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Arquitectura Neomanuelina no Brasil Reglna Anacleto A ARQUITECTURA NEOMANUELINA, TÃO INTIMA- mente relacionada com os descobrimentos, ao difundir-se no Brasil, quase sempre sob a responsabilidade de instituições portugue- sas, assumiu-se como verdadeira extensão da que então se praticava em Portugal e repre- sentava uma ligação umbil ical à mãe pátria distante. Sem pretender abordar exaustiva e sistema- ticamente este estilo em terras de Santa Cruz, não me parece, contudo, descabido referir os edifícios que servem de sede a três das mais representativas associações de pendor cultu- ral e recreativo, fundadas por imigrantes e que, fruto do seu patriotismo e de um naciona- lismo, por vezes serôdio, acabaram por fazer erguer, dentro de um gosto neomanuelino, imóveis, se não riscados por arquitectos por- tugueses, pelo menos, ideologicamente naci- onais. A partir da primeira metade de Oitocentos, mas prolongando-se durante todo o século, assistiu-se, no Brasil, a uma lenta viragem que foi transformando as características coloniais do país numa mentalidade de estado moderno; apesar disso, durante muito tempo, lado a lado continuaram a conviver ideias ilu- ministas e liberais, abraçadas predominante- mente por legistas, médicos, filósofos e jorna- listas, com um clero onde imperavam as con- cepções tridentinas, com um ensino teocrá- tico e com vestígios esclavagistas. Do outro lado do Atlântico, a importância destes imigrados, verdadeiros obreiros daquela mutação, não passava despercebida aos mentores das novas ideologias, embora seja impossível deslembrar os problemas sur- gidos após a independência, entre coloniza- dores e colonizados, com ódios, agravos e res- sentimentos a perdurar; mas também não se pode esquecer que os portugueses, durante mais de trezentos anos garantiram, nem sem-

Apostila Arquitetura - Arquitetura Neomanuelina No Brasil

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Apostila sobre a história Neomanuelina no Brasil.

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  • Arqu itectura Neomanuel i na

    no Brasi l

    R e g l n a A n a c l e t o

    A ARQUITECTURA NEOMANUELINA, TO INTIMAmente relacionada com os descobrimentos, ao difundir-se no Brasil, quase sempre sob a responsabilidade de instituies portuguesas, assumiu-se como verdadeira extenso da que ento se praticava em Portugal e representava uma ligao umbilical me ptria distante.

    Sem pretender abordar exaustiva e sistematicamente este estilo em terras de Santa Cruz, no me parece, contudo, descabido referir os edifcios que servem de sede a trs das mais representativas associaes de pendor cultural e recreativo, fundadas por imigrantes e que, fruto do seu patriotismo e de um nacionalismo, por vezes serdio, acabaram por fazer erguer, dentro de um gosto neomanuelino, imveis, se no riscados por arquitectos portugueses, pelo menos, ideologicamente nacionais.

    A partir da primeira metade de Oitocentos, mas prolongando-se durante todo o sculo, assistiu-se, no Brasil, a uma lenta viragem que foi transformando as caractersticas coloniais do pas numa mentalidade de estado moderno; apesar disso, durante muito tempo, lado a lado continuaram a conviver ideias iluministas e liberais, abraadas predominantemente por legistas, mdicos, filsofos e jornalistas, com um clero onde imperavam as concepes tridentinas, com um ensino teocrtico e com vestgios esclavagistas.

    Do outro lado do Atlntico, a importncia destes imigrados, verdadeiros obreiros daquela mutao, no passava despercebida aos mentores das novas ideologias, embora seja impossvel deslembrar os problemas surgidos aps a independncia, entre colonizadores e colonizados, com dios, agravos e ressentimentos a perdurar; mas tambm no se pode esquecer que os portugueses, durante mais de trezentos anos garantiram, nem sem-

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    pre de forma exemplar, mas garantiram, a unidade do territrio, da lngua, das tradies e, consequentemente, aquilo que posteriormente veio a desaguar na conscincia de brasilidade.

    O peso da numerosa colnia, formada por gente sada de Lisboa ou ida, essencialmente, do Minho, de Trs-os-Montes e das Beiras, comeava a fazer-se sentir e os indivduos encontravam-se orientados para diferentes objectivos: enquanto uns se assumiam como exilados polticos, outros, desejavam fazer fortuna rpida, atravs do exerccio de actividades mercantis, industriais ou braais; mas todos eles sentiam a necessidade de se juntar, a fim de mitigar as saudades da ptria, de manter e ampliar uma cultura eminentemente nacional e de socorrer os compatriotas menos protegidos.

    Foi para responder a estes anseios que nasceu a ideia de fundar associaes onde, se por um lado concretizaram tantas e to admirveis iniciativas de benemerncia, por outro consubstanciaram, atravs de uma aco espiritual notvel, o prestgio da cultura; em suma, conseguiram afirmar aquilo a que, genericamente, era hbito chamar de virtudes lusas.

    Como bvio, para instalar a sede destes movimentos ou assegurar os servios pretendidos, necessitavam de imveis que deviam responder ao fim a que se destinavam e estar de acordo com iderios que balizavam a sua maneira de ser e o seu imaginrio espiritual. Uma vez que o manuelino assumiu, entre ns, valor de arquitectura nacional com todo o corolrio de efeitos que uma tal postura acarretava, fcil se torna compreender a aceitao e aproveitamento deste estilo por parte dos portugueses residentes no Brasil, quando necessitaram de acomodar as associaes que fundaram.

    Na ltima metade do sculo XIX, morava em Salvador da Bahia um numeroso contingente de imigrantes portugueses que havia demandado terras brasileiras, a fim de melhorar a sua situao econmica ou solicitar guarida poltica

    Como acontecia um pouco por todo o continente, como os brasileiros gostam de dizer, tambm aqui, na primeira capital de terras de Santa Cruz, os nossos compatriotas se agruparam e fundaram associaes com carcter beneficente, cultural ou ldico; e se, cerca de 1 860, em Salvador existia j uma agremiao que contemplava o primeiro aspecto, rapidamente se desenhou no horizonte o desejo de fundar uma outra, que abarcasse a componente cultural.

    Foi assim que um grupo de portugueses com prestgio e acendrado patriotismo, se reuniu a 2 de Maro de 1 863, na sala das sesses da Sociedade Portuguesa de Beneficncia Dezasseis de Setembro e resolveu lmanimemente instalar [naquela] cidade uma sociedade literria com o nome de = Gabinete Portugus de Leitura.

    O grande impulsionador, fundador e primeiro presidente da directoria do Gabinete, que instalou a sua sede, em 1 864, num prdio situado na rua Direita do Comrcio, foi o comendador Manuel Joaquim Rodrigues, que j no teve a dita de, em 1 9 1 8, assistir inaugurao do imponente edifcio neomanuelino.

    Com o aumento das actividades, a ampliao da biblioteca e contando 504 scios no longnquo ano de 1 874, as instalaes que tinham servido de sede colectividade, passaram a ser inadequadas, apesar de haver mudado vrias vezes de local e de ter mesmo adquirido um imvel ( 1 896) na rua chamada do Chile, onde a sede do Gabinete Portugus

  • de Leitura permaneceu durante relativamente pouco tempo, porque, entretanto, perfilaram-se na cidade obras de carcter urbanstico, que obrigavam demolio do prdio social.

    Havia, pois, que buscar uma soluo e, como se encontrava venda, na Praa 13 de Maio, um terreno, os responsveis, por lhes parecer tratar-se de um local conveniente, resolveram compr-lo, a fim de ali construir o novo edifcio; mas, em 1915, as obras ainda no haviam arrancado e o imvel acabou por s ser inaugurado a 3 de Fevereiro de 1 9 1 8 .

    A fim de cumprir os objectivos estatutrios, durante estes anos, desenrolou-se na instituio uma actividade de tipo cultural reveladora de grande dinamismo, tendo em conta, como bvio, a conjuntura social, demogrfica e econmica em que a mesma se inseria: ps a funcionar nas suas instalaes cursos de portugus e de gramtica e, alm disso, facultava a sua biblioteca, que ento possua roda de 1 1 .000 ttulos, a todos, e muitos eram, os que a procuravam.

    No comeo da centria, o acervo do Gabinete foi enriquecido com a oferta da maqueta do monumento que a cidade baiana pretendia erguer a Pedro lvares Cabral, gesso da autoria de Costa Mota, adquirido por um grupo de scios num leilo da alfndega; o modelo, actualmente colocado no salo de leitura, foi entronizado no dia da visita oficial da canhoeira portuguesa Ptria, a 9 de Setembro de 1 905. Seja-me permitido aqui colocar uma nota de rodap, para dizer que o projecto decalca a esttua de Afonso de Albuquerque, que se ergue em Lisboa na actual Praa do Imprio, sada do lpis do arquitecto Silva Pinto e do cinzel do referido escultor.

    O incio das solenidades que iriam marcar a inaugurao do novo edifcio encontrava-se marcado para as nove horas da manh do dia

    3 de Fevereiro de 1 9 18, e o acto contou com a presena das autoridades civis e militares, dos representantes de diversas instituies e da imprensa, de quase toda a colnia portuguesa e de muitas senhoras.

    Antes de abrir a sesso, monsenhor Francisco de Assis Pires, vigrio da freguesia de S. Pedro, abenoou as novas instalaes do Gabinete, que ostentava por lema saudades e perseverana, tendo-se, logo de seguida, formado no salo nobre a mesa que devia presidir ao solene acontecimento. O jesuta padre Lus Gonzaga Cabral e o Dr. Teodoro Sampaio, oradores expressamente convidados, /Utma 1 uta de beleza e de pensamento, proferiram os discursos inaugurais.

    As peas oratrias sadas das penas elegantes dos dois oradores elucidam-nos acerca da mentalidade que presidiu a todo o labor desenvolvido pela colectividade, mas no quero deixar de salientar que o jesuta, no seu elquio, tomou por tema uma trilogia: o livro, a ptria e a f. Ao desenvolver aquela proposio, proferiu um memorvel discurso, profundo de ideias, largo de sentimento, a prendeI; por cerca de uma hora, um auditrio comovido.

    O edifcio do Gabinete Portugus de Leitura, situado na Praa actualmente chamada da Piedade, apresenta trs frentes e foi riscado entre 1 9 1 2 e 1 9 1 5 por Alberto Borelli, arquitecto de quem no h memria na cidade do Salvador; no entanto, sabe-se que todo o trabalho de alvenaria esteve a cargo de artistas portugueses que laboravam sob a sua orientao.

    Da sua fachada cor de saibro ressalta, o cunho mimosamente nacional que admiram quantos a contemplam. Estilo, figuras, brases, mincias ornamentais, tudo aqui - dizia o padre Lus Gonzaga - genuinamente nosso, o que os nossos olhos maravilhados se tinham ao

  • Gabinete Portugus de Leitura de So Salvador, Bahia.

    habituado a ver jorrar do solo nacional em esplndidos jactos arquitectnicos.

    Desde os janeles, [oo.J , at aos colchetes de acanto que se escalonam ao longo das nervuras envolventes; desde os grandes pilares com suas agulhas coroadas pela esfera armila/; at s cordas e bias da portada central, tudo nos traslada em esprito para os grandes monumentos da Praia do Restelo e do voto de Aljubarrota; tudo vem mitigar-nos a saudade, implantando triunfalmente um retalho da Ptria, em plena Bahia, e consagrando, c ao longe, a elegncia do estilo nacional com a mais esttica fachada desta cidade do SalvadO!:

    Sobretudo porm os brases, os bustos e as esttuas, que melhor imprimem a nota patritica a todo esse conjunto eminentemente portugus: aqueles brases das nossas cidades, [ . . . ] ; aqueles bustos do Infante de Sagres e de Vasco da Gama, que, nos medalhes superiores do corpo central, parecem ter seu merecido Capitlio [ . . ,] e finalmente aquelas esbeltas esttuas de Pedro lvares Cabral e do cantor de Os LUSadas, que resumem to brilhantemente as glrias da Ptria nas cincias e nas letras .

    Interiormente, na parede do patamar da escadaria, encontram-se, a ladear um vitral alusivo primeira missa celebrada no Brasil e

  • de feitura francesa, duas alegorias, pintadas por Carlos De Servi, que mo caridosa repintou, de forma que se pode considerar, no mnimo, trgica. Uma representa O Adamastor e a outra Cames salvando Os Lusadas; sob as pinturas, em cartel as, encontram-se versos camonianos adequados.

    O novo edifcio do Gabinete Portugus de Leitura de Salvador exprimia, serodiamente, a vitria dos ideais simblicos e evocativos das glrias nacionais, ao mesmo tempo que apelava para que o mbil principal da instituio, isto , a difuso da cultura portuguesa, constitusse, atravs do conhecimento profundo do passado, uma sugestiva lio para o ento presente, passvel de se projectar no futuro.

    Os primeiros portugueses a demandar terras brasileiras levavam consigo um patriotismo inquebrantvel, qui mal compreendido, e, por vezes, paixes polticas inflamadas que acabavam por funcionar como impeditivas da sua unio. Apenas nos momentos de grande vibrao patritica esqueciam partidarismos e cores de bandeira, para s gritar um nome bendito [ o o . ] e que tem condes de milagre: - Portugaz,> .

    Nas diversas associaes que a colnia portuguesa fundou em terras de alm-mar, encontram-se, lado a lado, agrupamentos polticos e colectividades com fins culturais, assistenciais ou escolares, que acabam por, de uma forma ou de outra, funcionar como elos de des-unio.

    Alguns membros mais activos da comunidade de Santos, nos finais do sculo XIX, fundaram o Centro Portugus, associao que se ligava ao tradicionalismo luso e agrupava todos quantos tivessem nascido em Portugal e residissem naquela cidade.

    A instituio destinava-se a manter entre os seus associados a maior solidariedade; a concorrer em benefcio de todos, em quaisquer emergncias, desde que ao Centro fosse lcito levar-lhes apoio; a auxiliar pecuniariamente todos os portugueses que se encontrassem doentes e carecessem de ajuda; a criar aulas de instruo primria e secundria, sobretudo para os filhos dos scios; a promover e realizar conferncias; a criar uma biblioteca; a promover a comemorao de festas nacionais; e a facultar benefcios s vivas e aos filhos menores de scios falecidos.

    Visando a fundao do Centro, realizou-se um primeiro encontro a 3 de Novembro de 1 895, logo seguido, a 10 do mesmo ms, de outro que se destinava a discutir os estatutos, redigidos sob a forma de proposta, pelo Dr. Manuel Homem de Bittencourt, portugus dos Aores, cirurgio dentista a exercer a sua profisso na Sociedade Portuguesa de Beneficncia e se assumiu, na cidade, como figura de relevo.

    Na sequncia das reunies preparatrias, realizou-se no teatro Guarany, a 1 de Dezembro desse ano, uma assembleia, em que, para alm do vice-cnsul de Portugal, das autoridades locais e de numerosos convidados, esteve presente um grande nmero de scios. A reunio destinava-se a: testemunhar a cerimnia da fundao do Centro Portugus e a comemorar a gloriosa data do aniversrio da Restaurao de Portugal.

    Constituda a mesa, que integrava a Directoria, depois de Alberto Veiga ter proferido um brilhante e exaltado discurso patritico alusivo efemride, o Dr. Manuel Homem de Bittencourt, a funcionar como agente catalisador do Centro, bradou: Longe da Ptria querida, num exlio voluntrio [ o o . ] punge-nos a todos ns a saudade cruel da Terra sagrada que nos foi bero comum, cuja santa imagem nos 42

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    acompanha e persegue - como um arcanjo de asas pandas - a proteger-nos com o seu carinhoso olhal; cheio desse amor e dessa solicitude, de que s as mes extremosas possuem o mgico segredo. [ . . . ] Aos votos de amor filial, que de longe lhe enviamos, nos paroxismos dessa saudade e dessa nostalgia, correspondenos a idolatrada Me-Ptria com as bnos maternais que nos envia, e dessas bnos fecundantes que emerge o sentimento de fraternidade que nos une, a todos ns portugueses, como dilectos filhos das mesmas entranhas queridas. d'ahi que decorre este princpio de coeso - que nos liga, a todos, para, pelo mtuo esforo da vontade e da dedicao a mais acrisolada, erguer nas remotas paragens, a que nos conduziu o Destino, este e outros grmios em os quais palpita o corao da Me-Ptria e revive a alma da nossa grande nacionalidade.

    A primeira sede social acomodou-se na Praa da Repblica, mas, logo de seguida, em 1 897, compraram um terreno na rua Amador Bueno, onde, em Maio do ano seguinte, foi assente a pedra fundamental. Nessa altura, a directoria, alm de ter impresso algum cunho ou auto, realizou a cerimnia acompanhada pelos sons estrdulos de uma qualquer fanfarra, por luminrias a preceito e por um, possivelmente, bem patritico discurso alusivo ao acto e ao Centenrio da ndia, no qual a cerimnia se integrava.

    Nem fruto do acaso e nem deixa de ser despiciendo notar que, enquanto o Gabinete Portugus de Leitura do Rio de Janeiro integrou as festas do lanamento da primeira pedra do seu novo edifcio nas comemoraes camonianas, os portugueses de Santos, procedendo de modo semelhante, vo ligar o seu edifcio ao centenrio comemorativo da descoberta do caminho martimo para a ndia, promovido pela Sociedade de Geogra-

    fia de Lisboa, a quem, na altura, enderearam um telegrama que rezava assim: Real Centro Portugus festeja o Centenrio da ndia ftmdando wn edifcio.

    A associao, que se viria a assumir, em Santos, como um reduto monrquico, s deixou de ostentar a sua prerrogativa de Real, que lhe havia sido outorgado por D. Carlos a 2 1 de Janeiro de 1 897, no ano de 1946, depois ele arredados alguns escolhos e resolvida urna situao assaz delicada.

    Dada a ideologia que envolveu a fundao desta agremiao santista, no admira, pois, que a escolha do estilo a utilizar no edifcio, fosse evocador da era das nossas grandes conquistas e, alm disso, debuxado em Portugal pelos engenheiros Joo Esteves Ribeiro da Silva e Ernesto Carlos Aberto da Maia, os mesmos que haviam projectado, numa gramtica completamente diferente, o prdio da Sociedade Portuguesa de Beneficncia daquela cidade.

    Na pedra lavrada do exterior do imvel so bem visveis os motivos manuelinos que sobressaem nas janelas e portais, bem como na cimalha, onde o rendilhado surge de uma forma mais requintada.

    Analisando-o interiormente, no se pode deixar de ter em conta o salo nobre, imponente pela rea que ocupa, pela decorao que ostenta e pelo mobilirio que o integra. Embora muito deteriorado, a verdade que se trata de uma sala com carcter. O programa escolhido para a deCOl'ao passa pela temtica camoniana, que est perfeitamente de acordo com o iderio que norteou a feitura deste e de outros imveis do mesmo teor e se insere no esprito romntico, a fazer-se ainda sentir em 1 900, por razes bvias, no Brasil, em geral, e em Santos de forma particular.

    No tecto, em caixotes redondos ou rectangulares, encontram-se, exibindo, certo,

  • uma qualidade mais do que duvidosa, pinturas com cenas de Os Lusadas. Serviram de modelo ao artista espanhol A. Fernandez, que as assina e as data de 1909, as gravuras da monumental edio do poema camoniano editado em Paris pela casa Firmin Didot no ano de 1817 , sob a direco artstica de Grard e custeada pelo mecenatismo do Morgado de Mateus. O cotejamento das duas produes artsticas no deixa qualquer margem para a dvida.

    Nas paredes do salo, para alm de alguns leos que retratam personalidades ligadas ao Centro, existem tambm telas de carcter historicista.

    O Real Centro Portugus de Santos, que tem por lema entre gente remota edificaram novo reino que tanto sublimaram , veio, por volta de 1 946, j eivado de outra mentalidade, a afastar-se dos objectivos iniciais e o edifcio passou a servir apenas como local de reunio da colnia lusa, finalidade para que, segundo alguns associados, se encontrava vocacionado, dado que as suas linhas arquitectnicas e toda a sua decorao falavam da Ptria distante e estremecida e porque havia sido feito para ser portugus e para que l recebessem, com o maior carinho, os seus irmos brasileiros' dando a iluso de que os estavam agasalhando na sua casa, como o fariam, de mil amores, em Portugal.

    No Rio de Janeiro vivia, nos anos trinta do sculo XIX, uma ainda no muito numerosa colnia de portugueses, que, maioritariamente, apresentava centros de interesse comuns; por isso, poucos anos aps a independncia, esses elementos vieram a fundar um centro associativo capaz de lhes possibilitar isolarem-se na doce recordao das coisas

    da ptria e na ilustrao do esprito, pela leitura s dos bons autores e dos peridicos da poca .

    Do grupo, pelo papel relevante que desempenhou dentro da associao, no pode dei-

    Real Centro Portugus de Santos.

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  • Real Centro Portugus de Santos. Pormenor.

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    xar de se destacar o Dr. Jos Marcelino da Rocha Cabral, verdadeiro mentor espiritual da colectividade e Francisco Eduardo Alves Viana, responsvel pela redaco dos primeiros estatutos.

    Rocha Cabral, devido s ,

  • polticas. Subscreveu ainda todos os jornais brasileiros que ento se publicavam.

    Com estas aquisies que se prolongaram, com uma maior ou menor intensidade, ao longo de mais de sculo e meio de existncia, a que se somaram legados e doaes, particulares ou estatais, o Gabinete Portugus de Leitura do Rio de Janeiro conseguiu formar a sua, ainda hoje, portentosa livraria; o acervo da biblioteca, em 1860, contava j com cerca de 33.000 volumes e, vinte anos depois, rondava os cinquenta mil exemplares. Neste contexto, no admira, pois que, em 1880, fosse considerada a mais importante biblioteca do Brasil, depois da Pblica do Rio da Janeiro.

    O Gabinete Portugus de Leitura teve a sua primeira sede no sobrado do nmero 83 da rua de S. Pedro, embora, em 1842, se transferisse para a rua da Quitanda, onde ocupou um belo prdio de trs pavimentos, de fachada azulejada e beiral de telhas de canal esmaltadas em Alcobaa; no entanto, o espao necessrio para guardar os numerosos livros que possua tornou-se exguo e, em 1850, a directoria viu-se obrigada a procurar novo abrigo, desta feita, na ento perifrica rua dos Beneditinos.

    Como a biblioteca no parasse de aumentar, este edifcio acabou por deixar de caucionar as exigncias da associao, impelindo as directorias, pelo menos a partir de 1861 , a pensar na construo de uma casa prpria que respondesse, com comodidade e eficcia, s carncias e objectivos da instituio.

    Foi tambm, e paradoxalmente, mais ou menos por esta altura que a colectividade passou por uma crise que quase se pode denominar de crescimento, porque, entre os mais velhos (os fundadores do Gabinete) e uma gerao de imigrados jovens, chegados ao Brasil a partir de 1842, veio a travar-se, em sucessivas assembleias, uma luta cerrada,

    dado que os segundos, gente ligada s novas correntes esttico-literrias (entre os quais se contava Joaquim da Costa Ramalho Ortigo) pretendiam a reforma das coleces da biblioteca e um amplo alargamento do crculo de influncias.

    Mas todos estavam de acordo que a necessidade mais urgente do Gabinete Portugus de Leitura [era] uma casa prpria para a sua biblioteca, com as vastas propores que requer[ia] a sua avultadssima livraria; seria wn edifcio que attestar[ia] no futuro o patriotismo e a dedicao dos actuais accionistas do Gabinete.

    A transferncia do Centro para a rua dos Beneditinos no fora favorvel e, em 1871 , a directoria comprou o prdio onde funcionava o Hotel So Pedro, na rua da Lampadosa, actual Lus de Cames, bem perto da do Ouvidor e a dois passos da Quitanda. Era ali, no bairro das artes e dos estudos que se ia erguer

  • segundo, traado por Rafael da Silva Castro, adoptava no seu desenho a arquitectura manuelina, que no edifcio dos Jeronymos em Belm, consubstanciou o que Cames fez na poesia pica, e frei Lus de Souza na prosa descritiva. O arquitecto lisboeta, numa carta-memria descritiva, escrita na capital a 1 9 de Julho de 1872, referia que, conforme lhe haviam recomendado, utilizara naquela fachada, assim como em todo o edifcio o estilo manuelino, seguindo com especialidade a arquitectura da igreja dos Jernimos.

    Alis o posicionamento de Castro, assumindo uma atitude tipicamente romntica, capaz de criar ambientes significativos, carregados de sugestes culturais e emotivas, resultava do desejo de uma certa elite local, como se encontra bem patente nas decises que os elementos mais empenhados do Gabinete, pertencentes, na sua maior parte, a um destacado estrato econmico e social, acabavam por tomar.

    Aproximava-se, entretanto, o tricentenrio da morte de Cames e, face comunho dos scios mais representativos com as conotaes patriticas que envolviam este acontecimento, a instituio no pretendia, nem desejava, manter-se alheia efemride, tendo j a directoria, no seu relatrio de 1878, aventado a hiptese de aderir s comemoraes. Ideia bem acolhida e frutfera, pois o Gabinete, desejando ligar-se ao nome do poeta atravs de um lao perptuo, escolheu um vnculo de pedra, dando simbolicamente incio, nesse dia, construo da sua nova sede.

    Alm disso publicou uma edio especial de Os Lusadas, que recebeu letra de forma na casa lisboeta de Castro Irmo, promoveu iluminaes, regatas, uma marcha flambeaux, uma rcita no Imperial Teatro D. Pedro II (Joaquim Nabuco foi o orador oficial) e outras manifestaes.

    A fim de se tornar uma lembrana duradoura da augusta solenidade do centenrio de Cames, data memorvel que fulgurar perpetuamente nos anais da humanidade e de eternizar a data do assentamento da pedra ftmdamental do novo edifcio, facto que se transformou no acto mais relevante das comemoraes camonianas levadas a cabo pelo Gabinete, foi ainda cunhado um numisma.

    Quando se consumou a deciso de integrar o lanamento da pedra fundamental da biblioteca no mbito daquela efemride, foi afastado o projecto de Rafael da Silva Castro e, o plano do edifcio, cuja fachada principal ser[ia] modelada no estilo manuelino, era o que tinha sido encomendado ao provecto e distinto arquitecto o SI: comendador Bethencourt da Silva o que significava a certeza antecipada de se tratar de uma obra de mrito; apesar disso, era ponto assente que a fachada manuelina vir[ia] completa de Lisboa, e que no plano da obra entra[ria] considervel material de ferro.

    Atravs de tudo o que ento se escreveu acerca do assunto e daquilo que se consegue enxergar nas entrelinhas, visiona-se claramente o desejo da directoria de fazer construir um imvel que se integrasse num programa moderno, capaz de apresentar, entre as pedras historicistas e o ferro industrial , uma interligao perfeita.

    Entretanto e sem que se consigam vislumbrar com clareza todos os meandros, a verdade que foram recebidos no Rio, em finais de Setembro de 1879, algumas plantas, cortes e alados vindos de Nova Iorque.

    Francisco Joaquim Bethencourt da Silva -arquitecto que fora discpulo de Grandejean de Montigny, completara os seus estudos na cidade dos papas e exercia a sua profisso no Rio de Janeiro - em resposta encomenda de 1 878 entregou no Gabinete uma fachada a 48

  • Interior do Real Gabinete Portugus de Leitura do Rio de Janeiro.

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    inserir-se dentro de um gosto historicista, que, contudo, no ultrapassava uma certa ambiguidade neogtica; embora tenha sido considerado um belo plano de forma elegantssima, apreciado e elogiado por quantos o tm visto, acabou por ser, numa reviravolta inexplicvel luz dos documentos, preterido por o

    do edifcio no estilo manuelino, traado em Lisboa pelo arquitecto o SI: Rafael da Silva e Castro, funcionrio agregado ao ministrio das Obras Pblicas, sempre a conviver paredes meias com o estilo afecto aos Descobrimentos, at porque colaborava nas obras do mosteiro dos Jernimos.

  • Os responsveis pelo Gabinete, ao optar, em 80, pelo projecto de Silva e Castro, talvez tivessem em mente a proposta enviada pelo arquitecto lisboeta no ano de 1872, mas como, posteriormente, vieram a adquirir, na rua da Lampadosa, mais dois prdios contguos, encarregaram o alarife de riscar novo alado, dado que a fachada se alongara quase para o dobro; esta verso, um muito aplaudido desenho da fachada, que entretanto, O Occidente, excelente revista ilustrada de Lisboa, publica.

    Ultrapassando todo este imbrglio, a verdade que, integrando as festas camonianas, no dia 10 de Junho de 1880, foi lanada, pelo Imperador, a pedra fundamental do edifcio. O acto contou com a presena das autoridades mais representativas da cidade, de muitos convidados e teve o concurso de muito povo . No pavilho, previamente erguido para esse fim, leu-se o auto do assentamento da pedra fundamental do edifcio para a biblioteca do Gabinete Portugus de Leitura no Rio de Janeiro, que foi assinado por Sua Majestade e por grande nmero dos presentes.

    Os trabalhos no se iniciaram logo de seguida, embora a inaugurao da nova biblioteca est[ivesse] fixada para 10 de Junho de 1 884, tempo bastante curto se se tiver em conta que a pedra da fachada seria trabalhada em Lisboa e o ferro importado da Europa. Para ver a obra efectivamente arrancar houve que esperar por Maro de 1881 , depois de terem sido estipuladas as condies que permitiram ao arquitecto Frederico Jos Branco passar a ser, por delegao da directoria, o administrador geral da construo.

    Em Novembro de 8 1 , o visconde do Rio Vez, ento j em Lisboa, como representante do Gabinete, contratou com Germano Jos de Sales, por onze contos de ris, o fornecimento da cantaria para a fachada e com o escultor

    Simes de Almeida a feitura das esttuas destinadas a ornament-la. Dentro de um programa consentneo com o iderio que norteou a construo do edifcio, deviam ser representados o infante D. Henrique, Lus de Cames, Vasco da Gama e Pedro lvares Cabral . O artista encarregou-se ainda de esculturar, para a fachada, quatro medalhes que representassem Ferno Lopes, Gil Vicente, Alexandre Herculano e Garrett. Os dois ltimos encontram-se insculpidos no portal da entrada, como se fossem os guardies eternos daquele templo do saber humano.

    O Gabinete Portugus de Leitura do Rio de Janeiro, a que D. Carlos, por decreto de 12 de Setembro de 1906, se dignou conceder o ttulo de Real, em 1884 j apresentava, exteriormente, o seu edifcio concludo e coberto. Neste templo da cultura, a estrutura superior do salo destinado livraria, primitivamente pensada em madeira, acabou por ser, sob parecer de Frederico Branco, substituda por uma outra de vidro e ferro; com efeito, ao apresentar esta proposta, o arquitecto demonstrou estar na posse de conhecimentos tecnolgicos modernos, difundidos sobretudo no perodo romntico.

    por demais significativo constatar que o entusiasmo e emoo, despertados pelo edifcio do Gabinete Portugus de Leitura, no decorreram do facto de aquele ser, com grande margem de certeza, a primeira obra de estrutura metlica construda no Rio, mas giraram em tomo do belo estilo manuelino, patenteado pela sua arquitectura, e da mensagem ideolgica que continha.

    As atenes, depois de 1884, voltaram-se para o interior do prdio, fazendo prosseguir os acabamentos e, simultaneamente, erguer as colunas, os varandins e as estantes des-tinadas a albergar o extraordinrio esplio 50

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    literrio, que havia sido acumulado ao longo dos anos.

    No tendo sido possvel que a inaugurao da nova casa se realizasse a 10 de Junho de 1884, como estava previsto, fixou-se o prazo final da construo [ . . . ] no futuro ano de 1 886; meta incumprida, porque, nesse Janeiro, ainda se apreciavam as propostas para a adjudicao da pintura interna e para a obra de ferro e de bronze da escada, dos caixilhos e do gradil.

    Em 1885, j se achavam colocadas no edifcio as figuras da frontaria, sadas do cinzel de Simes de Almeida, e parece que o efeito produzido era agradvel, at porque se tratava de esttuas hericas, onde sobressaa o porte elevado [das figuras] , a fisionomia grave e severa, a atitude pousada e nobre e porque se encontravam esculpidas com enorme correco e tinham toda a nobreza e severidade que a arte aconselha na grande estaturia que a grande idealizao dos heris que a histria registra nas suas paginas gloriosas, e que as geraes vo elevando em pedestais de ouro.

    Mas se a estaturia se inseria num programa historicista que exprimia a maneira de pensar e de actuar dos encomendantes e de alguns dos seus contemporneos, sobretudo dos mais ilustrados, outro tanto decorre no que toca pintura e decorao dos interiores, bem como s obras de arte que enfeitam o imvel.

    Ainda antes da inaugurao, quando em 10 de Setembro de 1 887 se festejou o quinquagsimo aniversrio da fundao do Gabinete, a 1 ivraria. [j] se achava colocada nas galerias da grande sala da biblioteca e as festividades puderam desenrolar-se nas novas instalaes sitas na antiga rua da Lampadosa, embora as obras s tivessem terminado em Setembro do ano seguinte e a inaugurao oficial tivesse

    efectivamente acontecido a 22 de Dezembro de 1888.

    O edifcio do Real Gabinete Portugus de Leitura do Rio de Janeiro, que os portugueses radicados no Rio de Janeiro ali deixaram como padro da sua 'nacionalidade e como sucesso histrica do seu valor e da sua energia, por expresso desejo dos seus impulsionadores, e dentro de um esprito romntico em que o his'toricismo e o patriotismo se apresentavam de mos dadas, insere-se nos cnones neomanu-elinos e filiou-se, como ficou bem patente, nos Jernimos, esse arco de triunfo por onde Portugal, senhor dos mares, entrou na Histria da Civilizao! . . . .

    Ao longo dos sculos constata-se que a pedra sempre foi o material preferido pelos portugueses para erguer as suas obras de arte, e a magia e o significado das pedras, bem como I sentido patritico que o edifcio fluminense assumia, foram exaltados no eloquente e longo discurso que Joaquim Nabuco, homem relacionado com as letras brasileiras, tribuncio proeminente e paladino da abolio da escravatura, proferiu na sesso inaugural.

    O Gabinete Portugus de Leitura do Rio de Janeiro comeou por ser uma instituio fundada por portugueses poucos anos depois da independncia e, ao longo dos tempos, acabou por granjear prestgio, somar triunfos e depositar no templo manuelino, padro memorvel dos descobrimentos e navegaes nacionais, o atestado vivo da alma potica e do valor moral da gerao que logrou deixar, em terra estranha, um monumento to representativo do seu passado histrico e do amor literatura ptria.

    o presente trabalho, embora contendo alguns elementos novos, sintetiza, grosso modo, o Captulo rv. A emigrao do neomanuelino para terras brasileiras, do meu trabalho Arquitectura neollledieva! portuguesa, 1 780- 1924, 2 vols" Lisboa, Fundao Calouste GuJbenkiannNICT, 1997.