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O Património perto de si (II) Apoio: Direção Regional da Cultura Entidade Promotora: Cresaçor Entidades Parceiras: Instituto Cultural de Ponta Delgada | Instituto Histórico da Ilha Terceira | Núcleo Cultural da Horta Conselho Editorial: Pedro Pascoal de Melo Conselho de Redação: Pedro Pascoal de Melo, Célia Pereira, Marta Bretão e Guilherme Pinto de Sousa Cozinha Tradicional de Santa Maria A cozinha tradicional da ilha de Santa Maria não é, por re- gra, muito elaborada nem requintada, quer nos ingre- dientes que usa, quer na sua confecção. Não obstante, ela é reconhecida e apreciada pela sua originalidade, bom sabor e, por regra, é saudável. Além disso, apresenta uma considerável variedade de pro- dutos culinários típicos, alguns de grande simplicidade, mas sempre com um toque de ori- ginalidade e bom gosto. São de registar o caldo de peixe, com o sabor do tempero da hortelã, a sopa de búzio do mar, as sopas do Espírito Santo, tem- peradas com endro ou hortelã, conforme o lado da ilha, os mo- lhos de porco, os torresmos de sal, a caçoula, muito especial, o caldo de nabos da terra, o bolo de esfregadura, de milho, e o biscoito de esfregadura, de tri- go, ambos temperados com pé de torresmo — um mimo com que as mães presenteavamos filhos no dia de cozer pão —, o biscoito de aguardente, o bis- coito de orelha,os bolinhos de milho, usuais nos casamentos antigos, os búzios de massa, fritos, próprios do Carnaval e, ainda, as massas caracterís- ticas do Império do Espírito Santo — o pão da mesa, a ros- ca, o pão leve — tão originais como o próprio cerimonial do Império mariense. Estas características, que tan- to dizem respeito aos pratos como à doçaria, são, em gran- de parte, o resultado feliz de um desafio imposto à criati- vidade das nossas cozinhei- ras domésticas em épocas de grande carestia e falta de re- cursos, no passado. Também aqui podemos dizer que a difi- culdade aguça o engenho. Aspecto sempre interessante e digno de assinalar é ainda a vertente histórica, social e ce- lebrativa que está associada a diversas especialidades culi- nárias marienses e acentua o seu carácter cultural. Hoje vamos abordar os dois produtos culinários mais co- nhecidos e que considero mais emblemáticos da ilha de San- ta Maria: o caldo de nabos e o biscoito de orelha. O caldo de nabos é um cozi- do que tem como ingredientes apenas carne de porco, salga- da previamente (algumas pes- soas juntam chouriço) e nabos, rapados e cortados em fatias no sentido do comprimento, cozidos juntamente com a car- ne, segundo os procedimentos da receita tradicional. A especialidade desta emen- ta está precisamente no nabo, muito característico e diferen- te, produzido só na ilha de San- ta Maria e, por isso, chamado nabo da terra. Mais pequeno e de formato mais alongado, caracteriza-se por um cheiro forte próprio e um agradável gosto amargo, que impregna- mos cozinhado. É frequente cozer, à parte, batata-doce e chouriço, que, servidos juntamente com os nabos e a carne, enriquecem a ementa, pois combina muito bem o contraste do gosto acre do nabo com o doce da batata. Geralmente, o caldo de nabos comia-se ao jantar, que nos meios rurais se denominava ceia, na estação do inverno. Semeados no fim de agosto ou princípios de setembro, os nabos eram apanhados depois da matação do porco, usual em todas as casas, por regra, no tempo do Natal, e constituía, em boa verdade, a grande fes- ta natalícia e de fim de ano das famílias marienses. Por sua vez, o biscoito de ore- lha é um produto artesanal da doçaria mariense de grande ex- celência, tradicionalmente con- feccionado em todos os lares, e considerado um ex-libris da ilha de Santa Maria. Apresen- tava-se, normalmente, em oca- siões festivas — Natal, Impé- rios, casamentos, matação do porco — e actos cerimoniais, como a recepção de uma visita, uma oferta de reconhecimento ou outras situações marcadas pela cortesia. Era também um biscoito de orelha, de grandes proporções, que as madrinhas costumavam oferecer aos afilhados pelo Na- tal. Razão por que este se cha- mava «biscoito da Festa». Feito com ingredientes usuais e populares, equilibradamente doseados pelas nossas doceiras domésticas — farinha de trigo, ovos, banha, manteiga, açúcar, fermento caseiro, sal e água, a que algumas juntam raspa de limão — o biscoito de orelha prima pelo seu sabor simples, natural e muito agradável. Distingue-o também, e sobre- maneira, o seu formato trian- gular e a sua artificiosa manu- factura, operada por três voltas imprimidas à tira de massa, enrolada entre o dedo indica- dor e o dedo médio da mão es- querda, habilmente delineadas pelas mãos da doceira. Pos- teriormente, é feito um corte INFORMAÇÃO ÚTIL CALDO DE NABOS INGREDIENTES: Nabos da terra; carne de porco; chouriço de carne; toucinho; batata-doce; sal q.b. MODO DE PREPARAÇÃO: De véspera salgam-se as carnes generosamente e reservam-se. Os nabos são raspados e partidos em lascas. Ferve-se água e escaldam-se os nabos na mesma. Colocam-se a cozer em nova água temperada com sal, de preferência numa panela de ferro, até ficaram macios e não moles. Depois de cozidos põe-se fora a água, tornam-se a lavar e vão ao lume a cozer em nova água juntamente com a carne e o toucinho. À parte coze-se o chouriço e a batata. Serve-se numa travessa as carnes, os nabos e as batatas, e numa terrina o caldo que pode ser comido com sopas de pão. longitudinal nos três cantos, formando em cada um deles uma «orelha», o que justifica o nome por que é conhecido. Um processo artesanal de con- fecção, na verdade, muito cria- tivo, original e gracioso, mas complexo, transmitido ao lon- go dos tempos de mães para filhas, que há que preservar e realizar com esmero e arte: bis- coitos pequeninos e delgadi- nhos, com o triângulo bem de- marcado e as orelhas nítidas, parcialmente destacadas. É todo este conjunto de ca- racterísticas — originalidade, qualidade, primor de manu- factura, peso cultural — que justifica a classificação do bis- coito de orelha, por Portaria do Governo Regional de 20 de Março de 2014, como produto de marca colectiva de origem «Artesanato dos Açores». ARSÉNIO PUIM Instituto Cultural de Ponta Delgada

Apoio: Direção Regional da Cultura Cresaçor Instituto ... · confecção. Não obstante, ela é reconhecida e apreciada pela sua originalidade, bom sabor ... coito de orelha,os

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O Património perto de si (II)Apoio: Direção Regional da Cultura Entidade Promotora: Cresaçor Entidades Parceiras: Instituto Cultural de Ponta Delgada | Instituto Histórico da Ilha Terceira | Núcleo Cultural da Horta Conselho Editorial: Pedro Pascoal de Melo Conselho de Redação: Pedro Pascoal de Melo, Célia Pereira, Marta Bretão e Guilherme Pinto de Sousa

Cozinha Tradicional de Santa MariaA cozinha tradicional da ilha de Santa Maria não é, por re-gra, muito elaborada nem requintada, quer nos ingre-dientes que usa, quer na sua confecção. Não obstante, ela é reconhecida e apreciada pela sua originalidade, bom sabor e, por regra, é saudável.Além disso, apresenta uma considerável variedade de pro-dutos culinários típicos, alguns de grande simplicidade, mas sempre com um toque de ori-ginalidade e bom gosto.São de registar o caldo de peixe, com o sabor do tempero da hortelã, a sopa de búzio do mar, as sopas do Espírito Santo, tem-peradas com endro ou hortelã, conforme o lado da ilha, os mo-lhos de porco, os torresmos de sal, a caçoula, muito especial, o caldo de nabos da terra, o bolo de esfregadura, de milho, e o biscoito de esfregadura, de tri-go, ambos temperados com pé de torresmo — um mimo com que as mães presenteavamos filhos no dia de cozer pão —, o biscoito de aguardente, o bis-coito de orelha,os bolinhos de milho, usuais nos casamentos antigos, os búzios de massa, fritos, próprios do Carnaval e, ainda, as massas caracterís-ticas do Império do Espírito Santo — o pão da mesa, a ros-ca, o pão leve — tão originais como o próprio cerimonial do Império mariense.Estas características, que tan-to dizem respeito aos pratos como à doçaria, são, em gran-de parte, o resultado feliz de um desafio imposto à criati-vidade das nossas cozinhei-ras domésticas em épocas de grande carestia e falta de re-cursos, no passado. Também aqui podemos dizer que a difi-culdade aguça o engenho.Aspecto sempre interessante e digno de assinalar é ainda a vertente histórica, social e ce-lebrativa que está associada a diversas especialidades culi-nárias marienses e acentua o seu carácter cultural.Hoje vamos abordar os dois produtos culinários mais co-nhecidos e que considero mais emblemáticos da ilha de San-ta Maria: o caldo de nabos e o biscoito de orelha.O caldo de nabos é um cozi-do que tem como ingredientes

apenas carne de porco, salga-da previamente (algumas pes-soas juntam chouriço) e nabos, rapados e cortados em fatias no sentido do comprimento, cozidos juntamente com a car-ne, segundo os procedimentos da receita tradicional.A especialidade desta emen-ta está precisamente no nabo, muito característico e diferen-te, produzido só na ilha de San-ta Maria e, por isso, chamado nabo da terra. Mais pequeno e de formato mais alongado, caracteriza-se por um cheiro forte próprio e um agradável gosto amargo, que impregna-mos cozinhado.É frequente cozer, à parte, batata-doce e chouriço, que, servidos juntamente com os nabos e a carne, enriquecem a ementa, pois combina muito bem o contraste do gosto acre do nabo com o doce da batata.Geralmente, o caldo de nabos comia-se ao jantar, que nos meios rurais se denominava ceia, na estação do inverno. Semeados no fim de agosto ou princípios de setembro, os nabos eram apanhados depois da matação do porco, usual em todas as casas, por regra, no tempo do Natal, e constituía, em boa verdade, a grande fes-ta natalícia e de fim de ano das famílias marienses.Por sua vez, o biscoito de ore-

lha é um produto artesanal da doçaria mariense de grande ex-celência, tradicionalmente con-feccionado em todos os lares, e considerado um ex-libris da ilha de Santa Maria. Apresen-tava-se, normalmente, em oca-siões festivas — Natal, Impé-rios, casamentos, matação do porco — e actos cerimoniais, como a recepção de uma visita, uma oferta de reconhecimento ou outras situações marcadas pela cortesia.Era também um biscoito de orelha, de grandes proporções, que as madrinhas costumavam oferecer aos afilhados pelo Na-tal. Razão por que este se cha-mava «biscoito da Festa».Feito com ingredientes usuais e populares, equilibradamente doseados pelas nossas doceiras domésticas — farinha de trigo, ovos, banha, manteiga, açúcar, fermento caseiro, sal e água, a que algumas juntam raspa de limão — o biscoito de orelha prima pelo seu sabor simples, natural e muito agradável.Distingue-o também, e sobre-maneira, o seu formato trian-gular e a sua artificiosa manu-factura, operada por três voltas imprimidas à tira de massa, enrolada entre o dedo indica-dor e o dedo médio da mão es-querda, habilmente delineadas pelas mãos da doceira. Pos-teriormente, é feito um corte

INFORMAÇÃO ÚTIL

CALDO DE NABOSINGREDIENTES:Nabos da terra; carne de porco; chouriço de carne; toucinho; batata-doce; sal q.b.

MODO DE PREPARAÇÃO:De véspera salgam-se as carnes generosamente e reservam-se. Os nabos são raspados e partidos em lascas. Ferve-se água e escaldam-se os nabos na mesma. Colocam-se a cozer em nova água temperada com sal, de preferência numa panela de ferro, até ficaram macios e não moles. Depois de cozidos põe-se fora a água, tornam-se a lavar e vão ao lume a cozer em nova água juntamente com a carne e o toucinho. À parte coze-se o chouriço e a batata. Serve-se numa travessa as carnes, os nabos e as batatas, e numa terrina o caldo que pode ser comido com sopas de pão.

longitudinal nos três cantos, formando em cada um deles uma «orelha», o que justifica o nome por que é conhecido.Um processo artesanal de con-fecção, na verdade, muito cria-tivo, original e gracioso, mas complexo, transmitido ao lon-go dos tempos de mães para filhas, que há que preservar e realizar com esmero e arte: bis-coitos pequeninos e delgadi-nhos, com o triângulo bem de-marcado e as orelhas nítidas, parcialmente destacadas.É todo este conjunto de ca-racterísticas — originalidade, qualidade, primor de manu-

factura, peso cultural — que justifica a classificação do bis-coito de orelha, por Portaria do Governo Regional de 20 de Março de 2014, como produto de marca colectiva de origem «Artesanato dos Açores».

ARSÉNIO PUIMInstituto Cultural de Ponta Delgada