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SEMIPRESENCIAL Profa. Vera Cristina de Souza Antropologia

Antropologia

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Page 1: Antropologia

SEMIPRESENCIAL

Profa. Vera Cristina de Souza

Antropologia

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Vera Cristina de Souza

ANTROPOLOGIA

Cursos Semipresenciais

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SUMÁRIO PARTE I – TEORIA ANTROPOLÓGICA 61 ANTROPOLOGIA 61.1 O QUE É ANTROPOLOGIA? 61.1.1 Cultura 61.1.1.1 Pluralidades 71.1.1.2 Diversidades 71.1.1.3 Julgamento de Valor 81.2 QUAIS SÃO OS SEUS OBJETIVOS? PARA QUE SERVE? 81.2.1 Sociologia 91.2.2 O Assistente Social e a Ciência Antropológica: “Qual é a

Importância do Estudo da Disciplina de Antropologia para o Estudante do Curso de Serviço Social?”

9

2 CIÊNCIA, CONHECIMENTO CIENTÍFICO E CONHECIMENTO DE SENSO COMUM

11

2.1 A ESPECIFICIDADE DA METODOLOGIA DOS ESTUDOS E DAS PESQUISAS ANTROPOLÓGICAS

11

2.1.1 Metodologia Científica - Como Proceder ao Estudo Antropológico?

11

2.1.1.1 Multidiciplinaridade 112.1.1.2 Empírico / Empirismo 112.1.1.3 Epistemologia 122.1.1.4 Senso Comum 122.2 A ETNOGRAFIA E A ETNOLOGIA: DE QUE FORMA

OCORRE O ESTUDO ANTROPOLÓGICO? 12

2.2.1 Etnografia 132.2.2 Etnologia 132.3 O CONCEITO DE NEUTRALIDADE – ÉMILE DURKHEIM 132.4 ALGUNS CONCEITOS ANTROPOLOGICOS IMPORTANTES 142.4.1 Estruturas Familiares 142.4.1.1 Sistema Monogâmico 152.4.1.2 Sistema Bigâmico 15

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2.4.1.3 Sistema Poligâmico 152.4.1.4 Endogamia 152.4.1.5 Exogamia 152.4.2 Etnocentrismo 162.4.3 Selvagem / Bárbaro / Primitivo 162.4.4 Xenofobia 162.4.5 Eugenia 172.4.6 Raça 182.4.7 Cor 192.4.8 Etnia 192.4.9 Racismo 192.4.10 Discriminação 192.4.11 Preconceitos 192.4.12 Aculturação / Assimilação 202.4.13 Sincretismo Religioso 212.4.14 Relativismo Cultural (RC) 222.4.14.1 Selvagens, Brutos e Ignorantes 232.4.14.2 Dóceis, Ingênuos, Bestializados, Sem Razão, Sem

Raciocínio 23

2.4.15 Representações Sociais 243 AS PRINCIPAIS ESCOLAS DO PENSAMENTO

ANTROPOLÓGICO CLÁSSICO 26

3.1 AS PRINCIPAIS ESCOLAS 263.1.1 Escola Evolucionista: Século XIX 263.1.1.1 Características Principais 263.1.1.2 Referências Literárias 273.1.2 Escola Sociológica Francesa: Século XIX / XX 283.1.2.1 Características Principais 283.1.2.2 Referências Literárias 283.1.3 Escola Funcionalista: Século XX (Anos 20) 283.1.3.1 Características Principais 283.1.3.2 Referências Literárias 293.1.4 Escola Culturalista: Século XX (Anos 30) 29

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3.1.4.1 Características Principais 293.1.4.2 Referências Literárias 293.1.5 Escola Estruturalista: Século XX (Anos 40) 303.1.5.1 Características Principais 303.1.5.2 Referências Literárias 303.1.6 Escola Interpretativa: Século XX (Anos 60) 303.1.6.1 Características Principais 303.1.6.2 Referências Literárias 303.1.7 Escola Crítica (Pós-moderna): Século XX (Anos 80) 313.1.7.1 Características Principais 313.1.7.2 Referência Literária 313.2 OS CINCO POLOS DO ESTUDO ANTROPOLÓGICO 313.2.1 Antroplogia Simbólica 313.2.2 Antropologia Social 313.2.3 Antropologia Cultural 323.2.4 Antropologia Estrutural e Sistêmica 323.2.5 Antroplogia Dinâmica 32 PARTE II – CLÁSSICOS DA ANTROPOLOGIA

BRASILEIRA 33

4 APRESENTAÇÃO À OBRA “CASA GRANDE E SENZALA”, GILBERTO FREYRE

34

4.1 GILBERTO FREYRE 344.1.1 Vida e Obra 344.1.2 Casa Grande e Senzala 344.1.2.1 Como Ocorreu a Formação da Sociedade Brasileira? 354.1.2.2 O Indígena 364.1.2.3 O Negro Africano no Brasil 385 APRESENTAÇÃO À OBRA “O POVO

BRASILEIRO”, DE DARCY RIBEIRO 39

5.1 DARCY RIBEIRO 395.1.1 Biografia 395.1.2 O Povo Brasileiro 39

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5.1.2.1 Os Mamelucos e a Miscigenação Indígena 425.1.2.2 A População Negra Brasileira: o Negro Africano 435.1.2.3 A Mestiçagem e o Item Cor - a “Ninguendade” do Mulato

Brasileiro 47

5.1.2.4 O Moinho de Gastar Gente: Classes e Contradição de Classes

49

5.1.2.5 As Mulheres Brasileiras 51

CONSIDERAÇÕES FINAIS 53 REFERÊNCIAS 54

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6

PARTE I – TEORIA ANTROPOLÓGICA

1 ANTROPOLOGIA

1.1 O QUE É ANTROPOLOGIA?

Antropo origina do grego e significa homem. Logia, de origem

igualmente grega, quer dizer estudo. Então, o nosso desafio é conhecer, estudar o

homem, sob a perspectiva antropológica.

Para tanto, utilizar-nos-emos das quatro áreas de conhecimento ou áreas

do saber humano1 em que se divide a Antropologia, ou seja: 1. Antropologia Física

ou Biológica (aspectos orgânicos), 2. Antropologia Cultural (símbolos, mitos, ritos,

valores); 3. Antropologia Social (organização social, econômica, política, jurídica) e

4. Arqueologia2 (sociedades antigas, existentes ou não).

O objeto da Antropologia é o estudo dos diferentes comportamentos

sociais e culturais exercidos pelos distintos grupos humanos.

E o que é cultura?

1.1.1 Cultura

São os hábitos, costumes, expressões linguísticas, danças, alimentação,

religião, crenças, valores, estrutura familiar, diversão, enfim, o modo, o estilo de

vida de cada grupo populacional que compõe as sociedades.

Mediante o estudo antropológico - ou o estudo do homem -, é possível

conhecermos o homem e a sua interação com seu meio cultural. O homem produz

e reproduz a sua própria cultura. A Antropologia estuda a especificidade cultural de

cada povo, de cada grupo social, de cada realidade cultural.

1 Áreas onde há concentração e profundidade de estudos específicos. 2 Arqueologia: arque “archaios” vem do grego e significa antigo. Então, arqueologia significa o estudo de sociedades tradicionais, antigas – existentes ou não – mediante as suas culturas, arquiteturas, artes etc.

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7

A Antropologia busca investigar, compreender, e, sobretudo, respeitar e considerar aquilo que é tido como diferente, distinto, em uma dada sociedade. Busca

considerar as pluralidades sem emitir julgamentos de valor.

E o que são pluralidades?

1.1.1.1 Pluralidades

Como o próprio nome diz, pluralidade vem da palavra plural: muitos,

vários, diferentes, distintos. O oposto à pluralidade é a singularidade (único, um).

Nós, seres humanos, vivemos em sociedade e somos diferentes uns dos

outros, ou seja, somos plurais. Esta diferença não significa superioridade ou

inferioridade e sim, diversidade.

E o que são diversidades?

1.1.1.2 Diversidades

Diversidade significa diversos, diferentes. Os homens são diversos,

diferentes entre si. Diferenciamo-nos uns dos outros por vários fatores, por várias

características: distintas raças/etnias (brancos, negros, japoneses, judeus, ciganos,

índios etc.), distintas nacionalidades (brasileiros, americanos, japoneses, franceses,

alemães etc.), distintas naturalidades (paulistas, baianos, cariocas, recifenses,

mato-grossenses etc.), distintos estereótipos, tipos físicos (baixo, alto, gordo, magro

etc.), distintas religiões (catolicismo, protestantismo, candoblecismo etc.), distintas

culinárias típicas (acarajé e vatapá, na Bahia; churrasco, no Rio Grande do Sul

etc.), entre outras características culturais.

O desenvolvimento ou a aplicação dos estudos antropológicos devem

fundamentalmente ocorrer sem que o pesquisador3, o antropólogo, utilze-se de seus

valores, de suas próprias crenças. Para tanto, é necessário que ele se dispa de

todos e quaisquer julgamentos de valor.

3 No universo acadêmico, o profissional de quaisquer áreas do saber pode, se assim desejar, enveredar-se, debruçar-se sobre o estudo de um tema específico, um assunto que lhe chama a atenção, que lhe atrai, desenvolvendo sobre ele novos estudos e pesquisas em profundidade.

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E o que significa julgamento de valor?

1.1.1.3 Julgamento de Valor

São práticas etnocêntricas4 (o homem no centro do universo) que julgam

a cultura, o comportamento, a forma de ser, de se relacionar a partir de seus

próprios valores. Atribui valores ao “outro” de acordo com aquilo que considera ser o

correto, o justo, o aplicável. É uma visão que despreza o conceito5 de diversidades e

se ocupa do conceito de superioridade. Parte da crença que tem o poder, o domínio

da verdade.

1.2 QUAIS SÃO OS SEUS OBJETIVOS? PARA QUE SERVE?

Como vimos, a Antropolgia - também conhecida como a “ciência da

humanidade” - ocupa-se do estudo das diferenças culturais ou das diversidades

culturais. Ao cumprir os seus objetivos, ou seja, investigar e compreender as

especificidades culturais do “outro”, tem como maior missão demostrar que

diferenças culturais não significam desigualdades culturais, não cabendo

valorações. Trata-se, portanto, de respeitar as diferenças.

Cabe chamar a atenção que, em larga medida, quando adentramos no

universo antropológico, remetemo-nos ao campo dos estudos sociológicos.

E o que é Sociologia?

4 Adiante trataremos com mais vagar sobre o conceito de “etnocentrismo”. 5 Conceitos: São significados, idéias, pensamentos oriundos de estudos e pesquisas. Os conceitos podem variar de acordo com as definições atribuídas a eles pelo pesquisador, ou seja, um conceito poderá ter mais de um significado. Dessa forma, é necessário utilizarmos aquele que expressa o nosso pensamento. Exemplo: vários autores desenvolvem e adotam distintos conceitos sobre “classes médias”: a) posso referir-me a uma pessoa como sendo de classe média de acordo com os bens materiais que possui ou b) posso referir-me a ela somente pelo nível de escolaridade independente de suas posses ou c) por ambos.

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1.2.1 Sociologia

Palavra híbrida (socio vem do latim e quer dizer sociedade / logia origina

do grego e significa estudo). Assim, Sociologia é o estudo da sociedade, dos

comportamentos, instituições, práticas sociais.

Percebam que a Antropologia se propõe ao estudo dos

comportamentos individuais inseridos nos contextos sociais. Dessa forma, as

diferenças entre os saberes sociológicos e os antropológicos são tênues, quase

imperceptíveis, e estão basicamente voltados à metodologia de investigações

científicas aplicadas quais sejam as técnicas, quantitativas e qualitativas. Enquanto

a Sociologia privilegia os resultados mensuráveis, estatísticos, a Antropologia, por

sua vez, preocupa-se com a história oral, com o dizível, com o relatado. Há de se

notar que tais práticas não são rígidas mas, sim, complementares, uma vez que se

somam, completam-se, confluem-se.

1.2.2 O Assistente Social e a Ciência Antropológica: “Qual é a Importância do Estudo da Disciplina de Antropologia para o Estudante do Curso de Serviço Social?”

Inicialmente, cabe dizer que a aplicação dos conhecimentos advindos das

ciências sociais é pertinente a todas as áreas do saber humano. Como visto, a

Antropologia ao valorizar as diversidades culturais, refuta as práticas associadas aos

julgamentos de valores ou práticas etnocêntricas. A fim de tornar ainda mais

compreensível a importância disto, François Laplantine (2000) nos apresenta, entre

outros, o conceito de alteridade.

Nós seres humanos - enquanto seres individuais - não vivemos sozinhos,

não nos bastamos e, portanto, dependemos do outro para viver estabelecendo,

consequentemente, relações sociais e interpessoais.

Tais relações, por sua vez, são distintas umas das outras, já que os

homens - no que tange aos aspectos subjetivos - diferenciam-se entre si, de acordo

com sua cultura, seus valores, suas emoções. Logo, independente de nossa

vontade, deparamo-nos com o “outro” exitente na sociedade. Dessa forma,

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deparando-nos com o “diferente”, e mediante a respectiva reflexão, reconhecemo-

nos em nossa própria cultura. A esse respeito, nas palavras de Laplantine, a

Antropologia nos permite “uma revolução no olhar”. Ensina-nos ele:

A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos “evidente”. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (gestos, mímicas, posturas, reações afetivas) não têm realmente nada de “natural”. Começamos, então, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nós mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única. (2000, p. 21)

Dessa forma, o Assistente Social, desde o início de seu curso de

graduação, aprenderá a refletir sobre realidades sociais e culturais diferentes das

suas, já que quando do exercício de sua profissão - já formado - estará,

sistematicamente, em contato com o “outro”. Como compreendê-los, se não souber

lidar com as diferenças?

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2 CIÊNCIA, CONHECIMENTO CIENTÍFICO E CONHECIMENTO DE SENSO COMUM

2.1 A ESPECIFICIDADE DA METODOLOGIA DOS ESTUDOS E DAS PESQUISAS ANTROPOLÓGICAS

2.1.1 Metodologia Científica - Como Proceder ao Estudo Antropológico?

Para se proceder ao correto estudo da Antropologia - bem como ao de

todas as demais disciplinas - é de fundamental importância dominarmos a definição

de ciência.

Ciência consiste na produção de teorias e de conceitos obtidos a partir

pressupostos teóricos resultantes de investigações científicas. A produção do

conhecimento científico requer o auxílio de múltiplos saberes e por esta razão tem

caráter multidisciplinar.

2.1.1.1 Multidisciplinaridade

Multidisciplinaridade (multi= vários; disciplinaridade = disciplinas) significa

a soma dos conhecimentos produzidos pelas diferentes disciplinas, pelos

conhecimentos científicos diversos. Em oposição a isso, está o monoculturalismo

(mono = um, única cultura na qual as diversidades são desprezadas).

Fundamenta-se no conhecimento científico que, por sua vez, é produzido

mediante o rigor científico. Para ser considerado científico, deve ser empírico.

2.1.1.2 Empírico / Empirismo

O conhecimento científico é empírico, o que significa dizer que foi

experimentado, testado, comprovado. E ainda, os conhecimentos científicos obtidos

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não são estáticos, estando, portanto, em constantes movimentos (sempre

repensados, sempre revistos, sempre reavaliados).

Os dados resultantes das investigações científicas podem ser

corroborados (comprovados, validados) ou refutados (negados, invalidados), sendo

que as respectivas análises devem ocorrer de forma minuciosa e imparcial (neutra).

Logo, ao tratarmos de “ciência”, de “conhecimento científico”, estaremos

igualmente tratando do conceito de epistemologia.

2.1.1.3 Epistemologia

Significa a fundamentação do conhecimento científico, ou seja, a busca

pelo conhecimento erudito, minucioso, criterioso, aprofundado. As Ciências dividem-se em Humanas (Antropologia, Sociologia,

Psicologia etc.), Naturais (Química, Física, Astronomia etc.) e Abstratas

(pensamento lógico-matemático, estatístico etc.).

Em oposição ao conceito de Ciência ou Epistemologia, temos o conceito

de Senso Comum.

2.1.1.4 Senso Comum

São os conhecimentos ditos de forma não científica, não empírica; são as

suposições.

2.2 A ETNOGRAFIA E A ETNOLOGIA: DE QUE FORMA OCORRE O ESTUDO ANTROPOLÓGICO?

Como dito, a aplicação dos conceitos acerca de ciência cabe a todas as

áreas do saber. No entanto, cada uma delas apresenta os seus próprios

instrumentais ou a sua própria metodologia. Dessa forma, nos ocuparemos daqueles

pertinentes à Antropologia, quais sejam a etnografia e a etnologia.

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2.2.1 Etnografia

Etno quer dizer povo e grafia significa escrita, ou seja, etnografia

destina-se à “escrita do povo” e mais exatamente, à “coleta de informações relativas

ao povo”. Trata-se do desenvolvimento do trabalho de campo, da pesquisa de

campo.

Então, quando o pesquisador decide-se por fazer um estudo

antropológico significa dizer que o antropólogo/pesquisador fará um estudo

etnográfico (pesquisa de campo).

Ao procedermos a um estudo científico e etnográfico, propomo-nos a

buscar respostas para as seguintes questões: Como e onde pesquisar? Como

coletar os dados? Como devo fazer para me aproximar do meu entrevistado? Como

perguntar? Como analisar? Como não me envolver emocionalmente? Como cumprir

os meus objetivos? Entre outras indagações pertinentes.

2.2.2 Etnologia

Etno quer dizer povo e logia, estudo. Logo, etnologia significa a análise

dos dados obtidos, coletados, quando da execução do trabalho de campo

(etnográfico). Dessa forma, o pesquisador/antropólogo se inclinará sobre os

resultados etnográficos e desenvolverá o estudo etnológico.

2.3 O CONCEITO DE NEUTRALIDADE – ÉMILE DURKHEIM

Conforme apresentado, o conceito de neutralidade é parte integrante da

Metodologia do Trabalho Científico, cabendo então debruçarmos sobre ele.

Emile Durkheim (2007) entendia que o pesquisador, quando do

desenvolvimento do trabalho de campo, deveria conceber os fatos sociais estudados

como “coisas”. Essa “coisificação” seria necessária para que se pudesse investigá-

los de modo neutro (neutralidade) e distante (distanciamento). Segundo ele, tal

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procedimento metodológico permitiria a não interferência dos valores do pesquisador

sobre a realidade do grupo estudado.

No entanto, parte dos pesquisadores sociais avalia o conceito de

neutralidade apregoado por Durkheim e sua aplicabilidade. Questionam se é de fato

possível ao pesquisador manter-se “neutro” e distante frente ao estudo de

determinadas realidades sociais e culturais. Como respostas a essas inquietações,

entendem que - independente das emoções possivelmente despertadas - a

minuciosidade do rigor científico deve prevalecer.

Apresento abaixo uma realidade que merece ser refletida, considerando,

para tanto, a discussão acerca dos conceitos de “neutralidade, diversidade cultural e

rigor científico”. Como você se portaria diante desta situação?

Infanticídio põe em xeque respeito à tradição indígena6 Folha de S. Paulo, on line, 06/04/2008.

Ana Paula Boni

Mayutá, índio de quase dois anos de idade, deveria estar morto por conta da tradição de sua etnia kamaiurá. Na lei de sua tribo, gêmeos devem ser mortos ao nascer porque são sinônimos de maldição. Paltu Kamaiurá, 37, enviou seu pai, pajé, às pressas para a casa da família de sua mulher, Yakuiap, ao saber que ela havia dado à luz a gêmeos. Mas um deles já tinha sido morto pela família da mãe. Paltu enfrentou discriminação da tribo, para a qual a criança amaldiçoaria a aldeia. [...] Ainda praticado por cerca de 20 etnias entre as mais de 200 do país, esse princípio tribal leva à morte não apenas gêmeos, mas também filhos de mães solteiras, crianças com problema mental ou físico, ou doença não identificada pela tribo.

Projeto de lei Há Projeto de Lei que trata de "combate às práticas tradicionais que atentem contra a vida", que tramita na Câmara desde maio passado [...] A proposta é polêmica entre índios e não-índios. Há quem argumente que o infanticídio é parte da cultura indígena. Outros afirmam que o direito à vida, previsto no artigo 5º da Constituição, está acima de qualquer questão [...].

2.4 ALGUNS CONCEITOS ANTROPOLOGICOS IMPORTANTES

2.4.1 Estruturas Familiares

6 Este artigo, bem como outros aqui apresentados, estão disponíveis em http://www.folha.com.br/.

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2.4.1.1Sistema Monogâmico

Monogamia – sistema familiar, cultural, social e religioso que legitima os

matrimônios mediante um só parceiro durante determinado período de tempo.

2.4.1.2 Sistema Bigâmico

Bigamia – sistema familiar, cultural, social e religioso que legitima os

matrimônios mediante dois parceiros durante determinado período de tempo.

2.4.1.3 Sistema Poligâmico

Poligamia – sistema familiar, cultural, social e religioso que legitima os

matrimônios mediante mais de dois parceiros durante determinado período de

tempo.

2.4.1.4 Endogamia

Endogamia (endo = dentro / gamo = casamento) – uniões, matrimônios,

ocorridos no interior do mesmo grupo a que pertencem os envolvidos (religioso,

familiar, étnico, classes sociais).

2.4.1.5 Exogamia

Exogamia (exo = fora / gamo = casamento) – uniões, matrimônios

ocorridos exteriormente aos grupos pertencentes (religioso, familiar, étnico, classes

sociais).

Page 17: Antropologia

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2.4.2 Etnocentrismo

O termo “etno” significa povo e “centrismo” significa centro. Este conceito

quer dizer que o homem e o seu grupo social, racial/étnico consideram-se o centro

do universo. Tudo aquilo que lhes pertencem - estruturas familiares, sociais,

culturais, econômicas e políticas - são padrões por eles considerados como

superiores, corretos, únicos verdadeiros e que, portanto, devem ser seguidos.

De outra forma, tudo aquilo que for diferente àquilo que conhecem,

pensam, acreditam, valorizam, defendem, é, aos seus olhos, moralmente

inaceitável, inferior, anormal, selvagem, primitivo e degradante, devendo, portanto,

serem modificados, destruídos, exterminados.

As consequências das práticas etnocêntricas são todas elas negativas,

devastadoras e violentas, verificadas nas relações de superioridade empreendida

por aqueles que mandam, impõem, julgam. Esses são representados pelas figuras

dos colonizadores, civilizadores (os que mandam) e, do outro lado, estão os

colonizados, civilizados (“civilizáveis”), ou seja, aqueles que são violentados,

subjugados, inferiorizados. As relações de poder são fortemente verificadas nas

relações de colonizadores e colonizados7.

2.4.3 Selvagem / Bárbaro / Primitivo

Termos pejorativos e preconceituosos utilizados por aqueles que se

consideram superiores aos membros de sociedades diferentes das suas e que

desenvolvem modos de vida distintos dos seus.

2.4.4 Xenofobia

Xeno significa estrangeiro e fobia, medo. Xenofobia significa, então,

medo, horror, pânico àquele que é diferente. As consequencias xenofóbicas são 7 Indico as leituras de Michel Maffesoli - Dinâmica da Violência. São Paulo: Vértice, 1997 - e Albert Memmi - Retrato do Colonizado Precedido pelo Retrato do Colonizador. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

Page 18: Antropologia

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verificadas nas violências praticadas sobre os grupos considerados minoritários:

negros, índios, homossexuais, nordestinos, portadores de ncessidades especiais.

Segue abaixo um exemplo clássico de práticas xenófobas exercidas,

cotidianamente, na sociedade brasileira:

AÇÃO URGENTE: TEMOR PELA SEGURANÇA Folha de S. Paulo, on-line, Brasil, 08/09/2000.

Um grupo neonazista enviou pacotes-bomba para a casa do funcionário da Anistia Internacional em São Paulo, Eduardo Bernardes da Silva, e para os organizadores da Parada do Orgulho Gay. [...] Em 5 de setembro, o grupo neonazista também enviou cartas a dois destacados membros de comissões de direitos humanos de São Paulo, Renato Simões e Ítalo Cardoso, ameaçando "exterminar" gays, judeus, negros e nordestinos (pessoas oriundas da empobrecida Região Nordeste do Brasil), assim como aqueles que procuram proteger os direitos dessas pessoas.

2.4.5 Eugenia

Em meados do século XIX (1859), o biólogo inglês Charles Darwin publica

a sua famosa obra “A Origem das Espécies”. Mediante estudos desenvolvidos com

plantas e animas, conclui a sua “Teoria da Seleção Natural” de cunho evolucionista.

Frente à concepção evolucionista - e deturpando os estudos de Charles

Darwin -, Francisco Dalton (primo de Charles Darwin) funda no ano de 1908 a

“Sociedade de Educação Eugênica”, condenando a miscigenação a fim de manter a

pureza das raças, surgindo, assim, o conceito de Eugenia (SOUZA, 2002). Com ela,

Dalton defendia que na sociedade haveria dois grupos humanos distintos entre si,

sendo um “forte” e o outro, “fraco”. Consequentemente, dada a supremacia das

capacidades intelectuais inatas do primeiro grupo (o forte), somente esse

sobreveveria. O outro (o fraco) estaria naturalmente fadado ao fracasso.

Interessante notar que muito recentemente manifestações a esse respeito

se fizeram presentes, como mostra o artigo abaixo publicado pelo Jornal Folha de

São Paulo, em outrubro de 2007.

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Africano é menos inteligente, diz Nobel Folha de São Paulo, on line, 18/10/2007.

Rafael Garcia

Uma entrevista do biólogo James Watson, 79, com declarações racistas anteontem a um jornal britânico atraiu uma enxurrada de críticas de cientistas, sociólogos, políticos e ativistas de direitos humanos. Watson, ganhador do Prêmio Nobel por ter descoberto a estrutura do DNA juntamente com Francis Crick, em 1953, afirmou ao jornal britânico "The Sunday Times" que africanos são menos inteligentes do que ocidentais e, em razão disso, se declarou pessimista em relação ao futuro da África. "Todas as nossas políticas sociais são baseadas no fato de que a inteligência deles (dos negros) é igual à nossa, apesar de todos os testes dizerem que não", afirmou o cientista. "Pessoas que já lidaram com empregados negros não acreditam que isso (a igualdade de inteligência) seja verdade." [...] Pessoas que apontaram erros na declaração de Watson afirmam que a reação ao cientista precisa ser contundente. Em outra ocasião, defendeu o direito ao aborto, se as grávidas pudessem saber se a criança nasceria homossexual. Entre os cientistas que reagiram de maneira mais dura contra Watson estão os próprios geneticistas. "Definitivamente, isso não faz sentido nenhum e é totalmente estapafúrdio", disse à Folha Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais. "É uma falácia de autoridade. Ele não é especialista no estudo de evolução de populações humanas. Ele estuda biologia molecular pura." Pena, cujo trabalho sobre populações brasileiras contribuiu em grande medida para derrubar o conceito biológico de raças humanas, afirma que a maioria das pessoas "não vai levar Watson a sério", mas que ele pode "inflamar os ânimos" daqueles que já são racistas. Sobre a situação da África, Pena diz que nem sequer é uma questão de inteligência. "O Watson confunde uma situação histórica e social da África com uma situação biológica", disse. "O que acontece é que os africanos foram vítimas de uma colonização brutal por parte dos europeus."

2.4.6 Raça

A UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a

Ciência e Cultura - entre as décadas de 1950 a 1960 iniciou no Brasil uma série de

estudos com o objetivo de investigar como se processava a inserção dos negros na

sociedade e, sobretudo, de identificar as barreiras à sua ascensão social. Entre os

seus achados, concluiu que o conceito de raça é inaplicável aos seres humanos, ou

seja, “raça” não existe, expressando, portanto, um componente social e político.

Page 20: Antropologia

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2.4.7 Cor

Atributo, característica física e biológica cambiante (variável), relacionada

à cor da pele, dos olhos e do cabelo proveniente do processo de miscigenação.

2.4.8 Etnia

Conceito antropológico que trata das especificidades culturais (língua,

religião, mito, rito, ritmos, vestimenta, canto, dança, alimentação etc.).

2.4.9 Racismo

Crê na existência de superioridade, de hierarquia entre as raças,

defendendo-a e considerando os estereótipos, sobretudo, os relacionados à cor da

pele: branco superior aos negros x negros inferior aos brancos.

2.4.10 Discriminação

Violação dos direitos das pessoas em decorrência de seus atributos

fenotípicos (físicos) e genotípicos (genes, biológicos), tais como cor da pele, etnia,

idade, religião, procedência regional e humanos. É a prática racista, o tratamento

diferenciado advindo do preconceito racial.

2.4.11 Preconceitos

No que tange às questões sociais, raciais, regionais, de gênero, entre

outras, o preconceito é manifestado através da repulsa, da intolerância, do desafeto,

da violência, da discriminação afetiva, física ou emocional.

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20

O artigo abaixo registra a pertinência das discussões antropológicas

acerca das práticas discriminatórias exercidas, por exemplo, no mercado de

trabalho, envolvendo as “minorias”.

Discriminação no trabalho Folha de São Paulo, on line, 25/03/2008

Nádia Demoliner Lacerda (mestre em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo)

Atualmente, as empresas brasileiras estão continuamente sujeitas a sofrer processos trabalhistas por práticas discriminatórias. Cerca de dois milhões de ações deram entrada no Judiciário em 2006, segundo um levantamento do TST (Tribunal Superior do Trabalho). [...] O tratamento discriminatório no Brasil está ligado às grandes diferenças na distribuição da renda e à cultura secular de tratamento discriminatório, que nos acompanha desde o Brasil Colônia e que até hoje se reflete em atos contra determinados grupos, como mulheres, negros, soropositivos, deficientes, entre outros.

No âmbito das relações de trabalho, é a Convenção 111 da OIT sobre "discriminação em matéria de emprego e profissão" que impõe limites ao comportamento das empresas em relação aos indivíduos, tanto em termos de escolha de candidatos ao emprego quanto aos critérios na promoção de função e na decisão de rescindir o contrato de trabalho.

Eventual diferença numérica entre homens e mulheres, negros e brancos, por exemplo, resulta da legitimidade que tem o empregador de avaliar a qualificação e capacitação de cada um dos candidatos que se apresentam para uma vaga ou posição dentro da empresa, não podendo ser tida como conduta discriminatória punível.

2.4.12 Aculturação / Assimilação

Refere-se ao processo de perda da própria cultura, dos valores, dos

comportamentos de um grupo social em detrimento da aceitação, incorporação, das

apresentas por um outro grupo. Não tem, necessariamente, conotação negativa,

uma vez que pode haver - ou não - as respectivas trocas entre os grupos envolvidos.

Reflitamos acerca do artigo abaixo:

ESCOLA DA VIDA

Folha de São Paulo, 12 de setembro de 2004. Laura Capriglione

Page 22: Antropologia

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Com ar provocador, o aluno dispara em um português hesitante: "Professora, o que quer dizer c...?" Rosângela Portela, 46, a professora, entendeu de imediato. O estudante, um jovem negro anglófono da África Ocidental, agora desterrado, estava testando-a. “Eu respondi sem piscar. Repeti pausadamente a palavra e a traduzi para o inglês. Expliquei que se tratava de um palavrão que pessoas bem educadas não deveriam pronunciar. Perguntei, então, se ele havia compreendido", lembra a professora. O rapaz, que nunca havia visto uma professora (em seu país só homens desempenham a função), que junto a isso nunca ouviu uma mulher "direita" se referir aos genitais masculinos, fez que sim e teve, dessa forma, sua primeira aula de cultura brasileira.

O episódio ocorreu na semana passada, em uma sala de aula no Sesc (Serviço Social do Comércio), no centro da cidade de São Paulo, onde começava mais um curso de português para refugiados de guerras e tragédias humanitárias, dentro de um programa de aculturação com o Brasil. Na ocasião, o jovem acabava de completar dez dias no país.

[...] Expressando-se em inglês (a maioria), ou francês e espanhol, a atual leva de refugiados tem como primeira missão aprender português. A professora lembra-se de um aluno nigeriano que viveu dias de euforia na chegada. "Depois de um mês, ele entrou em depressão severa. Percebeu que estava sozinho (perdeu todos os vínculos com parentes na África), que obter trabalho era complicado. Tivemos de ampará-lo seriamente.".

2.4.13 Sincretismo Religioso

É a mistura, a fusão, a assimilação de um ou mais elementos culturais

entre religiões diferentes, ou seja, determinada religião se utiliza dos mitos e ritos

religiosos distintos aos seus. Exemplo disto pode ser verificado no processo histórico

relativo ao tráfico de escravos para o Brasil. Como é sabido, uma das características

profundamente marcante que impulsionou a colonização brasileira foi o tráfico de

escravos. Na África, os negros viviam em regiões distintas, cada grupo com os seus

próprios valores culturais, inclusive do ponto de vista da religiosidade. Aqui

chegando, foram impedidos de cultivarem suas religiões e obrigados a praticar a

imposta pelo branco europeu, qual seja, o catolicismo. No entanto, como forma de

resistência e preservação da religião africana, os africanos frequentavam os ritos

católicos, mas mantinham secretamente os seus, misturando os elementos da

religião africana aos elementos da cultura católica. A Umbanda é exemplo disso.

Cabe destacar que o sincretismo religioso não está presente somente na

cultura africana, conforme abaixo ilustrado:

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Chá do Santo Daime transborda para outros cultos Folha de São Paulo, Revista da Folha, dezembro de 2007. O Santo Daime - culto apoiado no catolicismo popular e conhecido pelo consumo de um chá chamado ayahuasca - está em uma terceira onda de expansão.

Após sair da floresta amazônica para chegar aos grandes centros e depois chegar ao exterior, agora é a vez do culto se fundir com outras religiões, em especial o hinduísmo e a umbanda, relata Roberto de Oliveira.

Para o antropólogo Edward MacRae, 61, da Universidade Federal da Bahia, assim como outras religiões, o Santo Daime também tem a propriedade de aglutinar elementos de outras crenças, como umbanda, traços indígenas, cristãos, afro e esotéricos, ocidentais ou orientais.

"A ayahuasca facilita a experiência mística. E é justamente essa experiência, sem a intermediação da figura de um sacerdote, que está colaborando para a sua expansão", diz o professor.

Coordenador do Conub (Conselho Nacional da Umbanda do Brasil) no Estado de São Paulo, Pai Medeiros, 39, não condena a mistura. Ele diz que a umbanda é inclusiva, abrange muitas vertentes e que a umbandaime - mistura da umbanda com o Santo Daime - é uma delas. "Qualquer forma de manifestação do sagrado é respeitada."

2.4.14 Relativismo Cultural (RC)

O conceito de “relativismo cultural” está intimamente associado ao amplo

conceito de diversidades e ao de alteridade, bem como aos julgamentos de valores

dicotômicos: bom e mal, permitido e proibido, certo e errado, feio e bonito, fé e

eresia, moral e imoral, entre outros. Como é sabido, qualquer tentativa de propor a

um determinado grupo social que exerça crenças, valores e comportamentos

semelhantes aos nossos, estaremos incorrendo certamente em práticas

preconceituosas, portanto, etnocêntricas. Há de se considerar que o que é válido e

verdadeiro para um determinado grupo social não se faz necessariamente realidade

para os demais. Cabe-nos perguntar: Qual é o criério para se definir e

consequentente, julgar a realidade de terceiros? Qual é o critério utilizado para se

estabelecer aquilo que é melhor (nós, o nosso) em contraposição ao pior (eles,

deles)?

Exemplos do não exercício acerca do conceito de relativismo cultural

estiveram presentes no Brasil quando do processo de colonização que envolvia de

Page 24: Antropologia

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um lado os europeus e os padres-jesuítas e de outro, os indígenas vistos pelo grupo

europeu sob duas óticas etnocêntricas.

2.4.14.1 Selvagens, Brutos e Ignorantes

Os índios eram concebidos como animais vestidos em pele humana,

incapazes, feios, fleumáticos (lentos, preguiçosos). Viviam em uma sociedade sem

Estado, sem leis, sem organização social, moral ou política. Eram imorais, andavam

nus e praticavam a poligamia, desrespeitando, desta forma, o sagrado significado da

família e dos bons costumes:

[...] as pessoas deste país, por sua natureza, são tão ociosas, viciosas, de pouco trabalho, melancólicas, covardes, sujas, de má condição, mentirosas, de mole consistência e firmeza [...] Nosso senhor permitiu, para os grandes, abomináveis pecados dessas pessoas selvagens, rústicas e bestiais, que fossem atirados e banidos da superfície da terra. (OVIEDO apud LAPLANTINE, 2000).

2.4.14.2 Dóceis, Ingênuos, Bestializados, Sem Razão, Sem Raciocínio

Aqui os índios eram inocentes, pueris, incapazes e de pouca inteligência,

necessitando ser conduzidos a uma vida dignamente humana: ”eles são afáveis,

liberais, moderados [...] todos os nossos padres que frequentaram os selvagens

consideram que a vida se passa mais docemente entre eles do que entre nós” [...] (OVIEDO apud LAPLANTINE, 2000).

Como visto, para ambas as situações caberia aos europeus - “seres

superiores” - “domesticar” e, para tanto, seria necessário propiciar aos índios, de

modo imediato, uma alma, conferindo-lhes, portanto, uma religião - evidentemente, a

católica.

Apresentamos abaixo um trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha8 que

trata disso: “[...] parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua

fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença 8 A íntegra da Carta do Descobrimento do Brasil – séc. XVI, de Pero Vaz de Caminha, pode ser verificada em http://www.cce.ufsc.br/.

Page 25: Antropologia

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alguma, segundo as aparências. E, portanto, se os degredados que aqui hão de ficar

aprenderem bem a sua fala e eles a nossa, não duvido que eles, segundo a santa

tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual

praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela

simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles todo e qualquer cunho que lhes

quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos,

como a homens bons. E o fato de Ele nos haver até aqui trazido, creio que não foi

sem causa. E portanto, Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar à santa fé

católica, deve cuidar da salvação deles. E aprazerá Deus que com pouco trabalho

seja assim.”.

2.4.15 Representações Sociais

São as formas pelas quais os distintos grupos sociais se vêem e se

valorizam social e culturalmente. Tais considerações podem ser positivas ou

negativas, sendo formadas pela ação do consciente coletivo. O consciente coletivo é

construído a partir da soma dos conscientes individuais, ou seja: um indivíduo se

identifica com o outro devido a vários fatores entre eles: sua forma de pensar, sua

visão de mundo, seus valores, suas crenças e assim sucessivamente. Desta forma,

surge um grupo maior, um grupo social onde seus membros comungam de um

mesmo pensamento. Esse grupo - mediante a soma das variáveis sociais,

econômicas e ideológicas - multiplica-se e acaba por encontrar-se com demais

grupos que têm representações sociais distintas das suas. Os valores, os

estereótipos e os preconceitos são produzidos e reproduzidos no interior desses

grupos, como também aplicados cotidianamente. Expressões como: “a maioria dos

negros é marginal”, “nordestino é preguiçoso”, “homossexual é imoral” e “mulher é

menor capaz do que os homens”, entre outras, são frequentemente ouvidas.

O artigo abaixo exemplifica um dos comportamentos das Representações

Sociais em nosso cotidiano:

Caio Blat relata o preconceito que sofreu em São Paulo ao incorporar características de um jovem do Capão Redondo, na periferia da cidade

Page 26: Antropologia

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Folha de S. Paulo, Ilustrada, 15/04/2008.

Mônica Bergamo

Numa tarde de domingo [...] o ator Caio Blat estava caminhando na rua São Carlos do Pinhal (paralela à avenida Paulista), onde mora, quando começou a chover. Buscou abrigo "em um restaurante "furreba” [...] Resolveu comer alguma coisa e sentou-se em uma mesa no meio do salão. O ator está com aparência bem diferente daquela de "mocinho" das novelas da TV Globo. Para estrelar o filme "Bróder!", do diretor Jeferson De, que acaba de ser rodado na região do Capão Redondo, em SP, ele incorporou características do personagem Macu (inspirado em "Macunaíma"), um rapaz de periferia que é branco, se vê como negro e acaba no crime. Caio [...] raspou o cabelo [...] e fez até um risco na cabeça com gilete, imitando o visual que, diz, "surgiu na cadeia e depois foi imitado na favela". À mesa, naquele domingo, ele foi surpreendido por um funcionário do restaurante. "Era o gerente [...] Encostou e falou assim: "Eu não vou ter problema com você não, né?'", conta. O ator perguntou a que tipo de problema ele se referia. "Você sabe muito bem. Eu te conheço, eu te conheço. Vai querer alguma coisa?" "Quero um suco de laranja e um galeto", respondeu. "O que você quiser, você pede no caixa." Caio perguntou se os outros clientes também precisaram fazer aquilo. O gerente repetiu as instruções e o deixou sozinho na mesa. [...] Em outra ocasião, foi barrado na porta giratória de um banco. "Vi como é ser tratado como suspeito.". Por sugestão da coluna, Caio Blat aceitou voltar ao Arcadas Galeto... desta vez, ele veste camiseta branca, calça jeans e havaianas azuis. O risco na testa é quase invisível, porque seu cabelo começa a crescer. "Tem que pegar ficha no caixa ou pode pedir na mesa?", diz, após se sentar no mesmo assento que ocupou um mês antes e receber o cardápio. "Pode ser na mesa", responde o garçom. Desta vez, é atendido. Uma garota o reconhece, pede autógrafo e tira fotos. O garçom passa, põe a mão em seu ombro e diz: "É bom ser famoso. Todo mundo vem falar com você". [...] Depois que Caio recebe o suco, o repórter chama o gerente. [...] Reconhece o ator? "Sim, ele esteve aqui há um mês", responde. E por que não foi atendido na ocasião? "Foi um equívoco. A gente não chegou a um entendimento e só percebemos depois que era ele. [...] Caio argumenta que ficou "dez minutos na mesa, esperando". "Eu estava fazendo um filme no qual vivia um marginal e tive a nítida sensação de que não fui atendido pela minha aparência", diz Caio ao gerente. "Eu até perguntei se não te conhecia", responde Paulo Roberto. [...] Fiquei pensando se vocês já foram assaltados aqui, se achou que eu era algum bandido." "Graças a Deus, nunca aconteceu", diz o gerente, [...] O ator cancela o pedido feito no restaurante e pega o caminho de casa.

Page 27: Antropologia

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3 AS PRINCIPAIS ESCOLAS DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO

CLÁSSICO

3.1 AS PRINCIPAIS ESCOLAS

Entre os séculos XVI e XIX (antes do surgimento da Antropologia como

ciência), os relatos sobre as especificidades culturais dos povos que aqui habitavam

(comportamentos, crenças, costumes) e de seu habitat (fauna, flora) eram

produzidos de forma especulativa pelos primeiros missionários, viajantes e

comerciantes que aqui estiveram. A “Carta do Descobrimento” (1500) de Pero Vaz

de Caminha é uma referência literária deste período

3.1.1 Escola Evolucionista: Século XIX

3.1.1.1 Características Principais

A escola evolucionista - e eugênica - baseada nas concepções de

Francisco Dalton (“Sociedade de Educação Eugênica”, 1908) acreditava haver

superioridade entre as raças. A sociedade estaria dividida em dois grupos: os

“primitivos, inferiores, incapazes”, em contraposição aos “civilizados, superiores,

capazes”. Entendia-se que o progresso viria mediante a evolução do estado primitivo

para o estado mais “civilizado”, ou seja, uns chegariam aos estados de civilização e

aos outros, devido à sua incapacidade nata, o mesmo não ocorreria.

Como visto, o pensamento evolucionista e eugênico despreza e

desqualifica o amplo conceito de diversidades, de pluralidades, estimulando, dessa

forma, às práticas racistas, sexistas e xenófobas.

Page 28: Antropologia

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3.1.1.2 Referências Literárias

• Herbert Spencer - “Princípios da Biologia” (1864);

• Edward Tylor - “A Cultura Primitiva” (1871);

• James Frazer - “O Ramo de Ouro” (1890).

Antes de seguirmos com as definições acerca das escolas antropológicas,

segue abaixo interessante artigo acerca da visita de Charles Darwin ao Brasil no ano

de 1832.

Grupo refaz passos de Darwin no Brasil Para cientista, brasileiros eram desprezíveis Rio de Janeiro, 23/03/2008.

Ítalo Nogueira

Se a floresta tropical brasileira provocou "deleite" em Charles Darwin, o naturalista não teceu muitos elogios aos brasileiros. "Miseráveis" e "desprezíveis" foram algumas das classificações dadas por ele durante a sua temporada no país.

Logo no início, no Rio, Darwin se queixava da burocracia para conseguir a autorização para viajar pelo interior do Estado, exigida aos estrangeiros.

No dia 6 de abril, ele escreveu: "Nunca é muito agradável submeter-se à insolência de homens de escritório, mas aos brasileiros, que são tão desprezíveis mentalmente quanto são miseráveis as suas pessoas, é quase intolerável. Contudo, a perspectiva de florestas selvagens zeladas por lindas aves, macacos e preguiças, lagos, roedores e aligátores fará um naturalista lamber o pó até da sola dos pés de um brasileiro.".

Durante a viagem, queixa-se da falta de opções de comida na estalagem em Maricá. "À medida que a conversa prosseguia, a situação geralmente se tornava lastimável", escreveu, queixando-se das repetidas respostas "Oh, não, senhor" após pedir peixe, sopa e carne seca. "Se tivéssemos sorte, depois de esperar umas duas horas, conseguíamos aves, arroz e farinha."

Até o Carnaval baiano o incomodou. "As ameaças consistiam em sermos cruelmente atingidos por bolas de cera cheias de água [...] Achamos muito difícil manter nossa dignidade andando pelas ruas.” Durante a viagem, Darwin relata com horror as condições a que os escravos eram submetidos. Relata o caso em que um dono de fazenda, em razão de uma briga, "estava prestes a tirar todas as mulheres e crianças da companhia dos homens e vendê-las separadamente num leilão". "Não creio que tivesse ocorrido ao

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proprietário a idéia de desumanidade de separar trinta famílias”. "Ele tinha um posicionamento preconceituoso. Apesar de ser abolicionista, ele tinha uma visão aristocrata", disse Ildeu Moreira, do Ministério da Ciência e Tecnologia.

3.1.2 Escola Sociológica Francesa: Século XIX/ XX

3.1.2.1 Características Principais

A Escola Sociológica Francesa defendia e aplicava a investigação dos

“Fatos Sociais Totais”, ou seja, entendia que a busca pelo conhecimento dos grupos

sociais deveria partir da interação dos elementos biológicos (físicos) com os

psicológicos (emocionais) aos sociológicos (fenômenos sociais) e aos culturais

(diversidades/pluralidades).

Para tal processo investigativo, é criada uma metodologia denominada

“Regras do Método Sociológico”.

3.1.2.2 Referências Literárias

• Émile Durkheim - “Regras do Método Sociológico” (1895);

• Marcel Mauss - “Ensaio sobre a Dádiva” (1923-1924).

3.1.3 Escola Funcionalista: Século XX (Anos 20)

3.1.3.1 Características Principais

Privilegia a produção da monografia advinda da aplicação das técnicas

voltadas à observação participante (etnografia), bem como da sistematização das

informações coletadas (etnologia).

Page 30: Antropologia

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Defende e desenvolve estudos voltados às diversidades culturais,

entendendo que elas exercem funções sociais. Busca entender as formas de

funcionamento de determinadas sociedades.

3.1.3.2 Referências Literárias

• Bronislaw Malinowski - “Argonautas do Pacífico Ocidental” (1922);

• Radcliffe Brown - “Estrutura e Função na Sociedade Primitiva” (1952).

3.1.4 Escola Culturalista: Século XX (Anos 30)

3.1.4.1 Características Principais

Entende que, por serem as sociedades diferentes entre si, são distintas

também as respectivas realidades culturais, procurando, dessa forma, investigar os

contextos sociais e políticos em que são desenvolvidas. Investiga e compara os

aspectos subjetivos, emocionais e de personalidade de seus atores. Busca

estabelecer conexões/comparações entre aspectos culturais e aspectos da

personalidade.

3.1.4.2 Referências Literárias

• Franz Boas - “Raça, Língua e Cultura” (1940);

• Margaret Mead - “Sexo e Temperamento em Três Sociedades

Primitivas” (1935);

• Ruth Benedict - “Padrões de Cultura” (1934); “O Crisântemo e a

Espada” (1946).

Page 31: Antropologia

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3.1.5 Escola Estruturalista: Século XX (Anos 40)

3.1.5.1 Características Principais

Procura entender de que maneira os homens concebem, estruturam,

legitimam e reproduzem as especificidades culturais. Investiga as estruturas

familiares e de parentesco.

3.1.5.2 Referências Literárias

• Claude Lévi-Strauss - “As Estruturas Elementares do Parentesco”

(1949) e “Pensamento Selvagem” (1962).

3.1.6 Escola Interpretativa: Século XX (Anos 60)

3.1.6.1 Características Principais

Privilegia a compreensão minuciosa acerca do valor, do significado e da

interpretação que cada grupo social atribui à sua própria cultura.

3.1.6.2 Referências Literárias

• Clifford Geertz: “A Interpretação das Culturas” (1973) e “Saber Local”

(1983).

Page 32: Antropologia

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3.1.7. Escola Crítica (Pós-moderna): Século XX (Anos 80)

3.1.7.1Características Principais

Nos anos recentes, os antropólogos se enveredam para uma visão crítica

acerca do “saber antropológico”, ou seja, revêem os fundamentos das escolas, os

elementos teóricos e os metodológicos que a compõem.

3.1.7.2 Referência Literária

• Michel Taussig: “Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem”,

(1987).

3.2 OS CINCO POLOS DO ESTUDO ANTROPOLÓGICO

3.2.1 Antroplogia Simbólica

Os símbolos são objetos de investigações, pois revelam múltiplas

significações, sobretudo, nos aspectos religiosos, mitos e ritos. Questionam: “Qual é

o significado de tal comportamento?, ”Qual o significado disto ou daquilo”? e “Qual é

o valor deste símbolo?”.

3.2.2 Antropologia Social

Aqui, as variáveis sociais, econômicas e de poder são consideradas. Os

relacionamentos sociais, intergrupais, são considerados. A Antropologia Social

inclina-se sobre os seguintes questionamentos: “A que classe social petence?” e

“Qual é o nível de interação deste grupo social”?

Page 33: Antropologia

32

3.2.3 Antropologia Cultural

Preocupa-se minuciosamente com a diversidade cultural. Investiga a sua

essência, as funções dos sentidos, dos símbolos e dos valores subjetivos

(psicológicos) e a interação cultural e social.

3.2.4 Antropologia Estrutural e Sistêmica

Interessa-se pela compreensão acerca do modo pelo qual a sociedade -

a comunidade, o grupo social - está estruturada. Considera a interação das variáveis

linguísticas, econômicas, sociais e psicanalítica. É absolutamente contrária aos

juízos de valores dicotômicos (certo/errado); defende o saber antropológico

enquanto teoria epistemológica.

3.2.5 Antroplogia Dinâmica

Aqui, os conhecimentos e práticas sociológicas e antropológicas se

aproximam. A linha que separa ambas as ciências é extremamente a ponto de ser

definida por alguns sociólogos/antropólogos como “conhecimento sociológico”.

Questiona: “Qual é a dinâmica social de tal grupo?”

Observações: Os cinco polos apresentados acima não são excluentes,

havendo, inclusive, inter-relacionamento entre eles.

Page 34: Antropologia

33

PARTE II – CLÁSSICOS DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA

Os capítulos a seguir tratarão de dois clássicos da Antropologia (e

Sociologia) Brasileira: “Casa Grande e Senzala: Formação da Família Brasileira sob

o Regime de Economia Patriarcal”, de Gilberto Freyre, e “O Povo Brasileiro: a

Formação e o Sentido do Brasil”, de Darcy Ribeiro.

Tem como objetivo refletir acerca da principal questão que ambos autores

se fizeram: “Quem é o povo brasileiro?”. As respostas fornecidas por Freyre e

Ribeiro são amplas, podendo ser buscadas sob os pontos de vistas econômicos,

políticos, sociais, antropológicos, históricos ou populacionais.

Aqui, debruçaremos sobre a especificidade da formação populacional e

mais extamente sobre o processo de miscigenação que envolveu - e envolve - a

população brasileira. Para tanto, ocupar-nos-emos basicamente das discussões

voltadas ao branco europeu, ao negro africano e ao índio.

Page 35: Antropologia

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4 APRESENTAÇÃO À OBRA “CASA GRANDE E SENZALA”, DE GILBERTO FREYRE

Todo brasileiro traz na alma e no corpo a sombra do indígena ou do negro.

Gilberto Freyre

4.1 GILBERTO FREYRE

4.1.1 Vida e Obra

Gilberto Freyre nasceu em Recife, no ano de 1900, e faleceu em 1987, na

mesma cidade. Foi antropólogo, sociólogo e escritor. De renome internacional, é

uma referência fundamental quando se objetiva estudar a formação da sociedade

brasileira. Autor de vários livros com a temática regional, cultural, política e

econômica, publicou em 1933 o clássico “Casa Grande e Senzala: Formação da

Família Brasileira sob o Regime de Economia Patriarcal”, sobre o qual nos

ocuparemos adiante.

4.1.2 Casa Grande e Senzala

Considerada uma obra de especial excelência, Gilberto Freyre inova no

conteúdo e no formato da metodologia utilizada. No conteúdo, trata dos elementos

econômicos, políticos, humanos e regionais responsáveis pela gestação

populacional brasileira. Segundo Freyre (2005), “vinham sendo acumulados estudos

sobre a formação do Brasil, mas faltava um estudo convergente, que além de ser

histórico, geográfico, geológico, fosse um estudo social, psicológico, uma

interpretação [...] Creio que a primeira tentativa nesse sentido representou um

serviço de minha parte.”.

No formato, Gilberto Freyre buscou no interior de sua própria família os

elementos para desenvolver suas pesquisas - Freyre era descendente de donos de

Page 36: Antropologia

35

escravos. Somados a isso, desenvolveu estudos junto ao Museu Afro-Brasileiro Nina

Rodrigues na Bahia e visitou a África, Portugal e os Estados Unidos. Após anos de

estudos profundos - no Brasil e no exterior - sobre sistemas patriarcais, processos

colonizadores, relações escravocratas e explorações negras e indígenas, concluiu:

"o que houve no Brasil foi a degradação das raças atrasadas pelo domínio da

adiantada [...] os índios foram submetidos ao cativeiro e à prostituição. A relação

entre brancos e mulheres de cor foi a de vencedores e vencidos”.

Aqui, iremos nos ater às discussões acerca da formação populacional.

4.1.2.1 Como Ocorreu a Formação da Sociedade Brasileira?

Logo no início de seu estudo, Gilberto Freyre discute que o Brasil, país

miscigenado, foi formado pelo cruzamento de etnias distintas ou seja: pelo branco

europeu, pelo indígena e pelo negro africano. Os resultados mais expressivos são

verificados, até os dias atuais, na constituição do caboclo ou mameluco (branco +

índio), mulato (branco + negro) e cafuzo (índio + negro).

O povo mulato foi gerado sob duas égides: a econômica - era preciso

povoar o Brasil, era necessário obter mão de obra para o cultivo da terra - e a

“sexual” - os portugueses quando aqui chegaram não trouxeram consigo suas

esposas, vieram sozinhos, passando a se relacionar sexualmente primeiro com as

índias (nativas) e, mais tarde, com as negras trazidas da África.

São várias as contribuições de Gilberto Freyre para a compreensão

acerca do processo de gestação do povo brasileiro. A primeira delas, como atestam

os estudiosos dessa questão, é que Freyre desqualifica de modo exaustivo, brilhante

e científico, as teorias defendidas pela Escola Antropológica Evolucionista (já tratada

anteriormente), ou seja, desmistifica o conceito de determinação biológica, de

superioridade racial/étnica de quaisquer sociedades ou grupos humanos.

Ao invés disto, Freyre se debruça sobre a Antropologia Cultural

(igualmente discutida), enaltecendo as especificidades culturais dos povos que

compõem a sociedade brasileira (brancos, negros e índios), bem como os resultados

positivos advindos da miscigenação.

Page 37: Antropologia

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4.1.2.2 O Indígena

Segundo Freyre, quando da chegada ao Brasil, os europeus, inicialmente

representados pelos portugueses, depararam-se com duas belezas naturais: de um

lado, por uma belíssima paisagem natural e, de outro, por um povo nativo que a

habitava (os indígenas).

Os índios construíam suas aldeias ao longo da floresta, produzindo e

reproduzindo a sua cultura, seus mitos e ritos e relacionando-se de modo particular

entre si, bem como com os elementos da natureza.

No que se refere à composição do povo brasileiro, o autor destaca o

papel relevante ocupado e desenvolvido pela mulher indígena. Foram elas as

responsáveis pela gestação e reprodução dos “índios puros” que aqui habitavam,

bem como pela primeira geração de povos miscigenados - diversidade étnica -

representada pelos mamelucos, frutos das relações sexuais entre brancos e índios.

Depois, com a chegada dos africanos no Brasil, surgiu o grupo étnico denominado

cafuzos, resultado da relação interétnica entre negros e índias e vice-versa. Aquilo

que mais tarde Darcy Ribeiro denominou por “criatório de gente”!

Freyre enaltece a beleza das mulheres indígenas que, segundo ele, logo

de pronto encantaram os portugueses recém-chegados: a sexualidade das índias - manifestada, sobretudo, pela exposição de seus corpos nus - despertaram os

“desejos carnais” dos europeus. Por outro lado, Freyre critica a interpretação

equivocada e preconceituosa dos europeus sobre um traço da cultura indígena, ou

seja, a prática da poligamia (trata-se de um sistema familiar próprio, não cabendo,

portanto, juízos de valores ou julgamentos morais).

No que tange aos aspectos culturais, Freyre destaca: “é da cunhã que

nos veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoa, a higiene do corpo, o milho,

o caju, o mingau [...] o brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de pente no

bolso, o cabelo brilhante de loção ou de óleo de coco, reflete a influência de tão

remotas avós. Ela nos deu, ainda, a rede em que se embalaria o sono ou a volúpia

do brasileiro”.

De outra forma, Freyre trata também das violências físicas, morais e

culturais que vitimaram a população indígena, podendo ser exemplificadas na

invasão de seus territórios, na escravização praticada pelos imigrantes europeus

Page 38: Antropologia

37

que os forçavam ao trabalho na terra e nas dilapidações religiosas pelo processo de

evangelização (catequese) de responsabilidades dos padres jesuítas. Estes, do

ponto de vista cultural e religioso, entendiam que os índios eram apenas animais

selvagens, primitivos e sem alma, devendo, portanto, ser humanizados nos moldes

europeus, ou seja, nos ditos da religião católica (juízo de valor).

Para tanto, a título de facilitar o processo de doutrinação, fora necessário

rever o processo de comunicação e, desta forma, o Tupi, língua nativa, foi

transformada pelos padres em tupi-guarani - a nova língua brasileira. Além disso, o

culto à natureza, ao Deus Maíra, o andar nu, entre outros, foram considerados - do

ponto de vista etnocêntrico - comportamentos imorais, vulgares e inferiores.

Do ponto de vista econômico, o índio não se adaptou ao trabalho escravo

e nem tão pouco cedeu facilmente ao processo de aculturação imposto pela Igreja

Católica. A resistência da cultura indígena resultou em disputa por terras, fugas de

seu próprio habitat - compuseram junto aos africanos os quilombos -, doenças

mortais, mortes e destruição de famílias inteiras.

Frente a isso, para o cumprimento de seus propósitos, entendem os

europeus ser necessário substituir a mão de obra indígena pela mão de obra negra,

dando início, dessa forma, ao processo de escravidão africana. Segue abaixo artigo

que trata de uma das consequências negativas relativas à escravização indígena

cujos desdobramentos são verificados nos dias atuais.

Roraima vira palco de guerra até entre grupos de índios Folha de São Paulo, Brasil, 06 de abril de 2008.

Andrezza Trajano

José Eduardo Rondon

Pontes incendiadas, máquinas agrícolas bloqueando acessos às estradas, índios pintados para a guerra. Este foi o cenário encontrado pela reportagem ao trafegar no interior da terra indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima, nos últimos dias [...] O clima de tensão e violência na área aumentou após a chegada a Roraima de agentes federais que farão a retirada dos não-índios que ainda permanecem na terra indígena. Na sexta-feira, desembarcaram em Boa Vista integrantes da Força Nacional de Segurança.

[...] O "epicentro" do conflito é a vila do Surumu, na região de Pacaraima, onde há cerca de 300 famílias, a maioria não-índia [...] De um lado da vila estão concentrados os índios favoráveis à homologação, que defendem que a terra deve ser exclusivamente dos indígenas. [...] "Queremos viver no que é nosso, em paz, sem interferência", diz o coordenador do CIR, Dionito de Souza. Do outro

Page 39: Antropologia

38

lado, estão os índios contrários à medida do governo federal e que defendem a permanência de não-índios na área, inclusive os arrozeiros. [...] Para a índia Deise Maria Rodrigues, contrária à homologação, a luta dos moradores é pelo "desenvolvimento". "Não compartilhamos com essa política do governo federal de nos isolar, de nos colocar sob a tutela da Funai e de nós termos que pedir bênção aos índios do CIR. Somos brasileiros também e queremos investimentos e a garantia dos nossos direitos constitucionais." Os grupos rivais se tratam como inimigos. Qualquer tipo de relacionamento é proibido. [...]

4.1.2.3 O Negro Africano no Brasil

Dando continuidade aos estudos acerca da composição da população

brasileira, Gilberto Freyre discute o papel exercido pela mulher negra africana que,

segundo ele, substituiu a mulher indígena nos ambientes das casas grandes, bem

como nos interiores das senzalas.

Para habitar as casas grandes, os senhores, escolhiam aquelas que

consideravam ser as mais belas e sensuais, a fim de desenvolverem as funções

domésticas, cuidados com as crianças, bem como para servi-los sexualmente.

Quanto a esta última “função”, cabe destacar que as mulheres negras

eram vítimas dos abusos sexuais constantes praticados pelos senhores, resultando

no elevado grau de contaminação pelas doenças sexualmente transmissíveis, entre

elas a sífilis. Em contrapartida, como “medida depurativa” para as DSTs, ocupavam-

se das meninas negras, uma vez que acreditavam que a cura das doenças venéreas

estava em manter relação sexual entre “uma negrinha virgem” e o homem

contaminado.

Além disso, sofriam também com as violências praticadas pelas esposas

enciumadas: corpos queimados, dentes arrancados e espancamentos eram práticas

constantes e recorrentes.

Das relações sexuais ocorridas entre senhores e escravas nasciam os

mulatos que, segundo Freyre, eram “gerados nas casas grandes e paridos na

senzala”.

Isso posto, e a fim de nos debruçarmos com mais vagar sobre os

conceitos de Identidade Étnica e Famílias Miscigenadas, utilizaremos a obra clássica

“O Povo Brasileiro”, de Darcy Ribeiro.

Page 40: Antropologia

39

5 APRESENTAÇÃO À OBRA “O POVO BRASILEIRO”, DE DARCY

RIBEIRO

Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Como

descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre marcados pelo

exercício da brutalidade sobre aqueles homens, mulheres e crianças. Esta é a mais

terrível de nossas heranças. Mas nossa crescente indignação contra esta herança

maldita nos dará forças para, amanhã conter os possessos e criar aqui, neste país, uma

sociedade solidária.

Darcy Ribeiro

5.1 DARCY RIBEIRO

5.1.1 Biografia

Darcy Ribeiro nasceu em 1922, na cidade de Montes Claros, em Minas

Gerais, e faleceu em Brasília, Distrito Federal, em 1997. Foi antropólogo, professor e

escritor.

Entre as várias atividades - todas de consideráveis envergaduras -

dedicou-se aos estudos relacionados à Educação e à Questão Indígena: fundou o

Museu do Índio, criou a Universidade de Brasília, onde foi o primeiro Reitor, elaborou

o “Projeto Caboclo”, voltado ao povo da floresta amazônica, e escreveu os romances

“Maíra”, “O Mulo” e demais.

5.1.2 O Povo Brasileiro

O objetivo central da obra (prima) “O Povo Brasileiro” é oferecer ao leitor a

resposta para a questão inicialmente formulada, qual seja: “Quem é o Povo

Page 41: Antropologia

40

Brasileiro?”. Para tanto, Darcy Ribeiro, inicia sua reflexão discutindo a composição

étnica da população brasileira, tratando, portanto, do processo da miscigenação.

Assim como Freyre (2005), Ribeiro apresenta os grupos étnicos cafuzo

(negro + índio), mameluco (branco + índio) e mulato (negro + branco).

Ao tratar dos primórdios da colonização brasileira, logo de pronto, discute

o “choque cultural” ocorrido entre os índios e os europeus. Como é sabido, os índios

foram os primeiros seres humanos que aqui nasceram e que aqui habitaram (habitat

natural) e, por essa razão, têm a gênese de sua cultura.

A contradição cultural discutida por Freyre se manifestava de um lado,

pelos europeus que - mediante suas visões etnocêntricas - consideravam-se o povo

civilizado e desenvolvido quando comparados àqueles que julgavam bárbaros e

selvagens, indagando-se entre outras: “Que animais são esses que devoram uns

aos outros?” (referindo-se à antropofagia ou canibalismo), “Que tamanha

imoralidade é essa?” (referindo-se ao fato de não usarem roupas). De outro lado,

estavam os indígenas surpreendidos e atônitos, pois aquela era a primeira vez em

toda a sua história que se deparavam com homens de pele clara, vestidos,

gesticulando e falando alto em uma língua incompreensível. Era algo totalmente

inusitado, chegando a julgar que aquele cenário representava um castigo divino:

[...] o que é aquilo que vem? Eles (os índios) olhavam, encantados com aqueles barcos de Deus, do Deus Maíra chegando pelo mar grosso. Quando chegaram mais perto, se horrorizaram. Deus mandou pra cá seus demônios, só pode ser. Que gente! Que coisa feia! Porque nunca tinham visto gente barbada – os portugueses todos barbados, todos feridentos de escorbuto, fétidos, meses sem banho no mar. (RIBEIRO, 1995).

Depois, uma vez aqui instalados, os europeus concluíram que as terras

brasilis significavam para eles um verdadeiro “paraíso”, quer do ponto de vista

sexual (“encantamento” pelas índias associado ao “cunhadismo” e,

consequentemente, à reprodução da mão de obra), quer do ponto de vista

econômico (ávidos pelo enriquecimento proveniente da exploração do pau-brasil,

logo era necessário, como diz Darcy Ribeiro, “povoar o país”).

Assim, ora concebendo os índios como “bestializados” e inocentes e ora

como vadios, preguiçosos - e, portanto, inúteis para o trabalho - entendiam os

portugueses que algo deveria ser feito para a conquista de seus objetivos

Page 42: Antropologia

41

econômicos mercantis. Para tanto, partiram para evangelização e escravização

indígena. De fato, tratava-se do “moinho de gastar gente”, como discute Darcy

Ribeiro.

Um dado interessante que favorecia “a conquista dos selvagens” estava

no fato de que os portugueses traziam consigo utensílios de viagens - espelhos,

facas, facões, machados - que encantavam e seduziam os índios. As consequências

disso foram negativas, uma vez que o desejo e a disputa por esses objetos geraram,

entre outras, situações de violências entre eles: “[...] para o índio passou a ser

indispensável ter uma ferramenta. Se uma tribo tinha uma ferramenta, a tribo do lado

fazia uma guerra pra tomá-la”. (RIBEIRO, 1995).

Guerras, escravização física e moral, mortes, doenças, invasões e

evasões de suas próprias terras, desmonte cultural e dilapidações de famílias.

Muitas foram as violências causadas pelo europeu ao povo indígena no intento de

colonizar o país, o que de fato justificam as palavras de Darcy Ribeiro: “o Brasil, é

formado por um povo mestiço, lavado em sangue negro, em sangue índio, sofrida e

tropical [...]”

As discussões acerca da posse e manutenção das terras indígenas, bem

como a preservação de suas culturas, geram polêmicas entre os estudiosos da

questão e a população em geral, não sendo incomum a ocorrência de discordâncias

e divisões entre eles. O artigo abaixo trata disso:

Mineração implica degradação social, dizem especialistas Ana Paula Boni

Folha de São Paulo, 24/11 2007.

Especialistas alertam que empreendimentos para exploração mineral instalados em terras indígenas podem causar impactos tão grandes nos povos que, se não implicarem apenas sua degradação social e perda de território, podem mesmo levá-los à extinção.

[...] O antropólogo Rogério Duarte do Pateo, do ISA (Instituto Socioambiental), explica que, de acordo com a magnitude da presença da mineradora e a proximidade das aldeias, as populações podem ter hábitos alterados. Isso porque o barulho das máquinas para a extração dos minérios, por exemplo, assustaria animais num local onde a caça é o principal meio de subsistência. Com isso, somado ao dinheiro dos royalties que os índios receberiam, eles passariam a comer produtos industrializados. "Daí vem doença de branco, como diabetes, colesterol, problemas dentários [...] "Os índios encostam a barriga no empreendimento e passam a depender de uma fonte externa" [...] Há também o impacto ambiental, já que

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42

toda atividade de exploração de minérios implica uma área de "servidão", onde vivem os funcionários da empresa, complementa o advogado Paulo Machado, do Cimi (Conselho Indigenista Missionário). "Cria-se uma verdadeira cidade para dar suporte à atividade mineradora. Isso por décadas." Dessa forma, o entorno é alterado devido à construção de estradas para escoar a produção, rios podem ser desviados e sua água, poluída. Para o antropólogo Ricardo Verdum, assessor de políticas indigenistas do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), o maior dos males seria a perda da autoridade do índio sobre seu território, sendo os povos colocados em segundo plano e podendo, inclusive, ter de sair de uma aldeia por conta de uma jazida de minério” [...]"há populações que podem desaparecer", afirma Pateo. [...].

5.1.2.1 Os Mamelucos e a Miscigenação Indígena

Na continuidade de seus estudos acerca da composição populacional,

Darcy Ribeiro discute o delicado tema acerca da miscigenação associado a

identidade étnica e questiona: o mameluco resultado da mistura biológica entre

brancos é índios é considerado e considera-se branco ou índio?

Da mesma forma, a criança mameluca - meio européia e meio índia -

frequentemente rejeitada pelo pai-sendo somente reconhecida pela mãe, á qual

grupo étnico pertence?

Assim, para os mestiços – mulatos e mamelucos - sem identidade étnica

Darcy Ribeiro desenvolve o conceito de “ninguendade” e discute: essa criança de

um lado, rejeitada e vista pelos membros da tribo como um estrangeiro, um diferente

e de outro, não assumida pelo pai europeu e por vezes ela própria abrindo mão da

cultura indígena tornava-se um “Zé Ninguém”.

Como visto, a discussão acerca da mestiçagem encerra considerável

complexidade. O depoimento abaixo é nesse sentido revelador:

Depoimento de Olívio Zeferino, estudante de Filosofia na USP In: O Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro Meu nome é Olívio Zeferino. Não sou índio puro, sou mestiço guarani... porque o que causa essa questão de ser ou não ser é essa identidade em que você é metade. Então, por exemplo, você é um mestiço. Tem uns que assumem a cultura indígena. Tem uns que são mestiços e assumem a cultura do branco. Então uma pessoa que nasceu com fisionomia de índio não adianta querer falar que é

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43

branca, porque todo mundo vê. Agora, o importante é você assumir, porque mesmo sendo mestiço você pode lutar pelo seu povo.

De fato, ao mestiço, de qualquer etnia, cabe o sentimento de

pertencimento cultural, o pertencimento de “ser brasileiro” uma vez que o Brasil é um

país, como mostrado, genuinamente mestiço: "Nós, brasileiros, somos um povo em

ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a

mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos

fazendo. Essa massa de nativos viveu por séculos sem consciência de si... Assim foi

até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros” (Darcy

Ribeiro, 1995).

E mais tarde, aprofunda e amplia entre outros, a discussão acerca da

identidade étnica dos mulatos - resultados da mistura entre brancos e negros -

associando à sua análise as variáveis sociais como tratado em seguida.

5.1.2.2 A População Negra Brasileira: o Negro Africano

[...] sob trezentas chicotadas de uma vez para matar ou cinqüenta chicotadas

diárias para sobreviver [...]

Darcy Ribeiro

Como é sabido, o processo da escravidão negra no Brasil teve início com

os insucessos obtidos pelos europeus quando viram frustrados seus projetos de

exploração da mão e obra indígena.

Na África, os negros viviam em regiões distintas com os seus próprios

valores culturais - dança canto, língua, crenças, religiões. Aqui chegando,

deparavam-se com a diversidade cultural de seus conterrâneos, bem como com a

aqui imposta pelo branco, europeu, colonizador.

Ao tratar da composição da população, brasileira é necessário nos

reportarmos, ainda que brevemente, às condições de vida existentes nas senzalas e

as consequências negativas delas resultantes para os negros nos dias atuais. Para

tanto, a fim de balisarmos estas discussões sobre a perspectiva antropológicas,

Page 45: Antropologia

44

ocupar-nos-emos inicialmente das condições de saúde dos escravos e, em seguida,

passaremos pelos conceitos acerca do evolucionismo, eugenia e mestiçagem.

Como é sabido, na época da escravidão no Brasil, negros e brancos

ressentiam-se da dificuldade de obter assistência à saúde, já que praticamente não

existiam médicos. Para os negros, porém, essa situação se agravava em virtude do

desinteresse dos senhores pela saúde de seus escravos.

Viotti (1989), entre outros, mostram que muitas das doenças que

acometiam os negros decorriam das suas péssimas condições de vida. Sofriam de

problemas pulmonares, sobretudo de tuberculose, por causa do ambiente insalubre

das senzalas. Por estarem submetidos a trabalhos exaustivos e, consequentemente,

à estafa, era comum entre os negros das zonas rurais os acidentes nos engenhos,

que os levavam à morte ou a mutilações. Para os escravos gravemente doentes -

como, por exemplo, os vitimizados pela hanseníase - a solução encontrada pelos

senhores era a alforria. Assim, abandonados e inutilizados para o trabalho, restava-

lhes a mendicância.

Frente à crescente mortalidade de escravos, os senhores entendiam que

de nada adiantaria melhorar as condições de vida da população escrava, pois para

eles os negros encontravam-se "em extinção".

Mesmo com o fim do tráfico de escravos, em 1850, mantiveram-se os

altos índices de mortalidade infantil, materna e adulta devido, sobretudo, à

precariedade nas condições de moradia, de alimentação e sanitárias.

De outro lado, é evidente que os efeitos destruidores advindos da

escravidão negra se fazem presentes sobre os seus descendentes nos dias atuais.

No entanto, artigo recente nos traz uma nova reflexão acerca das possíveis

consequências negativas de âmbito econômico para os países exportadores e

receptores de escravos, inclusive o Brasil. Reflitamos acerca do artigo abaixo:

O preço de um escravo Segundo professor de Harvard, países mais pobres da África hoje são os que mais exportaram escravos no passado Folha de São Paulo, Caderno Mais, 11/05/2008.

Ernane Guimarães Neto

Estatísticas comprovam: vender escravos faz mal à África. É o que diz Nathan Nunn, 33, professor de economia na Universidade Harvard. Nunn apresentou, no início do ano, resultados de uma

Page 46: Antropologia

45

pesquisa que correlaciona a exportação de escravos no passado à baixa renda de hoje. A pesquisa usou informações do Projeto Base de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos, que reúne documentos diversos, como inventários, arquivos religiosos e registros de compra e venda, relacionados ao tráfico de escravos africanos do século 15 ao 19. No artigo "Efeitos de Longo Prazo do Comércio de Escravos Africanos", publicado no "Quarterly Journal of Economics", Nunn diz que "não apenas o uso de escravos é deletério para uma sociedade, mas a produção de escravos, ocorrida por meio da guerra doméstica, da pilhagem e dos seqüestros, também tem impactos negativos no desenvolvimento". Em seus estudos, o Brasil aparece perfeitamente enquadrado à linha de correlação segundo a qual quanto maior a proporção de escravos na população em 1750, menor o PIB per capita em 2000. E, do outro lado do Atlântico, as regiões africanas que mais exportaram escravos se tornaram os países de menor renda hoje. Apesar de colegas o criticarem por cruzar dados no mínimo heterogêneos, o estudo já é visto nos EUA como prova matemática do dano causado pelo Ocidente à África. Em entrevista à Folha, Nunn não arrisca conclusões práticas. Devem-se reparações à África? "Não estudei esse ponto."

Então, no final do século XIX, persistiam epidemias como o mal de

Chagas, febre amarela, febre tifóide, entre outras. Os intelectuais brasileiros da

época entendiam que o país estava "doente" e era necessário encontrar a causa e a

cura desses males; à mestiçagem foi atribuída a responsabilidade por esta situação.

Para alguns, o cruzamento constante das raças proporcionaria, através da

“depuração”, a pureza da raça branca e, consequentemente, a solução para o

problema. Para outros, diferente disso, a solução “científica” apontada era condenar,

conter a mestiçagem. (SCHWARCZ, 1993).

A esse respeito, como já apontado em nosso curso, o pensamento

eugênico entendia que a sociedade brasileira se desenvolveria nos mesmos moldes

da evolução biológica, ou seja, somente os mais fortes, capazes, superiores,

sobreviveram. A eugenia, por sua vez, visava à reprodução dos mais “aptos” e à

extinção dos "inferiores". No Brasil, em 1917, foi fundada a Liga Pró-Saneamento e,

em 1918, a Sociedade Eugênica de São Paulo. No entanto, o movimento eugênico,

após atingir o seu apogeu, declina e retorna nos anos 30, quando da ascensão do

nazismo, que difundia o arianismo. No início da década de 30, foi criada na cidade

do Rio de Janeiro a Comissão Central Brasileira de Eugenia, que publicava o

Boletim da Eugenia. (SOUZA, 2002).

No final do século XIX, foram fundadas as Faculdades de Medicina da

Bahia e do Rio de Janeiro, cabendo-lhes detectar o surgimento de doenças e traçar

Page 47: Antropologia

46

planos para erradicá-las. Expandem-se, na escola baiana, os estudos sobre

medicina legal, com o objetivo de investigar menos a doença e mais o doente,

através dos estudos da craniologia9.

Para se compreender o papel ocupado pelo negro no contexto

evolucionista e eugênico e, posteriormente, para a compreensão do comportamento

da miscigenação nos dias atuais, Pereira (1981), elencou três fases distintas para

caracterizá-lo: 1ª. o negro como expressão de raça; 2ª. como expressão de cultura e

3ª. como expressão social.

Na primeira fase, os "atributos biológicos compõem uma imagem

negativa e patológica do homem de cor perante os outros ramos raciais que formam

a população". Nina Rodrigues10, iniciou seus estudos sobre os negros na Bahia

baseado em uma visão evolucionista, objetivando identificar quem era "aquele

povo de origem africana" e em qual estágio se encontrava a sua cultura.

A segunda fase apontada por Borges Pereira - "O negro enquanto

expressão de cultura" - iniciou-se na década de 20 e, conforme o autor, teve as

seguintes características: O negro se infiltra nas reflexões científicas como

expressão de cultura. Seus atributos raciais são colocados em plano secundário,

cedendo lugar às suas peculiaridades culturais. Na década de 30, Gilberto Freyre

atribuiu à cultura africana papel fundamental na construção da nacionalidade

brasileira.

A terceira fase dos estudos sobre o negro, que Borges Pereira

denominou como "o negro como expressão social", iniciou-se com o fim da Segunda

Guerra Mundial, mediante uma reflexão crítica quanto ao "conceito de raça como

realidade empírica - uma revisão de toda a problemática social, política e científica

que historicamente se elaborara em torno da variedade fenotípica dos diferentes

grupos humanos" (PEREIRA, 1981).

9 Craniologia: Teorias de matriz evolucionista, foi palco dos estudos antropométricos realizados pela da Antropologia Física ou Biológica. Tratava do tamanho, peso e formato do crânio onde seus resultados definiriam a capacidade intelectual, comportamento social e moral dos distintos grupos raciais. 10 Nina Rodrigues: Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), maranhense, era médico legista, psiquiatra e antropólogo. Desenvolveu as primeiras pesquisas antropológicas de cunho criminal, defensor do pensamento evolucionista. Fundador da Escola Nina Rodrigues que desenvolvia estudos voltados à antropologia física.

Page 48: Antropologia

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Na década de 50, a UNESCO (1950-60) iniciou no país uma série de

estudos com o objetivo de investigar como se processava a inserção dos negros na

sociedade e, sobretudo, de identificar as barreiras à sua ascensão social11.

E por fim, a partir da segunda metade da década de 90, os problemas

voltados à educação e ao mercado de trabalho passam a ser discutidos com mais

rigor acompanhados, inclusive, por propostas de políticas públicas. (SANTOS,

2000).

5.1.2.3 A Mestiçagem e o Item Cor - a “Ninguendade” do Mulato Brasileiro

Ao tratar da composição do povo brasileiro, como atesta Darcy Ribeiro, a

abordagem científica (já estudada) não pode se furtar da discussão acerca da

mestiçagem associada à discussão do item cor. O que significa isso?

Como é sabido, os Censos Demográficos são pesquisas oficiais, de

responsabilidade do Governo Federal, realizadas pelo IBGE – Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística e são executadas de dois modos: 1. Pesquisas Censitárias:

os Censos Demográficos ocorrem a cada dez anos sendo de cobertura nacional

(todos os estados da federação) e 2. as PNADs – Pesquisa Nacional por Amostras

Domiciliares, ocorrem anualmente, de cobertura nacional, mas mediante uma

amostra de domicílios a serem investigados.

Ambas - Pesquisas Censitárias e de Amostragens - têm a função de

traçar um fiel retrato da composição populacional, respondendo às seguintes

questões: Quem somos? Quantos somos? Quantos nascem? Quais os tipos de

partos? Quantos nascem? Onde nascem? Quantos morrem? Onde morrem? Quais

são as causas de mortes? Quais são os tipos de doenças? Como são tratadas?

Quais são as idades da população? Como se casam? Quais os tipos de uniões

(civis, consensuais?) Quantos e como se separam (desquites, divórcios)? Quantos

estudam? Quais os níveis educacionais? Onde estudam? Estudam o quê? Quais

11 Dentre os autores que fizeram parte do Programa da Unesco havia nomes como: Fernando Henrique Cardoso (Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional - O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1977); Florestan Fernandes (A Integração do Negro na Sociedade de Classes, São Paulo: Ática, 1978);Oracy Nogueira (Preconceito de Marca e de Origem, São Paulo, 1979); Octavio Ianni (Raças e Classes Sociais no Brasil, 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972; Roger Batiste (As Américas Negras. São Paulo: Difel, 1974.)

Page 49: Antropologia

48

estabelecimentos educacionais? Público ou privado? - entre outras infinidades de

questões relacionadas às composições e estruturas populacionais, considerando as

variáveis sociais, econômicas, culturais e, preferencialmente, de cor ou étnicas.

O item cor é utilizado nos censos demográficos e tem objetivo de

classificar a cor/raça de uma população, no entanto, os censos demográficos do

IBGE não apresentam uma sistematização a esse respeito. Foi introduzido nos

censos em 1872 e compreendia as categorias "livres e escravos", sendo as

categorias de cor branca, preta e parda atribuídas pelos senhores aos seus

escravos. Em 1890, as alternativas de cor foram mantidas. Em 1940, 50 e 60 foram

adotadas as opções: branca, preta, amarela e parda. No censo de 1970, foi omitido

o quesito cor, que retornou em 1980, com as mesmas variáveis de classificação de

1940. O IBGE em 1980 contabilizou mais de uma centena de cores: lilás, ouro,

rosada, saraúba, encerada, branca suja, morena roxa, negrota, queimada, sapecada

e turva são alguns exemplos do que SANTOS (2001) denomina de "exacerbado

arco-íris brasileiro". Os dois últimos censos, de 1991 e 2000, utilizaram cinco

categorias para a identificação de cor: branca, parda, preta, amarela e indígena e

valeram-se da autoidentificação. Contudo, o grande número e a variedade de cores

mencionadas nas respostas, presentes já no Censo de 1980, evidenciam as

dificuldades dos brasileiros para se autoclassificar em relação à sua cor (SANTOS,

2001), o que nos remete à discussão acerca da ninguendade do mulato brasileiro.

A esse respeito, estudos mostram que a não identidade étnica verificada

em parcela significativa da população negra ocorre devido, principalmente, à baixa

autoestima. Esta, por sua vez, resulta das manifestações racistas - veladas ou

explícitas -, bem como dos estereótipos ou representações negativas atribuídas,

devendo ser consideradas neste contexto discussões acerca das classes sociais.

Nas palavras de Darcy Ribeiro: “É muito duro para um negro fazer carreira no Brasil.

Eles são a parcela maior da camada mais pobre que tá lá, no fundo do fundo, e é a

camada onde pesa mais o analfabetismo, a criminalidade, a enfermidade.... A

atitude para com o negro e o mulato e com o pobre é muito bruta... frequentemente

de profundo preconceito e nenhum respeito para com essa gente que fez o Brasil. O

Brasil se fez como um moinho de gastar gente”.

Page 50: Antropologia

49

5.1.2.4 O Moinho de Gastar Gente: Classes e Contradição de Classes

Ao investigar as condições de vida do povo brasileiro, Darcy Ribeiro não

se furta da discussão acerca das acentuadas e perversas contradições de classes

sociais existentes na sociedade brasileira, onde os grupos mais afetados são

justamente os descendentes daqueles que construíram o país.

Ao se referir a esses, e a título de melhor compreender suas

especificidades culturais e econômicas, classifica o Brasil cinco “diferentes brasis”,

das seguintes formas:

• Brasil Crioulo: predominantemente no litoral do país, sendo

caracterizando pela cultura da cana de açúcar / engenho açucareiro;

• Brasil Caboclo (mamelucos): predominantemente na região do

Amazonas, sendo caracterizado pelo extrativismo;

• Brasil Sertanejo: predominantemente na região nordeste, sendo

caracterizado pela economia pastoril, agreste e caatinga;

• Brasil Caipira: predominantemente nas regiões Sudeste e Centro-

oeste, caracterizado pelas economias mineradoras e do café;

• Brasil Sulino: predomínio dos gaúchos - imigrantes europeus - na

região Sul e dos japoneses em São Paulo.

Analisando cada uma delas, mostra que se de um lado a riqueza da

diversidade étnica, da miscigenação, deve ser destacada e enaltecida, de outro

chama atenção para as perversidades econômicas e seus efeitos devastadores.

De fato, são elevados os níveis de pobreza existentes no país, onde a

maioria da população concentra-se nas regiões periféricas dos grandes centros

urbanos, apresenta precárias condições materiais de vida e baixos níveis de

escolaridade, estando presentes o subemprego e o desemprego, além da exposição

constante aos vários tipos de violências.

A esse respeito, estudos mostram que à medida que se acentuam as

situações de miserabilidade e privações - verificadas sobretudo na escassez da

oferta de trabalho e de emprego -, elevam-se igualmente as situações de violências

Page 51: Antropologia

50

verificadas nos casos de homicídios, suicídios, uso e tráfico de drogas, o

agravamento das doenças físicas e emocionais etc.

O artigo abaixo nos apresenta um dos mecanismos responsáveis pela

retroalimentação da contradição existente entre pobreza e opulência e vai ao

encontro do pensamento de Darcy Ribeiro quando se refere à expressão “moinho de

gastar gente”.

Tributos tiram mais dos pobres, diz Ipea Folha de São Paulo, Dinheiro, 16 de maio de 2008. Juliana Rocha O presidente do Ipea, Marcio Pochmann, alertou ontem de que a reforma tributária que foi enviada pelo governo ao Congresso não ajudará a reduzir as desigualdades sociais e de renda no Brasil. Em palestra no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, chamado de Conselhão, Pochmann apresentou dados mostrando que os pobres pagam 44% mais imposto, em proporção à sua renda, que os ricos.

Segundo o levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), com dados de rendimento de 2002 e 2003, os 10% mais pobres do país gastam 32,8% da renda com impostos. A renda média dessa faixa da população era de R$ 49,8 por mês. Embora não paguem Imposto de Renda, são famílias que consomem bens com alta carga de impostos indiretos, como os da cesta básica. Já os 10% mais ricos do país gastam 22,7% do seu rendimento com impostos. A renda mensal destes era de R$ 2.178. Pochmann justificou que a reforma tributária do governo será benéfica para os Estados, mas não para a população mais pobre.

"Não temos uma reforma tributária que fizesse com que os ricos de fato pagassem impostos de forma mais progressiva e, por conta disso, o maior ônus da tributação recai sobre os mais pobres. A proposta apresentada está dialogando com a eficiência econômica e com a repartição dos tributos do ponto de vista dos entes federativos", afirmou.

Mansão e favela Pochmann apresentou dados que mostram a incidência de tributos mais forte entre os pobres. Segundo ele, 1,8% da renda dos mais pobres é gasta com IPTU, enquanto 1,4% da renda dos mais ricos é gasta com o imposto.

O quadro acima se torna ainda mais alarmante nas famílias chefiadas por

mulheres, uma vez que além da discriminação social (são, em larga media, pobres),

deparam-se também com a desigualdade de gênero. (ABRAMO, 2004).

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5.1.2.5 As Mulheres Brasileiras

Como é sabido, a década de 70 foi um período fértil no surgimento de

movimentos sociais, incluindo-se entre eles o feminista e o de homossexuais. Nessa época, mulheres de vários países se reuniram para reivindicar por

seus direitos e por igualdades socioeconômicas e políticas. Como fruto de árduo

empenho do então emergente “movimento de mulheres”, a ONU - Organização das

Nações Unidas declarou o ano de 1975 como o Ano Internacional da Mulher.

No entanto, ainda que considerando os avanços obtidos, estudos

mostram que ainda nos dias atuais são significativas as desvantagens sociais (e

raciais) apresentadas pelas mulheres quando comparadas aos homens,

principalmente na dinâmica do mercado de trabalho, ou seja, nas “relações de

gênero”.

Exemplo disto podem ser verificados nas ocupações, no desemprego e

nos rendimentos inferiores quando comparados aos homens. Podem ser acrescidas

as responsabilidades familiares e consequentemente a dupla (ou tripla) jornada de

trabalho a elas atribuída (ARAÚJO, 2000).

A título de melhor compreensão, segue abaixo artigo recente que trata da

inserção no mercado de trabalho, segundo gêneros.

Mulheres atuam 18 h em casa por semana; os homens, 5 h Folha de São Paulo, 18/05/2008.

Claudia Rolli

Mulheres com jornada semanal de 40 horas ou mais no mercado de trabalho trabalham quase três vezes mais em serviços domésticos do que homens que cumprem a mesma jornada de trabalho. Enquanto eles trabalham, em média, 5 horas semanais fazendo serviços em casa, elas dedicam 18 horas por semana às mesmas tarefas. O resultado é apontado por estudo do Ibmec São Paulo para avaliar as desigualdades entre homens e mulheres quanto à participação no trabalho dentro e fora casa.O levantamento foi feito a partir de dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2006, do IBGE, e levou em conta informações de 206,5 mil pessoas com renda familiar média de R$ 1.634. A idade média dos chefes de família e seus parceiros é de 46 e 41 anos, respectivamente. Entre os homens, 85,06% têm jornada de 40 horas ou mais por semana. Na média eles, dedicam 5 horas semanais ao serviço doméstico. O percentual de mulheres que cumprem horário de 40 horas ou mais no trabalho é menor: 56,29%. Entretanto, elas dispensam 18 horas

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semanais para as tarefas domésticas. "Comparando mulheres e homens, casados ou não, a diferença persiste. A mulher trabalha em casa, no mínimo, o dobro do que o homem. Dependendo da jornada no mercado de trabalho, essa diferença chega a três ou até quatro vezes", diz Regina Madalozzo, pesquisadora do Ibmec e uma das autoras do estudo. Renda, educação e idade são três fatores que explicam, segundo ela, as desigualdades entre homens e mulheres ao cumprir jornada em casa.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Que bela história tem esse povo brasileiro...

Darcy Ribeiro

Frente ao discutido em nosso curso, cabe-se perguntar quais são os

mecanismos que a população brasileira se utiliza para conviver com as dificuldades

econômicas, com as intolerâncias, os preconceitos e o racismo. Embora cada um de

nós tenhamos nossos próprios alicerces - religiosidade, fé, família, amigos, entre

outros - podemos utilizar-nos das palavras de Darcy Ribeiro (1995): “Mas foi essa

gente nossa, feita da carne de índios, alma de índios, de negros, de mulatos, que

fundou esse país. Esse ‘paisão’ formidável. Invejável. A maior faixa de terra fértil do

mundo, bombardeada pelo sol, pela energia do sol. É uma área imensa, preparada

para lavouras imensas, produtoras de tudo, principalmente de energia. A Amazônia

devia ser um país, porque é tão diferente. O nordeste, até a Bahia... outro país que é

diferente. A Paulistânia e as Minas Gerais juntas são outra gente... O sul, outra

gente... Esse povão que está por aí pronto pra se assumir como um povo em si e

como um povo diferente, como um gênero humano novo dentro da Terra. É claro

que eu tinha de fazer um livro sobre o Brasil que refletisse de certa forma isso. E vivi

fazendo pesquisa, e vivi muito com negros, brasileiros, pioneiros de todo o lugar do

Brasil. E li tudo que se falou do Brasil. Então estava preparado pra fazer esse livro. E

gosto dele. Tenho orgulho do fundo do peito de ter dado ao Brasil esse livro. É o

melhor que eu podia dar. Gosto muito disso.”.

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REFERÊNCIAS

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Jogo e suas Regras. 20. ed. São Paulo: Brasilense, 1994. p. 91-105.

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RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro – A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo:

Companhia das Letras, 2005.

SANTOS, H. A Busca de um Caminho para o Brasil - A Trilha do Círculo Vicioso.

São Paulo: SENAC, 2001.

SCHWARCZ, L. M. O Espetáculo das Raças. São Paulo: Companhia das Letras,

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SOUZA, V. C. Sob o Peso dos Temores: Mulheres Negras, Miomas Uterinos e

Histerectomia. 2002. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2002.