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p. 287 R. SJRJ, Rio de Janeiro, n. 22, p. 287-288, 2008 Direito Penal e Processual Penal APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA GEORGE MARMELSTEIN LIMA Juiz Federal da 9ª Vara Federal (Plantonista) de Fortaleza – CE Comunicação de prisão em flagrante referente ao IPL nº 1.517/2007 e pedido de relaxamento de prisão recebidos em regime de plantão. INQUÉRITO Nº 1.517/2007 INDICIADA: “MARIA” DECISÃO Trata-se de pedido de relaxamento de prisão em flagrante, movido pela Defensoria Pública da União em favor da mulher de nome MARIA, sobre a qual não se têm maiores dados para qualificação, presa em flagrante delito em razão da suposta prática do ilícito previsto no art. 163, inciso III do Código Penal, que prevê pena de detenção de no mínimo de 06 meses e no máximo de 03 anos, e multa. Narra o auto de prisão em flagrante que, no dia 31 de outubro de 2007, após denúncia de populares, uma viatura da Guarda Municipal dirigiu-se ao prédio do DNOCs, 2ª DR, na rua dos Tabajaras, nº 11, flagrando uma mulher que, segundo informações, teria danificado torneira de uma fonte localizada na área frontal daquele prédio para tomar banho. A referida mulher, identificando-se apenas como MARIA e afirmando ser moradora de rua, não possuía quaisquer documentos e tendo oferecido resistência no momento da abordagem dos policiais da Guarda, foi algemada e encaminhada à Superintendência Regional da Policia Federal, onde até então encontra-se recolhida. A Defensoria Pública, em contundente exordial, pontua pela ilegalidade da prisão em flagrante, ante a ausência de delito se considerada for a insignificância do dano patrimonial. Postula assim o relaxamento da prisão de MARIA, com a expedição de alvará de soltura. Eis um breve relatório, passo a decidir. Em primeiro lugar, a fundamentação utilizada pela autoridade policial para não arbitrar a fiança, ou seja, a ausência de residência fixa, por ser a acusada moradora de rua, não me parece correta, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. No caso, o fato de ela ser moradora de rua e, portanto, não ter residência fixa não é motivo suficiente para negar-lhe o direito à liberdade, já que ela está nessa condição, não por vontade própria, mas em razão de o Poder Público não lhe permitir gozar dos mais básicos direitos para uma vida digna, como por exemplo o direito à moradia.

Aplicação Do Princípio Da Insignificância

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Page 1: Aplicação Do Princípio Da Insignificância

p. 287 R. SJRJ, Rio de Janeiro, n. 22, p. 287-288, 2008

Direito Penal e Processual Penal

APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

GEORGE MARMELSTEIN LIMA

Juiz Federal da 9ª Vara Federal (Plantonista) de Fortaleza – CE

Comunicação de prisão em flagrante referente ao IPL nº 1.517/2007 e pedido de

relaxamento de prisão recebidos em regime de plantão.

INQUÉRITO Nº 1.517/2007

INDICIADA: “MARIA”

DECISÃO

Trata-se de pedido de relaxamento de prisão em flagrante, movido pela

Defensoria Pública da União em favor da mulher de nome MARIA, sobre a qual não se têm

maiores dados para qualificação, presa em flagrante delito em razão da suposta prática

do ilícito previsto no art. 163, inciso III do Código Penal, que prevê pena de detenção de

no mínimo de 06 meses e no máximo de 03 anos, e multa.

Narra o auto de prisão em flagrante que, no dia 31 de outubro de 2007,

após denúncia de populares, uma viatura da Guarda Municipal dirigiu-se ao prédio do DNOCs,

2ª DR, na rua dos Tabajaras, nº 11, flagrando uma mulher que, segundo informações,

teria danificado torneira de uma fonte localizada na área frontal daquele prédio para tomar

banho. A referida mulher, identificando-se apenas como MARIA e afirmando ser moradora

de rua, não possuía quaisquer documentos e tendo oferecido resistência no momento

da abordagem dos policiais da Guarda, foi algemada e encaminhada à Superintendência

Regional da Policia Federal, onde até então encontra-se recolhida.

A Defensoria Pública, em contundente exordial, pontua pela ilegalidade

da prisão em flagrante, ante a ausência de delito se considerada for a insignificância do

dano patrimonial. Postula assim o relaxamento da prisão de MARIA, com a expedição de

alvará de soltura.

Eis um breve relatório, passo a decidir.

Em primeiro lugar, a fundamentação utilizada pela autoridade policial para

não arbitrar a fiança, ou seja, a ausência de residência fixa, por ser a acusada moradora

de rua, não me parece correta, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana.

No caso, o fato de ela ser moradora de rua e, portanto, não ter residência

fixa não é motivo suficiente para negar-lhe o direito à liberdade, já que ela está nessa

condição, não por vontade própria, mas em razão de o Poder Público não lhe permitir gozar

dos mais básicos direitos para uma vida digna, como por exemplo o direito à moradia.

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p. 288 R. SJRJ, Rio de Janeiro, n. 22, p. 287-288, 2008

Direito Penal e Processual Penal

Além disso, mesmo que se dissesse que a Senhora Maria, por não ter resi-

dência fixa, não teria direito à liberdade, ainda assim ela deveria ser solta, pois não há

justificativa para a instauração de inquérito policial.

Analisando os fatos narrados na comunicação de prisão em flagrante, bem

como da argumentação trazida na peça formulada pela Defensoria Pública, é inegável

que razão assiste ao defensor público. Submeter a todo um procedimento criminal uma

pessoa, inegavelmente desassistido pelo Poder Público e totalmente desprovido de

condições mínimas de higiene e saúde, simplesmente pelo dano causado a uma torneira

plástica de um órgão como o DNOCS, foge a qualquer parâmetro do razoável, ainda mais

se considerarmos que MARIA, a moradora de rua em questão, somente assim procedeu

com o intuito de tomar um simples banho. Dessa forma, a conduta de MARIA é totalmente

atípica, uma vez que o bem jurídico ora violado (patrimônio publico) o foi de maneira tão

insignificante que não justificaria assim a prisão em flagrante procedida pela autoridade

policial, nem sequer a instauração de inquérito para apuração de fato.

A Constituição Federal garante ao Magistrado a possibilidade de conceder

a ordem de habeas corpus, de oficio, ante a ilegalidade de prisão, conforme se observa

nos incisos transcritos a seguir:

Art. 5º. [...] LXVII – conceder-se-á hábeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofre violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

Além disso, indiscutível a consagração do principio da insignificância à

jurisprudência pátria, referendada em inúmeras decisões do Supremo Tribunal Federal,

dentre as quais faço menção a colacionada pela Defensoria Pública em sua peça, que

destaca muito bem a atipicidade do “crime de bagatela”, em face da insignificância

jurídica do ato, em clara aplicação do referido principio.

Assim, pelos argumentos acima expostos, entendo por ilegal a prisão em

flagrante realizada pela Autoridade Policial, CONCEDENDO ORDEM DE HABEAS CORPUS

no sentido de que se proceda ao trancamento do inquérito policial nº 1517/2007,

e consequentemente que seja expedido alvará de soltura para a imediata liberação da

requerente qualificada como MARIA, presa e indiciada no referido IPL. Oficie-se.

Oportunamente, vista ao representante do Ministério Público Federal.

Expedientes necessários e urgentes.

Fortaleza, 1 de novembro de 2007.

GEORGE MARMELSTEIN LIMA

Juiz Federal Plantonista