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8 Jornal de Leiria 21 de Março de 2019 Entrevista “Quantos pais acham normal um filho brincar com uma boneca?” Sara Araújo investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra diz que está na hora de desconstruir a imagem de que somos um povo de brandos costumes e de ouvir as comunidades portugueses de outras etnias. Afirma ainda que a masculinidade tóxica também afecta os homens Jacinto Silva Duro [email protected] z A sociedade portuguesa tem difi- culdade a apreender o que são com- portamentos machistas e de violên- cia de género? Ou seja, há práticas tão profundas que, muitas vezes, não conseguimos dar um passo atrás e re- conhecê-las? Acontece com o racismo e com o se- xismo. Quando, no Parlamento, o Bloco de Esquerda propôs a medida anti-piropo, muitos acharam dispa- ratado, e dei-me conta que a maior parte dos meus amigos não fazia ideia do que é ser mulher e andar na rua. Tendemos a individualizar as coisas e a colocá-las no registo da mo- ral individual, quando nada disto é moral individual! Isto é, quando al- guém diz que uma sociedade é racis- ta, o nosso primeiro instinto é afirmar "eu não sou racista". Não é assim que se distingue se uma pessoa é racista. Uma pessoa branca tem de perceber que "usufrui do privilégio branco". Não digo que todos os homens são machistas, mas um homem, para não o ser, tem de começar por reco- nhecer os privilégios de que usufrui por ser homem, mesmo que não os procure. É preciso reconhecer que o patriarcado não é individual e, por isso, o sexismo não existe apenas nos homens. O patriarcado é uma es- trutura mental, política e social, sobre a qual o capitalismo assenta. O siste- ma, como está construído, depende do trabalho gratuito feito maiorita- riamente pelas mulheres; todo aque- le trabalho invisível e não pago de re- produção social: o cuidado das crian- ças, dos idosos ou da casa. Diz-se muitas vezes a pessoas sol- teiras: tens de arranjar uma mulher que cuide de ti, tens de arranjar um homem que cuide de ti... Ainda há dificuldade em conceber que uma mulher possa ser feliz es- tando solteira. Há diferentes registos de família e não é obrigatório seguir o cânone. Quantas pessoas estão num casamento e se sentem sós? E quantas são solteiras e não estão so- zinhas porque têm uma estrutura de amigos, de família que não é ape- nas de sangue, que lhes permite ter força para enfrentar a vida? Des- construiu-se, de alguma forma, a norma de que as mulheres "têm que casar". Mas o essencial da velha ideia espreita todos os dias: as mulheres não precisam de casar, mas dificil- mente se concebe que podem ser fe- lizes não casando. Somos uma gera- ção de mudança, mas existe ainda uma estrutura que nos tenta amarrar às normas. Existe um modelo de fe- licidade e família... mas não quer di- zer que não podemos reagir. É claro que, nos modelos conservadores de família, as regras são claras. Quando queremos algo que fuja ao cânone, as regras têm de ser negociadas. A discussão da questão do género pressupõe uma nova concepção da- quilo que é o ser-se humano, fora do modelo de binómio masculino-fe- minino? O género é uma coisa construída. Há uma frase que é algo assim: "não vou à casa-de-banho das mulheres por ser mulher, sou mulher porque vou à casa-de-banho das mulheres". Se, enquanto crescemos, nos dizem que apenas somos homens ou mu- lheres, há, desde logo, o sofrimento das pessoas que não se identificam com o género biológico ou com a con- cepção binária de género. Há ainda a ideia de que as questões da transe- xualidade são casos aberrantes ou si- tuações muito específicas e de um grupo muito reduzido da popula- ção... Isso está errado! A nossa se- xualidade é mais fluída do que aqui- lo que acreditamos. Temos de aceitar concepções mais amplas daquilo que é um ser humano. Idealmente, de- veríamos incentivar que as pessoas fossem aquilo que quisessem, que se pudessem vestir e identificar com o que quisessem, sem terem de estar constantemente a reagir e a respon- der ao que é definido como normal. Admiro todos os homens e todas as mulheres trans que se afirmam nes- sa diversidade. Quando o fazem, me- lhoram colectivamente a sociedade. Quantos mais e mais diversos pontos de vista houver na sociedade, mais saudável e mais rica ela será. Está na hora de se parar de morrer por se ser fora da norma. Direitos das mulheres das minorias, migrações, racismo, xenofobia, ques- tões de género são coisas que devem ser abordadas, desde cedo, nas es- colas? Acredito que sim. Trabalho, aqui no CES [Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra], com o professor Boaventura de Sousa San- “Há ainda a ideia de que as questões da transexualidade são casos aberrantes ou de circunstâncias muito específicas e de um grupo muito reduzido da população... Isso está absolutamente errado” Em destaque RICARDO GRAÇA

“Quantos pais acham normal um filho brincar com uma boneca?”saladeimprensa.ces.uc.pt/ficheiros/noticias/24189_ed_1810.pdf · houve aquela coisa do rosa para as meninas e o azul

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8 Jornal de Leiria 21 de Março de 2019

Entrevista

“Quantos paisacham normal um filho brincarcom uma boneca?”

Sara Araújo investigadora no Centro de EstudosSociais da Universidade de Coimbra diz que está nahora de desconstruir a imagem de que somos um povode brandos costumes e de ouvir as comunidadesportugueses de outras etnias. Afirma ainda que amasculinidade tóxica também afecta os homens

Jacinto Silva [email protected]

z A sociedade portuguesa tem difi-culdade a apreender o que são com-portamentos machistas e de violên-cia de género? Ou seja, há práticas tãoprofundas que, muitas vezes, nãoconseguimos dar um passo atrás e re-conhecê-las?Acontece com o racismo e com o se-xismo. Quando, no Parlamento, oBloco de Esquerda propôs a medidaanti-piropo, muitos acharam dispa-ratado, e dei-me conta que a maiorparte dos meus amigos não faziaideia do que é ser mulher e andar narua. Tendemos a individualizar ascoisas e a colocá-las no registo da mo-ral individual, quando nada disto émoral individual! Isto é, quando al-guém diz que uma sociedade é racis-ta, o nosso primeiro instinto é afirmar"eu não sou racista". Não é assim quese distingue se uma pessoa é racista.Uma pessoa branca tem de perceberque "usufrui do privilégio branco".Não digo que todos os homens sãomachistas, mas um homem, paranão o ser, tem de começar por reco-nhecer os privilégios de que usufrui

por ser homem, mesmo que não osprocure. É preciso reconhecer que opatriarcado não é individual e, porisso, o sexismo não existe apenasnos homens. O patriarcado é uma es-trutura mental, política e social, sobrea qual o capitalismo assenta. O siste-ma, como está construído, dependedo trabalho gratuito feito maiorita-riamente pelas mulheres; todo aque-le trabalho invisível e não pago de re-produção social: o cuidado das crian-ças, dos idosos ou da casa. Diz-se muitas vezes a pessoas sol-teiras: tens de arranjar uma mulherque cuide de ti, tens de arranjar umhomem que cuide de ti...Ainda há dificuldade em conceberque uma mulher possa ser feliz es-tando solteira. Há diferentes registosde família e não é obrigatório seguiro cânone. Quantas pessoas estãonum casamento e se sentem sós? Equantas são solteiras e não estão so-zinhas porque têm uma estruturade amigos, de família que não é ape-nas de sangue, que lhes permite terforça para enfrentar a vida? Des-construiu-se, de alguma forma, anorma de que as mulheres "têm quecasar". Mas o essencial da velha ideia

espreita todos os dias: as mulheresnão precisam de casar, mas dificil-mente se concebe que podem ser fe-lizes não casando. Somos uma gera-ção de mudança, mas existe aindauma estrutura que nos tenta amarraràs normas. Existe um modelo de fe-licidade e família... mas não quer di-zer que não podemos reagir. É claroque, nos modelos conservadores defamília, as regras são claras. Quandoqueremos algo que fuja ao cânone, asregras têm de ser negociadas.A discussão da questão do géneropressupõe uma nova concepção da-quilo que é o ser-se humano, fora domodelo de binómio masculino-fe-minino?O género é uma coisa construída. Háuma frase que é algo assim: "nãovou à casa-de-banho das mulherespor ser mulher, sou mulher porquevou à casa-de-banho das mulheres".Se, enquanto crescemos, nos dizemque apenas somos homens ou mu-lheres, há, desde logo, o sofrimentodas pessoas que não se identificamcom o género biológico ou com a con-cepção binária de género. Há ainda aideia de que as questões da transe-xualidade são casos aberrantes ou si-

tuações muito específicas e de umgrupo muito reduzido da popula-ção... Isso está errado! A nossa se-xualidade é mais fluída do que aqui-lo que acreditamos. Temos de aceitarconcepções mais amplas daquilo queé um ser humano. Idealmente, de-veríamos incentivar que as pessoasfossem aquilo que quisessem, que sepudessem vestir e identificar com oque quisessem, sem terem de estarconstantemente a reagir e a respon-der ao que é definido como normal.Admiro todos os homens e todas asmulheres trans que se afirmam nes-sa diversidade. Quando o fazem, me-lhoram colectivamente a sociedade.Quantos mais e mais diversos pontosde vista houver na sociedade, maissaudável e mais rica ela será. Está nahora de se parar de morrer por se serfora da norma.Direitos das mulheres das minorias,migrações, racismo, xenofobia, ques-tões de género são coisas que devemser abordadas, desde cedo, nas es-colas?Acredito que sim. Trabalho, aqui noCES [Centro de Estudos Sociais daUniversidade de Coimbra], com oprofessor Boaventura de Sousa San-

“Há ainda a ideiade que as questões da transexualidadesão casosaberrantes ou decircunstânciasmuito específicas ede um grupomuito reduzido dapopulação... Isso estáabsolutamenteerrado”

Em destaque

RICARDO GRAÇA

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Jornal de Leiria 21 de Março de 2019 9ENTREVISTA COM O APOIO DE:

tos e com um grupo de colegas, a par-tir de uma proposta epistemológica,que é também uma proposta de in-tervenção nas sociedades, que sechama Epistemologias do Sul. Nessaproposta, Boaventura identifica trêsformas principais de opressão e umadelas é o patriarcado e toda a opres-são que daí resulta, não apenas con-tra as mulheres, mas contra quemfoge aos papéis de género considera-dos "normais". A “masculinidade tó-xica” também afecta os homens.Quando falamos que o patriarcadodestina às mulheres um papel de su-jeição, de silêncio, não significa que oshomens não sofram também a vio-lência que essa forma hegemónica de“ser e comportar-se como um ho-mem” lhes inflige… Que o homemnão sofra também a violência do ho-mem. "Um homem não chora, nãopode exibir emoções, tem de ser for-te, tem de provar que é sexualmenteactivo..." Há toda uma série de vio-lências que acontecem também con-tra os homens, que mais tarde, podemvir a traduzir-se em manifestaçõesviolentas de poder, porque têm de es-tar, constantemente, a provar qual-quer coisa. Estas questões têm deser discutidas nas escolas, porqueacontecem desde muito cedo. O meusobrinho não aprendeu em casa a ri-gidez dos papéis de género. Nuncahouve aquela coisa do rosa para asmeninas e o azul só para os meninos.Jamais me esquecerei do dia em quea minha irmã lhe comprou uma es-cova de dentes e ele, com cinco anos,disse que não podia levar os amigos daescola lá a casa. "Porque eles vão verque tenho uma escova de dentes cor-de-rosa." Isto vem também da escola!Se sabemos que estas coisas são cons-truídas desde muito cedo, por que nãocomeçamos também a conversá-las ea desconstrui-las desde muito cedo? E quem irá falar e ensinar os mais no-vos? Serão os professores que forameducados dentro destas construçõessociais? E quando as crianças chegama casa e se deparam com as constru-ções dos pais?Nada disto é fácil. Acredito na cons-trução de uma sociedade não pa-triarcal, não capitalista e não colo-nialista – seguindo os três eixos deopressão que as Epistemologias do Sulidentificam. É óbvio que isto é umautopia! Mas enquanto não a tivermoscomo sonho, ela jamais irá acontecer.As utopias - não sou eu que o digo -são o "ainda não". Precisamos de uto-pias fortes para não ficarmos acomo-dados no cinismo. Se nos adaptarmosao possível, abdicamos de qualquerpapel ou responsabilidade. Até po-demos fazer formação de professorese educadores e eles podem descons-truir os preconceitos, porém, quandoos miúdos vão para casa, os pais ficamdesagradados. Recordo-me de dis-cussões familiares por causa dos brin-quedos para as crianças no Natal.Acredito que chegámos longe nesseesforço. Hoje, é relativamente fácil

aceitar que uma menina brinque comum carro de bombeiros, mas quantospais aceitam um filho brincar comuma boneca? Os rapazes deveriambrincar com bonecas, também elesdeviam desenvolver o seu potencialpara o cuidado desde cedo. Quandohá várias crianças juntas e as meninaspegam nas bonecas e os meninospegam nos brinquedos classificadoscomo masculinos, há sempre quemdiga: "vês? É genético!" Não é! Éapreendido desde o primeiro mo-mento de vida. Mal a criança sai dabarriga da mãe, estão a pôr-lhe um fa-tinho rosa ou azul, em função dosseus órgãos genitais! É como aprendera falar. As crianças aprendem umaquantidade de informação gigantenum espaço de tempo muito peque-no e se, até aos dez anos, lhes ensi-narem dez línguas elas aprendem-nas sem dificuldades, imaginem aabsorção que fazem daquilo que é anorma e do que é o desvio da norma. Basta observarem os adultos.A minha sobrinha de quatro anosestá fascinada com as princesas. Nãolhe digo que as princesas não prestam.Tentamos mostrar-lhe outros mode-los de heroínas. Mas isto é difícil decombater quando todo o seu univer-so - os desenhos animados, as amigas,a escola - lhe diz outra coisa. É um pro-cesso que vai levar gerações. Nós, aquino CES, temos um projecto chamadoO CES Vai À Escola e vamos aos esta-belecimentos de ensino do secundá-rio e básico… Por exemplo, o projec-to Intimate aborda as questões da in-timidade a partir das margens dasprioridades políticas. Há projectosque abordam a questão do racismo eda memória colonial, mostrando o ou-tro lado da narrativa glorificadora daexpansão colonial. Tem sido uma ac-tividade de sucesso, que o CES pre-tende continuar. Já fui à Escola Se-cundária Domingos Sequeira, emLeiria, levar algumas destas ques-tões para trabalhar com os estudan-tes, convidada por Elsa MargaridaRodrigues que é lá professora de Fi-losofia. Levei o projecto Alice, ondepensámos a Democracia, os DireitosHumanos e a Economia a partir deconcepções alternativas, a partir dosterritórios que foram colonizados e desaberes que foram desvalorizadospelo Ocidente. Os miúdos têm inte-resse em ideias diferentes e gostam dedesconstruir, mas é preciso havervontade para fazer. É por isto queme preocupa muito que os profes-sores sejam uma classe desconten-te. Deveria preocupar-nos a todos.Precisamos de docentes do ensinopúblico motivados para educar ci-dadãos e cidadãs, para ensinaremalgo mais do que ter sucesso numexame. Temos de educar cidadãose cidadãs para que não votem noprimeiro Bolsonaro que lhes apa-rece, por não serem capazes dequestionar mentiras veiculadascomo notícias e desconstruir argu-mentos demagógicos.

“Temos de desconstruir a imagemde que não somos um país racistae que temos ‘brandos costumes’”z Recentemente, a presença de JeanWyllys na Universidade de Coimbraprovocou a convocação, pelo partidode extrema-direita PNR, de uma ma-nifestação contra o ex-deputado bra-sileiro, acontecendo mesmo umaagressão contra o ex-parlamentar,numa agressividade a que não esta-mos habituados em Portugal. Ondeestá o povo acolhedor e de bandoscostumes?Essa é uma questão que precisamosdesconstruir. No CES e em outros lu-gares, uma das coisas que se temvindo a desconstruir é a ideia de"povo de brandos costumes", que foialimentada pelo mito do luso-tropi-calismo, isto é, a ideia de que o colo-nialismo português foi brando, dife-rente e de que os portugueses têmmaior capacidade de miscigenação.Foi uma ideia que ajudou a manter oimpério colonial até tão tarde e ébom que seja desconstruída. Algumadesta extrema-direita mais muscula-da que está a aparecer tem vários in-centivos, embora ninguém saiba mui-to bem o que está a acontecer. Durantemuito tempo, não se antecipou umTrump ou um Brexit, não se antecipouuma destituição [de Dilma Rousseff]no Brasil ou um Bolsonaro. A força daextrema-direita e o que aconteceucom a vinda de Jean Wyllys a Portu-gal tem muita influência da realidadebrasileira e do que se tem vindo a as-sistir no resto do mundo. Se a partir dePortugal, uma força de extrema-di-reita, como o PNR, que se achou sem-pre que não teria muitas hipótesespara crescer, como acontece com mo-vimentos semelhantes noutros países,começa a ter comportamentos mais"musculados" é porque tem espaço eoportunidade para o fazer. Essa é a pri-meira questão, mas há outra quetambém é importante. Não é só a ex-trema-direita que está a aparecermais, isto é também reacção a umadiscussão que começa a aparecer emPortugal e que tem de ser feita! É im-portante percebermos quem somos,desconstruirmos as imagens que exis-tem acerca do País e que não são ver-dadeiras. Temos de desconstruir aimagem de que não somos um país ra-cista e que temos “brandos costu-mes”... Há muitas vozes que, duran-te toda a nossa história, foram silen-ciadas, como as dos movimentos deafro-descendentes... pessoas que es-tão a reivindicar que a sua narrativahistórica seja ouvida e que come-çam a ter influência na História que écontada.

Isso pode provocar reacções...Num primeiro momento, mas não meparece que seja uma coisa, só por si,negativa. Obviamente, não me estoua referir aos episódios de violência. Es-tive recentemente com MamadouBa e ele disse que, por mais que lhe te-nha pesado tudo o que aconteceu nasequência da intervenção policial noBairro da Jamaica e da cobertura me-diática que foi dada ao caso e à ma-nifestação feita na Avenida da Liber-dade - e ele foi ameaçado e sofreu con-sequências por ser o porta-voz dessesmovimentos -, o que é certo é que per-mitiu discutir um assunto que osportugueses e as portuguesas nãogostam de discutir, porque, alegada-mente, “não somos um país racista”.Quando se diz que Portugal é um paísracista, não se está a afirmar que osportugueses são todos racistas, masque existe uma estrutura social que oé. Uma estrutura que atravessa as ins-tituições, que atravessa o País, que nosatravessa muitas vezes. É uma cons-trução... Todos aprendemos os Des-cobrimentos, todos aprendemos aGuerra Colonial, mas não aprendemosas narrativas das Lutas de Libertação.Aprendemos a História do lado dequem tem poder, do lado dos coloni-zadores, mas não aprendemos a His-tória a partir das perspectivas dequem sofreu e resistiu à violência. Oque tem vindo a surgir são outras vo-zes, outras narrativas daquilo quesomos e daquilo que foi a nossa His-tória, e é óbvio que isso irrita o PNR...Olho para esse grupo e não parecemser mais do que eram há uns anos. Naconferência com o Jean Wyllys, oatirar dos ovos aconteceu lá dentro enão na rua, onde as coisas forammais agressivas. Mas fiquei orgulho-sa por ver que, na minha universida-de, no meu País, a pessoas na contra-manifestação a defenderem os valo-res da democracia e a favor de JeanWyllys eram muitas mais do que asreunidas pelo PNR.No panorama político, estamos a as-sistir a uma polarização entre direi-ta e esquerda, entre certo e errado, en-tre bom e mau. Acabou a moderaçãoe os encontros a meio do caminho?Há várias coisas em causa no fenó-meno da polarização e, naquela queacontece entre esquerda e direita, hámuito espaço para o populismo. Omodelo capitalista neoliberal está a fa-lhar e em crise. E não é uma crise tem-porária. Toda a gente o sabe. O modeloestá esgotado. Todas as promessasque fizeram à nossa geração e à que

“Uma das coisasque se tem vindo adesconstruir é aideia de "povo debrandoscostumes", que foialimentada pelomito do luso-tropicalismo, isto é,a ideia de que ocolonialismoportuguês foibrando, diferente ede que osportugueses têmmaior capacidadede miscigenação”

“Fiquei orgulhosapor ver que a minhauniversidade e queas pessoas do meuPaís, presentes na contra-manifestação para defender os valores dademocracia e a favor do JeanWyllys eram muitas mais do que as do PNR”

Em destaque

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Entrevista

vem depois de nós estão a falhar.Todos tivemos mais oportunidades doque os nossos pais e os nossos filhosnão terão mais do que nós, pelo con-trário. Tivemos acesso a uma escolapública de qualidade... A Educação eSaúde públicas são das coisas quemais me preocupam neste momento.Quando vejo o descontentamento e adesmotivação dos professores e dasprofessoras, o desprestígio do papeldos docentes do ensino secundário,fico assustada. É no ensino secundá-rio que começamos a pensar critica-mente e não devemos apenas ler e in-teriorizar. Diz-se que as crianças nãolêem, mas as pessoas têm acesso a in-formação produzida em todo o mun-do e, se calhar, mesmo não lendo li-vros inteiros, estão a ler outras coisas.O que é preciso é que aprendam a lercriticamente e temo que isso não es-teja a acontecer! Este modelo capita-lista neoliberal está a falhar e, simul-taneamente, dizem-nos que não há al-ternativas, veja-se o discurso da Troi-ka em Portugal. Qualquer pessoa oumovimento que apareça agora a dizerque tem uma alternativa válida, con-segue aproveitar-se da fragilidadedos cidadãos para uma manipula-ção emocional dessa vulnerabilidade.É o que o populismo faz. Coloca-nosa "nós" contra "eles" e há pouco es-paço para se ser moderado. As pessoassentem que "isto está mal" e que al-guma coisa mais radical tem de ser fei-to, seja à esquerda ou direita. Também há polarização entre etniascomo se viu no Bairro da Jamaica.A polarização entre brancos e negrossempre existiu, mas para quem viveno lado do privilégio é possível só ago-ra se ter apercebido dela. As redes so-ciais tiveram um papel importante nis-to e é muito fácil ver alguém, de clas-se média e branco, a questionar se nãoestamos a polarizar as questões entrenegros e brancos. Não, não estamos!Sempre existiu o outro lado. Porexemplo, a questão da gentrifica-ção... até parece que é uma coisanova, mas perguntem a um cigano seé nova, perguntem a um imigrante daperiferia de Lisboa. Houve semprepessoas que jamais tiveram um lugarno centro da cidade. Só passou a serum problema, a partir de 2011, com acrise e a entrada da Troika, quandoapareceu uma série de problemasque uma parte da população nuncateve, desde que, em 1974, a demo-cracia nos trouxe um conjunto de ga-rantias e os direitos à habitação, à edu-cação à saúde e ao trabalho. Mas as co-munidades ciganas, por exemplo,nunca os tiveram. As comunidades depessoas negras e imigrantes sempre ti-veram muito mais barreiras para ace-derem a esses direitos. O que aconte-ce agora é que algumas pessoas, quetiveram acesso à educação e forma-ção, começam a ser porta-vozes des-ses grupos. Quero acreditar que as coi-sas estão a melhorar, mas temos deperceber que existem diferentes tiposde desigualdades no País. Veja-se os

o caso dos ciganos. São portugueses,estão há 500 anos em Portugal... nãohá uma linha nos manuais escolaressobre a chegada das suas comunida-des ao País e sobre o seu papel na his-tória de Portugal. Isto empobrece-nos a todos e a todas.Há relatórios que indicam que a co-munidade cigana é a mais visadaquando se trata de xenofobia. Mas hávárias práticas culturais que cho-cam com aquilo em que boa parte dosrestantes portugueses acredita. Porexemplo, as jovens ciganas obrigadasa casar em casamentos negociados.Quando a comunidade não ciganaconstrói pontes, do outro lado, não

deveria existir um esforço seme-lhante?Fazem-se estas perguntas poucas ve-zes aos ciganos e às mulheres ciganas.Há muitos líderes de organizações quefalam muito bem sobre estes temas,sobre o que experimentam e vivem.Há tempos cheguei a Lisboa comdestino ao bairro da Cova da Moura.Entrei num táxi e quando disse paraonde ia, o taxista respondeu que nãome levava lá. "Porque é perigoso,porque estou farto do que acontecelá!" Naquele momento, eu senti raivae humilhação. Eu, que sou branca eprivilegiada senti-me humilhada.Imaginem o que sentiria se toda a mi-

nha história individual e da minha fa-mília assentasse na humilhação per-manente e na violência sobre mim.Como é que se diz que os ciganos“não estão dispostos a dialogar”, seisso, efectivamente, nunca foi tenta-do de uma forma estruturada. O pú-blico quer inclusão ou integração.Isso significa o quê? Que as pessoas ci-ganas "se civilizem" e se "integrem",mas nos termos definidos pela normados privilegiados? Alguém está dis-ponível para fazer esse diálogo? "Que-ro dialogar contigo, mas quero que es-queças a tua cultura, a tua forma deestar e que te integres naquilo que éa minha definição do que é a norma

e do que é o bom comportamento." Ascomunidades ciganas são toleradas eos outros cidadãos acham-se supe-riores quando toleram a diferença.Reivindico uma sociedade onde se-jamos todos mais ricos, com mais co-nhecimento, com mais cultura e di-versidade, mas, para isso, tem dehaver um diálogo que não assentenuma hierarquia das pessoas brancase de uma determinada cultura sobreas pessoas ciganas. Muitas vezes, naescola, os miúdos tem de fingir quenão são ciganos. Houve uma activis-ta cigana que me disse (cito de me-mória): "somos o 007 da sociedade.Temos de ser invisíveis. Neste mo-mento, não posso ir trabalhar porqueestou de luto. E não consigo passarpor não cigana. A partir do momen-to em que, no meu trabalho, saibamque sou cigana, serei posta na rua." Hámuitos mitos. Dizem que vivem todosdo Rendimento Mínimo Garantido eem casas oferecidas. Não é verdade ehá demasiado ruído. Se concordocom casamentos prematuros? Nãoconcordo, mas não posso julgar umacultura à luz dos meus valores, nãoposso julgar uma cultura por uma prá-tica e muito menos fazer um ativismoque não envolva as mulheres que vi-vem essa realidade. Para se estabe-lecer diálogo, tem de haver aprendi-zagens de todas as partes envolvidas.

Sara Araújo é natural de Leiria.Doutorou-se em Sociologia doDireito com uma tese sobrePluralismo jurídico eEpistemologias do Sul. Fez parte daequipa de coordenação do ProjectoAlice, hoje transformado emPrograma de Investigação emEpistemologias do Sul. Pertence aocolectivo que coordena aUniversidade Popular dosMovimentos Sociais na Europa efez parte do ObservatórioPermanente da Justiça Portuguesa(2003-2005), tendo também sidomembro da equipa deinvestigadores do Centro deFormação Jurídica e Judiciária deMoçambique (2005-2006) einvestigadora associada do Centrode Estudos Africanos daUniversidade Eduardo Mondlane(2008-2010). A sua investigaçãotem sido apontada ao pluralismojurídico, constitucionalismotransformador, cartografiasjurídicas pós-abissais, DireitosHumanos e interculturalidade,educação popular, ecologia desaberes e de justiças. Em 2008,recebeu o Prémio Agostinho daSilva da Academia de Ciências deLisboa.

PerfilFoco no entendimento do outro

RICARDO GRAÇA