aos molhos. Nem tiveram tempo para fechar os olhos.

Page 38: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Eles bem sabiam dos bancos da escola como os homens dignos sucumbem na guerra. Lá saber, sabiam. A mão firme empunhando a espada ou a pistola, morrendo sem ceder nem um palmo de terra.

Pois é. Mas veio de lá a bomba, fulgurante como mil sóis, não lhes deu tempo para serem heróis.

Eles bem sabiam que o último pensamento devia estar reservado para a pátria amada. Lá saber, sabiam. Mas veio de Iá a bomba e destruiu tudo num só

[ momento. Não lhes deu tempo para pensar em nada.

Agora, na berma da estrada, nuns quinhentos metros, são quinhentos mortos com os olhos abertos.

Pornia dos passarinhos ailtigos

Era um par de jovens. Ela e ele. Ambos jovens. Alegremente cantavam as canções dos jovens e tinham orgulho em dançar as danças ruidosas dos

por não saberem dançar as suas danças de jovens, por não saberem cantar as sua canções de jovens. Mas num dia em que os seus olhos se encontraram

I de certo modo,

sentiram nos seus corpos um estremecimento antigo. As células antigas dos seus corpos jovens estremeceram. As palavras de amor saíram-lhes da boca pressurosas e múltiplas, como as pequenas bolas de sabão quando num tubo estreito são sopradas. E juntamente com elas saíam passarinhos leves, passarinhos antigos, tão leves como as bolas de sabão, e os passarinhos iam debicar nos lábios de ambos, e os lábios intumesciam-se, vermelh~s e macios

[ como polpas, e os passarinhos roçavam a penugem do peito pelas

[ pálpebras deles

com os bicos alisando as sobrancelhas, e aninhavam-se entre a carne e a roupa batendo as asas num saber antigo. Quando acordaram e quiseram sacudir o pó do tempo ouviram o riso dos jovens que se riam das pessoas

[ antigas,

e alegremente cantavam as suas canções de jovens e tinham orgulho em dançar as danças ruidosas dos

[ jovens.

Como jovens que eram riam-se das p por já não serem jovens,

Page 39: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Poe111a da terra adubada , 0 s amantes liquefeitos ,

i detrás das árvores não se escondem faunos, não.

i Para quem não tem pena que 0 afague

Por detrás das árvores escondem-se 0s soldados é bom saber que o jovem par de amantes com granadas de mão. marcou encontro num jardim de Copenhague.

As árvores são belas com os troncos dourados. São boas e largas para esconder soldados.

Não é o vento que rumoreja nas folhas, não é o vento, não. São os corpos dos soldados rastejando no chão.

O brilho súbito não é dos limbos das folhas verdes

[ reluzentes. É das lâminas das facas que os soldados apertam

[ entre os dentes.

As rubras flores vermelhas não são papoilas, não. É o sangue dos soldados que está vertido no chão.

Não são vespas, nem besoiros, nem pássaros a

[ assobiar. São os silvos das balas cortando a espessura do ar.

Depois os lavradores rasgarão a terra com a lâmina aguda dos arados, e a terra dará vinho e pão e flores adubada com os corpos dos soldados.

Na manhã fria como o aço cromado uma névoa leitosa amassa o esqueleto das árvores num hálito empastado.

Esquálidos, adivinham-se os ramos na bruma [ dissolvente,

secos e descarnados como tíbias desenterradas. Ao longo das hastes, os dentes polidos do gelo

[ pendente

como presas de cães atentas e aceradas.

Gélido um vento sopra e eriça a epiderme das estátuas de bronze diluídas no espaço, e a pele dos golfinhos de pedra que emergem

[ da água inerme

de um lago morto como vidro baço.

I Ininterruptamente cai a neve naquela queda paulatina e leve que tudo cobre, pesadamente.

Chegaram os amantes. Caminham silenciosos, de mãos dadas. Sob as luvas grosseiras e bordadas sentem-se os dedos mais que palpitantes.

Page 40: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Pararam e examinam-se. Os olhos um do outro

[ se povoam, batem as asas, desfazem-se em vapor, as minúcias do rosto sobrevoam prospectando os filões mais íntimos do amor.

Fecham os olhos. Apagam-se as luzes. Vogam no oceano os náufragos solitários. Juntam-se as bocas no fundo dos capuzes como dois pólos de sinais contrários.

e os homens pasmavam de isso ainda acontecer no [ tempo deles,

parecia-lhes a vida podre e reles e suspiravam por viver agora.

A suspirar e a protestar morreram. E agora, quando se abrem as covas, encontram-se as vezes os dentes com que rangeram, tão brancos como se as dentaduras fossem novas.

Uma estrela cadente os ares corta e enquanto O longo beijo continua semeia luz em pó na natureza morta.

Poelna de me chamar Aniólii« ,

Rompem as flores do chão, e as árvores esquálidas projectam sobre a relva a sombra tutelar.

\

Anima-se 0 sangue nas veias de bronze das estátuas Hoje, ao nascer do sol, de manhãzinha, ouvi cantar um galo no quintal

dissipa-se a névoa, alegra-se o ar. quando eu tinha seis anos e fui passar as férias do Um búfalo de fogo no horizonte se esboça. [ Natal

Traz música nos olhos e as goelas hiantes. com a minha madrinha. h n d e - s e a neve empedernida e grossa. Funde-se o gelo. Fundem-se os amantes. Na cama improvisada no corredor

sabiamente fingia que dormia

C muito embrulhado num cobertor, enquanto numa luz melada e quase fria, o mundo, sabiamente, fingia que nascia.

Pociiia da nioi-tc aparente E então apeteceu-me também nascer, nascer por mim, por minha expressa vontade, sem pai nem mãe, sem preparação de amor,

Page 41: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

sem beijos nem carícias de ninguém, só, só e só por minha livre vontade.

Dobrado em círculo no ventre do meu cobertor, enrugado como um feto à espera da liberdade (viva a liberdade!) cerrava e descerrava as pálpebras, sabiamente, como se as não movesse, como se não sentisse nem soubesse, abrindo-as numa fenda dissimulada e estreita, insensível as coisas quotidianas, mas hábil para aquela alvorada puríssima e escorreita que me inundava o sangue através das pestanas. Fremiam-se-me as pálpebras sacudindo na luz um

[ pó de borboletas, um explodir de missangas furta-cores, bacilos e vapores, rendas brancas e pretas.

Cada vez mais feto, mais redondo, mais bicho-de-

[ -conta, mais balão, mais planeta, bola pronta a meter-se no forno, mais eterno retorno, mais sem fim nem princípio, sem ponta nem aresta, excremento de escaravelho aberto numa fresta.

Foi então que o tal galo cantou. Looooooonge ... Muito looooooonge ... no quintal da vizinha, lá para o fim do mundo mesmo ao lado da casa da

[ minha madrinha.

Era uma voz redonda, débil, inexperiente, bruxuleante como a chama que está mesmo a apagar-se e esperta de repente e novamente morre e de novo se inflama. Uma voz sub-reptícia, anódina, irresponsável,

( fugaz e insinuante, I 1 um canto sem contornos, aéreo, imponderável.

i Tudo isso e muito mais, mas principalmente distante.

Foi assim que a voz do galo na capoeira do quintal da vizinha que tinha plantado ao centro uma nespereira mesmo junto da casa da minha madrinha, penetrou no ventre macio do meu cobertor. Era uma frente de onda, compacta e envolvente, pura já na garganta e agora mais que pura, filtrada i

e destilada

I nos poros ávidos da minha cobertura. 1 Chegou e fulminou o meu ser indigente,

~ exposto e carecido, naquele gesto mole e distraído do Deus omnipotente da Capela Sistina quando ergue a mão terrível e fulmina o coração de Adão.

E pronto. Eis-me nascido. Cheio de sede e fome.

1 António 6 o meu nome.

Page 42: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Poe i~~a do adeus nas escamas dos peixes, encontrem meus ouvidos.

Exigem novas leis que os olhos não se alegrem Que a terra me seja leve. quando as folhas das árvores Ihes acenam; quando 0 lagarto ao Sol o erótico pescoço, erecto e circu~ante 9 como um radar,

I transforma as ondas mansas I

1 em lúbricas tensões. i poema do cão ao etitardecer Não mais ~ u r m Ú r i 0 ~ de águas nem aromas de pinhos que 0s ouvidos antigos recolhiam e os narizes hauriam sequiosos

i , um cão no areal corria presto. como exaustores de fumos; presto corria o cão no areal deserto. não mais abrir os olhos e fechá-los Era ao entarde~er, e O cão corria presto

sob a língua da luz lambendo morna no areal deserto. i

o convexo das pálpebras; não mais levitação do corpo no silêncio, corria em linha recta, presto, presto, o porte da doninha na iminência pela orla do mar. do que nunca acontece. pela orla do mar, em linha recta,

corria presto, 0 cão. Pois que sejam meus olhos que ao fecharem-se levem consigo a imagem derradeira Era ao entardecer. da fragância poética do mundo; NO areal as águas derramadas

que em meu rosto bafeje o último hálito nas angústias do mar das magas transparências inventadas; lambuzavam de espuma as patas automáticas

que nele roce a última das aves, do cão que presto, presto, corria em linha recta

de benévolas asas estendidas pela orla do mar. que em construídos céus nos redimiram da frágil condição de ser humano; Sem nem fim, em linha recta,

que as últimas mensagens pela orla do mar. dos emissores piratas, clandestinos algures no fundo dos cristais, Era ao entardecer, no pistilo das flores, na hora espessa, peganhenta e húmida,

. +

Page 43: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

I' i, i, i i r ri . I . r , i i l i I 11 r i . . A 8 , I ,, I , , c, ( 1 o

em que um resto de luz no espasmo da agonia geme nas coisas e empasta-as como goma. No espaço diluído, esfumado e cinzento, corria presto o cão no areal deserto. Corria em linha recta, presto, presto, definindo uma forma movediça que perfurava a névoa e prosseguia pela orla do mar, em linha recta, focinho levantado, olhos estáticos, fixando o breve ponto onde se encontram além de todo o longe as rectas que se dizem paralelas.

Alternavam-se as patas na cadência, na cadência ritmada do movimento presto, deixando no areal as marcas do contacto. Presto, presto.

Como se um desejo o chamasse, corria presto o cão no areal deserto. O ritmo sempre igual, a língua pendurada, os olhos como brocas, furadores de distâncias.

Em seu último espasmo a luz enrodilhou o cão, o mar, o céu, o próximo e o distante. Era um suposto cão correndo presto, presto, num suposto areal, realmente deserto, por uma linha recta mais suposta que o areal e o mar. Mas presto, presto, sempre presto, presto, ia correndo o cão no areal deserto.

Poema das coisas belas

As coisas belas, as que deixam cicatrizes na memória dos homens, por que motivo serão belas? E belas, para quê?

Põe-se o Sol porque o seu movimento é relativo. Derrama cores porque os meus olhos vêem. Mas por que será belo o pôr do Sol?

I E belo, para quê? I

Se acaso as coisas não são coisas em si mesmas, i mas só são coisas quando coisas percebidas,

1 por que direi das coisas que são bplas?

i E belas, para quê?

Se acaso as coisas forem coisas em si mesmas

i sem precisarem de ser coisas percebidas, para quem serão belas essas coisas? E belas, para quê?

Poema do tio-avo materno

Num dia sufocante, de intensíssimo calor, encontrei, ao regressar da escola, um passarinho quase sem vida. caído na rua.

Page 44: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Levantei-o do chão perante olhares indiferentes, aninheio-o nas mãos em concha, e trouxe-o para casa.

Meti-lhe, pela goela, gotas de água com a pipeta de [ um frasco de remédio,

diriji-lhe palavras carinhosas que ele pareceu [ entender,

e mal o achei melhor abri-lhe as mãos e dei-lhe a [ liberdade.

Todos me cumprimentaram pelo bondoso coração [ que assim revelei.

Todos cumprimentaram minha mãe pela boa [ educação que me soubera dar.

Todas as visitas me deram palmadinhas no rosto e fui apontado, aos meninos maus das visitas, como um exemplo edificante que todos deveriam

[ seguir.

Eu sorria-me porque me lembrava de ter ouvido

[ contar que um tio-avô materno, que não cheguei a conhecer, também um dia encontrara um passarinho caído na

[ rua e fizera o mesmo que eu fiz.

Poema das coisas

Amo o espaço e o lugar, e as coisas que não falam. O estar ali, o ser de certo modo, o saber-se como é, onde é que está, e como, o aguardar sem pressa, e atender-nos

I da forma necessária.

Serenas em si mesmas, sempre iguais a si próprias, esperam as coisas que o desespero as busque.

Abre-se a porta e o próprio ar nos fala. As cortinas de rede, exactamente aquelas, a cadeira onde a memória está sentada, a mesa, o copo, a'chávena, o relógio, ' o móvel onde alguém permanece enbstado sem volume e sem tempo, nós próprios, quando os olhos indignados nas pálpebras se encobrem.

Põe-se a pedra na mão, e a pedra pesa, pesa connosco, forma um corpo inteiro. Fecha-se a mão, e a mão toma-lhe a forma, conhece a pedra, entende-lhe o feitio, sente-a macia ou áspera, e sabe em que lugares.

1 Abre-se a mão, e a mesma pedra avulta.

Se fosse o amor dos homens quando se ebrisse a mão já lá não estava.

Page 45: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Poeriia do ainoi- fóssil Poema do estrangeiro

Quem de nós falará aos homens que hão de vir quando o grande clarão encher de luz e pasmo as nossas bocas? E como? Que língua entenderão eles? Que símbolos, que sinais, que apagados murmúrios, lhes falarão de nós, desta fluida e versátil multidão, destes seres que aparentam rosto humano e como tal comovem, mas que olhados do alto são lepra do planeta. Que significará sofrer, amar, lutar, quando as nossas misérias e tormentos não forem mais do que pègadas fósseis? Que palavras há-de o poeta reservar para o coração de plástico dos homens que hão-de vir? Que santo e senha entenderão? Que de nós restará neles? Que parecenças terão com estes hominídeos que amaram a Natureza porque lhes era hostil e suportaram o próximo porque não eram livres? Que verbo deverá ficar gravado na pedra que o

[ vento não corroa, que lhes fale dos humilhados e dos ofendidos, dos sonhadores e dos impotentes, dos ansiosos, dos bêbados e dos ladrões, desta ridícula, miserável e corrupta humanidade que instala os arraiais da morte alegremente num campo que foi verde e que não volta a sê-lo? Amor? Como será amor em língua cibernética?

Aponta o estrangeiro com o dedo risonho as orlas da praia onde as areias do quotidiano bebem as velhas

[ águas. Vai alegre, o estrangeiro. Com o alpendre da mão encobre o Sol dos olhos e indaga a sua volta. , Indaga o longe e o perto, o alto e o baixo, o quieto e

I [ o turbulento e ri-se, ri-se muito de contente, e aprova com a cabeça o movimento das águas.

I Alegra-se o estrangeiro i de ver o mais que visto. 1

É a areia, é o barco, é a gaivota, i

é o pano do toldo que esvoaça, é o Sol que avermelha a face branca, é a criança em fuga das águas que a perseguem. E ri-se, ri-se muito de contente porque a alegria do estrangeiro é o não estar onde estaria se não estivesse ali vendo a gaivota, e a areia, e o barco, e tudo o mais que visto, enquanto a água se evapora na evaporação de todos

[ os dias.

Page 46: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

P«ema da menina do Iiigrosc6pio

Quando o velho do higroscópio desaparecer no [ fundo da casota de madeira

e a menina do cesto assomar à portinha do lado, hei-de ir contigo passear ao campo. Andando, pousarei o meu braço no teu ombro e com os dedos de amor beliscarei o lóbulo macio da tua orelha.

Quando a menina do cesto assomar à portinha do [ higroscópio

de laçarotes nas tranças, a grande saia rodada, azul da Prússia, com três barras vermelhas, e o cesto a transbordar de flores e frutos, hei-de ir contigo passear ao campo.

Oculta na floresta, a casota florida do higroscópio, tem o telhado erguido em ângulo agudo para que a neva escorra, e uma grinalda de malmequeres amarelos a bordar

[ o beiral. Enquanto a corda de tripa não puxar o velho para

[ dentro da casota e com ele as asas de grilo da sua labita preta, . baterei com os pés no chão para aquecer, e esperarei que a menina do cesto assome na portinha do lado. Assim que ela assomar, estremunhada e surpresa, ébria do Sol, tonta do cheiro das flores, hei-de ir contigo passear ao campo.

Iremos pelos atalhos e sobre ti me deitarei na terra.

Encostado ao teu corpo ouvirei as abelhas pairando sobre as flores como

[ helicópteros e ouvirei o estalar das anteras e o surdo escorrer dos grãos de pólen buscando o óvulo, deflagrando nele a primavera eterna.

Quando a menina do cesto assomar à portinha do [ higroscópio

e os pássaros de gesso debicarem as pontas dos seus [ tamancos,

óh! como vai ser bom! mesmo que tu não venhas nem existas, hei-de ir contigo passear ao campo.

i

Poeina do ser inóspito

No cubículo estreito onde a criança dorme no homem como um ser inóspito, duplas são as paredes e, na boca, uva de moscatel, açaime de aço. Dorme, criança, dorme. Não deixes ficar mal os que acreditam no mito da inocência. Dorme, e espera que os homens se aniquilem enquanto dormes. Reduz-te a imaginar como serão as flores, os insectos, as pedras, as estrelas,

Page 47: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

e tudo quanto é belo e se reflecte nos olhos das crianças. Imagina um luar que cresce e aquece e faz da tua carne flor de loiça, orquídea branca que o calor não cresta. Imagina, imagina. Mas, sobretudo, dorme.

Poeina dos olhos na ribeira

Há dez minutos que tenho os olhos postos nas águas desta ribeira.

Na sua quietitude as folhas do salgueiro debruçado reflectem-se com tanta nitidez que as duas realidades se confundem. Mas a realidade da imagem tem maior conteúdo de

sonho: é mais real, portanto.

Como esta quietitude seria reconfortante e [ apaziguadora

se todos os olhos do meu corpo fossem apenas estes com que olho.

A água macia ao rodear cada seixo, redondo e polido, - enruga-se num sorriso.

Uma folha desprendida do aconchego do salgueiro cai, ao longo do espaço, rodopiando e descendo em

[ espiral apertada, e vem tocar, de manso, na preguiçosa superfície

[ líquida. Sinto o prazer físico daquele contacto no arrepio circular da pele de água.

A imagem de uma nuvem vem amargar a doçura do [ líquido.

Será a nuvem que se espelha nas águas da ribeira ou a ribeira que se espelha nos flocos da nuvem? Fecho os olhos da cara para fugir à mistificação da evidência.

A ribeira que flutua no céu, 1

a nuvem que desliza sobre os seixoh, r

os seixos em torno de que a água sorri, o salgueiro de onde pendem e se desprendem

[ lágrimas verdes, tudo são momentos de momentos, fragmentos de momentos, partículas de momentos.

j Este salgueiro verde, i

I este que eu vejo com os elementares olhos desta ! [ cara,

deve-me a sua existência, a mim, e só a mim, que também sou fragmento de

[ momento. 1 i E contudo,

há dez longos minutos que tenho os olhos postos nas águas desta ribeira. Há dez longos minutos que penso e que repenso em coisas já pensadas e repensadas

Page 48: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

I' , i C ' i i i o I 8 ' 1 I I I , \ i ,, ,, , ,; ,, , ,, <, ,, ,I c. ,, ,,

que outros já pensaram e repensaram antes de mim '

e que outros hão-de pensar e repensar depois de mim. Poema do alquimista

Poema da volta pelo bairro

As palavras saíam-lhe da boca altas e frondosas como as árvores, e o vento que soprava levava as palavras consigo e deixava-as cair nas terras férteis onde se multiplicavam e cresciam. Eram essas palavras sonorosas, pesadas e sumarentas como as laranjas escolhidas, e nelas se comparavam as virtudes às flores, e o vício à lepra, e a vida inteira ao caudaloso rio i que flui, estreito e efémero, tropeçando nas pedras e nos limos.

I

Recolhi-me no quarto com as palavras fervendo nos I [ ouvidos, ?

e aí me entretive a pesá-las, 1 uma a uma, numa balançazinha que lá tenho. Pesei-as, e arrumei-as nas prateleiras. Aqui, a boca; além, as árvores frondosas. Deste lado, a virtude; do outro, as flores. Aqui, o vício; mais além, a lepra. Aqui, o rio efémero; além, a vida. E como a noite estivesse realmente agradável saí, e fui dar uma volta pelo bairro.

Ao lume dos teus olhos pus-me a aquecer esta mistela de neve e sol nascente como o alquimista de Dusseldorf que punha ao lume a retorta de grés de longo colo e nela aquecia sangue de drago (2 onças), tártaro emético (5 dracmas), enxúndia de víbora (12 a I5 gotas), manteiga de antimónio, corno de cervo, espírito ardente de Saturno (meia onça de cada), e ficava esquecido na solidão da sua toca, o gorro de pêlo enterrado até as orelhas, aceso o rosto pelo forno de revérbero. Cá fora os homenzinhos de Bruegql, com os nédios trazeiros voltados para o espectador, as bragas vermelhas a estalarem nas costuras, ceifavam o trigo na pradaria verde. O alquimista de Dusseldorf buscava o segredo da pedra escondida nas

[ entranhas da terra, o alcaest, o dissolvente universal, o elixir da saúde perdida, para que a sua vida nunca mais tivesse termo, nem as pálpebras de roxo se pintassem, nem de branco seus lábios. O alquimista de Dusseldorf procurava os arcanos, as tinturas, a quinta essência

[ das coisas, os sete degraus da obra sagrada que as leves pernas galgam na agitação dos nervos. Coitado do alquimista de Dusseldorf! Ele queria tudo, o raio do velho. 97

Page 49: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Queria acender o forno de revérbero com a brasa [ do seu rosto,

transmutar a retorta de grés em sexo triunfante e o pêlo baço do gorro em penugem fofa e crespa.

Ísis! Ó Ísis! Ó Flor do lotus! Ó Garça esbelta rescendendo a mirra! Olha bem para mim, Ísis, meu vaso de ébano. Incendeia-me com os teus olhos de carbúnculo. Queima-me com a labareda da tua língua. Atenta na minha modéstia, ó Ísis. Eu não sou o alquimista de Dusseldorf. Eu não quero tudo. Eu quero apenas, apenas transmutar esta chatice em flores.

Pocma da mcinória

Havia no meu tempo um rio chamado Tejo que se estendia ao Sol na linha do horizonte. Ia de ponta a ponta, e aos seus olhos parecia exactamente um espelho porque, do que sabia, só um espelho com isso se parecia.

De joelhos no banco, o busto inteiriçado, só tinha olhos para o rio distante, os olhos do animal embalsamado

mas vivo na vítrea fixidez dos olhos penetrantes. Diria o rio que havia no seu tempo um recorte quadrado, ao longe, na linha do

[ horizonte,

onde dois grandes olhos, grandes e ávidos, fixos e pasmados, o fitavam sem tréguas nem cansaço. Eram dois olhos grandes, olhos de bicho atento que espera apenas por amor de esperar.

E por que não galgar sobre os telhados, os telhados vermelhos das casas baixas com varandas verdes I

e nas varandas verdes, sardinheiras? Ai se fosse o da história que voava com asas grandes, grandes, flutuantes, e poisava onde bem lhe apetecia, e espreitava pelos vidros das janelas das casas baixas com varandas verdes! Ai que bom que seria! Espreitar não, que é feio, mas ir até ao longe e tocar nele, e nele ver seus olhos repetidos, grandes e húmidos, vorazes e inocentes. Como seria bom!

Descaem-se-me as pálpebras e, com isso, I 1 (tão simples isso)

i não há olhos, nem rio, nem varandas, nem nada.

Page 50: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

130cina da eterna presença

Estou, nesta noite cálida, deliciadamente estendido [ sobre a relva,

de olhos postos no céu, e reparo, com alegria, que as dimensões do infinito não me perturbam. (O infinito! Essa incomensurável distância de meio metro que vai desde o meu cérebro aos dedos com que

[ escrevo!)

O que me perturba é que o todo possa caber na parte, que o tridimensional caiba no adimensional, e não o

[ esgote.

O que me perturba é que tudo caiba dentro de mim, de mim, pobre de mim, que sou parte do todo. E em mim continuaria a caber se me cortassem

[ braços e pernas porque eu não sou braço nem sou perna.

Mas não esqueci tudo. Guardei a memória da treva, do medo espavorido do homem da caverna que me fazia gritar quando era menino e me

[ apagavam a luz;

guardei a memória da fome, da fome de todos os bichos de todas as eras, que me fez estender os lábios sôfregos para mamar

[ quando cheguei ao mundo;

guardei a memória do amor, dessa segunda fome de todos os bichos de todas as [ eras,

niie me fez deseiar a mulher do próximo e do distante; -l-- --

guardei a memória do infinito, daquele tempo sem tempo, origem de todos os tempos. em sue assisti, disperso, fragmentado, pulverizado. - -

à formação do Universo. i

Tudo se passou defronte de partes de mim. E aqui estou eu feito carne para o demonstrar, porque os átomos da minha carne não foram

[ fabricados de propósito para mim. Já cá estavam.

Se eu tivesse a memória das pedras Estão. que logo entram em queda assim que se largam no E estarão.

[ espaço sem que nunca nenhuma se tivesse esquecido de cair; se eu tivesse a memória da luz que mal começa, na sua origem, logo se propaga,

iclr sem que nenhuma se esquecesse de propagar;

I

os meus'olhos reviveriam os dinossáurios que I poema das folllas secas de platano [ caminharam sobre a Terra, 1

os meus ouvidos lembrar-se-iam dos rugidos dos [ oceanos que engoliram continentes, folhas dos plátanos desprendem-se e lançam-se

a minha pele lembrar-se-ia da temperatura das [ na aventura do espaço, 101

[ geleiras que galgaram sobre a Terra.

Page 51: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

e os olhos de uma pobre criatura comovidos as seguem. São belas as folhas dos plátanos quando caem, nas tardes de Novembro, contra o fundo de um céu desgrenhado e sangrento. Ondulam como os braços da preguiça no indolente bocejo. Sobem e descem, baloiçam-se e repousam, traçam erres e esses, cicloides e volutas, no espaço escrevem com o pecíolo breve, numa caligrafia requintada, o nome que se pensa, e seguem e regressam, dedilhando em compassos sonolentos a musica outonal do entardecer.

São belas as folhas dos plátanos espalhadas no chão. Eram verdes e lisas no apogeu da sua juventude em clorofila, mas agora, no outono de si mesmas, o velho citoplasma, queimado e exausto pela luz do Sol, deixou-se trespassar por afiados ácidos. A verde clorofila, perdido o seu magnésio, vestiu-se de burel, de um tom que não é cor, nem se sabe dizer que nome tenha, a não ser o seu próprio, folha seca de plátano. A secura do Sol causticou-a de rugas, um castanho mais denso acentuou-lhe os nervos, e esta real e pobre criatura vendo o solo coberto de folhas outonais medita no malogro das coisas que a rodeiam: dá-lhes o tom a ausência de magnésio; os olhos, a beleza.

Poema do futuro

Conscientemente escrevo e, consciente, medito o meu destino.

No declive do tempo os anos correm, deslisam como a água, até que um dia um possível leitor pega num livro e lê, lê displicentemente, por mero acaso, sem saber porquê. ~ ê , e sorri. Sorri da construção do verso que destoa no seu diferente ouvido; sorri dos termos que o poeta usou 1

onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo; e sorri, quase ri, do íntimo sentido, do latejar antigo daquele corpo imóvel, exhumado da vala do poema.

Na História Natural dos sentimentos tudo se transformou. O amor tem outras falas, a dor outras arestas, a esperança outros disfarces, a raiva outros esgares.

Estendido sobre a página, exposto e descoberto. exemplar curioso de um mundo ultrapassado. é tudo quanto fica, é tudo quanto resta de um ser que entre outros seres vagueou sobre a Terra.

Page 52: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Poeina das Arvores

As árvores crescem sós. E a sós florescem.

Começam por ser nada. Pouco a pouco se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.

Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos, e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.

Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as

[ flores, e então crescem as flores, e as flores produzem frutos, e os frutos dão sementes, e as sementes preparam novas árvores.

E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas. Sem verem, sem ouvirem, sem falarem. Sós. De dia e de noite. Sempre sós.

Os animais são outra coisa. Contactam-se, penetram-se, trespassam-se, fazem amor e ódio, e vão à vida como se nada fosse.

As árvores, não. Solitárias, as árvores, exauram terra e sol silenciosamente. Não pensam, não suspiram, não se queixam. Estendem os braços como se implorassem; com o vento soltam ais como se suspirassem; e gemem, mas a queixa não é sua.

Sós, sempre sós. Nas planícies, nos montes, nas florestas, a crescer e a florir sem consciência.

Virtude vegetal viver a sós e entretanto dar flores.

Poema dos textos

Dobrados sobre os textos deslisam devagar o dedo indicador nas brancas entrelinhas. A ruga entre os sobrolhos dendncia c

o concentrado esforço. São séculos de leitura, perseverante e atenta, que os lábios em silêncio reproduzem

I

e as barbas com tremuras sintonizam.

i Chegado ao fim, o dedo retrocede 1 e regressa ao princípio, I 1

de novo sublinhando o texto, cauteloso. Pára na dúvida, e o rosto se confrange

i no sempre nebuloso entendimento. Onde se lê "cordeiro" não é cordeiro; onde se lê "pastor" não é pastor; e o grão que foi cair na berma do caminho, pisado pelos pés e comido p'las aves, não era grão, nem existiam aves, nem os pés o pisaram, nem sequer o caminho existia.

Page 53: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

O mistério persiste, emoliente e arteiro, p'ra que vendo não vejam, e ouvindo não entendam.

Que significará o pão, o vinho. o peixe, o escorpião,

[ a cinza?

Que significará "meus amados irmãos"?

Que quererá dizer "amai-vos uns aos outros"?

Aos domingos as ruas estão desertas e parecem mais largas. Ausentaram-se os homens à procura de outros novos cansaços que os descansem. Seu livre arbítrio algremente os força a fazerem o mesmo que fizeram os outros que foram fazer o que eles fazem. E assim as ruas ficaram mais largas, o ar mais limpo, o sol mais descoberto. Ficaram os bêbados com mais espaço para trocarem

[ as pernas e espetarem o ventre e alargarem os braços no amplexo de amor que só eles conhecem. O olhar aberto às largas perspectivas difunde-se e trespassa os sucessivos, transparentes planos.

Um cão vadio sem pressas e sem medos fareja o contentor tombado no passeio.

É domingo. E aos domingos as árvores crescem na cidade, e os pássaros, julgando-se no campo, desfazem-se a

[ cantar empoleirados nelas.

' Tudo volta ao princípio. E ao princípio o lixo do contentor cheira ao estrume

[ das vacas

e o asfalto da rua corre sem sobressaltos por entre . [as pedras

levando consigo a imagem das flores amarelas do [ tojo,

enquanto o transeunte, no deslumbramento do encontro inesperado, eleva a mão e acena

I

para o passeio fronteiro onde dão vai ninguém.

Poema de ser natural i

Tranquilamente o sol penetra no meu quarto. Mas porque não havia o Sol de penetrar no meu quarto, se o caminho está livre e nada se lhe opõe? Estranho seria que o Sol atravessasse as paredes de pedra e de cimento do meu quarto, mas se o Sol atravessasse as paredes de pedra e de

[ cimento do meu quarto, 107

Page 54: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

já não seria estranho, seria simplesmente natural.

É assim como o melro da porteira que canta enquanto escrevo. Mas porque não havia de cantar o melro da porteira se é seu dever cantar? Cumpre o melro o seu fado, e eu cumpro o meu. Estranho seria, sim, que fosse eu a cantar, e ele, o melro, a escrever com a ponta do bico. Mas se o melro escrevesse com a ponta do bico e eu cantasse, já não seria estranho, seria simplesmente natural.

Assim sou eu, o Sol, o melro, e tudo o mais. Tudo, conforme é, é natural, e para tudo isso os sábios fazem leis e os crentes pasmam da obra do Senhor.

Poeina da praça pública

Pobre de quem procura e não encontra. Infeliz de quem espera e não alcança.

Movem-se os olhos, apuram-se os ouvidos, e quando as mãos se agitam numa esperança afundam-se nos bolsos e emudecem.

A máquina da História, que fabrica os dias do futuro com a sucata das horas do presente, alimenta-se de ecos, de palavras, de vozes fátuas, de melífluos cantos, do bafo morno das gargantas pródigas em bordados, em rendas, em matizes.

Olho em redor e vejo os homens todos separados em grupos, cada um da sua cor. São vermelhos, são verdes, são cinzentos, alguns são amarelos como o oiro, todos na mesma praça, aglomerados, mas cada um voltado ao seu quadrante.

As vozes interferem-se, e o conjunto \ é um estentor de vozes, de baixos, de barítonos, de tenores,

1 sopranos e contraltos.

Desço também à praça e nela me diluo e me confundo. E aqui estou. Por aqui deambulando. ouvindo e observando o próximo e o distante, perscrutando, tentando adivinhar o pensamento alheio, olhos postos nos olhos, procurando, buscando aqueles cujas mentiras mais se aproximam das minhas verdades:

Page 55: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

I ' i i c iii <I i 1. i c < I I h i < I <i i . .A i, , <i i, , <i <, '. ,I ', <, ,,

Poei~ia da mulher dos cabelos braiicos

A mulher dos cabelos brancos estava a janela do [ primeiro andar

com os antebraços poisados no parapeito. Tinha um xaile de malha sobre os ombros, cruzado a frente e as mãos metidas nele.

Quentinha, a mulher dos cabelos brancos.

Postada à janela, muito ocupada em fazer coisa nenhuma, com os antebraços poisados no parapeito, a mulher dos cabelos brancos só seguia com os olhos quem passava na rua. Ela nunca tinha ouvido falar no Aristóteles, nem no Descartes, nem no Sigmundo Freude, mas sabia coisas concretas que a vida prática lhe .

[ ensinara. Sabia que a Eva tinha sido feita de uma costela de Adão, o que se prova por os homens terem uma costela a menos do que

[ as mulheres. E também sabia que o Sol anda a volta da Terra como é evidente, e que as salamandras vivas, postas no fogo, não morrem nem sequer se queimam, o que não é evidente mas é certo. E por saber todas estas coisas, e muitas mais,

a mulher dos cabelos brancos sentia-se muito [ quentinha

com os antebraços apoiados no parapeito.

Eis que, porém, o relógio do tempo despertou-a. Então, pausadamente, a mulher dos cabelos brancos ergueu o busto, fechou a janela, e foi sentar-se na cadeira do costume, aconchegadinha, a ver a televisão.

Poema da erva fresca

De repente cheirou-me a erva fresca, a feno, a estrume, a vegetais pisados. I

! E lembrei-me do Hesíodo. 1 l

i Devia ser atarracado e gordo. i Devia ter a boca entumescida

i e o nariz grosso.

A minha volta não se enxergavam cabras, nem brotavam do chão as alcachofras, nem o estrídulo canto das cigarras me arranhava os ouvidos.

Page 56: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Mas ele, o gordo, andava por ali, saboreando-se, na eterna manhã dos pássaros.

Um Sol sem adjectivos, o mesmo Sol que em Ascra descamisava cobras e assombrava lagartos, relampejava ali, nas vidraças dos carros.

Rubicundo e matreiro lambe o sarro do vinho reluzente nos beiços, o vinho resinoso que ficou a escorrer na memória dos simples, e agora, já lambido, sopra rijo na flauta enchendo o Campo Grande de vibrações sonoras.

Olá, Hesíodo! Por aqui?

Era Maio, e havia flores vermelhas e amarelas nos campos de Alfarrobeira.

O homem, de burel grosso e barba de seis dias, arrastava os tamancos e o cansaço. Ao lado iam seguindo os bois puxando o carro,

naquele morosíssimo compasso que engole o tempo ruminando o espaço.

Era velho mas tinha a voz sonora e com ela incitava os bois em andamento, voz cantada que os ecos prolongavam indefinidamente. Era um deus soberano e maltrapilho a cuja imperiosa voz aquelas massas de carne musculada, \maciça, rude, bruta, inamovível, obedeciam mansas e seguiam no sulco aberto como se um pulso alado as dirigisse, mornas e sonolentas.

1

A voz era a de um deus que os mundos cria, que do nada faz tudo, que vence a inércia e anula a gravidade, que levita o que pesa e o trata como leve. Potência aliciadora alonga-se e prolonga-se nos plainos da paisagem, enquanto os animais prosseguem no caminho do seu quotidiano, pensativos e absortos.

Lá em baixo, na margem do ribeiro, estendido sobre a erva, jaz o infante. Do seu coração ergue-se a haste de um virote erecta como um junco, e já nenhuma voz o acordará.

Page 57: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Algures aconteceu neste globo terráqueo, veículo espacial, segundo sábias leis perdido na galáxia.

Ali, em certa tarde, ia um homem no acto de quem anda e vai continuar. O pé direito atrás, mal tocando no chão, o esquerdo mais a frente, levantado.

Todo o corpo do homem se inclinava obliquamente em relação ao solo.

Ia. Tinha toda a aparência de quem ia, e não deixava dúvidas sobre isso. Os braços ajudavam a atitude. O direito avançado, o esquerdo recuado, ao contrário dos pés, e as mãos desinteressadas nos extremos.

Ia, mas s sua distância aos corpos em redor mantinha-se constante, e os perfis das árvores e das casas não mostravam sinais de movimento. O instante arrancado a eternidade como a folha de um livro que se rasga deixando-o incompreensívèl.

Desde o princípio do mundo que tudo estava orientado naquele exacto sentido. Naquele instante aquele homem teria aquele pé levantado do solo, o esquerdo, e o outro, o pé direito, levemente pousado.

E é tudo. Não há nada a acrescentar.

Poema da camisinl~a dc uIgodáo I

i

Aquela camisinha de algodão que o menino vestia no retrato tem, como tudo, a sua própria história, capítulo breve de uma outra história mas essa universal.

Talvez nos arredores de Alexandria, de Tebas ou de Mênfis, na vastidão imensa onde os camelos, magníficos, caminham de cabeças desdenhosas, houvesse algures um espaço húmido e verde onde a penugem branca das sementes aguardasse o futuro.

Page 58: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

E o futuro chegou. Mãos cansadas e magras a colheram, máquinas pressurosas a enfardaram, sulcou as águas, percorreu as terras, e longe, muito longe, a outras mãos entregue, foi fiada e tecida.

Depois, num dia desse longe, novamente embarcada, partiu para outro longe, e enfim aqui chegou, alindada e tingida, de mimosas florzinhas salpicada.

São agora mãos próximas que a escolhem, outras que a medem, outras mais que a cortam, que a alinhavam, que a cosem, que a debruam, até que em certo dia deste mundo, entre guerras, misérias e catástrofes, gritos e choros, preces e impropérios, calmas e arrepios, num certo quarto, a milhões de outros quartos

[ semelhante, aquela mãe ajuda o seu menino i

de bracinhos erguidos, a enfiá-los j

na sua camisinha de algodão. i I

Poema da flor no seu vaso

Busco nas flores o apelo carinhoso como o prisioneiro da Ilha do Diabo que acariciava

[ as escolopendras. As flores já não se usam mas olhadas daqui, por entre as grades, são corpos disponíveis que aceitam e se oferecem.

Aqui, a sós, onde ninguém me ouve, nem vê, nem sente, nem sequer suspeita, poderei olhá-las como os enfeitiçados olham, e em silêncio falar-lhes, sem palavras, apenas com o mover das sobrancemas. i

Com as flores tenho aqui a Natureza ao alcance das mãos, dentro de casa. Olhando-as se desdobram os planos do horizonte, multiplicam-se as flores, sucedem-se os vergéis, as sendas entre muros, os prados, os recantos, as sebes, os riachos, as árvores, os penedos, os cumes, as encostas. Tudo é alegre e verde, amarelo e vermelho, cobrindo de alcatifas os socalcos das serras.

Respiro fundo como o ginasta em exercício. Inspiro e expiro. Lenta e profundamente.

Uma vez.

Page 59: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

outra vez.

O ar inunda e lava como um fluido cheiroso o corpo todo inteiro.

Uma vez.

Outra vez.

Agora sim. Estou pronto para a luta.

Acaricio a flor no seu vaso de plástico e vou. Vou por aí.

Pocriia dos h s a ~ o s iius das niulheres

Como o dia estivesse muito quente as mulheres saíram de casa e foram à sua vida com blusas sem mangas. A carne dos seus braços erguidos ao alto para alcançarem as argolas do

[ autocarro eram veios de luz voluptuosa e cálida. Apelo de escultor que esculpe trauteando melodias.

Iam todas afogueadas de calor, de calor feminino, e por isso eram largas as cavas das suas blusas

e delas emergiam os braços levantados para alcançarem no alto as argolas do autocarro.

Era com aqueles braços nus, desprendidos das argolas do autocarro, . que aquelas mulheres na hora permitida, cingiam e apertavam os corpos horizontais dos seus companheiros.

Mas não era nisso que elas iam a pensar. Elas iam a pensar no seu trabalho quotidiano, no ir e vir, no andar a correr, no cozinhar, nas compras, no emprego, no dinheiro que não chega, 1

e pensavam, com os olhos parados e distantes, enquanto se agarravam as argolas do autocarro, noutra vida melhor, sem ir e vir, sem andar a correr, sem horas para isto e para aquilo, livres, livres, livres e independentes, para então cingirem e apertarem nos seus braços

[ nus

os corpos horizontais dos seus companheiros.

Page 60: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Poe121a da minha natureza

Crescem as flores no seu dever biológico, e as cores que patenteiam, por sua natureza, só podem ser aquelas, e não outras. Vermelhas, amarelas, cor de fogo, lilazes, carmezins, azuis, violetas, assim, e só assim, tudo conforme a sua natureza. Ásperas são as folhas, macias, recortadas ou não, tudo conforme; e o aprumo como tal, ou rasteiras, ou leves, ou pesadas, tudo no seu dever, por sua natureza.

É como os animais. Em cada qual, por sua natureza, todo o dever se cumpre. Comem, dejectam, dormem, fazem amor nas horas competentes, lutam, caçam, agridem, rosnam a Lua, trinam, assobiam, escondem-se, espreitam, fogem, amarinham, dançam, mudam de pele, agacham-se, disfarçam-se, tudo conforme a sua natureza.

Assim eu penso, e amo, e sofro, e vou andando. Tudo conforme a minha natureza.

Poema dos olhos fechados

Estendido sobre o leito, hirto, e de olhos fechados, exactamente como se tivesse morrido, fiquei a espera de uma coisa qualquer.

Silêncio.

Duas crianças riram, ali perto, num quintal, e um homem deu um grito estrepitoso para chamar alguém. Estavam vivos e não reparavam nisso.

Depois calaram-se. i

E voltou o silêncio.

Um rumor brando, vagamente sibilante como um gás que se escoa sem ruído, penetrou-me os ouvidos e foi-se ocupando do cérebro, manhosamente, como coisa sua, nível após nível, milímetro a milímetro,

1 num alagamento insidioso que tudo ocupa e tudo inutiliza.

i 1 Com os olhos cerrados senti o rumor desdobrar-se em vozes íntimas,

i I ecos que o tempo decorrido dissipara,

i vozes antigas, murmúrios carinhosos, palavras sussurradas,

Page 61: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

chamamentos de amor, cicios como dedos que se passeiam nos lábios, segredos, balbucios, delíquios e gemidos.

Tudo esperava por mim, e eu ali, de olhos cerrados, estendido na cama, hirto, como se tivesse morrido.

Continuei à espera.

Agora eram acenos, mãos veladas que me chamavam, como se além de nós houvesse mais alguma coisa, como se na paisagem esvaziada da morte caber pudesse a memória de um sorriso, aquele sorriso branco, profundamente interior, que é suporte da vida e dela o único bálsamo.

Permaneci esperando, hirto, e de olhos fechados.

Esperei.

Esperei.

E como nada mais acontecesse levantei-me, e fui fazer o pequeno almoço.

Poema do galo

Quem há-de abrir a porta ao gato quando eu morrer?

Sempre que pode foge prá rua, cheira o passeio e volta pra trás, mas ao defrontar-se com a porta fechada (pobre do gato!) mia com raiva desesperada.

Deixo-o sofrer 1

que o sofrimento tem sua paga,\ e ele bem sabe.

Quando abro a porta corre pra mim como acorre a mulher aos braços do amante. Pego-lhe ao colo e acaricio-o num gesto lento, vagarosamente, do alto da cabeça até ao fim da cauda. Ele olha-me e sorri, com os bigodes eróticos, olhos semi-cerrados, em êxtase, ronronando.

Repito a festa, vagarosamente, do alto da cabeça até ao fim da cauda. Ele aperta as maxilas, cerra os olhos,

i abre as narinas,

Page 62: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

e rosna, rosna, deliquescente, abraça-me e adormece.

Eu não tenho gato, mas se o tivesse quem lhe abriria a porta quando eu morresse?

Niels Armstrong pôs os pés na Lua e a Humanidade inteira saudou nele o Homem Novo. No calendário da História sublinhou-se com espesso traço o memorável feito.

Tudo nele era novo. Vestia quinze fatos sobrepostos. Primeiro, sobre a pele, cobrindo-o de alto a baixo, um colante poroso de rede tricotada para ventilação e temperatura próprias. Logo após, outros fatos, e outros e mais outros, catorze, no total, de película de nylon e borracha sintética. Envolvendo o conjunto, do tronco até os pés, na cabeça e nos braços, confusíssima trama de canais para circulação dos fluidos necessários, da água e do oxigénio.

A cobrir tudo, enfim, como um balão de vento, um envólucro soprado de tela de alumínio. Capacete de rosca, de especial fibra de vidro, auscultadores e microfones, e, nas mãos penduradas, tentáculos programados, luvas com luz nos dedos.

Numa cama de rede, pendurada da parede do módulo, na majestade augusta do silêncio, dormia o Homem Novo a caminho da Lua.

Cá de longe, na Terra, num borborinho ansioso, bocas de espanto e olhos de humidade, todos se interpelavam e falavam do Homem Novo, do Homem Novo, i do Homem Novo.

Sobre a Lua, Arrnstrong finalmente os pés. Caminhava hesitante e cauteloso, pé aqui, pé ali, as pernas afastadas, os braços insuflados como balões pneumáticos, o tronco debruçado sobre o solo.

Lá vai ele. Lá vai o Homem Novo medindo e calculando cada passo, puxando pelo corpo como bloco emperrado.

Mais um passo. Mais outro. I

I

Page 63: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Num sobrehumano esforço levanta a mão sapuda e qualquer coisa nela. Com redobrado alento avança mais um passo, e a Humanidade inteira, com o coração pequeno e ressequido, viu, com os olhos que a terra há-de comer, o Homem Novo espetar, no chão poeirento da Lua,

[ a bandeira da sua Pátria, exactamente como faria o Homem Velho.

Poeina de andar à soda

E nem podia ser de outra maneira.

Como as ondas do mar que vão e vêm pela atracção da Lua, outras ondas se alteiam, atraídas por outras luas, satélites do rosto. Enquanto umas de amor cobrem as praias e as penetram de espuma, estas não amam, não molham, não se esgotam. Mudam de cor, apenas.

Vêm de dentrò e sobem, num conflito sem tréguas nem fraquezas, deixando o rosto esfarelado e seco como os desertos quando o vento sopra. Correndo a mão p'la barba, molemente, como quem passa o tempo sem cuidados, disfarça-se o rugir da onda brava

enquanto as luas, pedras brutas sem vida nem remorso, friamente percorrem suas órbitas como se disso fossem conscientes.

E assim correm os dias, tão pacatos como os das bordadeiras, debruçadas sobre os seus bastidores. Com as linhas de cor fazem figuras harmoniosas, ornatos inocentes, tão sérias e absortas como se a vida toda ali estivesse, o passado, o presente e o futuro, na ponta de uma agulha. São seres exemplares, as bordadeiras. Quando se picam I

chupam de leve a gota que despbnta, ensalivam-na, engolem-na e prosseguem; distraídas e atentas.

E nem podia ser de outra maneira.

Como as ondas do mar que vão e vêm pela atracção da Lua, outras ondas se alteiam, atraídas por outras luas, satélites do rosto. Enquanto umas de amor cobrem as praias e as pentram de espuma, estas não amam, não molham, não se esgotam. Mudam de cor, apenas. .Vêm de dentro e sobem, num conflito sem tréguas nem fraquezas, deixando o rosto esfarelado e seco como os desertos quando o vento sopra.

Page 64: Antonio Gedeao Poemas Escolhidos

Correndo a mão p'ia barba, molemente, como quem passa o tempo sem cuidados, disfarça-se o rugir da onda brava enquanto as luas, pedras brutas sem vida nem remorso, friamente percorrem suas órbitas como se disso fossem conscientes.

E assim correm os dias, tão pacatos como os das bordadeiras, debruçadas sobre os seus bastidores. Com as linhas de cor fazem figuras harmoniosas, ornatos inocentos, tão sérias e absortas como se a vida toda ali estivesse, o pasado, o presente e o futuro, na ponta de uma agulha. São seres exemplares, as bordadeiras. Quando se picam chupam de leve a gota que desponta, ensalivam-na, engolem-na e prosseguem, distraídas e atentas.

E nem podia ser de outra maneira.

Como as ondas do mar que vão e vêm pela atracção da Lua,

etc ...